Movimentos Sociais e Sociedade Civil - tradução do capítulo dez da obra Civil Society and Political Theory de J. Cohen e A. Arato.

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Tradução do capítulo dez da obra 'Civil Society and Political Theory' de J. Cohen e A. Arato (Massachusetts, MIT Press: 1999 [1992]) . Essa tradução é fruto de uma pesquisa acerca dos temas movimentos sociais e sociedade civil realizada por mim sob a orientação da Profª. Drª. Raquel Kritsch, durante o ano de 2010 na Universidade Estadual de Londrina. Não sou tradutor profissional, apenas um interessado no tema, o que me motiva é a importância do texto pro debate no Brasil desde os anos noventa e a inexistência de uma versão em português. Acredito ser válida tal proposta, sobretudo diante dos desentendimentos acerca dessa obra. Críticas e revisões são sempre bemvindas, não se pretende uma versão definitiva e sim uma primeira versão.

Vinicius Lanças

10. Movimentos Sociais e Sociedade Civil.

Nossa tese afirma que os movimentos sociais constituem o elemento dinâmico no processo que pode realizar os potenciais positivos das sociedades civis modernas. Também asseguramos que nossa teoria reconstruída da sociedade civil é indispensável para uma compreensão adequada da lógica, dos marcos e dos potenciais dos movimentos sociais contemporâneos. Conforme indicado no capítulo 1, o tema da auto-defesa de “uma sociedade contra o Estado” (e a economia desregulada do mercado capitalista) tem sido levantado por certo número de atores coletivos contemporâneos, que lutam por uma sociedade civil autônoma e democrática. Demonstramos também a relevância contínua das categorias-chave da sociedade civil moderna e o caráter bidimensional de suas principais instituições. O que resta esclarecer são: (1) a relação sistemática entre os potenciais de uma sociedade civil já existente (embora incompleta) e os projetos dos atores coletivos contemporâneos; (2) a importância de nossa reconstrução das categorias da sociedade civil, nos termos da distinção entre sistemas e mundo da vida, para uma interpretação (que admite tomar partido) desses projetos. Dirigimos a primeira questão para a demonstração da centralidade dos aspectos chave da sociedade civil moderna para os dois principais paradigmas teóricos no estudo dos movimentos sociais. Partindo do exemplo do movimento feminista, nós procuramos demonstrar que a estratégia dualista dos movimentos contemporâneos, almejada na democratização societária e política, pode ser melhor entendida a luz da análise estrutural da sociedade civil apontada no capítulo 9. Novos Paradigmas Teóricos e os Movimentos Sociais Contemporâneos.

O termo “novos movimentos sociais” tem ganhado ampla aceitação entre teóricos simpáticos aos movimentos por paz, ecologia, feminismo e autonomia local que proliferaram no ocidente desde meados dos anos setenta. Mas ainda não é claro como há realmente algo significativamente novo sobre tais movimentos e qual a importância teórica ou política dessas inovações. Certamente há pouca concordância entre os teóricos acerca do que constitui um movimento, o que qualifica esse novo tipo de movimento, e qual o significado de um movimento social enquanto distinto de um partido político ou de um grupo de interesse. Nós já tomamos muitos desses aspectos anteriormente1. O que nos importa agora não é nem a definição nem a “novidade” dos movimentos sociais em si mesma, mas ao invés disso a relação entre a ação coletiva contemporânea e a sociedade civil. Nós abordaremos esse tópico através da visão de como isso é tomado pelos dois principais paradigmas que competem nesse campo: o paradigma da “mobilização de recursos” e o paradigma da “orientação identitária”.2 Cada abordagem envolve um modelo teórico que exclui o principal foco do outro. Nós mostraremos que tais abordagens não são necessariamente incompatíveis, em parte porque ambas repousam nos aspectos chave da sociedade civil moderna, para apontar o que é específico para os movimentos sociais modernos. Nenhum paradigma se direciona diretamente para a importância teórica da odisséia da sociedade civil, para a emergência e para a transformação dos movimentos modernos, mas, ao observar a análise desenvolvida em cada perspectiva, a centralidade do conceito de sociedade civil é revelada em cada uma delas. Nosso pressuposto afirma que os movimentos contemporâneos são, em aspectos significativos, “novos”. O que temos em mente, acima de tudo, é um auto-entendimento, que abandona os sonhos revolucionários em nome de uma reforma radical que não é necessária e primariamente voltada para o Estado. Nós os rotulamos como projetos de “radicalismo auto-limitado” para a defesa e a democratização da sociedade civil, que aceitam a diferenciação estrutural e 1

Jean L. Cohen, “Rethinking Social Movements”, Berkeley Journal of Sociology, 28 (1983): 97-113; A. Arato e J. L. Cohen, “Social Movements, Civil Society and the problem of Sovereignity”, Praxis International 4 (October 1984): 266-283; e J. L. Cohen “Strategy or Identity: New Theoretical Paradigms and Contemporary Social movements” Social Research 52, no. 4 (Winter 1985): 663-117. Há muitos outros tipos de movimentos contemporâneos. Alguns, como o direito religioso e o direito pela vida, ditos em nome de autonomia da sociedade civil enquanto defendem um mundo da vida tradicionalista contra sua modernização seguinte. Movimentos inspirados por ideologias neoconservadoras buscam defender a economia (direitos de propriedade) contra a intervenção estatal e reformas igualitárias. E o movimento trabalhista ainda existe. Nosso foco nesse capítulo, no entanto, se dá apenas nos movimentos orientados para a promoção da democratização e modernização (no sentido normativo) das instituições políticas, sociais ou econômicas. 2 Confere Cohen, “Strategy or Identity”; Bert Klandermans and Sidney Tarrow, “Mobilization into Social Movements: Synthesizing European and American Approaches”, International Social Moviment Research 1 (1998): 1-38.

reconhecem a integridade dos sistemas econômico e político. Não acreditamos que seja possível justificar esse anseio sobre o que é novo nesses movimentos com base em uma filosofia da história que vincule a “essência verdadeira” daquilo que os movimentos “realmente são” (não importando o quão heterogêneas sejam suas práticas e formas de consciência) ou a um novo estágio na história (sociedade pós-industrial). Nem mesmo o tema “sociedade contra o Estado” que é compartilhado por todos os movimentos contemporâneos (incluindo alguns da direita) implica em si mesmo algo novo no sentido de uma mudança radical com o passado. Ao contrário, isso implica continuidade com o que é válido preservar (mesmo que isso seja fervorosamente contestado) nas instituições, nas normas e na cultura política das sociedades civis contemporâneas. A questão é, então, de que forma e por quais meios esse tema tem sido vinculado às novas identidades, formas de organização e cenários de conflito. Há duas maneiras de responder essa questão. Uma envolve uma abordagem hermenêutica, para o entendimento dos atores coletivos face a face com suas identidades, seus objetivos, suas metas e suas estratégias. 3 Mas a interrogação da identidade dos movimentos contemporâneos, baseada na interpretação de formas teóricas de auto-expressão não deve ser tomada enquanto absoluta do ponto de vista metodológico. Confrontar esse método com uma ciência social sistemática deve ser proveitoso de modo particular. Ao julgar a contribuição dos paradigmas científicos e sociais que competem entre si, será delimitado, por exemplo, o quanto cada um é capaz levar em consideração as experiências articuladas pelos teóricos para os movimentos e dentro dos movimentos. Se formos capazes de evitar a falácia objetivista que define “a verdade” enquanto uma possessão única do sistema científico, nós poderemos insistir no aprendizado não apenas sobre os movimentos, mas através dos movimentos. Mas precisamos também ter o cuidado de evitar a falácia hermenêutica. A questão hermenêutica precisa ser complementada por uma abordagem que envolva tomar a perspectiva do observador ao invés daquela do participante. Isso nos permite avaliar os meios pelos quais se relacionam o contexto e as transformações da sociedade civil com a aparência e a lógica da ação coletiva. Esse ponto envolve um diferente nível analítico – o da objetificação das ciências sociais. As teorias dos movimentos contemporâneos precisam se colocar as seguintes questões: em quais tipos societários ocorrem os movimentos? Quais as continuidades e descontinuidades que existem relação ao passado? Quais instituições estão envolvidas? Quais apostas políticas gerais no conflito? E quais as possibilidades de desenvolvimento disponíveis para os atores coletivos? Nós mostraremos que as categorias da sociedade civil provêm indícios para respondê-las em ambos os paradigmas. Elas também estruturam a abordagem “clássica” do estudo dos movimentos sociais contra aquilo que os novos 3

Cohen, “Strategy or Identity”, 667-668.

paradigmas explicitamente distinguem neles mesmos. Nós faremos um sumário dessa abordagem visando ressaltar as mudanças na avaliação da inter-relação entre sociedade civil e movimentos sociais, que serve de ponto de partida para ambos os paradigmas contemporâneos. O paradigma teórico clássico, dominante até o começo dos setenta, foi a tradição da psicologia social da escola de Chicago4. As variantes que receberam muita atenção e crítica dos teóricos contemporâneos têm sido aquelas da teoria de sociedade de massas (Kornhauser, Arendt, etc.) e o modelo estrutural funcionalista de comportamento coletivo de Smelser5. Há diferenças importantes entre essas versões da teoria do comportamento coletivo, mas todas elas partilham das seguintes suposições: 1. Há dois tipos de ação: institucional-convencional e não institucionalcoletiva. 2. A ação não institucional-coletiva é aquela que não é guiada pelas normas sociais existentes, mas sim formada para o encontro de situações não definidas ou não estruturadas. 3. Essas situações são entendidas nos termos de um ruptura, devido a mudanças estruturais, assim como mudanças nos órgãos de controle social ou na adequação da integração normativa.

