Monumentos coloniais em tempos pós-coloniais. A estatuária de Lourenço Marques

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Actas Sessões Simultâneas (2.ª edição revista e aumentada)

2014

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Título Actas do IV Congresso de História da Arte Portuguesa em Homenagem a José-Augusto França Sessões Simultâneas (2.ª edição revista e aumentada)

Coodernação Begoña Farré Torras

Revisão de texto Helena Roldão

Colaboração Ughetta Molin Fop e Eloísa Rodrigues

Propriedade APHA – Associação Portuguesa de Historiadores da Arte

© 2014 Autores e APHA ISBN 978-989-20-4815-4  

 

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  21 NOVEMBRO SESSÃO TEMÁTICA 2 – ARTE CONTEMPORÂNEA EM CONTEXTO. ARTE PÚBLICA,  NATUREZA E CIDADE   

Monumentos coloniais em tempos pós-coloniais. A estatuária de Lourenço Marques   Gerbert Verheij CR­Polis, Universitat de Barcelona, Espanha   1. Introdução  Em 1976, pouco depois das várias independências das antigas províncias ultramarinas portuguesas, o  cineasta e escritor António Lopes Ribeiro publicou, na revista Resistência, um poema com o título  “Requiem nos cais de Lisboa”. Esta elegia para o recém­desmoronado Império cristaliza­se em duas  imagens: as caixas com os bens dos retornados que então enchiam os cais de Lisboa – o “Império  encaixotado”, como lhe chama Lopes Ribeiro – e a queda das estátuas:  Onde estão, que descaminho  Levaram (sabe­se lá!)  A estátua de Mouzinho  E de Correia de Sã?  As duas estátuas referidas são as de Mouzinho de Albuquerque e de Salvador Correia de Sã,  retiradas, nesse ano de 1975, dos seus lugares de destaque em praças das cidades de Lourenço  Marques, actual Maputo, e Luanda, respectivamente. A estátua de Mouzinho, tal como os dois  relevos do plinto do monumento inaugurado em 1940, estão hoje na Fortaleza de Nossa Senhora da  Conceição em Maputo; a de Correia de Sã, inaugurada na década de 1880, encontra­se actualmente  na Fortaleza de São Miguel em Luanda. A interrogação do trecho citado é, no entanto, retórica: as  estátuas, derrubadas e removidas, funcionam dentro da lógica da metonímia: para Lopes Ribeiro, os  “descaminhos” das estátuas substituem o descaminho do desmoronado Ultramar português. Esta  opção pela retórica das estátuas caídas tem algo de evidente: remete para um imaginário comum  para ilustração de fins de regimes e impérios, que, apesar de poder parecer arcaico, está longe de  esgotado, como mostraram as imagens da estátua derrubada de Saddam Hussein que em 2003  correram mundo.  Estando o tema do destino das estátuas portuguesas no antigo Ultramar praticamente ausente da  historiografia artística portuguesa1, a pergunta de Lopes Ribeiro sobre o destino das estátuas e a tão  forte carga retórica à volta da estátua caída podem servir de introdução à interrogação que pretendo                                                              1

 Em relação ao “iconoclasmo” no antigo Ultramar português, uma das poucas referências é Dario Gamboni, The destruction of art: Iconoclasm and vandalism since the French Revolution (London: Reaktion Books, 1997),  109, onde o autor se debruça principalmente sobre Macau. Mesmo casos mediáticos de destruição ou remoção  de estátuas estado­novistas em Portugal, como as de Salazar no Palácio da Foz em Lisboa e em Santa Comba  Dão, têm suscitado menos atenção do que seria de esperar. O tratamento mais exaustivo destes casos, numa  perspectiva  histórica  da  produção  e  recepção  das  imagens  de  Salazar,  é  de  João  Medina,  Salazar,  Hitler  e  Franco  (Lisboa:  Horizonte,  2000),  195ss.  Mais  especificamente  dentro  da  História  da  Arte  referem­se  as  abordagens de José Guilherme Abreu, “Escultura pública e monumentalidade em Portugal (1948–1998): Estudo  transdisciplinar de História da Arte e Fenomenologia Genética” (dissertação de doutoramento, Universidade Nova  de Lisboa, 2006),  583–588 e 646–649, e Helena Elias e Inês Marques, “As últimas encomendas de arte pública do Estado Novo (1965–1985),” on the w@terfront 23 (2012). 

