Monumentos coloniais em tempos pós-coloniais. A estatuária de Lourenço Marques
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Actas Sessões Simultâneas (2.ª edição revista e aumentada)
2014
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Título Actas do IV Congresso de História da Arte Portuguesa em Homenagem a José-Augusto França Sessões Simultâneas (2.ª edição revista e aumentada)
Coodernação Begoña Farré Torras
Revisão de texto Helena Roldão
Colaboração Ughetta Molin Fop e Eloísa Rodrigues
Propriedade APHA – Associação Portuguesa de Historiadores da Arte
© 2014 Autores e APHA ISBN 978-989-20-4815-4
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21 NOVEMBRO SESSÃO TEMÁTICA 2 – ARTE CONTEMPORÂNEA EM CONTEXTO. ARTE PÚBLICA, NATUREZA E CIDADE
Monumentos coloniais em tempos pós-coloniais. A estatuária de Lourenço Marques Gerbert Verheij CRPolis, Universitat de Barcelona, Espanha 1. Introdução Em 1976, pouco depois das várias independências das antigas províncias ultramarinas portuguesas, o cineasta e escritor António Lopes Ribeiro publicou, na revista Resistência, um poema com o título “Requiem nos cais de Lisboa”. Esta elegia para o recémdesmoronado Império cristalizase em duas imagens: as caixas com os bens dos retornados que então enchiam os cais de Lisboa – o “Império encaixotado”, como lhe chama Lopes Ribeiro – e a queda das estátuas: Onde estão, que descaminho Levaram (sabese lá!) A estátua de Mouzinho E de Correia de Sã? As duas estátuas referidas são as de Mouzinho de Albuquerque e de Salvador Correia de Sã, retiradas, nesse ano de 1975, dos seus lugares de destaque em praças das cidades de Lourenço Marques, actual Maputo, e Luanda, respectivamente. A estátua de Mouzinho, tal como os dois relevos do plinto do monumento inaugurado em 1940, estão hoje na Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição em Maputo; a de Correia de Sã, inaugurada na década de 1880, encontrase actualmente na Fortaleza de São Miguel em Luanda. A interrogação do trecho citado é, no entanto, retórica: as estátuas, derrubadas e removidas, funcionam dentro da lógica da metonímia: para Lopes Ribeiro, os “descaminhos” das estátuas substituem o descaminho do desmoronado Ultramar português. Esta opção pela retórica das estátuas caídas tem algo de evidente: remete para um imaginário comum para ilustração de fins de regimes e impérios, que, apesar de poder parecer arcaico, está longe de esgotado, como mostraram as imagens da estátua derrubada de Saddam Hussein que em 2003 correram mundo. Estando o tema do destino das estátuas portuguesas no antigo Ultramar praticamente ausente da historiografia artística portuguesa1, a pergunta de Lopes Ribeiro sobre o destino das estátuas e a tão forte carga retórica à volta da estátua caída podem servir de introdução à interrogação que pretendo 1
Em relação ao “iconoclasmo” no antigo Ultramar português, uma das poucas referências é Dario Gamboni, The destruction of art: Iconoclasm and vandalism since the French Revolution (London: Reaktion Books, 1997), 109, onde o autor se debruça principalmente sobre Macau. Mesmo casos mediáticos de destruição ou remoção de estátuas estadonovistas em Portugal, como as de Salazar no Palácio da Foz em Lisboa e em Santa Comba Dão, têm suscitado menos atenção do que seria de esperar. O tratamento mais exaustivo destes casos, numa perspectiva histórica da produção e recepção das imagens de Salazar, é de João Medina, Salazar, Hitler e Franco (Lisboa: Horizonte, 2000), 195ss. Mais especificamente dentro da História da Arte referemse as abordagens de José Guilherme Abreu, “Escultura pública e monumentalidade em Portugal (1948–1998): Estudo transdisciplinar de História da Arte e Fenomenologia Genética” (dissertação de doutoramento, Universidade Nova de Lisboa, 2006), 583–588 e 646–649, e Helena Elias e Inês Marques, “As últimas encomendas de arte pública do Estado Novo (1965–1985),” on the w@terfront 23 (2012).
