Movimentos de ocupação e os limites da teoria
Occupy movements and the limits of theory Slavoj Zizek. O ano em que sonhamos perigosamente. Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2012, 140pp. David Harvey... et al. Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. Tradução de João Alexandre Pescjanski... et al. São Paulo: Carta Maior/Boitempo, 2012, pp. 86. Acácio Augusto Doutorando em Ciências Sociais na PUC-SP, Brasil, pesquisador do Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP). Professor substituto no Departamento de Política da PUC-SP e profossor no curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina (FASM). Escreveu, com Edson Passetti, em 2008, Anarquismo & educação (Autêntica: Belo Horizonte). Contato:
[email protected].
Explicitando,
o
relação ao que se está lidando e, ato
que se pretende com essa resenha
contínuo, aos riscos provocados a
de dois livros fundamentais para
partir dessa perspectiva. Essa atitude
compreensão dos atuais movimentos
não coloca o melhor ou o pior, mas
de protestos por ocupações é marcar,
apenas enfrenta problemas e questões
no limite das teorias, o julgamento.
incitadas
Este aparece nas análises realizadas
acontecimentos de maneira diferente,
pelos dois livros como principal
chegando a conclusões diversas: na
atividade crítica. Longe de constatar
análise, nos colocamos imediatamente
vagos
no olho do furacão.
princípios
previamente,
de
incerteza
e
pela
contingencia
dos
contingencia, dizer que as teorias
O ano de 2011, como é mais
estão limitadas pela tarefa primeira
do que conhecido, foi marcado por
que se propõem, ou seja, julgar, é
uma série de protestos em todo
afirmar que diante de acontecimentos
planeta. Estes com especificidades
e seus desdobramentos, a análise
e diferenças mapeáveis, aproximam-
se coloca em uma posição de luta,
se em três características: foram
assumindo
articulados por jovens de classe média
uma
perspectiva
em
ecopolítica, 4: set-dez, 2012 Movimentos de ocupação e os limites da teoria, 127-141
127
escolarizados, com extenso uso das tecnologias
computo-informacionais;
Occupy:
movimentos
protestos
que tomaram as ruas e O ano em são
usaram como tática a ocupação de
que sonhamos perigosamente,
praças, buscando uma face pública
duas interessantes publicações, não
apartidária e horizontal; expressaram
apenas para analisar o atual campo
um
e
da chamada política radical, mas
participação como indignação diante
também para acompanhar a relação
de ditaduras (caso do Norte da África)
que a produção intelectual mantém
ou do avanço do poder econômico,
com os movimentos de protesto
sintetizado
“somos
que tomaram as praças em todo
99%”, do movimento Occupy Wall
planeta. A velocidade dos tempos
Street, diante do 1% concentrado na
atuais,
Bolsa de Valores de Nova York, ou
informação
do lema “democracia real, yá”, dos
primazia
indignados espanhóis.
nas
desejo
Estes
de
da
expressão
protestos
despertaram
e
grande
entusiasmo
e
intelectuais,
antes
esquerda,
democracia
suas e
do
tecnologias
comunicação trabalho
sociedades
de
e
a
intelectual
contemporâneas
mobilizações
provocaram um rápido esgotamento
interesse,
tanto dos movimentos e suas formas
esperança
hoje
com
chamados descritos
nos
de atuação, quanto do pensamento
de
como foco de experiência diante
como
dos
acontecimentos.
Isso
produz
Da
no analista um certo compasso de
mesma maneira que ocorrera em
espera, na tentativa de produzir um
1994, com o levante zapatista no
contratempo ou, ao menos, buscar
México, a princípio contra o NAFTA
um
(Tratado Norte Americano de Livre
tempo, incita uma certa afobação
Comércio), que entrara em vigor no
nos teóricos que correm de encontro
dia 1 de janeiro do mesmo ano, e
aos eventos para confirmar suas
com os movimentos antiglobalização,
esperanças ou neles imprimir seus
iniciados na cidade de Seattle, em
próprios anseios teóricos e políticos.