4

Ralph H. Turner, ed. Robert E. Park on Social Control and Collective Behavior: selected Papers (Chicago: University of Chicago Press, 1967); Herbert Blumer, “Collective Behavior” in Alfred McClung Lee, ed. New Outline of Principles of Sociology (New York: Barnes & Noble, 1951), e “Collective Behavior” in J. B. Cittler, ed. Review of Sociology: Analysis of a Decade (New York: Wiley, 1957); R. G. Turner e L. M. Killian, Collective Behavior (Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1957). Para um sumário das teorias da ação coletiva conferir Gary T. Marx e James L. Wood, “Strands of Theory and Research in Collective Behavior”, Annual Review of Sociology 1 (1975): 368-428. 5 W. Kornhauser, The Politics of Mass Society (New York: Free Press, 1959); Hanna Arendt, The Origins of Totalitarianism (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1951); Neil Smelser, The Theory of Collective Behavior (New York: Free Press, 1962). Com exceção do trabalho de Arendt, que nós discutimos no capítulo 4, os teóricos da sociedade de massas e dos movimentos de massa constituem uma síntese das teorias da democracia elitistas e pluralistas. Nesse registro, a democracia envolve um sistema político caracterizado por eleições livres, competição e alternância e sua implicação num modelo de sociedade civil caracterizado por um privatismo civil aliado à participação de minorias ativas por meio de grupos de interesse e partidos políticos. Nesse ponto, ações coletivas “extra-institucionais” motivadas por crenças ideológicas fortes aparentam ser antidemocráticas e ameaçadoras ao consenso que reforça a sociedade civil. Em outras palavras, elas aparentam anunciar o ataque violento da “sociedade de massa”, que é tomada como um tipo de sociedade criada pelos movimentos fascista e comunista. Ironicamente, os conceitos de sociedade de massa foram usados por teóricos da escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Marcuse) para analisar o modelo de sociedade civil propagado pelos pluralistas (especialmente naquilo que aparenta sua mais perfeita encarnação, os Estados Unidos). Pode-se ser tentado a concluir que esses últimos teóricos defendem um modelo mais igualitário e politicamente ativo de sociedade civil do que o modelo pluralista-elitista ou a escola do comportamento coletivo, mas o fato é que a orientação neo-marxista os protege de desenvolver uma teoria adequada para outro tipo de sociedade civil ou movimento social.

4. Os constrangimentos, descontentamentos, frustrações e agressões resultantes levam os indivíduos a participar no comportamento coletivo. 5. O comportamento coletivo não institucional segue um “ciclo de vida”, aberto para análise causal, que se move desde a ação de uma multidão espontânea até a formação de movimentos públicos e sociais. 6. A emergência e o crescimento de movimentos dentro desse ciclo ocorre através de um processo rude de comunicação: contágio, rumores, reação circular, difusão, etc. Os teóricos da ação coletiva se focaram em explicar a participação individual nos movimentos sociais, observando as razões e valores enquanto respostas para uma mudança social rápida (forçada) e desorganização social. Claramente, nem todo teórico dessa tradição julga a ação coletiva como uma resposta irracional ou anormal de indivíduos desconectados em busca de alguma mudança. Apesar disso, todos eles veem a multidão como um simples átomo na anatomia do comportamento coletivo. Todos os teóricos do comportamento coletivo enfatizam as reações psicológicas para o colapso, os modos rudes de comunicação e as metas voláteis. Isso indica um preconceito implícito a respeito do comportamento coletivo, tomado enquanto uma resposta não racional ou irracional às mudanças. É esse preconceito, muito explícito nas abordagens da sociedade de massa e Smelserianas, que tem desencadeado a crítica dos teóricos contemporâneos. É também esse preconceito que impede qualquer exame da relação entre ação coletiva e a modernização da sociedade civil, pelo fato de pressupor que a ação coletiva deriva do colapso (normativo ou institucional) da sociedade civil. As inadequações da tradição clássica se tornaram óbvias nos anos sessenta e setenta quando boa parte dos movimentos sociais emergiu nos Estados Unidos e na Europa. O desenvolvimento de políticas caracterizadas pelos pluralistas enquanto democráticas, e as esferas pública e privada cheias de vida, desmentiram a versão da sociedade de massas do paradigma do comportamento coletivo (behavior paradigm). Então, também há o fato dos atores da Nova Esquerda, dos direitos civis, e do movimento feminista, dificilmente conformarem a imagem de desviantes anômicos, fragmentados e irracionais. O modelo Smelseriano (pressão estrutural/ crença generalizada/ circuito curto) não foi adequado para explicar as oportunidades, o caráter cognitivo, as formas organizacionais, a conduta ou as metas dos atores dos movimentos. Os movimentos dos anos sessenta e setenta não foram respostas a crises econômicas ou a colapsos normativos. Eles envolveram metas concretas, valores e interesses gerais claramente articulados, cálculos e estratégias racionais. Claramente, eles requerem uma nova abordagem teórica. Nos Estados Unidos, a resposta foi o paradigma da “mobilização de recursos”; na Europa Ocidental foi o paradigma dos “novos movimentos sociais”.

Apesar das diferenças cruciais, ambos os paradigmas assumem que os movimentos sociais são baseados nos conflitos entre grupos organizados com associações anônimas e formas sofisticadas de comunicação (redes de comunicação, públicos). Ambos argumentam que a ação coletiva conflituosa é normal e que os participantes são geralmente racionais, membros bem integrados de organizações. Em suma, a ação coletiva envolve formas de associação e estratégias específicas para o contexto de uma sociedade civil pluralista e moderna. Esse contexto inclui espaços públicos, instituições sociais (mídia de massa, a imprensa), direitos (de reunião, expressão e associação) instituições políticas representativas e um sistema legal autônomo, todos alvos dos movimentos sociais, em busca de influência política ou de iniciar a mudança. Ambas as abordagens também fazem a distinção entre dois níveis de ação coletiva: os manifestos da dimensão de mobilização de larga escala (greves, comícios, demonstrações, ocupações e boicotes) e um nível menos visível, latente nas formas de organização e comunicação entre os grupos que participam do dia a dia e da continuidade participação dos atores. É a insistência dessas abordagens na organização prévia dos atores sociais, e na racionalidade do conflito coletivo, que desafia diretamente as teorias clássicas dos movimentos sociais, porque isso implica que as características previamente julgadas únicas para a ação coletiva “convencional” também são verdadeiras para formas de comportamento coletivo não-convencionais. Em outras palavras, a sociedade civil, com suas associações autônomas e intermediárias tão caras aos pluralistas, e não a imagem de pesadelo da sociedade de massas, é que forma o terreno onde aparecem os movimentos sociais tematizados! O Paradigma da mobilização de recursos Os teóricos da mobilização de recursos começaram rejeitando a ênfase nos sentimentos e ressentimentos, o uso das categorias da psicologia, e o foco no colapso característico da abordagem do comportamento coletivo. Além disso, eles ordenaram uma rica evidência empírica para refutar a noção de que indivíduos desvinculados, motivados por pressões sociais, são os principais atores nos movimentos sociais6. O mais importante em sua perspectiva é que os teóricos da mobilização de recursos demonstraram que formas de organização sofisticadas e modos de comunicação em funcionamento estão por trás dos mecanismos rudes descritos na literatura clássica, que são necessários para mobilizar a ação coletiva. Esboçando a partir do trabalho de economistas (Olson), cientistas políticos (Salisbury), e historiadores (Rudé, Hobsbawn, Soboul, Wolff), os teóricos da mobilização de recursos ressaltam as variáveis “objetivas” como organização, 6