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seguir aqui: a das leituras e significados das estátuas caídas (e em queda) em Maputo durante e após a independência de Moçambique em 1975. Particularmente, tentarei problematizar o “fim” das estátuas que está implícito na pergunta de Lopes Ribeiro, discutindo a sua sobrevivência além da simbólica morte teatralizada no ritual do apeamento. 2. A queda das estátuas O tema da remoção ou destruição de obras escultóricas no espaço público inserese no tema maior do “iconoclasmo” ou, em termos menos carregados, destruição e “mau uso” das obras de arte. Contra uma visão que reduz este tipo de actos a mero vandalismo exterior às problemáticas abordadas pela História da Arte, remetendoos, quando muito, para as notas de rodapé da disciplina, Dario Gamboni defende, em The destruction of art (1997), que os atentados às imagens são mais bem entendidos como desvios de uma norma de utilização. Desta perspectiva, tais actos não são desprovidos de sentido, mas implicam leituras e valorizações diferentes, isto é, uma forma entre outras de recepção estética. A queda das estátuas e os novos usos a que podem ser sujeitas são, então, problemáticas que não só dizem respeito ao domínio da arte indirectamente – na medida em que colocam questões patrimoniais ou de preservação – mas incidem nos próprios modos de exposição e recepção da obra. Por outro lado, a estátua caída, quando reenquadrada por um dispositivo expositivo, aproximase à ruína enquanto categoria patrimonial. Como tal, ela pode ser pensada contra o fundo da reconceptualização do conceito de monumento iniciada no início do século passado por Alois Riegl 2, e cuja pertinência tem sido apontada por autores como Françoise Choay 3. Como se sabe, o primeiro autor contrapunha os monumentos “intencionais” a uma nova (“moderna”) categoria de monumentos, que caracterizou como “não intencionais”, a que a ruína pode servir como modelo. Na sua concepção tradicional, o monumento apela à imortalidade, ao presente perpétuo, fundando a autoridade deste apelo na imagem imóvel que apresenta. É elemento fundador do que Henri Lefebvre chamou um espaço de representação, um espaço onde dada comunidade ergue (ou onde lhe são erguidos) símbolos, imagens, memórias nos quais se revê (ou é impelido a reverse); onde se lhe faz uma representação com que, no entanto, não coincide4. O monumento como “espelho colectivo”, imagem ou alegoria da comunidade, que corresponde, como veremos, às intenções (ou pelo menos aos sonhos) do Estado Novo. Este conceito do monumento foise modificando, seguindo argumentos de Riegl e Choay, pela crescente importância do “valor de antiguidade” ou patrimonial 5. Noção que remete para a manifestação involuntária na obra da passagem do tempo, da entropia; que implica, num contexto em que a ideia de comunidade é muito mais difícil de definir, uma distância, uma diferença, em vez de uma representação ou identidade; e a que se associam modos diferentes de exposição e leitura, nem sempre intencionais. Os usos e representações em torno das estátuas que a seguir abordarei parecem apontar para uma tal manifestação involuntária da própria historicidade na obra. Após a independência, várias das estátuas portuguesas, apesar de despidas do seu enquadramento monumental e funcionalidades iniciais, continuam presentes enquanto elementos significativos no espaço urbano – sobrevivências, ou segundas vidas (um Nachleben warburgiana, quase se poderia dizer), fora dos caminhos interpretativos previstos, que parecem implicar essa ideia de ruína ou vestígio. 2
Der moderne Denkmalkultus: sein Wesen und seine Entstehung (1903). Utilizouse a tradução espanhola, El culto moderno a los monumentos: Caracteres y origen (Madrid: A. Machados Libros, 2008). 3 Françoise Choay, A alegoria do património (Lisboa: Edições 70, 1999). 4 Henri Lefebvre, The production of space (Oxford: Blackwell Publishing, 1991), 33–39 e 220–228. 5 Vejase Antoni Remesar, “Para una Teoría del Arte Público: Proyectos y Lenguajes Escultóricos” (Barcelona, 1997), para uma defesa da pertinência de uma abordagem “patrimonial” à arte em espaço público.