1999, também chamados de ação
Nesse sentido, o primeiro livro
adeptos
da
política
radical.
ritmo
sincopado;
um
ao
panorama
mesmo
global dos povos contra o capitalismo.
oferece
Estes dois movimentos apresentam-
satisfatório
se como principais referências dos
um conjunto coeso de calibrados
protestos de 2011.
intelectuais
dessa
bastante
relação,
identificados
com
com o
ecopolítica, 4: set-dez, 2012 Movimentos de ocupação e os limites da teoria, 127-141
128
contemporâneo marxismo. Afora os
pp. 15-25), uma pauta propositiva
esforços em retomar a pertinência de
alternativa (Harvey, 57-64) uma ideia
Hegel associado à teoria psicanalítica
orientadora que anime o espírito
(em especial de Lacan) e a um certo
(Safatle, pp. 45-55), uma perspectiva
cristianismo
revolucionária
imanente,
é
possível
e
contemplar um série de interessantes
(Alves,
apostas e conclusões tiradas das
a democracia burguesa, falta um
mobilizações
os
líder etc. Em suma, a teoria aponta
mais otimistas, como de Immanuel
aos manifestantes que lhes falta a
Wallerstein, a esquerda não será mais
perspectiva da luta de classes e um
a mesma depois desses protestos e
horizonte revolucionário comunista,
que o movimento Occupy prova a
como sintetiza a expressão de Zizek,
queda do Império estadunidense (pp.
colocando as coisas em termos do bem
73-76). Há o ato de fé na teoria,
e do mal, evocando, evidentemente,
como o de Giovanni Alves, que ao
uma imagem do cristianismo: “quando
dar uma mão de verniz no conceito
os
marxiano de proletariado, chamado
afirmam que a América é uma
agora de precariado, faz um alerta
nação cristã, deveríamos recordar
ameaçador: “Aviso aos navegantes
o que é o cristianismo: o Espírito
pós-modernistas: hoje, mais do que
Santo, a comunidade livre igualitária
nunca, o método dialético tornou-se
de fiéis unidos pelo amor. São os
indispensável no exercício da crítica
manifestantes que encarnam o Espírito
social” (p. 37). Mais amplamente,
Santo enquanto em Wall Street são
contudo,
o
textos
todos pagãos adorando falsos ídolos”
combina
uma
entusiasmada
(Zizek, p. 17). Falta o ato de fé que
de elogios aos esforços dos jovens
afine uma caminhada em direção ao
no mundo todo, com a enumeração
reino dos céus na Terra e, para isso
do que falta para os movimentos.
o Espírito Santo, se materializa na
Enfim, postulam que devemos saudar
forma do Partido da Revolução.
de
2011.
conjunto série
Entre
de
a onda de protestos, mas buscar sua
radicalização
31-38);
anticapitalista
conservadores
A
coletânea,
falta
questionar
fundamentalistas
realizada
com
revolucionária
doações de copyright pelos autores e
preenchendo suas lacunas com teoria.
traduções voluntárias para baratear o
O que falta, então? Falta um
preço, objetiva ser uma referência e
programa definido de ação (Zizek,
funcionar como subsídio teórico para
ecopolítica, 4: set-dez, 2012 Movimentos de ocupação e os limites da teoria, 127-141
129
os manifestantes e simpatizantes do
manifestantes em Nova York, na
movimento no Brasil. Cabe anotar
praça Tahir, em Londres e Atenas, e
que nesse esforço, o texto de Noam
houve sonhos obscuros, que serviram
Chomsky
(“Ocuppy
future”),
de impulso para Breivik e para os
de
localização
versão
populistas racistas de toda a Europa,
eletrônica, tanto em inglês como em
da Holanda à Hungria” (p. 9). De
português, não consta na coletânea
saída, nota-se o esforço teórico do
porque seus agentes literários não
autor em estabelecer um antagonismo
abriram mão do pagamento para
manifesto
cessão dos direitos autorais. O que
para uma leitura “objetiva” da atual
é, no mínimo, curioso vindo de um
situação do capitalismo global. Seu
autor anarquista e defensor público
pano de fundo, que explica, em
das quebras de patentes (a ponto de
última instância, os acontecimentos,
elogiar mundialmente o programa de
é a crise do capitalismo virtual-
medicamentos genéricos do governo
financeiro, iniciada em 2008, que
brasileiro), das licenças abertas e de
forçou as duas forças antagônicas
iniciativas como os creative commons.
(esses dois sonhos opostos) a se
fácil
the em
É de um texto publicado nessa coletânea
e
se
politicamente
expressarem
politicamente. A orientação dessa
de protestos que parte o segundo
leitura parte da necessidade teórica
livro alvo dessa resenha. O filósofo
em se retomar o conceito hegeliano
esloveno,
reúne
de totalidade para travar uma disputa
textos e intervenções acerca dos
pelo Universal. Como afirma o autor
acontecimentos de 2011 (segundo
logo no primeiro texto da coletânea,
ele,
sonhamos
em referência à crise econômica de
perigosamente”, que dá nome ao
2008: “A boa e velha noção marxista-
livro), a luz do rápido e evidente
hegeliana de totalidade ganha todo o
refluxo
seu sentido aqui: é crucial apreender
sofreram
os
posicionarem
e
movimentos
“o
sobre
social
Slavoj
ano
que já
em
Zizek,
que
esses desde
movimentos os
primeiros
a crise econômica em sua totalidade e
meses de 2012. O sonho perigoso
não nos perdermos em seus aspectos
do qual fala o autor como marca
parciais” (p. 23).