Para uma revisão da evidencia ver J. Craig Jenkins “Resource Mobilization Theory and the Study of Social Movements” Annual Review of Sociology 9 (1983): 527-553; Anthony Obershacl, Social Conflict and Social Movements (Englewood Clifss, NJ: Prentice-Hall, 1973)

interesses, recursos, oportunidades e estratégias, para justificar mobilizações de larga escala. Essas variáveis são direcionadas a partir de uma lógica neoutilitarista imputada nos atores coletivos. O “ator racional” (indivíduo ou grupo), empregando raciocínios estratégicos e instrumentais, substituí a multidão enquanto referência central para a análise da ação coletiva. Certamente, há diferentes orientações dentro desse paradigma, que se estende desde abordagens estritamente individualistas, a lógica utilitária do ator puramente racional iniciada por Olson, até a abordagem organizacional-empreendedora de McCarthy e Zald e o modelo do processo político de Tilly, Oberschall, Gamson, Klandersmans e Tarrow7. Muitos desse último grupo aliviam cálculo o estrito individualista de interesses, típico de Olson, ao colocar grupos solidários, com interesses em comum, enquanto protagonistas da ação coletiva. Apesar de suas diferenças, todas as versões das abordagens da mobilização de recursos analisam a ação coletiva nos termos da lógica estratégica de interação, baseada em cálculos de custo benefício8. Os teóricos da mobilização de recursos compartilham os seguintes pressupostos: 1. Os movimentos sociais precisam ser entendidos nos termos de uma teoria conflitual da ação coletiva. 2. Não há diferenças fundamentais entre ação coletiva institucional e não institucional. 3. Ambas acarretam conflitos de interesses construídos nas relações de poder institucionalizadas. 4. A ação coletiva envolve uma busca racional de interesses pelos grupos. 5. Metas e questionamentos são produtos permanentes das relações de poder não podem ser consideradas na formação dos movimentos. 7

Mancur Olson, The Logic of Collective Action (Cambridge: Harvard University Press: 1965); John D. McCarthy and Mayer N. Zald, “Resource Mobilization and Social Movements: A Partial Theory, “American Journal of Sociology 82 (Maio 1977):212-241; Charles Tilly, Louise Tilly e Richard Tilly, The Rebellion Century 1830-1930 (Cambridege: Harvard University Press, 1975); William Gamson, The Strategy of Social Protest (Homewoo, Il: Dorsey, 1975); Oberschal, Social Conflict and Social Movement, Sidney Tarrow “Sttrugling to Reform: Social Movements and Policy Change during Cucles of Protest”, Western Societies Paper n. 15, Cornel University, 1983; B. Klandersmans, H. Kriesl, e S. Tarrow, “From Structure to Action: Comparing Social Movement Research across Cultures”, International Social Movement Research 1 (1988). 8 Charles Perrow, “The Sixties Observed” em Mayer Zald e John D. McCarthy, ed. The Dynamics of Social Movements (Cambridge: Wintrop, 1979), 1999. Perry caracterizou a versão dos processos políticos da teoria da mobilização de recursos como “Clausewitiana” porque ela concebe os protestos como continuação do ordenamento político por outros meios (desordenados) – como o crescimento da busca de interesses de outra forma irrealizáveis. Mas ele erra ao argumentar que apenas o empreendedor-organizacional é economicista naquilo que atribui a cálculos de custo-benefício dos atores coletivos. O modelo de Tilly sofre de dificuldades similares.

6. Os movimentos se formam por causa das mudanças nos recursos, na organização e nas oportunidades para a ação coletiva. 7. O sucesso envolve o reconhecimento dos grupos enquanto um ator político ou benefícios materiais reconhecidos. 8. A mobilização envolve organizações de burocráticas e com propósitos especiais9.

larga

escala,

formais,

Organização e racionalidade são as palavras chave dessa abordagem. A análise não procede a partir de uma relação hermenêutica da ideologia ou do auto-entendimento dos atores coletivos. A partir do marco hermenêutico, podese, é claro, responder que a perspectiva dessa análise se aproxima das preocupações um organizador dos movimentos dentro dos imperativos da mobilização, mas é mais justo dizer que o que predomina nesse caso é uma visão de um observador do meio político, que pode ser útil a tais organizadores. Contudo, nos encontramos atacando as referências para “comunidades ainda viáveis ou parcialmente viáveis” ou “grupos associativos organizados com outros propósitos que não a oposição” (Oberschall) para a existência de “interesses coletivos” (Tilly) ou “interesses sociais” (Fireman, Gamson) ou “consciências constitutivas” que doam recursos (Mccarthy, Zald) que abundam na literatura, implicando o conhecimento do “civil” e ao invés das “massas” na base societária da ação coletiva moderna, racional e organizada 10; o que resta de problemático em toda essa abordagem é dar a consideração adequada às formas de organização que ela pressupõe. Essa consideração requer a exploração do terreno político e social que forma as condições para a possibilidade de emergência e sucesso dos movimentos modernos. A reconstrução de Charlles Tilly do impacto da mudança das estruturas de poder locais para a as nacionais nas formas e tipos de organização da ação coletiva dá um importante passo nessa direção. Além disso, sua versão da teoria da modernização descreve a emergência do repertório de ação e dos tipos de associação pressupostos pela teoria da mobilização de recursos. Assim, sua análise histórico-comparativa se situa e transcende seu modelo em muitas das descobertas mais significantes sobre novas formas de vida em grupo e tem implicações para o desenvolvimento das dimensões chave da sociedade civil que não são redutíveis às categorias analíticas da abordagem

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Alguns membros da escola da mobilização de recursos reconhecem uma variedade de formas organizacionais para os movimentos modernos, mas a ênfase total e na organização formal. Essa escola tem sido acusada de incapacidade de distinguir entre grupos de interesse e associações de movimentos sociais. Confere Jenkins “Resource Mobilization Theory” 541543. 10 Confere Bruce Fireman e W. A. Gamsom, “Utilitarian Logica in the Reource Mobilization Perspective” em Zald e McCarthy ed. Dynamics of Social Movements, 1-44.

da mobilização de recursos.11 Ele não oferece os significados adequados para considerar as formas de organização, ou os projetos dos movimentos contemporâneos, que não visam somente a inclusão econômica ou política para aquisição de benefícios materiais. Certamente, o limite da correção de Tilly ao modelo da mobilização de recursos é o que permite à sociedade civil (diferenciada do Estado e da economia) aparecer enquanto terreno e não mais alvo apenas da ação coletiva. Não obstante, pelo fato de isso ser o caso mais forte para a importância da sociedade civil no entendimento dos movimentos modernos, seria proveitoso examinar o modelo de Tilly de forma maneira mais próxima. A despeito de sua polêmica explícita contra as versões de Durkheim e Smelser do modelo de comportamento coletivo por “colapso”, Tilly retém a tese de que a mudança estrutural em larga escala (modernização) afeta a ação coletiva.12 Ele desaprova o padrão das teorias do colapso ao mostrar que a cadência e o ritmo da urbanização e da industrialização não governam o andamento da ação coletiva, e que não é possível vincular privações, crises e anomias ao conflito de forma direta. Mas sua análise da mudança estrutural não desafia o fato da diferenciação sistêmica na transição da “comunidade” para a “sociedade”. Ao invés disso, ele mostra como a transformação econômica, a urbanização e a formação do Estado produzem uma mudança de longo prazo no caráter do conjunto de pessoas da ação coletiva. Esses processos (juntamente com o desenvolvimento da mídia de massas) facilitaram a emergência de novos tipos de mobilização e organizações, que enfraqueceram outros. O que é novo na versão de Tilly da teoria da modernização é a ligação entre a especificação de um repertório e mudanças estruturais que tem impacto no dia a dia dos atores relevantes: “a reorganização da vida cotidiana transformou o caráter do conflito... a reformação de longo prazo das solidariedades, ao invés da produção imediata de pressão e esforço, constitui o impacto mais importante da mudança estrutural no conflito político.13 Entre a análise das mudanças na rotina diária das populações – seus modos e seus lócus de trabalho, a estrutura da vida nas vizinhanças, as mudanças populacionais do campo para a cidade, e as mudanças nos locais de poder – Tilly mostra como os repertórios de ação desenvolvidos pelos atores coletivos inter-relacionados, com suas formas de associação, e a razão pela qual emergem novas formas. Os desenvolvimentos de longo prazo envolvem a substituição de solidariedades comunais por associações voluntárias. Isso acarreta a mudança da ação coletiva fora das assembléias rotineiras dos grupos comunais e mercados locais, festivais e encontros 11 12 13

Ibid. Confere Tilly, Tilly e Tilly, The Rebellious Century, 6. Ibid. , 86 (ênfase nossa).