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3. A estatuária estadonovista em Moçambique e a sua sorte após 1975 Houve, sob o Estado Novo, uma larga produção de escultura pública para as antigas colónias, ainda pouco estudada6. Esta produção resultava de encomendas directas ou concursos promovidos quer por instâncias locais – as Câmaras Municipais ou Governos Coloniais (em Lourenço Marques é o caso do Monumento a Mouzinho de Albuquerque) – quer pelo Estado central, sobretudo após a criação do Gabinete de Urbanização Colonial/do Ultramar em 19447. A execução cabia, com muito esporádicas excepções, a escultores metropolitanos. Em casos mais raros foram promovidos fora dos aparelhos administrativos: exemplos são os Padrões da Guerra, implantados em Lourenço Marques e Luanda pela Comissão dos Padrões da Grande Guerra. Estas obras tinham uma vocação antes de mais política: afirmavam na paisagem, urbana e não só, signos da Nação, da “História” e das suas máscaras – os heróis, os grandes “feitos”. Neste sentido, a própria noção de monumentalidade podia associarse a uma ideia de civilização ocidental que se opunha a outras culturas. No entanto, entender as obras como simples imagens de propaganda seria redutor. A sua leitura aparentemente transparente como mensagem política sustentavase em rituais e discursos. O monumento respondia, neste contexto, a funções tão diversas como a de construir uma “memória colectiva”, criar espaços apropriados para o culto político e encenar uma ordem social. O monumento ou a estátua era assim enquadrado por um complexo jogo de valores políticos, sociais e estéticos – um processo transversal à vigência do Estado Novo 8 (Fig. 1). Ainda antes da independência formal, a 25 de Junho de 1975, o governo de transição moçambicano inicia a remoção dos monumentos coloniais dos espaços públicos9. O carácter simbólico destas remoções é, como já foi referido, quase evidente, mas no caso das antigas possessões portuguesas este simbolismo parece ter sido mais intenso pela insistência com que o Estado Novo recorrera à arte como instrumento político. Num periódico da altura, o “Império” português é explicitamente caracterizado como “[u]m mundo de estátuas e de símbolos”, onde “[c]ada inauguração, cada discurso, cada estátua era um marco de posse”10. Tratavase, assim, também de uma apropriação e reconstrução das formas de representação colectiva, da “descolonização das mentalidades”, como então se dizia. Uma fotografia de Ricardo Rangel (Fig. 2) capta com grande eficácia visual a queda de uma dessas estátuas – a de Mouzinho de Albuquerque, vendose em primeiro plano um dos baixosrelevos do plinto – como metáfora da queda do regime. Sugere também o carácter alegre desta profanação,
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Para uma tentativa recente de inventariação, vejase o segundo volume da obra Património de origem portuguesa no mundo: Arquitetura e urbanismo (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010), coordenado por Filipe Themudo Barata e José Fernandes. Os conteúdos desta obra estão a ser disponibilizados online em http://www.hpip.org/. Para o caso de Moçambique, vejase Gerbert Verheij, “Monumentalidade e espaço público em Lourenço Marques nas décadas de 1930 e 1940” (dissertação de mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 2011), especialmente 117–129. 7 Sobre o Gabinete de Urbanização Colonial, vejase Ana Vaz Milheiro e Eduardo Costa Dias, “Arquitectura em Bissau e os Gabinetes de Urbanização colonial (1944–1974),” arq•urb 2 (2009): 80–114; sobre a actividade deste organismo em Moçambique podese consultar André Faria Ferreira, Obras públicas em Moçambique: Inventário da produção arquitectónica executada entre 1933 e 1961 (Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 2008). 8 Este argumento é desenvolvido ao longo de Verheij, “Monumentalidade e espaço público”. 9 Vejase “Monumentos coloniais vão ficar em museu,” Notícias de Moçambique 24 (24 de Maio de 1975), 19, onde é reproduzido o decreto do governo relativo à remoção das estátuas coloniais. 10 Esta e seguintes citações de “Colonialismo: Um mundo de estátuas e de símbolos,” Notícias de Moçambique 24 (24 de Maio de 1975), 1–3. A questão das estátuas inseriase num debate mais alargado sobre a re semantização urbana. Para isso, vejase também os números 4 (21 de Dezembro de 1974), 10 (8 de Fevereiro de 1975) e 12 (22 de Fevereiro de 1975).