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seguir aqui: a das leituras e significados das estátuas caídas (e em queda) em Maputo durante e após  a independência de Moçambique em 1975. Particularmente, tentarei problematizar o “fim” das  estátuas que está implícito na pergunta de Lopes Ribeiro, discutindo a sua sobrevivência além da  simbólica morte teatralizada no ritual do apeamento.    2. A queda das estátuas  O tema da remoção ou destruição de obras escultóricas no espaço público insere­se no tema maior  do “iconoclasmo” ou, em termos menos carregados, destruição e “mau uso” das obras de arte.  Contra uma visão que reduz este tipo de actos a mero vandalismo exterior às problemáticas  abordadas pela História da Arte, remetendo­os, quando muito, para as notas de rodapé da disciplina,  Dario Gamboni defende, em The destruction of art (1997), que os atentados às imagens são mais  bem entendidos como desvios de uma norma de utilização. Desta perspectiva, tais actos não são  desprovidos de sentido, mas implicam leituras e valorizações diferentes, isto é, uma forma entre  outras de recepção estética. A queda das estátuas e os novos usos a que podem ser sujeitas são,  então, problemáticas que não só dizem respeito ao domínio da arte indirectamente – na medida em  que colocam questões patrimoniais ou de preservação – mas incidem nos próprios modos de  exposição e recepção da obra.  Por outro lado, a estátua caída, quando reenquadrada por um dispositivo expositivo, aproxima­se à  ruína enquanto categoria patrimonial. Como tal, ela pode ser pensada contra o fundo da  reconceptualização do conceito de monumento iniciada no início do século passado por Alois Riegl 2,  e cuja pertinência tem sido apontada por autores como Françoise Choay 3. Como se sabe, o primeiro  autor contrapunha os monumentos “intencionais” a uma nova (“moderna”) categoria de  monumentos, que caracterizou como “não intencionais”, a que a ruína pode servir como modelo.  Na sua concepção tradicional, o monumento apela à imortalidade, ao presente perpétuo, fundando a  autoridade deste apelo na imagem imóvel que apresenta. É elemento fundador do que Henri  Lefebvre chamou um espaço de representação, um espaço onde dada comunidade ergue (ou onde  lhe são erguidos) símbolos, imagens, memórias nos quais se revê (ou é impelido a rever­se); onde se  lhe faz uma representação com que, no entanto, não coincide4. O monumento como “espelho  colectivo”, imagem ou alegoria da comunidade, que corresponde, como veremos, às intenções (ou  pelo menos aos sonhos) do Estado Novo. Este conceito do monumento foi­se modificando, seguindo  argumentos de Riegl e Choay, pela crescente importância do “valor de antiguidade” ou patrimonial 5.  Noção que remete para a manifestação involuntária na obra da passagem do tempo, da entropia;  que implica, num contexto em que a ideia de comunidade é muito mais difícil de definir, uma  distância, uma diferença, em vez de uma representação ou identidade; e a que se associam modos  diferentes de exposição e leitura, nem sempre intencionais.  Os usos e representações em torno das estátuas que a seguir abordarei parecem apontar para uma  tal manifestação involuntária da própria historicidade na obra. Após a independência, várias das  estátuas portuguesas, apesar de despidas do seu enquadramento monumental e funcionalidades  iniciais, continuam presentes enquanto elementos significativos no espaço urbano – sobrevivências,  ou segundas vidas (um Nachleben warburgiana, quase se poderia dizer), fora dos caminhos  interpretativos previstos, que parecem implicar essa ideia de ruína ou vestígio.                                                              2

 Der moderne  Denkmalkultus: sein  Wesen und seine Entstehung (1903). Utilizou­se a  tradução espanhola, El  culto moderno a los monumentos: Caracteres y origen (Madrid: A. Machados Libros, 2008).  3  Françoise Choay, A alegoria do património (Lisboa: Edições 70, 1999).  4 Henri Lefebvre, The production of space (Oxford: Blackwell Publishing, 1991), 33–39 e 220–228. 5  Veja­se Antoni Remesar, “Para una Teoría del Arte Público: Proyectos y Lenguajes Escultóricos” (Barcelona,  1997), para uma defesa da pertinência de uma abordagem “patrimonial” à arte em espaço público. 