oficialmente sancionados entre reuniões deliberativamente chamadas por grupos organizados14. As principais formas de ação coletiva mudaram: as rebeliões por comida, contra impostos, e apelos às autoridades paternalistas, típicas do “repertório de ação oitocentistas” são substituídas por demonstrações e lutas típicas do “repertório de ação novecentistas”. As categorias de Tilly acerca dos tipos de ação coletiva capturam toda essa mudança. O repertório de ação oitocentista envolve anseios “competitivos” e “reativos”. O primeiro acarreta conflito entre grupos comunais existentes no nível local sobre o controle de recursos almejados por rivais. A ação coletiva “reativa” envolve grupos comunais ameaçados pelos esforços dos criadores do Estado para ganhar o controle sobre a população geral e seus recursos. Também envolve a resistência na prioridade das necessidades e tradições locais. Nesse caso, um grupo reage aos anseios de outro grupo sobre um recurso comumente sobre seu controle. Em ambos os casos, a ação coletiva é carregada por comunidades solidárias pré-existentes. Isso envolve uma ação ricamente expressiva e simbólica, admiravelmente descrita por Tilly a despeito de seu realce na racionalidade estratégia mesmo nesses tipos de conflito15. Ações coletivas “pró-ativas”, por outro lado, declaram anseios do grupo por poderes, privilégios e recursos não existentes anteriormente. Nesse ponto, tentativas de controle ao invés de resistência aos elementos das estruturas nacionais levam à formação de complexos de organizações especializados no lugar dos grupos comunais. Os tipos de mobilizações que correspondem aos dois últimos tipos de anseios são “defensivos” e “ofensivos”, respectivamente. Lutas reativas envolvem mobilizações defensivas diante de uma ameaça vinda de fora. Claramente, o que está em questão é a defesa de um mundo da vida tradicional, comunalmente estruturado contra a “modernização”. As mobilizações ofensivas típicas de clamores proativos envolvem um fundo de recursos para um ganho de reconhecimento ou divisão maior de poder. Tilly alerta continuamente contra enxergar as ações coletivas, competitiva, reativa e pró-ativa, enquanto estágios em um processo evolutivo. Além disso ele argumenta que elementos de qualquer repertório de ação podem ser usados para satisfazer uma variedade de anseios. Uma demonstração não é defensiva ou pró-ativa por definição. Ainda assim, ele traça uma mudança de longo prazo, com os dois primeiros tipos dominando até 14

Charles Tilly, “European Violence and Collective Action since 1700” Versão revisada de um artigo apresentado na Conferência de Violência Política e Terrorismo, Instituto Carlo Caettaneo, Bolonha, Junho de 1982. 15 Para uma discussão acerca desses tipos de ação, confere Tilly, Tilly e Tilly Rebellious Century, 48-55, 249-252 e Charles Tilly, From Mobilization to Revolution (Reading, MA: Addison-Wesley, 1978), 143-151.

meados do século dezenove e o terceiro dominando desde então. A mudança ocorreu devido às “grandes estruturas” ganharem o controle sobre os recursos anteriormente manipulados por famílias, comunidades e outros grupos menores. Junto a isso, a urbanização e a mídia de massas reduziram os custos da mobilização de larga escala para associações formalmente organizadas. Os novos loci de poder e as novas estruturas da vida cotidiana promoveram a seleção de um novo repertório de ação e a emergência de novas formas associativas. O conflito social tomou continuamente a forma de lutas pró-ativas, ofensivas, por inclusão nas estruturas que controlam os recursos no nível nacional. Por último, mas dificilmente menos importante, o desenvolvimento de políticas eleitorais de massa criaram um ambiente propício para associações voluntárias e mobilizações de larga escala. De fato, Tilly argumenta que o crescimento das eleições e o começo da participação popular na política nacional promoveram a divulgação da manifestação enquanto uma forma chave de ação coletiva, porque isso envolve um guarda chuva legal que poderia se estender cada vez mais entre grupos e tipos de reuniões: “O reconhecimento da legalidade de uma associação eleitoral ou assembléia eleitoral prove um anseio por legalidade em associações e assembléias que não são totalmente eleitorais, unicamente eleitorais ou eventualmente eleitorais”16. Os direitos de se organizar, recrutar, expressar publicamente, associar, solicitar, tornar público e manifestar (os componentes institucionais chave de uma sociedade civil moderna) são, é claro, essenciais para um sistema multipartidário operando num contexto de sufrágio universal. A presença de elites com um forte interesse em uma definição ampla de atividades políticas aceitáveis torna difícil, dispendioso, para os governos reter esses recursos de outros atores sociais. Políticas eleitorais oferecem então um incentivo aos atores sociais para escolher as manifestações, reuniões públicas e greves enquanto modos de ação coletiva, desde que “sejam esses grupos mais exitosos, no geral, aqueles que produzem o mais alto múltiplo de membros, obrigações e articulações de reivindicações17”. Isso significa que a sociedade civil se tornou o terreno indispensável no qual os atores sociais se reúnem, se organizam e se mobilizam, mesmo se seus alvos forem o Estado e a economia. O trabalho de Tilly desafia então as conclusões de Foucault, que assegura que todos os significados de conseguir solidariedade autônoma e efetiva foram abolidos pelas técnicas de “individualição” e “normatização” indicados nas formas de poder modernas. Tilly mostra que as solidariedades comunais dos famosos corpos intermediários do antigo regime, junto com os locais e tipos de reuniões agrupadas específicas estruturas da vida cotidiana nas condições “pré16 17

Tilly, From Mobilization to Revolution, 167. Tilly, “European Violence” 11.

modernas” (século dezoito) desapareceram finalmente. Mas esse ponto é aquele em que elas foram substituídas por novas formas de solidariedade, associação, recursos de poder e modos de conflito no terreno da sociedade civil moderna. Certamente, Tilly vê essas formas de organização e protesto enquanto mais autônomas que as reuniões “espontâneas” típicas do repertório de ação do século XVIII tão passionalmente descrito por Foucault. Do nosso ponto de vista, o trabalho de Tilly mostra que a ação coletiva moderna pressupõe o desenvolvimento dos espaços políticos e sociais autônomos dentro das sociedades civil e política, que são garantidos por direitos e sustentados pela cultura política democrática, fundamentando instituições políticas representativas “formais”. Mas ele enfatiza primariamente as oportunidades políticas e as implicações estratégicas que elas têm para a emergência de um repertório de ação do século dezenove. Em suma, ele olha apenas para aquelas dimensões destes processos que são relevantes para a mobilização dos grupos competindo por poder. O trabalho histórico de Tilly implica na transformação dos loci de poder e as mudanças correspondentes na forma como a ação coletiva pressupõem a criação de novos significados, novas organizações, novas identidades e um espaço social (nominalmente, sociedade civil) no qual eles possam aparecer. Mas a perspectiva da mobilização de recursos que abarca o leva a tratar os últimos apenas como pré-condições óbvias para a ação coletiva efetiva. Os modelos combinados do governo e da mobilização de recursos enfocam na interação entre repressão/ facilitação, poder e oportunidade/ameaça de um lado e interesses, organização e capacidade de mobilização de outro18. Isso pressupõe que a ação coletiva envolve custos e ganhos. A luta é interpretada entre membros e competidores para a inclusão no governo (acesso ao poder) e as recompensas materiais que isso possa trazer. Em suma, os conflitos sociais e acerca das instituições da sociedade civil e a forma da esfera pública política são vistos apenas de um lado – enquanto reações defensivas ou ofensivas às mudanças nas relações de poder. Há uma série de desvantagens nesse enfoque estreito. Primeiro, ele pressupõe o que se tornou problemático e precisa de explicação na passagem da base comunal para a base associativa da identidade grupal. Em outras palavras, o próprio trabalho histórico de Tilly sugere que a construção da identidade, o reconhecimento dos interesses compartilhados e a criação de solidariedade dentro dos grupos e entre eles, com a emergência da sociedade civil moderna, não podem ser tratados como dados. Essas são conquistas que foram aumentando e sendo tratadas como tal pelos atores envolvidos no processo. O aumento da auto-reflexão acerca da construção social da identidade e da realidade envolve aprendizado sobre dimensões nãoestratégicas. Essa questão se torna ainda mais urgente se considerarmos 18

Tilly, From Mobilization to Revolution, 52-97.