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que implicava a eliminação da distância que antes dava à estátua a sua plausibilidade como imagem de um regime. Dentro da referida lógica de descolonização, o governo de transição previu a recolha das estátuas desmanteladas em museus, como futuros “elementos de estudo da história da ocupação colonial”. Há vários destes repositórios de estatuária colonial, que atestam de políticas semelhantes nas outras novas nações lusófonas: o Forte do Cachéu em Guiné, a Fortaleza de São Sebastião em São Tomé e Príncipe, e a Fortaleza de São Miguel, em Luanda. Em Maputo, parte da estatuária portuguesa encontrase hoje no recinto do Museu de História Militar, situado na Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição11. Houve, no entanto, outros destinos para as estátuas derrubadas, que passarei brevemente em revista. 4. Destinos da estatuária portuguesa em Maputo Em primeiro lugar, há obras desaparecidas, como os padrões comemorativos espalhados pela cidade ou a estátua em bronze que estava à frente do plinto do Monumento a Mouzinho, representando uma figura feminina que guia pela mão uma criança “indígena”. Outras estátuas da cidade ficaram em depósito fora da vista pública. Algumas destas encontramse em estado semidestruído, como uma das estátuas que Simões de Almeida (sobrinho) esculpiu entre 1948 e 1951 para a fachada da Câmara Municipal de Lourenço Marques, hoje no jardim do Museu de Arte de Maputo 12. Outras estão relativamente bem preservadas. Um exemplo é a pouco conhecida réplica da estátua de Salazar, da autoria de Francisco Franco, que figura o ditador como doutor de Coimbra (Fig. 3), de história atribulada. Uma primeira reprodução em pedra foi colocada no recinto do liceu homónimo, inaugurado em 1952. Por volta de 1963 foi destruído com explosivos por um grupo de oposição ao regime13. No ano seguinte foi reposta uma nova versão em bronze, que se encontra actualmente na Biblioteca Nacional de Moçambique – onde (por enquanto) dorme o “sono do bronze na morte obscura das estátuas inúteis”. Algumas das estátuas retiradas ou destruídas foram substituídas. Isto foi um propósito já apresentado pelo governo de transição mas só realizado a partir dos anos 1990, com a inauguração de uma estátua de Samora Machel em frente ao Jardim Tunduru, onde antes estava um padrão comemorativo da visita presidencial de Carmona, em 1939. Em 2011, por ocasião do 25.º aniversário do acidente de viação que matou Samora Machel, foi inaugurada uma versão quase idêntica, mas de escala maior, da mesma estátua na Praça da Independência de Maputo, no antigo local do monumento a Mouzinho, em frente da Câmara Municipal14. 11
A estátua equestre de Mouzinho de Albuquerque e os dois relevos laterais do plinto (Simões de Almeida e Leopoldo de Almeida), nada se sabendo da alegoria feminina que estava à frente do plinto; a estátua de António Enes de 1910 (Teixeira Lopes); e um busto, provavelmente um retrato de Álvaro de Castro de Costa Mota sobrinho, colocado em 1949 no Museu Álvaro de Castro. A mesma sorte teve a estátua de Neutel de Abreu (Euclides Vaz), inaugurada em 1956 em Nampula, hoje no museu da cidade. 12 Vejase imagens em delagoabayworld.wordpress.com/category/coisas/estatuasdacamaramunicipallm/. Nesta obra o “indígena” é, à semelhança da desaparecida figura alegórica do Monumento a Mouzinho, figurada de forma particularmente paternalista, o que poderá explicar este tratamento. No entanto, também é de notar que a figura é de pedra, material mais frágil do que o bronze. Uma estátua de Vasco da Gama em Inhambane, também em pedra, mostra, no entanto, já sinais claros de vandalismo intencional (vejase imagens em myafricanices.blogspot.pt/2006/04/inhambanemoambique.html). 