do ano fatídico de 2011 aponta
Fiel à teoria, sua análise baseia-se
para duas direções: “houve sonhos
no antagonismo material, que leva a
de emancipação, que mobilizaram
uma revolta contra a dominação, expõe
ecopolítica, 4: set-dez, 2012 Movimentos de ocupação e os limites da teoria, 127-141
130
um processo de exploração global e
Estado e a Revolução, a saber: que
deve nos levar a uma reviravolta
a luta contra a autoridade deveria
revolucionária. A condição prévia é
obedecer a determinações materiais
a de agirmos de maneira certa e
e meios adequados sob o risco
fiel à teoria. E esta é a senha para
de se tornar uma luta pequeno
atacar as análises contemporâneas de
burguesa. Não é demais lembrar
combate à dominação que valoriza
que no dia seguinte da ocupação do
a multiplicidade de lutas dispersas
governo Russo pelos bolchevistas, os
e
mais
adversários anarquistas tornaram-se
teórica
imediatamente inimigos que deveriam
autores
ser expulsos, enviados às prisões ou
descontínuas
uma para
vez,
a
afirmando, centralidade
homogeneizar
os
transmutados em adversários políticos.
simplesmente executados.
Para o filósofo esloveno, “Foucault
Assim, prossegue o autor, ou nos
e Agamben não são suficientes:
mantemos fiéis à teoria ou anuncia-se
todas
detalhadas
uma catastrófica reação conservadora.
dos mecanismos de dominação do
É por isso que precisamos dela, para
poder da dominação, toda a riqueza
nos ensinar a ler os “sintomas” de uma
de conceitos, como excluídos, vida
era “eventiva” e, assim, permitir que
nua, homo sacer etc., devem ser
se abram caminhos para clarificar as
fundamentadas na (ou medidas pela)
maléficas e mentirosas (ideológicas)
centralidade da exploração; sem essa
forças da ordem. Pois a “limitada
referência à economia, a luta contra a
visão” dos libertários está turvada,
dominação ‘uma luta essencialmente
nos ensina a teoria, pela fumaça da
moral ou ética, que leva a revoltas
ideologia burguesa. Imputação que
pontuais e atos de resistência, e
os
não à transformação do modo de
preferem a ação direta, os atos de
produção
16).
resistência e a constituição de uma
Aparte constar na pequena lista de
vida que afirma o agonismo da
conceitos apenas termos encontrados
revolta como ética ao dar forma às
em Agamben, e não em Foucault,
práticas de liberdade. Atitude que
o autor parece ver na crítica aos
coloca os libertários contra toda e
seus adversários do presente uma
qualquer forma de dominação, seja
possibilidade de atualizar a crítica
ela capitalista, comunista ou mesmo
de Lênin aos proudhonianos, em O
interplanetária
as
elaborações
enquanto
tal”
(p.
libertários
desconhecem,
pois
pós-transcedental
ecopolítica, 4: set-dez, 2012 Movimentos de ocupação e os limites da teoria, 127-141
131
ideológica, ultramoderna e holística.
as forças se acomodam num mundo
Assim, o mestre está calçado pela
de velocidade inebriante e convocação
teoria para retirar as conseqüências
contínua pelos fluxos participativos,
políticas de seu ataque, pontificando
e que fazem da ideia de democracia
que
ênfase
um valor inquestionável e inevitável.
programa
Encontramos em seus textos uma bem
na
“o
resultado
dominação
democrático,
é ao
da um
passo
que
o
fundamentada crítica ao atual desejo
resultado da ênfase na exploração
democrático (o que faz de Antonio
é um programa comunista” (p. 16).
Negri, com seus elogios ao governo
Afirmação que, nos limites da teoria,
Lula no Brasil, mais um de seus
toma, psicanaliticamente, a liberdade
alvos, ver pp. 19-25). No entanto,
e a luta contra a dominação como
essas críticas o levam a conclusões
um desejo individual e coletivo. Não
totalizadoras
repara que a liberdade entendida como
uma palavra, autoritárias.
conjunto de práticas, como afirma
Os
oito
e
universalistas,
textos
da
em
coletânea
o querer dos libertários, não tem
dedicam-se aos variados “eventos”
fim, é agonística, avança de combate
organizados segundo o antagonismo
em combate, e não pode encontrar
dos sonhos e tratam dos principais
satisfação numa conformação legítima,
temas que animam o debate social
legal e/ou constituinte, como ocorre
e político do presente, a saber: as
com o desejo de democracia formal
políticas multiculturais, organizadas
ou mesmo com a liberdade tomada
nas variáveis raça e gênero, a crise
como desejo.