aqueles atores coletivos contemporâneos que não buscam simplesmente atingir o Estado ou a economia para a inclusão ou aumento de benefícios, e aquelas identidades que não podem ser derivadas desses subsistemas. Em suma a abordagem de Tilly exclui a possiblidade de analisar as “políticas de identidade” dos atores coletivas contemporâneas. Segundo, enquanto Tilly provém instrumentos para analisar como as instituições das sociedades civil e política oferecem os meios para grupos relativamente fracos e excluídos para exercer pressão naquelas com poder (e dinheiro) visando ganhar entrada no governo, seu foco na meta da inclusão e na aquisição de poder o leva a tornar obscuras as implicações das “políticas de influência” almejadas na sociedade política. Influência, como já vimos, é um meio peculiar que é especificamente adequado às sociedades civis modernas cujas esferas públicas, direitos e instituições representativas democráticas são, em princípios ao menos, abertas ao processo discursivo que informam, tematizam e potencialmente alteram as normas sociais e a cultura política. Isso é possível para atores coletivos na sociedade civil para exercer influência nos atores na sociedade política, para fazer uso do discurso público não apenas para ganhar poder ou dinheiro, mas restringir a atuação dos meios do dinheiro e do poder no mundo da vida, visando garantir a autonomia e modernizar (democratizar e liberalizar) as instituições e as relações sociais na sociedade civil. Pelo colapso implícito do “poder” e do “dinheiro”, Tilly é cegado quanto à lógica da ação coletiva que busca aplicar os princípios da sociedade civil na própria sociedade civil e realizá-la mais plenamente dentro das instituições sociais. Nossa tese afirma que, nos movimentos contemporâneos, políticas dualistas de identidade e influência, almejadas tanto na sociedade civil quanto no governo (ou sociedade política), substituem a lógica monolítica da ação coletiva ressaltada por Tilly. Além disso, Tilly rejeitou explicitamente a idéia de que as mudanças nas táticas (greves, piquetes, protestos) nos desfechos (autonômia local, igualdade de gênero, ecologia, direito a um estilo de vida distinto), ou nos atores (prevalência da nova classe media) engajados na ação coletiva contemporânea importam para um novo repertório de ação. “Olhando de perto, no entanto, quase todos nesses casos em questão envolvem formas de ação que já possuem sua própria história19”. A despeito de alguma inovação, os atores coletivos contemporâneos continuam a usar a rotina de reuniões, manifestações, greves, etc. Para Tilly então, embora os desfechos e as tendências tenham mudado, o fato fundamental é a continuidade – os meios de ação continuaram os mesmos. Mas eles têm o mesmo significado? As manifestações, reuniões, etc., dos novos movimentos são realmente apenas 19

Tilly, “European Violence” 24. Ver também Tilly, “Fights and Festivals in Twenthy Century Ile de France”, Working Paper n. 305, Centro de Pesquisas em Organizações Sociais, Universidade Michigan, Dezembro de 1983, 63-68.

ofensivas ou pró-ativas? Claramente, no caso das novas dimensões dos movimentos feminista, gay, ecológico, pacifista e por autonomia local, não é só isso. E o próprio Tilly argumentou que a não ação é em si mesma pró-ativa ou reativa, ofensiva ou defensiva. Certamente, os movimentos contemporâneos combinam aspectos de ambos os tipos principais de Tilly. Eles são sempre ofensivos e reativos, mas nem sempre protegem comunidades tradicionais préexistentes de incursões externas. Ao invés disso, eles defendem espaços para a criação de novas identidades e solidariedades e buscam fazer das relações dentro de instituições da sociedade civil mais igualitárias e democráticas. Enquanto são organizadas de forma associativa, as associações são tratadas não enquanto grupos de interesse, mas enquanto fins em si mesmas. Os espaços públicos expandidos, as esferas literárias e midiáticas contrahegemônicas, as formas de conflito discursivas, e a participação democrática construída não são apenas meios de alcançar mais benefícios materiais ou inclusão, como um grupo de interesses no acesso e exercício do poder. Finalmente, os novos movimentos possuem também um lado “ofensivo”, não apenas no sentido de lutas por inclusão e poder no governo, mas também em alguma medida envolvendo esforços para influenciar atores na sociedade política para fazer politicas e iniciar reformas apropriadas para novas identidades coletivas. Muitos teóricos da mobilização de recursos reconheceram os aspectos únicos dos movimentos contemporâneos. Com certeza, o paradigma foi inicialmente elaborado por teóricos envolvidos ou diretamente afetados pela nova esquerda. Esses teóricos direcionaram explicitamente inovações nas organizações, processos de mobilização, estratégias e objetivos dos movimentos dos anos sessenta e início dos setenta20. De acordo com uma das análises mais significativas, esses movimentos foram novos precisamente por sua extensão ao serem mobilizados por “organizações de movimentos sociais profissionais” ou SMO [social moviments organizations] (líderes de fora ao invés membros) que calcularam e dirigiram cuidadosamente a ação coletiva para ganhar cobertura da mídia e simpatia pública para as metas dos movimentos e então influenciar a consciência das elites eleitorais pra prover fundos, a defesa daquilo que levaria à mais profissionalização (burocratização) do descontentamento social e ao sucesso no sentido de assegurar a representação de grupos não representados através dos grupos de interesse 20

Alguns teóricos, é claro, enfatizaram essas inovações e processos de mobilização como escolhas deliberadas de estruturas descentralizadas, participação de base, e organizações federadas nacionais. Eles também notaram a ênfase nessas metas como envolvimento pessoal direto na ação política, auto-ajuda, mudança pessoal e a criação de novas identidades e solidariedades. No entanto, muitos analistas na tradição da mobilização de recursos concluíram que essa orientação “nova”, em si mesma, resulta em uma perda de efetividade estratégica. Isso é real apesar do argumento anterior de Zald e Ash de que estruturas organizacionais diferentes são efetivas em diferentes metas: confere M.N. Zald e R. Ash, “Social Science Review 49 (1975): 344-362, e “Resource Mobilization and Social Movements”, American Journal of Sociology 82 (1977): 1212-1241.

viáveis21. Claramente, a meta dessa teoria é considerar a possibilidade e o sucesso da ação coletiva na parte daqueles excluídos da representação direta dentro do sistema político por outros partidos ou grupos de interesse entrincheirados. A análise dessa estratégia particular de influência por parte dos SMO‟s profissionais mostra que a ação coletiva contemporânea não implica envolvimento direto em lutas por poder entre “contedores” do poder e autoridades. Ao invés disso, a estrutura descentralizada, pública e pluralista da sociedade civil encoraja esforços para influenciar setores da opinião pública, nesse caso a opinião das “consciências eleitorais” externas, aquelas das elites sociais. Essa análise é bastante convincente a respeito de grupos desorganizados e fracos que não seriam de outra forma representados, aqueles como as crianças, os pobres ou os consumidores. Enquanto com Tilly, de qualquer forma, o foco exclusivo são as estratégias para alcançar representação política e benefícios, o que o leva a um conhecimento unilateral do “poder” peculiar de influenciar e obscurece a distinção entre movimentos sociais e grupos de interesse. Os movimentos são reduzidos a organizações profissionais que mobilizam ações coletivas de massa por razões políticointrumentais. Nessa análise, os atores coletivos não podem ser mobilizados ou influenciados sem dinheiro ou poder, alcançando influência equivalente à mesma coisa que poder e dinheiro (recursos organizacionais). A política de influência ainda é o recurso por excelência daqueles que são relativamente fracos, fora da política, a aqueles sem influência econômica. Por isso a importância dos “SMO‟s profissionais”. Não importando o quão convincente essa lógica possa ser na abstração, no caso da teoria de McCarthy e Zald isso faz com que a influência corruptora nos meios do dinheiro e do poder tenha o inoportuno resultado de fazer com que a dinâmica e a lógica dos movimentos sociais contemporâneos seja descaracterizada. Conforme Jenkins e Eckert, entre outros, demonstraram, os novos movimentos sociais são almejos autóctones organizados por líderes locais que emergem das populações “constrangidas” e que se baseiam em redes locais de associações locais, grupos de base, clubes sociais, igrejas (no caso de movimentos por direitos civis) etc., para mobilizar a ação coletiva 22. Eles são organizados nas “SMO‟s clássicas”, nas associações dependentes de trabalho voluntário de beneficiários diretos, empregando táticas inovadoras que registram sucesso nas lutas bem antes da profissionalização ocorrer. Suas estratégias buscam influenciar a opinião pública e então, indiretamente, as 21

John McCarthy e Mayer Zald, The Trend of Social Movements (Morristown: New Jersey: General Learning, 1973), “Organizational Intellectuals and the Criticism of Society”, Social Science Review I49 (1975): 344-362 e “Resource Mobilization and Social Movements” Amercian Journal of Sociology 82 (1977): 1212-1241. 22 Confere J. Craig e Craig M. Eckert, “Channelling Black Insurgency: Elite Patronage and Professional Social Movement Organization in the Development of the Black Movement, “American Sociological Review 51 (1986): 812-829.