13 Vejase o testemunho do poeta Rui Nogar em Patrick Chabal, Vozes moçambicanas: Literatura e Nacionalidade (Lisboa: Vega, 1994), 160–182. A estrofe citada de seguida é do seu poema “Aeroporto”. 14 Apesar de seguirem cânones próximos ao realismo socialista (e consta que foram encomendadas na Coreia do Norte), é curioso notar nestas obras uma certa continuidade com os modelos estadonovistas ao nível da temática heróica, de figuração e pose, e dos próprios lugares.
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Outras estátuas, pelo contrário, mantiveramse no seu lugar. É o caso do Padrão de Guerra, obra comemorativa da intervenção portuguesa em Moçambique durante a Primeira Guerra Mundial, inaugurada em 1935, da autoria do escultor Ruy Gameiro e do arquitecto Veloso Reis Camelo. A preservação pode deverse a razões práticas: ao contrário das estátuas de bronze, esta é uma estrutura com mais de 14 metros de altura em pedra maciça, que não poderia ter sido removida sem danos irreversíveis. Isto não impediu, contudo, a destruição de um padrão semelhante em Luanda (por Manuel Mendes e Henrique Moreira). Mas é também de notar que o Padrão em Maputo (ao contrário do que acontecia no Padrão em Luanda) é das poucas obras de escultura pública erguida em Moçambique durante o regime do Estado Novo que figura a população sem paternalismos: nos relevos, soldados moçambicanos erguem a figura da pátria em pé de igualdade com soldados metropolitanos. E é possível que hoje a pesada retórica nacionalista da figura da pátria já não seja legível como tal. Neste sentido, citase uma interpretação frequentemente reproduzida em guias turísticos. Esta diz que a figura feminina homenageia uma mulher que salvou a cidade, matando uma perigosa serpente num pote de água a ferver; interpretação que toma um fragmento de padrão segurado pela pátria por pote e que se apoia na presença de uma serpente à direita da figura. Estes processos de alteração semântica podem ser intencionais: em Bissau, o Monumento ao Esforço da Raça foi rededicado aos Heróis da Independência, depois de retiradas as inscrições originais e colocada uma estrela de cinco pontas no topo. Também podem levar a reposições. Na ilha de Moçambique, as estátuas de Vasco da Gama e de Camões foram primeiro removidas como símbolos da ocupação colonial, e mais tarde recolocadas por figurarem personagens historicamente ligadas à ilha. 5. A estátua de Mouzinho de Albuquerque: leituras da sua queda e sobrevivência A queda das estátuas não se limitou, portanto, a simples apagamentos e substituições de símbolos. Alguns olhares sobre o derrube e a vida “pósmonumental” da estátua de Mouzinho demonstram como também não implicava necessariamente um fim. Mia Couto escreveu, já nos anos 1980, um breve conto sobre a queda da estátua, com o título “A derradeira morte de Mouzinho”15. A narrativa recorda a fotografia de Ricardo Rangel (Fig. 2). O narrador conta como a queda visualizava o colapso da ordem colonial: “Quando a estátua já terminou a sua queda, por dentro daqueles olhos portugueses [dos colonos], cavalo e cavaleiro continuam a tombar, já sem arte nem aprumo […]. Há um mundo que termina.” Desta forma, a leitura da estátua alteravase: “pareceu provir [da estátua] um suspiro triste, como se Mouzinho nos confiasse um infinito cansaço de posar para o retrato do mito.” E, noutro lugar: “Afinal, Mouzinho é apenas um nome, um herói contrafeito. As brutalidades da dominação excedem este solitário cavaleiro. Do militar fizeram lenda e era esse artifício que mais