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  3. A estatuária estado­novista em Moçambique e a sua sorte após 1975  Houve, sob o Estado Novo, uma larga produção de escultura pública para as antigas colónias, ainda  pouco estudada6. Esta produção resultava de encomendas directas ou concursos promovidos quer  por instâncias locais – as Câmaras Municipais ou Governos Coloniais (em Lourenço Marques é o caso  do Monumento a Mouzinho de Albuquerque) – quer pelo Estado central, sobretudo após a criação  do Gabinete de Urbanização Colonial/do Ultramar em 19447. A execução cabia, com muito  esporádicas excepções, a escultores metropolitanos. Em casos mais raros foram promovidos fora dos  aparelhos administrativos: exemplos são os Padrões da Guerra, implantados em Lourenço Marques e  Luanda pela Comissão dos Padrões da Grande Guerra.  Estas obras tinham uma vocação antes de mais política: afirmavam na paisagem, urbana e não só,  signos da Nação, da “História” e das suas máscaras – os heróis, os grandes “feitos”. Neste sentido, a  própria noção de monumentalidade podia associar­se a uma ideia de civilização ocidental que se  opunha a outras culturas. No entanto, entender as obras como simples imagens de propaganda seria  redutor. A sua leitura aparentemente transparente como mensagem política sustentava­se em  rituais e discursos. O monumento respondia, neste contexto, a funções tão diversas como a de  construir uma “memória colectiva”, criar espaços apropriados para o culto político e encenar uma  ordem social. O monumento ou a estátua era assim enquadrado por um complexo jogo de valores  políticos, sociais e estéticos – um processo transversal à vigência do Estado Novo 8 (Fig. 1).  Ainda antes da independência formal, a 25 de Junho de 1975, o governo de transição moçambicano  inicia a remoção dos monumentos coloniais dos espaços públicos9. O carácter simbólico destas  remoções é, como já foi referido, quase evidente, mas no caso das antigas possessões portuguesas  este simbolismo parece ter sido mais intenso pela insistência com que o Estado Novo recorrera à arte  como instrumento político. Num periódico da altura, o “Império” português é explicitamente  caracterizado como “[u]m mundo de estátuas e de símbolos”, onde “[c]ada inauguração, cada  discurso, cada estátua era um marco de posse”10. Tratava­se, assim, também de uma apropriação e  reconstrução das formas de representação colectiva, da “descolonização das mentalidades”, como  então se dizia.  Uma fotografia de Ricardo Rangel (Fig. 2) capta com grande eficácia visual a queda de uma dessas  estátuas – a de Mouzinho de Albuquerque, vendo­se em primeiro plano um dos baixos­relevos do  plinto – como metáfora da queda do regime. Sugere também o carácter alegre desta profanação,                                                             

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  Para  uma  tentativa  recente  de  inventariação,  veja­se  o  segundo  volume  da  obra  Património  de  origem  portuguesa no mundo: Arquitetura e urbanismo (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010), coordenado por  Filipe  Themudo  Barata  e  José  Fernandes.  Os  conteúdos  desta  obra  estão  a  ser  disponibilizados  on­line  em  http://www.hpip.org/.  Para  o  caso  de  Moçambique,  veja­se Gerbert Verheij, “Monumentalidade e espaço público em Lourenço Marques nas décadas de 1930 e 1940” (dissertação de mestrado, Universidade Nova de  Lisboa, 2011), especialmente 117–129.  7  Sobre o Gabinete de Urbanização Colonial, veja­se Ana Vaz Milheiro e Eduardo Costa Dias, “Arquitectura em Bissau  e  os  Gabinetes  de  Urbanização  colonial  (1944–1974),” arq•urb 2  (2009):  80–114;  sobre  a  actividade  deste  organismo  em  Moçambique  pode­se  consultar  André  Faria  Ferreira,  Obras  públicas  em  Moçambique:  Inventário da produção arquitectónica executada entre 1933 e 1961  (Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas,  2008).  8  Este argumento é desenvolvido ao longo de Verheij, “Monumentalidade e espaço público”.  9  Veja­se “Monumentos coloniais vão ficar em museu,” Notícias de Moçambique 24 (24 de Maio de 1975), 19,  onde é reproduzido o decreto do governo relativo à remoção das estátuas coloniais.  10  Esta e seguintes citações de “Colonialismo: Um mundo de estátuas e de símbolos,” Notícias de Moçambique  24  (24 de Maio  de 1975),  1–3.  A  questão das  estátuas  inseria­se num debate mais alargado sobre a  re­ semantização urbana. Para isso, veja­se também os números 4 (21 de Dezembro de 1974), 10 (8 de Fevereiro  de 1975) e 12 (22 de Fevereiro de 1975). 