econômico-financeira
Talvez
o
“real”,
desértico
de
2008,
e
e
seus efeitos devastadores na Europa,
desolador, como pintado pelo filósofo
e o atual discurso apocalíptico sobre
esloveno, seja mais complexo do que
a ecologia e os chamados desastres
a sintetização teórica no fornece.
naturais. Não entrarei em interessantes
Mesmo com a honesta exposição de
conclusões a que chega, como, por
seu programa teórico-político (nesse
exemplo,
sentido não há esforço para enganar
chamar determinados acidentes com
o leitor), é apenas quando flerta com
Usinas
a análise que seus textos ganham
recentemente no Japão) de catástrofes
força. Nesses momentos há uma
naturais; tampouco me ocuparei de
capacidade de expor ao leitor como
alguns momentos cômicos sobre o
quanto Nucleares
ao
ridículo
(como
de
ocorrido
ecopolítica, 4: set-dez, 2012 Movimentos de ocupação e os limites da teoria, 127-141
132
ridículo do pensamento conservador
uma teoria agonística da democracia,
e das regras do politicamente correto,
como proposta por autores como
como o jantar entre intelectuais no
Chantal Mouffe, mais alinhados à
qual era proibido fumar cigarros, mas
filosofia de Habermas. Mesmo que
permitido fazer uso de outras drogas.
evite a sintaxe do poder e do direito
Deixo essas redescobertas para um
que ocupou o espaço da luta e da
possível leitor, para me concentrar
diferença, ignorar ou confundir a
no que se mostra como o cerne da
dimensão do agonismo o faz ver nessas
argumentação de Zizek e em suas
lutas somente a reprise do destino
disputas político-intelectuais.
conservador estrutural. Segundo o
Orientado pelo crivo teórico freudo-
autor: “o que a série raça-sexo-classe
marxista (com recorrências constantes
esconde é a diferente lógica do espaço
ao pensamento de Lacan e Hegel),
político no caso da classe: enquanto
são de grande valia suas críticas às
as lutas antirracistas e antissexistas
políticas raciais e de gênero, que
são guiadas pelos esforços em prol
emergem, nos anos 1960, como lutas
do pleno reconhecimento do outro, a
pela singularidade e liberdade de
luta de classes visa a superação e a
cada um e, hoje, estão configuradas
subjugação do outro, ou mesmo sua
como expoentes do racismo e do
aniquilação, embora não seja uma
discurso conservador, em especial,
aniquilação física direta, a luta de
na
com
classes visa a aniquilação da função
marca profundamente estadunidense.
e do papel sociopolítico do outro”
No entanto, sua fidelidade à teoria
(p. 39-40).
o impede de perceber as mutações,
Zizek
combalida
Europa,
mas
dedica-se
a
um
ataque
capturas e adequações que essas
aberto ao que ele chama de filosofia
lutas sofreram, deixando de lado,
da diferença, buscando reavivar um
sobretudo, seus iniciais traços de
universalismo igualitarista (recorrendo
revolta, contestação e enfretamento.
regularmente ao pensamento cristão)
Quando nota essa dimensão das
e a efetividade do conceito de luta
resistências, credita sua ação política
de classes. Nesse esforço, poupa,
à ideologia da democracia liberal,
parcialmente, apenas a filosofia de
confundindo o agonismo das forças
Gilles Deleuze (em especial no livro
em luta na resistência às relações de
Diferença e Repetição), talvez por suas
poder, como coloca Foucault, com
conhecidas reverências ao marxismo
ecopolítica, 4: set-dez, 2012 Movimentos de ocupação e os limites da teoria, 127-141
133
e sua aberta defesa da produção
ser aceito de peito aberto como
desejante,
por
um anúncio apocalíptico do fim
Guattari com a psicanálise lacaniana.
dos tempos, o fim dos tempos do
Mas confunde, talvez propositalmente,
capitalismo. Os fatores de adequação
a afirmação da singularidade e a
ou renovação do capitalismo atual,
coexistência das diferenças com o
presentes tanto na alegada crise,
pluralismo liberal. Em termos de um
quando no discurso ecológico (como
sério debate filosófico, o que faz é
anotado em diversos momentos nessa
um deslocamento um tanto espetacular
Revista Ecopolítica) são ignorados ou
e forçado dos temas, para evitar o
apenas atribuídos a fatores externos,
embate metodológico e político que
parciais
não está na oposição entre universal
fazem parte do “concreto universal”,
totalizante e o singular diferencial,
mas apenas do “desértico real”. Por
mas em um embate entre uma
fim, embora recorra insistentemente
lógica teórica binária, totalizadora e
aos textos do Novo Testamento, para
antagonista (em busca da constituição
imprimir a eles uma lógica imanente
de uma autoridade legítima), em face
e revolucionária, deixa escapar que
a uma análise da multiplicidade,
o anúncio do fim dos tempos e da
do
do
volta do messias, funciona subjetiva
agonismo que não busca a síntese
e socialmente como uma maneira
da luta, tampouco sua cristalização
de reconhecermos nossas limitações,
constituinte,
na
pecados e falibilidade em nome de
e
nos melhorarmos constantemente em
acomodações, sem tabua de salvação
face à imagem da perfeição divina
ou juízo final.