magoava.” No conto, a utilização política do monumento é explicitada, mas também contraposta a uma nova imagem que emerge do mito desfeito. Uma imagem que antes, em cima do pedestal, não seria plausível. Neste sentido, a nova situação no Museu de História Militar implica um claro reenquadramento da estátua (Fig. 4). Sem o pedestal, sem a escala e o lugar privilegiado do monumento, sem o aparato ritual, a estátua ingressa numa nova hierarquia expositiva, ao mesmo nível que o espectador. E agora o retrato aparece tingido de melancolia – como se o escultor tivesse
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Mia Couto, “A derradeira morte de Mouzinho,” in Cronicando (Lisboa: Caminho, 1991), 161–163. As citações seguintes são daqui retiradas.
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preferido representar não o herói das cargas de cavalaria e da captura do temido Gungunhana, mas antes o romântico cavaleiro, nascido, segundo o próprio, no século errado, e que cedo se suicidou 16. Mas esta melancolia de ordem biográfica não pode ser separada de outra, própria das estátuas postas de lado. Estátuas que, lêse num livro dedicado, precisamente, às memórias de Lourenço Marques, “haviam perdido a cidade” e “clamaram por Justiça, ignorantes da fragilidade da condição humana e da subjectividade da interpretação da história”17. A estátua é, assim, também um monumento à sua própria queda, memória do império perdido. Tal como a ruína, representa aquilo que já não é – é de certa forma um antimonumento, um espelho quebrado que reflecte o vazio que sobra das fantasias de dominação. No entanto, as leituras do monumento não se limitam necessariamente a tais alegorias de um passado perdido e irrecuperável. De facto, na Fortaleza de Maputo, estas memórias convivem com a valorização patrimonial, turística e cultural. Uma imagem do fotógrafo moçambicano José Cabral aponta, também, para a possibilidade de leituras menos melancólicas18. A imagem (Fig. 5) retrata o filho do fotógrafo a subir um dos relevos do Monumento a Mouzinho. A persistência e o peso do passado colonial aparecem, na figura da criança, com uma quase íntima proximidade ao presente e ao futuro. Parece que a fotografia nos diz que não é possível despachar a história para o museu, mas que a história, marcando o presente, não o determina, deixando em aberto o futuro. Remete assim para a ambígua esperança do narrador do conto de Mia Couto de que, após a necessária morte simbólica da estátua, o povo moçambicano seria finalmente capaz de construir, a partir das ruínas do passado, o seu próprio futuro, “sem ninguém [lhes] dizer o que fazer”. A imagem de José Cabral ilustra como a estátua de Mouzinho pode continuar a desempenhar um papel na visualização não só do passado, mas também do presente. Os caminhos das estátuas portuguesas – poderseia responder por fim a António Lopes Ribeiro – não se esgotaram na queda, mas antes abriramse a novos contextos, olhares e interrogações.
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Para uma visão histórica (e não mistificada) de Mouzinho de Albuquerque vejase Aniceto Afonso, “Mouzinho de Albuquerque, o herói dos heróis,” in História de Portugal (Lisboa: Ediclube, 1993), IX: 255–262. 17 José Alves Pereira, prefácio a Memórias de Lourenço Marques: Uma visão do passado da cidade de Maputo, de João Loureiro (Lisboa: Maisimagem, 2004), 2.ª ed., 7. 18 Este fotógrafo está também por laços biográficos ligado à estátua de Mouzinho: é o neto do governador geral homónimo que em 1935 disponibilizara uma verba avultada no orçamento da Colónia para completar o fundo necessário para a realização do monumento.