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que implicava a eliminação da distância que antes dava à estátua a sua plausibilidade como imagem  de um regime.  Dentro da referida lógica de descolonização, o governo de transição previu a recolha das estátuas  desmanteladas em museus, como futuros “elementos de estudo da história da ocupação colonial”.  Há vários destes repositórios de estatuária colonial, que atestam de políticas semelhantes nas outras  novas nações lusófonas: o Forte do Cachéu em Guiné, a Fortaleza de São Sebastião em São Tomé e  Príncipe, e a Fortaleza de São Miguel, em Luanda. Em Maputo, parte da estatuária portuguesa  encontra­se hoje no recinto do Museu de História Militar, situado na Fortaleza de Nossa Senhora da  Conceição11. Houve, no entanto, outros destinos para as estátuas derrubadas, que passarei  brevemente em revista.    4. Destinos da estatuária portuguesa em Maputo  Em primeiro lugar, há obras desaparecidas, como os padrões comemorativos espalhados pela cidade  ou a estátua em bronze que estava à frente do plinto do Monumento a Mouzinho, representando  uma figura feminina que guia pela mão uma criança “indígena”. Outras estátuas da cidade ficaram  em depósito fora da vista pública. Algumas destas encontram­se em estado semidestruído, como  uma das estátuas que Simões de Almeida (sobrinho) esculpiu entre 1948 e 1951 para a fachada da  Câmara Municipal de Lourenço Marques, hoje no jardim do Museu de Arte de Maputo 12. Outras  estão relativamente bem preservadas. Um exemplo é a pouco conhecida réplica da estátua de  Salazar, da autoria de Francisco Franco, que figura o ditador como doutor de Coimbra (Fig. 3), de  história atribulada. Uma primeira reprodução em pedra foi colocada no recinto do liceu homónimo,  inaugurado em 1952. Por volta de 1963 foi destruído com explosivos por um grupo de oposição ao  regime13. No ano seguinte foi reposta uma nova versão em bronze, que se encontra actualmente na  Biblioteca Nacional de Moçambique – onde (por enquanto) dorme o “sono do bronze na morte  obscura das estátuas inúteis”.  Algumas das estátuas retiradas ou destruídas foram substituídas. Isto foi um propósito já  apresentado pelo governo de transição mas só realizado a partir dos anos 1990, com a inauguração  de uma estátua de Samora Machel em frente ao Jardim Tunduru, onde antes estava um padrão  comemorativo da visita presidencial de Carmona, em 1939. Em 2011, por ocasião do 25.º aniversário  do acidente de viação que matou Samora Machel, foi inaugurada uma versão quase idêntica, mas de  escala maior, da mesma estátua na Praça da Independência de Maputo, no antigo local do  monumento a Mouzinho, em frente da Câmara Municipal14.                                                              11