(um perfeito estalinista atualizado!).
em
singular
história,
debate
aberto
acontecimento
e
acompanhando,
seus
desdobramentos
ou
ideológicos
que
não
No que se refere tanto aos efeitos
Nas palavras do filósofo, que recorre
da crise, quanto ao catastrofismo
a recomendação de vigília, retirada
ecológico, os termos e temas se
do
implicam e entrelaçam. Mais uma
ecologia, essa fascinação apocalíptica
vez, por fidelidade teórica, Zizek,
[lembrando que a palavra deriva
pinta um quadro de crise estrutural
do grego apokálipsis, que designa
e esgotamento do capitalismo virtual-
“revelação” ou “levantar o céu”]
financeiro e apresenta a questão
surge
ecológica
aquecimento global arrasará todos
como
um
problema
a
evangelho
de
de
diversas
Marcos,
maneiras:
“na
o
ecopolítica, 4: set-dez, 2012 Movimentos de ocupação e os limites da teoria, 127-141
134
nós em algumas década; as abelhas
que reforma o capitalismo por meio
vão desaparecer em pouco tempo
dos discursos e práticas em torno
e haverá uma fome inimaginável...
do desenvolvimento sustentável, do
Devemos levar todas essas ameaças
que a abertura de reconhecimento
a sério, mas não nos deixemos
que o capitalismo chegou ao seu
seduzir por elas nem desfrutemos do
limite final, ainda que se mantenha a
falso senso de culpa e justiça. Ao
vigília pelo seu fim. Não seria demais
contrário, devemos manter a mente
lembrar
aberta e ‘vigiar’. (p. 133).
da natureza, respeito à dignidade e
O
anúncio
do
fim
é
apenas
que
proteção/conservação
responsabilidade social, configuram-
um alerta de que a perfeição e o
se
hoje
como
temas
e
valores
bem são divinos e não humanos,
comuns tanto aos governos, ONGs
o que, pela mensagem do Espírito
e empresas transnacionais, quanto
Santo, nos enche de esperança de
aos movimentos que vão do Occupy
que um dia a hipocrisia mundana
Wall Street à Cúpula dos Povos, na
terá fim no Reino de Deus, que
Rio+20. Se isso é um mascaramento
não é desse mundo, mas do além
ideológico ou não, dizê-lo ou revelá-
mundo. Uma análise diversa sugere
lo não é atividade para o analista,
que, se há um fundo teológico no
mas missão dos teóricos.
catastrofismo ecologistas, ele está
Qual é, então, seu flerte com a
menos num novo mundo que vem
análise? Em meio à ocupação de Wall
e mais na humildade humana diante
Street, Zizek proferiu um discurso
de suas pretensões divinas com a
no qual fez um preciso alerta, que
manipulação da natureza e sua causal
se confirmou rapidamente. O filósofo
reação na forma de catástrofes e/
esloveno, do alto de um palanque,
ou mudanças climáticas. Só desta
ao melhor estilo Lênin, chama a
maneira podemos analisar a ânsia
atenção dos manifestantes para que
atual por melhorias do corpo, do
eles não se apaixonem por eles
espírito e do planeta, o que vai à
mesmos, que seria melhor amar o
contramão das constatações teóricas
trabalho lento e contínuo que possui
de que vivemos num mundo cada
uma violência silenciosa: uma forma
vez mais laico. Há mais a construção
de não dizer ou não dialogar com
de um dispositivo-meio ambiente e
seus opositores políticos que já se
uma governamentalidade ecológica,
apressam em seduzi-los. Porém, logo
ecopolítica, 4: set-dez, 2012 Movimentos de ocupação e os limites da teoria, 127-141
135
em seguida, afirma que a revolta
de sedução que vem do amigo/
ali expressa deve se transformar
adversário que, ao minimizar as
em vontade revolucionária (pp. 81-
diferenças, quer fazer reinar sobre
95), uma das artimanhas da sedução
as demandas e quereres dos que
política e teórica que ele sugere. É
se lançaram em uma luta política
impossível ao leitor atento não notar
a sua alegada superioridade teórica.