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Fig. 1 – Composição fotográfica da inauguração do Monumento a Mouzinho de Albuquerque, 1940. Fonte: Moçambique, Documentário Trimestral 24 (1940)
Fig. 2 – (Não disponível) Ricardo Rangel, “O outro destino dos heróis, 1975”. Fonte: Ricardo Rangel, photographe du Mozambique (Maputo: Centre Culturel FrancoMozambicain, 1994
Fig. 3 – Estátua de Salazar, Biblioteca Nacional de Moçambique, Maputo, 2011. Fonte: Paulo Pires Teixeira / Delagoa Bay
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Fig. 4 – Estátua de Mouzinho de Albuquerque, Museu de História Militar, Maputo, 2010. Fotógrafo: Diogo Alves
Fig. 5 – (não disponível) José Cabral, “Maputo, 2002”. Fonte: Anjos urbanos (Lisboa: P4Photography, 2009)
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BIBLIOGRAFIA ABREU, José Guilherme. “Escultura pública e monumentalidade em Portugal (1948–1998): Estudo transdisciplinar de História da Arte e Fenomenologia Genética”, dissertação de doutoramento, Universidade Nova de Lisboa, 2006. AFONSO, Aniceto. “Mouzinho de Albuquerque, o herói dos heróis”, in História de Portugal: Dos tempos préhistóricos aos nossos dias. Vol. IX: A monarquia constitucional, ed. João Medina, 255– 262. Lisboa: Ediclube, 1993. BARATA, Filipe Themudo, e José Fernandes, coordenação. Património de origem portuguesa no mundo: Arquitetura e urbanismo. Vol. 2: África, Mar Vermelho, Golfo Pérsico. Dirigido por José Mattoso. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. CABRAL, José. Anjos urbanos. Lisboa: P4 Photography, 2009. CHABAL, Patrick. Vozes moçambicanas: Literatura e nacionalidade. Lisboa: Vega, 1994. CHOAY, Françoise. A alegoria do património. Tradução de Teresa Castro. Lisboa: Edições 70, 1999. COUTO, Mia. “A derradeira morte de Mouzinho”, in Cronicando, 161–163. Lisboa: Caminho, 1991. ELIAS, Helena, e Inês Marques. “As últimas encomendas de arte pública do Estado Novo (1965– 1985).” on the w@terfront 23, 2012. http://www.raco.cat/index.php/Waterfront/article/view/254755. FARIA FERREIRA, André. Obras públicas em Moçambique: Inventário da produção arquitectónica executada entre 1933 e 1961. Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 2008. GAMBONI, Dario. The destruction of art: Iconoclasm and vandalism since the French Revolution. London: Reaktion Books, 1997. LEFEBVRE, Henri. The production of space. Translation by Donald NicholsonSmith. Oxford: Blackwell Publishing, 1991. MEDINA, João. Salazar, Hitler e Franco. Lisboa: Horizonte, 2000. MILHEIRO, Ana Vaz, e Eduardo Costa Dias. “Arquitectura em Bissau e os Gabinetes de Urbanização colonial (1944–1974)”, in arq•urb 2 , 2009: 80–114. http://www.usjt.br/arq.urb/numero_02/artigo_ana.pdf. PEREIRA, José Alves. Prefácio a Memórias de Lourenço Marques: Uma visão do passado da Cidade de Maputo, de João Loureiro, 7. Lisboa: Maisimagem, 2004. 2.ª edição. RANGEL, Ricardo. Ricardo Rangel, photographe du Mozambique. Maputo: Centre Culturel Franco Mozambicain, 1994.
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