 A estátua equestre de Mouzinho de Albuquerque e os dois relevos laterais do plinto (Simões de Almeida e  Leopoldo  de  Almeida),  nada  se  sabendo  da  alegoria  feminina  que  estava  à  frente  do  plinto;  a  estátua  de  António Enes de 1910 (Teixeira  Lopes); e um busto, provavelmente um retrato de Álvaro de Castro de Costa  Mota  sobrinho,  colocado  em  1949  no  Museu  Álvaro  de  Castro.  A  mesma  sorte  teve  a  estátua  de  Neutel  de  Abreu (Euclides Vaz), inaugurada em 1956 em Nampula, hoje no museu da cidade.  12   Veja­se  imagens  em  delagoabayworld.wordpress.com/category/coisas/estatuas­da­camara­municipal­lm/.  Nesta obra o “indígena” é, à semelhança da desaparecida figura alegórica do Monumento a Mouzinho,  figurada de forma particularmente paternalista, o que poderá explicar este tratamento. No entanto, também é  de  notar  que  a  figura  é  de  pedra,  material  mais  frágil  do  que  o  bronze.  Uma  estátua  de  Vasco  da  Gama  em  Inhambane, também em pedra, mostra, no entanto, já sinais claros de vandalismo intencional (veja­se imagens  em myafricanices.blogspot.pt/2006/04/inhambane­moambique.html).  13   Veja­se  o  testemunho  do  poeta  Rui  Nogar  em  Patrick  Chabal,  Vozes  moçambicanas:  Literatura  e  Nacionalidade (Lisboa: Vega, 1994), 160–182. A estrofe citada de seguida é do seu poema “Aeroporto”.  14  Apesar de seguirem cânones próximos ao realismo socialista (e consta que foram encomendadas na Coreia do Norte), é curioso notar nestas obras uma certa continuidade com os modelos estado­novistas ao nível da  temática heróica, de figuração e pose, e dos próprios lugares. 

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Outras estátuas, pelo contrário, mantiveram­se no seu lugar. É o caso do Padrão de Guerra, obra  comemorativa da intervenção portuguesa em Moçambique durante a Primeira Guerra Mundial,  inaugurada em 1935, da autoria do escultor Ruy Gameiro e do arquitecto Veloso Reis Camelo. A  preservação pode dever­se a razões práticas: ao contrário das estátuas de bronze, esta é uma  estrutura com mais de 14 metros de altura em pedra maciça, que não poderia ter sido removida sem  danos irreversíveis. Isto não impediu, contudo, a destruição de um padrão semelhante em Luanda  (por Manuel Mendes e Henrique Moreira).   Mas é também de notar que o Padrão em Maputo (ao contrário do que acontecia no Padrão em  Luanda) é das poucas obras de escultura pública erguida em Moçambique durante o regime do  Estado Novo que figura a população sem paternalismos: nos relevos, soldados moçambicanos  erguem a figura da pátria em pé de igualdade com soldados metropolitanos. E é possível que hoje a  pesada retórica nacionalista da figura da pátria já não seja legível como tal. Neste sentido, cita­se  uma interpretação frequentemente reproduzida em guias turísticos. Esta diz que a figura feminina  homenageia uma mulher que salvou a cidade, matando uma perigosa serpente num pote de água a  ferver; interpretação que toma um fragmento de padrão segurado pela pátria por pote e que se  apoia na presença de uma serpente à direita da figura.  Estes processos de alteração semântica podem ser intencionais: em Bissau, o Monumento ao Esforço  da Raça foi rededicado aos Heróis da Independência, depois de retiradas as inscrições originais e  colocada uma estrela de cinco pontas no topo. Também podem levar a reposições. Na ilha de  Moçambique, as estátuas de Vasco da Gama e de Camões foram primeiro removidas como símbolos  da ocupação colonial, e mais tarde recolocadas por figurarem personagens historicamente ligadas à  ilha.    5. A estátua de Mouzinho de Albuquerque: leituras da sua queda e sobrevivência  A queda das estátuas não se limitou, portanto, a simples apagamentos e substituições de símbolos.  Alguns olhares sobre o derrube e a vida “pós­monumental” da estátua de Mouzinho demonstram  como também não implicava necessariamente um fim.  Mia Couto escreveu, já nos anos 1980, um breve conto sobre a queda da estátua, com o título “A  derradeira morte de Mouzinho”15. A narrativa recorda a fotografia de Ricardo Rangel (Fig. 2). O  narrador conta como a queda visualizava o colapso da ordem colonial: “Quando a estátua já  terminou a sua queda, por dentro daqueles olhos portugueses [dos colonos], cavalo e cavaleiro  continuam a tombar, já sem arte nem aprumo […]. Há um mundo que termina.” Desta forma, a  leitura da estátua alterava­se: “pareceu provir [da estátua] um suspiro triste, como se Mouzinho nos  confiasse um infinito cansaço de posar para o retrato do mito.” E, noutro lugar: “Afinal, Mouzinho é  apenas um nome, um herói contrafeito. As brutalidades da dominação excedem este solitário  cavaleiro. Do militar fizeram lenda e era esse artifício que mais magoava.”  No conto, a utilização política do monumento é explicitada, mas também contraposta a uma nova  imagem que emerge do mito desfeito. Uma imagem que antes, em cima do pedestal, não seria  plausível. Neste sentido, a nova situação no Museu de História Militar implica um claro  reenquadramento da estátua (Fig. 4). Sem o pedestal, sem a escala e o lugar privilegiado do  monumento, sem o aparato ritual, a estátua ingressa numa nova hierarquia expositiva, ao mesmo  nível que o espectador. E agora o retrato aparece tingido de melancolia – como se o escultor tivesse 