a semelhança do alerta do filósofo
Seu ataque à sedução dos inimigos
com as palavras de Michel Foucault
alocados no campo do capitalismo
na apresentação à edição inglesa de
e
Anti-Édipo, com o título Introdução
seduzir
a vida não fascista, quando indicou
campo exclusivo da Ideia comunista.
como a prática da vida não fascista
Guardada
é
poder.
históricas, da mesma maneira que fez
Zizek não revela sua presumível
Lênin ao anunciar “todo poder aos
fonte, mas vê-se aí um esforço em
sovietes”, o que se traduziu como
reterritorializar o que, para Foucault,
todo poder ao partido e centralização
podia ser desterritorilizado com a
burocrática no Estado de posse da
leitura de O anti-Édipo: a obrigação
tarefa histórica. Coloca-se no campo
que existia nas primeiras décadas após
de adversário em meio à conjuntura
a II Guerra Mundial em não deixar
de luta contra a democracia burguesa,
os sonhos vagarem muito longe de
propondo composições e coalizões
Freud e a não deixar a ação política
pontuais e, ao mesmo tempo, busca
e a crítica social muito distante de
seduzir para seu campo teórico-
Marx. Em seu prefácio Foucault vê
político. Como ensina a história,
no acontecimento 1968 e no livro
ao chegar à vitória revolucionária o
Deleuze e Guattari um duro golpe
leque de inimigos se amplia para
contra essas obrigações às quais
todos os que não fecham com o
estavam submetidos o pensamento
Partido, e os adversários em luta
crítico e a prática política até então.
contra a burguesia hoje, tornam-se
Na tentativa de produzir uma volta
imediatamente inimigos da classe e
não
apaixonar-se
pelo
à Freud e Marx, Zizek alerta contra
da
democracia os
burguesa
manifestantes as
devidas
visa
para
o
proporções
do partido amanhã.
a sedução dos supostos inimigos/
Esse
uso
não
dito
de
um
opositores dos ocupantes de Wall
pequeno texto de Foucault torna-
Street, mas pratica uma outra forma
se
ainda
mais
curioso
quando
ecopolítica, 4: set-dez, 2012 Movimentos de ocupação e os limites da teoria, 127-141
136
lembramos que ele tornou-se um
do prazer é a mudança de Freud/
dos
Lacan para Foucault: da sexualidade
principais
alvos
teóricos
de
Zizek. Um ataque que muitas vezes
e
o aproxima, comicamente, de seus
dessexualizados,
alegados principais antagonistas, os
alcançar o extremo do real cru. A
ultracanservadores
estadunidenses
expansão explosiva da pornografia
(que, no Brasil, possuem seus ridículos
na mídia digital é um exemplo
simulacros como Luiz Felipe Pondé e
dessa dessexualização do sexo: ela
Olavo de Carvalho). Como é comum
promete oferecer ‘cada vez mais
entre os conservadores, Zizek, o
sexo’, mostrar tudo, mas o que nos
filósofo, sem saber ao que recorrer
dá é o vazio e a pseudosatisfação
para
do
infinitamente reproduzidos, isto é,
francês, tenta deduzir dos comentários
mais e mais do real cru, desde fisting
feitos em textos e entrevistas acerca
extremo (prática sexual predileta de
das
no
Foucault) até snuff direto. A única
qual Foucault ressalta a possibilidade
satisfação que o sujeito pode ter
do estabelecimento de um contrato
com essa redução da sexualidade à
entre duas pessoas (portanto, não
exibição ginecológica da interação
universal), uma lógica liberal, de
dos
matriz kantiana, que governaria o
jouissance masturbatória. (...) Nessas
seu pensamento. Vejamos a seguir
formas de escravidão consensual [o
uma citação longa, mas necessária
sadomasoquismo],
para esclarecer o confuso argumento
mercado do contrato suprassume a si
que, a despeito de ser um tanto
mesma: a troca de escravos torna-se
torto e muito próximo de ataques ao
a maior afirmação da liberdade. É
pensamento de Foucault perpetrado
como se o tema de ‘Kant com Sade’
por autores ultraconsevadores, não é
se tornasse realidade de maneira
propriamente um ataque moralista.
inesperada” (pp. 56-57).