elites, não em busca de apadrinhamento ou, em primeira instância, poder político, mas sim convencer os outros da justiça de sua causa23. Com certeza, uma vez que os SMO‟s profissionais se tornam primários, como ocorreu nos anos oitenta, eles sinalizam (embora não causem, conforme Piven e Cloward) o declínio do ciclo de protestos e dos movimentos característicos da ação coletiva. Nós estamos então confirmando em nossa tese que as associações voluntárias, autônomas e autóctones dentro da sociedade civil usando e expandindo o discurso público e os espaços públicos para discursos são a differentia specifica dos movimentos sociais contemporâneos. Mesmo quando o “sucesso” é definido nos termos padrão da teoria da mobilização de recursos, enquanto inclusão política dos grupos formalmente excluídos ou enquanto benefícios materiais, seria impossível entender os sucessos dos movimentos pelos direitos civis se a influência for confundida com o poder e se os objetivos da influência forem os líderes ou adversários políticos. As manifestações, boicotes e marchas foram visadas para influenciar a opinião pública e então as cortes (suprema e federal) para forçar as leis federais a invalidar, enquanto inconstitucionais, as ordens locais que institucionalizavam a segregação. Foi a influência, e não o dinheiro ou o poder, o que operou nesse caso. Para certificar, a estratégia de influência foi também direta ao persuadir as elites políticas no congresso a aprovar a legislação. No contexto de uma “estrutura política oportuna”, essas estratégias orientadas para a influência da ação coletiva levaram aos atos pelos direitos civis de 1964 e 1965 e à institucionalização de ganhos significativos durantes os anos 70 24. Esses foram sucessos de organizações autóctones e de movimento de massa25. Apadrinhamento e profissionalização certamente ocorreram no caso dos direitos civis e outros movimentos, mas esse processo não iniciou, controlou, subjugou ou cooptou os movimentos. Ao invés disso, eles realizaram um importante papel na conquista de suas vitórias. “Como demonstraram os movimentos feminista e ambientalista, litígios, monitoramento fechado das agências do governo e profissionalização de lobbies podem ser bem efetivos se aliados a movimentos autóctones e se houver uma base administrativa e

23

Ibid. Ibid., 816. Eles citam o aumento da participação de votantes negros, a importância do negro enquanto votante, o aumento do número de donos de escritório negros e a diminuição de muitas formas de discriminação na educação e no emprego. 25 Ibid., 820. Embora o aumento das oportunidades políticas (como as decisões favoráveis da suprema corte) facilitou o surgimento dos movimentos, essas foram oportunidades e não patrocínio direto. Um grupo excluído não pode contar com SMO‟s profissionais e do apadrinhamento de elites para proteger e avançar seus interesses contra oponentes poderosos sem sustentar uma mobilização autentica. Isso não impede o papel dos SMO‟s profissionais no sucesso dos movimentos da sociedade civil, mas simplesmente enfatiza que tanto uma política de identidade e influência de base quanto uma política de reforma e inclusão são importantes. 24

legal para sua implementação”26. Além disso, o declínio dos movimentos não se deu devido à cooptação ou à profissionalização, como dizem alguns críticos de Zald e McCarthy, mas sim aos sucessos dos movimentos e sua lógica de desenvolvimento interna, tampouco daqueles envolvidos na transformação de metas e táticas na troca por incorporação política27. As análises de Jenkins e Eckert precisam ser tomadas enquanto uma correção ao invés de uma alternativa ao paradigma da mobilização de recursos. Enquanto eles demonstram que a ação coletiva bem sucedida precisa agora envolver ambos, os movimentos de massa originários (baseados nas associações locais e autônomas) e grupos de interesse, eles ainda definem sucesso enquanto “trazer um grupo excluído para o governo”. Embora eles expandam os objetivos da influência para incluir não apenas adversários políticos ou patrões em potencial, mas também a opinião pública em geral, há ainda um forte preconceito na discussão que leva a uma interpretação unilateral dos movimentos contemporâneos. Portanto, o caráter dualista da ação coletiva contemporânea é reconhecido apenas quanto à organização (associações de base mais grupos de interesse); o objetivo último dessas organizações e da ação coletiva em geral permanece construído de forma monolítica. Reconhecimento e inclusão plena dentro do governo, e não a defesa e transformação da sociedade civil, é o que está em questão nessa interpretação. A meta do movimento pelos direitos civis, no entanto, não foi apenas adquirir direitos civis, mas modernizar a sociedade civil no sentido de desfazer as estruturas tradicionais de dominação, exclusão e desigualdade enraizadas nas instituições sociais, normas, identidades coletivas e valores culturais baseadas em prejuízos raciais e de classe. E o movimento feminista, pra pegar outro exemplo, torna claro o objetivo das instituições patriarcais na sociedade civil e trabalha para uma mudança normativa e cultural tanto quanto econômica e política. Certamente, a preocupação geral por parte de todos os atores coletivos contemporâneos com autonomia, identidade, discursos, normas sociais e significados culturais permanece inexplicada nessa teoria28. 26

Ibid., 827. Isso também é real para o movimento pelos direitos civis. Confere Alessadro Pizzorno, “Political Exchange and Collective Identity in Industrial Conflict” em C. Crouch e A. Pizzorno ed., The Resurgence of Class Conflict in Western Europe since 1969, vol. 2 (Londres: Macmillan, 1978, 277-298. 28 Esse viés político é especificamente evidente na recente expansão da teoria da mobilização de recursos que inclui considerações daquilo que Sodney Tarrow chamou de “estrutura de oportunidade política” em “Strugling to Reform”. Baseando-se em nas implicações do trabalho de Wilson, Lipsky, Tilly e outros, Tarrow usa seu conceito para diferenciar as variáveis “externas”, que são importantes para a explicação do sucesso dos movimentos, daquela mobilização de recursos “interna”. É claro, ele também define sucesso em termos políticos, como o desdobramento de um processo de inovação governamental no sistema político que se direciona para as necessidades dos contestadores, mas sua análise da estrutura de oportunidade política e seu conceito de ciclos de protesto e reforma expandem a discussão rasa da influência na teoria da mobilização de recursos de antes. Ao mesmo tempo, seu trabalho indica o limite entre uma abordagem focada exclusivamente no sistema político para a análise de metas e direcionamentos dos movimentos sociais contemporâneos. 27

A teoria da mobilização de recursos em geral é limitada por esse enfoque no poder para tematizar os usos estratégicos da influência. Em outras A estrutura de oportunidade política incorpora três aspectos do sistema político que são importantes para o sucesso do movimento: o grau de abertura das instituições políticas formais, o grau de estabilidade das tendências políticas dentro do sistema político, e a disponibilidade de uma postura estratégica de grupos de apoio. O primeiro reflete fatores formais, estruturais e conjunturais nos sistemas políticos, enquanto o segundo e o terceiro trazem os alvos de influência da ação coletiva. Tarrow especifica uma ampla margem de direcionamentos dos movimentos, incluindo ajudar grupos na sociedade civil mas externos ao próprio movimento; grupos de interesse com acesso institucional, que podem ser impulsionados e encorajados pela atividade do movimento em pressionar por metas compartilhadas; elites políticas e administrativas em todos os setores do sistema político, cujo grau de unidade e percepção de que as tendências eleitorais que pode resultar da ação coletiva afetam a abertura às metas do movimento; e partidos políticos, que podem responder a atividade autônoma dos movimentos ao adotar ou cooptar os assuntos dos movimentos. No entanto, nem uma estrutura de oportunidade política, nem uma organização interna eficiente são suficientes para explicar o sucesso dos movimentos. Junto a isso, o impacto do protesto nas reformas precisa ser analisado a luz da “combinação de recursos e tensões que são característicos do período de mobilização geral em todo o sistema social”. Nesses períodos, um ciclo de protestos emerge no qual há um alto nível de conflito que é difundido através do território nacional, envolvendo mais que um setor social e acarretando o surgimento de novas técnicas de protesto e novas formas de organização (Tarrow, “Struggling to Reform”, 37-39). Mesmo se a relação causal entre um ciclo de reformas e ondas de protestos sociais permanece problemática (alguns ciclos de protestos simplesmente falham, enquanto outros são disparados por reformas que os precedem), eles sempre coincidem, e o sucesso dos movimentos individuais é sempre contingente acerca de como e quando eles emergem durante o ciclo. Em outras palavras, tanto a estrutura de oportunidade política quanto a receptividade das elites políticas e grupos de apoio para estratégias de influência por parte dos movimentos sociais dependem, em parte, da dinâmica do ciclo de protestos. Enquanto isso é convincente conforme segue, a análise expandida dos alvos de influência é ainda indevidamente pressionada pelos limites da abordagem como um todo. É surpreendente que um modelo teórico orientado para a análise da influência não seja direcionado ou evite aquelas preocupações obviamente relevantes como as mudanças na opinião pública, o papel da mídia e as transformações no universo do discurso político. O caminho pelo qual esses assuntos são tomados e evitados é em si mesmo revelador. Mudanças na “opinião das massas”, pelas quais Tarrow compreende a mudança de valores, são tomadas como uma causa possível para protestos sociais (39, à la Inglehart) e então descartadas como sendo improváveis. Mas, não pode ser que a opinião pública e a mudança cultural convençam alguém das metas e alvos da influência da ação coletiva? A cobertura da mídia é também tomada de forma puramente instrumental, como facilitadora ou bloqueadora da atividade do movimento (de acordo com Obersachall “Social Conflict” e Todd Gitlin, The Whole World is Watching [Berkeley: University of Califórnia Press, 1980]). Mas não são a iniciação e a expansão da discussão pública de assuntos e normas e a democratização da esfera pública cultural também metas possíveis dos movimentos? Certamente um dos aspectos mais impactantes dos jornais, revistas, livrarias, institutos, programas de estudo, publicações de todos os tipos – que expandem a esfera pública mas são almejados em primeira instância para “influenciar”, não as elites, mas sim possíveis participantes em “eleitorados conscientes”. As esferas públicas alternativas “têm êxito” em expandir aquilo que dispara reflexão, sobrevive às arenas de comunicação ou se torna parte de uma esfera pública institucionalizada. Finalmente, embora Tarrow garanta que a evolução geral de uma opinião informada ou de elite é relevante para o sucesso do movimento, ele atesta que a mudança no “universo político do discurso” comprime uma área “coberta de nuvens” (34) que pode afetar na estrutura de oportunidade política, mas não pode ser “operacionalizada”. Talvez sua área nublada aconteça de se tornar um dos principais alvos da ação coletiva contemporânea. Certamente, o universo do discurso político, junto com as normas sociais, papéis sociais que são regulados por normas e a consciência dos atores coletivos são, assim como as elites, todos “endereçados” à uma estratégia de influência do movimentos sociais contemporâneos. Mas apenas a observação de que a sociedade civil – sua estrutura institucional, as relações sociais e a articulação normativa – não é apenas o terreno, mas também o alvo dos movimentos sociais, pode afirmar a importância dessa estratégia.