                                                           

15

 Mia Couto, “A derradeira morte de Mouzinho,” in Cronicando (Lisboa: Caminho, 1991), 161–163. As citações  seguintes são daqui retiradas. 

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preferido representar não o herói das cargas de cavalaria e da captura do temido Gungunhana, mas  antes o romântico cavaleiro, nascido, segundo o próprio, no século errado, e que cedo se suicidou 16.  Mas esta melancolia de ordem biográfica não pode ser separada de outra, própria das estátuas  postas de lado. Estátuas que, lê­se num livro dedicado, precisamente, às memórias de Lourenço  Marques, “haviam perdido a cidade” e “clamaram por Justiça, ignorantes da fragilidade da condição  humana e da subjectividade da interpretação da história”17. A estátua é, assim, também um  monumento à sua própria queda, memória do império perdido. Tal como a ruína, representa aquilo  que já não é – é de certa forma um antimonumento, um espelho quebrado que reflecte o vazio que  sobra das fantasias de dominação.  No entanto, as leituras do monumento não se limitam necessariamente a tais alegorias de um  passado perdido e irrecuperável. De facto, na Fortaleza de Maputo, estas memórias convivem com a  valorização patrimonial, turística e cultural. Uma imagem do fotógrafo moçambicano José Cabral  aponta, também, para a possibilidade de leituras menos melancólicas18. A imagem (Fig. 5) retrata o  filho do fotógrafo a subir um dos relevos do Monumento a Mouzinho. A persistência e o peso do  passado colonial aparecem, na figura da criança, com uma quase íntima proximidade ao presente e  ao futuro. Parece que a fotografia nos diz que não é possível despachar a história para o museu, mas  que a história, marcando o presente, não o determina, deixando em aberto o futuro. Remete assim  para a ambígua esperança do narrador do conto de Mia Couto de que, após a necessária morte  simbólica da estátua, o povo moçambicano seria finalmente capaz de construir, a partir das ruínas do  passado, o seu próprio futuro, “sem ninguém [lhes] dizer o que fazer”.  A imagem de José Cabral ilustra como a estátua de Mouzinho pode continuar a desempenhar um  papel na visualização não só do passado, mas também do presente. Os caminhos das estátuas  portuguesas – poder­se­ia responder por fim a António Lopes Ribeiro – não se esgotaram na queda,  mas antes abriram­se a novos contextos, olhares e interrogações.   

 

                                                           

16

  Para  uma  visão  histórica  (e  não  mistificada)  de  Mouzinho  de  Albuquerque  veja­se  Aniceto  Afonso,  “Mouzinho de Albuquerque, o herói dos heróis,” in História de Portugal (Lisboa: Ediclube, 1993), IX: 255–262.  17  José Alves Pereira, prefácio a Memórias de Lourenço Marques: Uma visão do passado da cidade de Maputo,  de João Loureiro (Lisboa: Maisimagem, 2004), 2.ª ed., 7.  18 Este  fotógrafo  está também por  laços biográficos ligado à  estátua  de Mouzinho:  é o neto do governador­ geral homónimo que em 1935 disponibilizara uma verba avultada no orçamento da Colónia para completar o  fundo necessário para a realização do monumento. 