desqualificar
práticas
o
trabalho
sadomasoquistas,
Ele parte de uma crítica ao moralismo
do
desejo
órgãos
Meu
para
os
que
lutam
sexuais
objetivo
a
é
é
a
para
idiota
liberdade
apenas
de
expor
do politicamente correto e, com isso,
analiticamente
apenas expressa a derivação de um
teóricas
pensamento povoado pelos fantasmas
contemporâneos, não me interessa uma
da sexualidade freud-lacanianos: “a
defesa do pensamento de Foucault,
expressão
mesmo
teórica
desse
aumento
em
as
prazeres
torno
porque
ele
formulações dos
se
protestos
sustenta
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firmemente
Interessa
precisamente, como mostra Foucault,
menos ainda discutir as formas como
um discurso sobre a sexualidade.
os filósofos fazem sexo. No entanto,
Sua crítica à expressão jurídica da
alguns comentários a essa análise
burguesia contemporânea — expressa
de Zizek são interessantes para o
na jurisprudência do politicamente
embate político das lutas radicais.
correto e seus processos por assédio
Sua crítica ao politicamente correto
sexual, combinada com uma tentativa
não voa muito longe das elaborações
de desqualificação teórica de Foucault
realizadas
na
a partir de sua prática sexual favorita
década de 1840, e avança pouco
(isto é Zizek quem diz) e vinculando
em relação ao que Louis Althusser
teoricamente
elaborou, na década de 1960, acerca
liberalismo
dos aparelhos ideológicos de Estado.
que ele comenta criticamente em
Em seguida, pode-se notar como
seus escritos —, soa como uma
qualquer
escritos
tentativa de lançar bases para uma
de Foucault acerca da história da
teoria da conduta comunista, o que
sexualidade poderia dizer ao filósofo
explica, também, seu recurso ao
esloveno
que
da
pensamento dos quatro evangelistas
exibição
pornográfica
(que
do Novo Testamento. No entanto,
inúmeros
o que é mais evidente, a despeito
reality shows, menos explícitos e
dessas hipóteses levantadas acima, é
mais sugestivos, mas com maior
o ridículo de reduzir a possibilidade
audiência), são precisamente efeitos
de
da sexualização das práticas de prazer,
centralidade soberana do Estado, e de
que estão longe de se reduzir ao
conteúdos disciplinares e de controle
desejo sexual (leia-se, de Foucault,
do governo das condutas, a uma
“Não ao sexo Rei”). Desta maneira,
lógica do mercado e a prática sexual.
não seria difícil concluir que há, nas
Na medida em que, como mostra
afirmações de Zizek, uma tentativa
Foucault em seu curso “Nascimento
de estabelecer uma teoria de governo
da biopolítica”, a tarefa do Estado na
de matiz marxista (algo inédito, na
governamentalidade de racionalidade
medida em que encontramos, no
neoliberal, é precisamente estabelecer
máximo, uma teoria da revolução
um quadro jurídico (regras do jogo)
nos escritos marxistas) que retoma
para que o mercado possa cumprir
eu
sem
pelo
mim.
jovem
conhecedor
ampliaria
sua para
Marx
dos
descrição atual os
seu por
contrato
pensamento meio
livre,
de
ao
autores
liberado
da
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sua função reguladora de governo
desacreditar um pensamento, tampouco
dos
às
um pensamento para desacreditar uma
mercado
prática política. Foucault chama a
(sejam elas físicas ou jurídicas).
atenção em sua leitura de O Anti-
Assim, sobra ao Estado a tarefa de
Édipo
gerir as desigualdades, ao gosto das
produziu nas práticas políticas e do
recomendações proferidas por outro
pensamento, das quais o livro de
filósofo caro à Zizek, e mentor do
Deleuze e Guattari era um de seus
Terror revolucionário burguês, Jean
efeitos e que estávamos liberados
Jaques Rousseau em seu verbete
para lermos livros verdes, vermelhos,
“Economia
política)”.
azuis... O não se apaixone pelo poder
É preciso esclarecer que quando
também pode ser lido como um alerta
Foucault
da
ao efeito despotencializar e anti-vital
atitude crítica em Kant e a liberdade
das teorias e do direito universal e,
de contrato entre duas pessoas livres
ao mesmo tempo, um alerta ao novo
em Sade (o que para Camus, em
que se abria diante dos olhos do
“O homem revoltado”, inaugura a
planeta1.