palavras, a abordagem foca na expansão da “sociedade política” para incluir novos atores ou para aumentar o poder dos antigos. Certamente essa é uma dimensão importante da ação coletiva, enquanto o sucesso é definido nos termos de inclusão no governo e aumento de benefícios. Mas essa dificilmente é a história toda. Uma abordagem orientada para a sociedade civil poderia apontar duas dimensões adicionais da ação coletiva contemporânea: as políticas de influência (da sociedade civil na política) e as políticas identitárias (o enfoque na autonomia, na identidade e na democratização das relações sociais fora da política). Com esses limites em mente, todavia, seria possível aplicar alguns dos principais conceitos da abordagem da mobilização de recursos aos movimentos contemporâneos. Dentro do espírito do trabalho de Tilly, nós podemos perguntar em que ritmo o repertório de ação do século vinte vem sendo feito. Nós podemos tentar relacionar as mudanças nas formas organizacionais, nos objetivos e nas táticas da ação coletiva (dentro das preocupações da mobilização de recursos) com mudanças dentro do locus e da tecnologia do poder, dos recursos e das oportunidades políticas (“externas” aos modelos de negócios de governo), alterações nas relações entre Estado, economia e sociedade, e transformações nas experiências e estruturas da vida cotidiana. Em outras palavras, os elementos abstratos da abordagem da mobilização de recursos podem ser usados para desenvolver uma análise teórica das mudanças reconhecidas por todos nos aspectos da ação coletiva. O próprio Tilly concordaria com a legitimidade dessa investigação29. Esta investigação, no entanto, precisaria transcender o esquema e o foco estreito da teoria da mobilização de recursos. Os atores coletivos contemporâneos conscientemente lutam pelo poder para construir novas identidades, criar espaços democráticos dentro da sociedade civil, assim como do governo, para uma ação social autônoma, e para reinterpretar normas e redesenhar as instituições. Isso é, portanto, apoiado por teóricos que veem a sociedade civil enquanto o alvo tanto quanto o terreno da ação coletiva, para olhar dentro dos processos pelos quais os atores coletivos criam suas identidades e as solidariedades que defendem, para avaliar as relações entre adversários sociais e os marcos de seus conflitos, para analisar as políticas de influência exercidas por atores da sociedade civil naqueles da sociedade política e para analisar os desenvolvimentos estruturais e culturais que contribuem para uma auto-reflexão intensificada desses atores.

O Paradigma dos novos movimentos sociais

29

th

Tilly, “Fights and Festivals in 20 Century Ile de France.

O paradigma dos novos movimentos sociais se propõe a fazer tudo isso. Os teóricos europeus dos movimentos contemporâneos se voltaram para a dimensão da integração social da ação coletiva, sem, contudo, reproduzir a crença durkheimiana na tese da ruptura ou nos modelos smelserianos de comportamento coletivo. Esses teóricos são também cientes das inadequações das análises marxistas dos movimentos sociais, a despeito de sua simpatia com aquelas dimensões do neo-marxismo que ressaltam a importância da consciência, da ideologia, da luta social e da solidariedade para a ação coletiva. Esses pensadores “pós-marxistas” afirmam que as teorias que enfocam as contradições estruturais, as classes econômicas e as crises na determinação de identidades coletivas são inapropriadas para os atores coletivos contemporâneos (aqueles da teoria da mobilização de recursos) porque a ação coletiva não se restringe aos arranjos políticos, negociações e cálculos estratégicos entre adversários. Hoje os atores coletivos focam primariamente o âmbito das normas sociais e da identidade coletiva. Isso significa que a lógica da interação coletiva acarreta mais que uma racionalidade estratégica ou instrumental. Não seria ilusão afirmar que, no entanto, um novo paradigma tenha se formado em torno de um modelo de identidade pura conforme foi proposto por Pizzorno30. Certamente, esse modelo tem sérias dificuldades e tem sido criticado em abordagens teóricas mais complexas articuladas por Alain Touraine e sua escola.31 Touraine define os movimentos sociais enquanto interações normativamente orientadas entre adversários com interpretações e modelos societários conflitantes num campo culturalmente compartilhado.32 Ele rejeita ainda de forma explicita uma análise puramente voltada para a identidade dos movimentos sociais, afirmando que essas análises também se encaminham à reprodução do auto-entendimento ideológico dos atores ou desviam para uma consideração sócio-psicologica da interação as custas de uma análise realmente sociológica do conflito. Isso é especificamente arriscado no caso dos atores coletivos. Suas buscas por identidades pessoais e comunais, sua defesa de uma ação expressiva e oposta à estratégica e seu enfoque na participação direta envolvem uma tendência à “retirada de autonomia” – abandonar o campo da luta político-social e se voltar em si mesmos ao estilo de grupos sectários ou comunais. Então, um foco exclusivamente teórico na criação da identidade iria apenas comparar a tendência de alguns autores contemporâneos para 30

Pizzorno, “Political Exchange” 293, e “On the Rationality of Democratic Choice” Telos, n. 63 (Spring 1985): 41-69. Confere a discussão da abordagem de Pizzorno em Cohen “Strategy or Identity”, 691-695. 31 Aqui a situação é o reverso daquela do paradigma da mobilização de recursos. Uma escola atual emergiu, nesse caso, em torno do modelo expandido de Touraine ao invés do “modelo simples de identidade”. 32 Alain Touraine, The Voice and the Eye (Cambridge, England: Cambridge University Press, 1981), 31-32.