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Fig. 1 – Composição fotográfica da inauguração do Monumento a Mouzinho de Albuquerque, 1940. Fonte:  Moçambique, Documentário Trimestral 24 (1940) 

 

  Fig. 2 – (Não disponível) Ricardo Rangel, “O outro destino dos  heróis, 1975”. Fonte: Ricardo Rangel, photographe du  Mozambique (Maputo: Centre Culturel Franco­Mozambicain,  1994 

 

 

Fig. 3 – Estátua de Salazar, Biblioteca Nacional  de Moçambique, Maputo, 2011. Fonte: Paulo  Pires Teixeira / Delagoa Bay 

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  Fig. 4 – Estátua de Mouzinho de Albuquerque, Museu de História Militar, Maputo, 2010.  Fotógrafo: Diogo Alves       

                                  Fig. 5 – (não disponível) José Cabral, “Maputo, 2002”. Fonte: Anjos urbanos (Lisboa: P4Photography,  2009) 

   

 

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BIBLIOGRAFIA    ABREU, José Guilherme. “Escultura pública e monumentalidade em Portugal (1948–1998): Estudo  transdisciplinar de História da Arte e Fenomenologia Genética”, dissertação de doutoramento,  Universidade Nova de Lisboa, 2006.  AFONSO, Aniceto. “Mouzinho de Albuquerque, o herói dos heróis”, in História de Portugal: Dos  tempos pré­históricos aos nossos dias. Vol. IX: A monarquia constitucional, ed. João Medina, 255– 262. Lisboa: Ediclube, 1993.  BARATA, Filipe Themudo, e José Fernandes, coordenação. Património de origem portuguesa no  mundo: Arquitetura e urbanismo. Vol. 2: África, Mar Vermelho, Golfo Pérsico. Dirigido por José  Mattoso. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.  CABRAL, José. Anjos urbanos. Lisboa: P4 Photography, 2009.  CHABAL, Patrick. Vozes moçambicanas: Literatura e nacionalidade. Lisboa: Vega, 1994.  CHOAY, Françoise. A alegoria do património. Tradução de Teresa Castro. Lisboa: Edições 70, 1999.   COUTO, Mia. “A derradeira morte de Mouzinho”, in Cronicando, 161–163. Lisboa: Caminho, 1991.  ELIAS, Helena, e Inês Marques. “As últimas encomendas de arte pública do Estado Novo (1965– 1985).” on the w@terfront 23, 2012.  http://www.raco.cat/index.php/Waterfront/article/view/254755.  FARIA FERREIRA, André. Obras públicas em Moçambique: Inventário da produção arquitectónica  executada entre 1933 e 1961. Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 2008.  GAMBONI, Dario. The destruction of art: Iconoclasm and vandalism since the French Revolution.  London: Reaktion Books, 1997.  LEFEBVRE, Henri. The production of space. Translation by Donald Nicholson­Smith. Oxford: Blackwell  Publishing, 1991.  MEDINA, João. Salazar, Hitler e Franco. Lisboa: Horizonte, 2000.  MILHEIRO, Ana Vaz, e Eduardo Costa Dias. “Arquitectura em Bissau e os Gabinetes de Urbanização  colonial (1944–1974)”, in arq•urb 2 , 2009: 80–114.  http://www.usjt.br/arq.urb/numero_02/artigo_ana.pdf.  PEREIRA, José Alves. Prefácio a Memórias de Lourenço Marques: Uma visão do passado da Cidade de  Maputo, de João Loureiro, 7. Lisboa: Maisimagem, 2004. 2.ª edição.  RANGEL, Ricardo. Ricardo Rangel, photographe du Mozambique. Maputo: Centre Culturel Franco­ Mozambicain, 1994. 

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REMESAR, Antoni. “Para una Teoría del Arte Público: Proyectos y Lenguajes Escultóricos.” Memoria  para el concurso de catedra, não publicado, Barcelona, 1997, disponível em  http://www.academia.edu/453848/Hacia_una_teoria_del_Arte_Publico  RIBEIRO, José Lopes. “Requiem nos cais de Lisboa”, in Resistência 128, 15 de Junho de 1976: 6.  RIEGL, Aloïs. El culto moderno a los monumentos: Caracteres y origen. Traducción de Ana Pérez  López. Madrid: A. Machados Libros, 2008, 3.ª edición.  VERHEIJ, Gerbert. “Monumentalidade e espaço público em Lourenço Marques nas décadas de 1930 e  1940”, dissertação de mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 2011.     

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