assujeitados
pessoas
em
inseridas
nesse
(moral escreve
relação
e a
respeito
para
liberação
que
1968
Passo, finalmente, para algumas
revolta moderna pela supressão do ele
considerações sobre os movimentos
está apontando, precisamente, para
de ocupação e seu relâmpago ocaso
a possibilidade de se liberar da
1
estatuto
político
do
escravo)
imposição jurídica da soberania do contrato moderno e do conteúdo biopolítico das práticas de governo. Em suma, uma possibilidade, não de libertação, mas de gozar longe da inspeção (hoje, monitoramento) de juristas, policiais, psicanalistas e/ou filósofos, enfim, dos cidadãos. A despeito de tudo isso, poderia aqui
apenas
recorrer
ao
mesmo
texto de Foucault, que suponho ter inspirado Zizek, para dizer a ele que não utilize uma prática política para
Nesse ponto tomo a liberdade para extrapolar os limites de uma resenha e remeter o leitor à analise, largamente utilizada nesses comentários, de Edson Passetti do prefácio escrito por Foucault no artigo “Foucault-antifascista, São Francisco de Sales-guia e atitudes parresiastas” In Margareth Rago e Alfredo Veiga-Neto. Para uma vida nãofascista. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, pp. 117-134. Nesse escrito encontra-se não apenas uma análise libertária de um direito livre da transcendentalidade, na articulação das práticas políticas em Proudhon, Stirner e Foucault, como, também, uma análise crítica à noção de performace em Judith Butler, tão cara ao pensamento de Zizek para sua crítica à moral e à cultura atuais.
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ao abraçar as teorias. De fato, o
a crítica teórica encontrada nos livros
alerta de Zizek, tomado de Foucault,
aqui resenhados, embora orientada
se confirmou. O entusiasmo diante do
por uma perspectiva revolucionária,
que atravessou o planeta em nome
produziu algo até aqui, foi insumo
da indignação, da causa ecológica
para reificar antigas teorias. O que
e
capitalismo
não equivale dizer que ela não é
virtual-financeiro, mostra seu rápido
capaz de produzir algo diferente, a
esgotamento
previsão não é tarefa da análise.
da
regulação e
do
acomodação.
De
um lado, assistiu-se a absorção das
Aos teóricos da revolução segue
demandas por empregos e seguridade
o ataque ao que desestabiliza: a
financeira por governos de direita e
revolta. E como coloca Zizek na
de esquerda na Europa e nos EUA;
conclusão de seu livro, recorrendo
de outro, muitas das organizações que
ao evangelho de São Marcos, a
animaram os protestos de 2011, embora
esperança é o que alimenta a eterna
de fato apartidárias, como a Revista
vigilância. Vigiai, é tudo que ele
Adbusters, mostraram-se intimamente
recomenda aos que se mantiveram, a
ligadas às grandes associações da
partir dos movimentos de ocupação,
chamada sociedade civil organizada
numa perspectiva de transformação
global, como o Greenpeace e o
social. Mais uma vez, aproximando-
Open Society Institute. Por fim, o que
se de uma certa tradição teórica do
restou de associação com a chamada
liberalismo estadunidense, que insiste
política radical no EUA, tornou-se
que o preço da liberdade é a eterna
tema para teses e curso optativos
vigilância. Com a diferença que,
nos bancos universitários, como já
enquanto estes acreditam vigiar pelo o
existem, na Columbia University, com
que já possuem, em Zizek a vigilância
os programas de Occupy Theory (ver
é pelo que virá, como no apocalipse,
www.occupytheory.org ou http://www.
e transformará o sonho em realidade.
iopsociety.org/doc/Occupy-Theory.
Cabe
pdf). Da mesma maneira, só que
ponto, a honestidade de princípios
mais rapidamente que as lutas dos
do filósofo. Ele não faz rodeios ao
negros e dos gays (para citar dois
anunciar que nessa longa noite de
exemplos) se tornaram Teoria Queer
sonho, que anunciará o apocalipse,
e Teoria Étnica-Cultural para pacificar
só mostrará sua efetividade com o
teoricamente uma revolta inusitada. Se
Terror, não o terrorismo da revolta,
apenas
reconhecer,
neste
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mas o Terror revolucionário que
que se prestam a promover funerais
deve se tornar Terror de Estado, na
de práticas políticas na história. A
melhor tradição que vem Rousseau
despeito de seus esforços teóricos em
e dos jacobinos, na medida em que
revelar os antagonismos estruturais e
nossa triste existência no presente
mais ou menos determinantes, eles
se deve ao outro, esse outro que
dão nota de que, no campo das lutas
deve ser aniquilado para que o
políticas históricas, o agonismo não
Reino de Jerusalém realize-se na
cessa e as forças em luta podem,
Terra. Em outras palavras: o juízo
surpreendentemente, mostrarem sinais
final iluminado pela tocha flamejante
de vida onde se acreditava encontrar
da verdade teórica que aniquilará
apenas
os impuros e os pecadores. Que a
Ironicamente, é possível afirmar com
revolta nos livre dessas pretensões
essa leitura: atenção com o apetite
do bem e da igualdade universais!
dos que se prestam às reuniões de
Portanto, estão aí dois livros que
um
corpo
embalsamado.
vigília em torno de um cadáver!
devem ser lidos como um alerta aos
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