construir sua própria representação ideológica das relações sociais (diretas, democráticas, comunais) enquanto um princípio organizador utópico para a construção de toda a sociedade e igualar o desenvolvimento da expressão da identidade com os marcos culturais do conflito. Embora Touraine sustente que a orientação cultural não pode ser separada do conflito social, ele não insiste dessa forma na objetividade de um campo cultural comum dividido por oponentes. Os vários potenciais institucionais do campo cultural compartilhado, e não apenas a identidade particular de um grupo particular, abrangem os marcos do conflito. Os atores e as análises que focam exclusivamente as dinâmicas da formação da identidade tendem portanto à se desviarem do mapa dos movimentos sociais. Pode-se ainda argumentar que o aspecto saliente dos novos movimentos não é o fato de que eles se engajam em ações expressivas ou afirmam suas identidades, mas o fato de que eles envolvem atores que se tornaram cientes de sua capacidade para criar identidades e das relações de poder envolvidas na construção social de suas identidades. Os atores contemporâneos não se importam apenas com afirmar a satisfação de uma identidade específica, mas também com os elementos formais envolvidos na formação de uma oportunidade igual para todos participarem nos processos grupais através dos quais as identidades são formadas, e eles se tornaram auto-reflexivos ao discutir os processos sociais da formação identitária 33. Esse aumento da auto-reflexão é aplicado também às normas societárias já existentes e às estruturas de dominação envolvidas em sua manutenção. Em outras palavras, os atores coletivos contemporâneos vêem que a criação de identidade envolve o conflito social acerca da reinterpretação das normas, da criação de novos significados, e o desafio da construção social das muitas fronteiras entre o público, o privado e o domínio de ação político. Nessa base, pode-se dizer que os atores coletivos lutam para criar uma identidade de grupo dentro de uma identidade social geral cuja interpretação eles contestam. De qualquer forma, mesmo um esforço no sentido de uma nova auto-reflexão dos movimentos sociais que releve os problemas identitários não introduz em si mesma a dimensão das relações sociais carregadas de conflito entre adversários. Nem mesmo a defesa auto-reflexiva de uma identidade, já existente ou nova, envolve um objetivo político generalizado. Então, é necessária uma abordagem que observe os aspectos políticos do conflito e possa dizer porque a identidade se tornou o principal enfoque hoje. Porém, a análise com foco exclusivo nas estratégias também tende a desviar do mapa dos movimentos sociais. A ação estratégica é apenas forçosamente social e relacional. É claro, isso envolve levar em conta prováveis 33

Alberto Meluci, “The New Social Movements: A theoretical approach” Social Science Information 19, n. 2 (1980): 199-226.

cálculos de outrem dentro das regras do jogo, e acarreta interação nesse sentido mínimo. Mas cálculos estratégicos excluem a referência explicita ao campo cultural comum ou às relações estruturadas entre os atores: “Um conceito estratégico da mudança acarreta a redução da sociedade a relações entre atores, e particularmente as relações de poder, destacadas de qualquer referência a um sistema social... Não há apostas nas relações sociais e não há outro campo além da 34 relação em si mesma”

Assim, um esquema analítico que se foca exclusivamente na interação estratégica perde tanto as orientações culturais quanto a dimensão estrutural do conflito e então contorna aquilo que é específico dos movimentos sociais. Touraine observa apenas as orientações identitárias e as estratégias enquanto lados opostos da mesma moeda. Ambas olham para o conflito social enquanto uma resposta a mudança a longo prazo (modernização) ao invés de percebe-lo enquanto termos relacionais da estrutura social.35 Além disso, ambos correspondem a uma imagem da sociedade contemporânea tomada como um conjunto perdido sujeito a um espiral permanente de inovação tecnológica e mudança estrutural, levada a cabo pelas elites empresariaisadministrativas ou pelo Estado. Dessa perspectiva a “sociedade” é estratificada nos termos da habilidade dos atores em se adaptar com sucesso às mudanças (elites), seu sucesso em assegurar proteção contra a mudança (cooperadores) ou sua vitimização devido à mudança (massas marginalizadas).36 Ambas as tomadas “não sociais” da ação coletiva teorizam sobre o comportamento conflituoso dos atores concebido sobre um desses três termos. O modelo da identidade pura corresponde ao comportamento defensivo dos atores que resistem a sua redução ao status de fracos consumidores dependentes de mudança através da retirada nas contraculturas ou pela recusa a inovação que ameaça os privilégios existentes ou a integridade cultural dos grupos. De forma inversa, a análise puramente estratégica corresponde ao ponto de partida das elites empresariais ou estatais, mesmo quando isso significa tomar a parte do “povo comum” e oferecer uma visão de baixo37. Quando o marco da ação coletiva é construído enquanto pertencimento às elites que controlam os recursos do desenvolvimento, a ação coletiva aparece como ofensiva, lutas pró-ativas de grupos de interesse competindo por poder e privilégios em áreas abertas pelo desenvolvimento ou pela modernização. Nesse ponto, o esforço não se dirige a resistir a mudança, mas sim a se adaptar a ela. O problema com essa abordagem é que nem a direção 34

Touraine, The Voice and the Eye, 56. Alain Touraine, “An Introduction to the Study of Social Movements” Social Research 52, n. 4 (1985) 749-787. 36 Alain Touraine, “Triumph or Downfall of Civil Society” em Humanities in Review, vol. 1 (Cambridege, England: Cambridge University Press, 1983), 223. 37 Ibid., 221-227. 35

da mudança nem as relações estruturais de dominação que envolve aparecem abertas à contestação, porque os atores se relacionam ao ambiente da mudança ao invés de algum outro ambiente. Em suma, essas teorias da ação coletiva articulam apenas aquelas dimensões do comportamento conflituoso que correspondem aos desenvolvimentos organizacionais ou a crises estruturais do Estado e do sistema político38. A abordagem do próprio Touraine começa a partir de uma relação hermenêutica do auto-entendimento e das ideologias dos movimentos contemporâneos. Mas ele se move atrás do nível de formação de identidade para determinar o contexto histórico e estrutural do conflito social e dos novos marcos e aspectos da luta – auto reflexão acerca da criação de identidade e das normas, e enfoque nos aspectos culturais. Seu trabalho se move entre dois níveis analíticos: a elaboração de uma teoria das dimensões estruturais e culturais da sociedade contemporânea, e uma análise da ação/teórica dos processos conflituais da construção de identidade e a formação de projetos políticos pelos atores coletivos. Somando-se a isso, ele foca na dimensão social da ação coletiva, em parte ao reviver o conceito de sociedade civil. De fato seu modelo teórico permite que se veja porque a sociedade civil é tanto o lócus quanto o alvo dos movimentos sociais contemporâneos e porque é esse o caso principalmente nos países que já possuem sociedades civis ativas. Visando esclarecer a diferença entre os modelos comportamentais de conflito descritos anteriormente e o conceito de movimentos sociais, Touraine introduz uma distinção analítica entre o “modelo de desenvolvimento” de uma sociedade (eixo diacrônico) e seu modo de funcionamento (eixo sincrônico). O Estado, as crises sistêmicas, a mudança, e o comportamento conflituoso opondo as elites às massas são situadas no eixo diacrônico. As relações sociais, e o “sistema de ação histórico” – isto é, os processos carregados de conflito pelos quais as normas, as instituições e os padrões culturais são criados e contestados pelos atores sociais – são situados no sincrônico. As ações coletivas nas quais Touraine se interessa e para as quais ele reserva o termo “movimentos sociais” são lutas acerca dos potenciais institucionais dos padrões culturais de um dado tipo societário. Touraine reintroduz então muitas dimensões da ação coletiva que são ressaltadas pelos behavioristas coletivistas, assim que argumenta que o conflito social entre os atores precisa ser entendido nos termos normativo e cultural. Mas há três diferenças entre a abordagem de Touraine e a tradição clássica. Primeiro, ele rejeita todas as versões da tese da ruptura; em seu modelo, a ruptura e o desenvolvimento governam o comportamento conflituoso no eixo diacrônico de mudança. Segundo, ele vê os movimentos sociais não enquanto ocorrências anormais, mas enquanto criadores da vida social através 38

Portanto, a varredura crítica de Touraine do paradigma da mobilização de recursos em “Introduction to the Study of Social Movements”.

de sua produção e contestação das práticas, normas e instituições sociais. Terceiro, diferentemente de Parsons, ele não vê as orientações culturais de uma dada sociedade (seu padrão de conhecimento, tipo de investimento e imagem da relação dos homens com a natureza) enquanto dados incontestáveis, perfeitamente transposta em normas e instituições sociais. Ao contrário, ele argumenta que o caminho pelo qual uma sociedade institucionaliza suas orientações culturais envolve o conflito social assim como relações sociais de dominação. A própria sociedade é entendida como “um produto mutante, instável e vagamente coerente das relações sociais, inovações culturais e processos políticos”.39 Diferentemente do modelo societário dos teóricos da ação estratégica, no entanto, essa visão fluída envolve uma concepção de sociedade enquanto um conjunto de sistemas de ação ou relações sociais estruturadas entre os atores. Conseqüentemente, as dimensões da ação social ignoradas pela teoria da mobilização de recursos se movem para o centro da análise. O foco muda para o campo relações sociais alteráveis, mas, não obstante estruturadas, ao invés do desenvolvimento, do Estado ou do mercado, aqui a sociedade civil, ao invés da política, move-se adiante, enquanto suas dimensões culturais adquirem maior importância. O sentido da ação coletiva é então redefinido. A ação se refere agora à capacidade das sociedades humanas de desenvolver e alterar suas próprias orientações – isto é, gerar sua normatividade e seus objetivos40. Uma ação é social apenas se ela é normativamente orientada e situada num campo de relações que incluem poder e orientações culturais compartilhadas. Um movimento social envolve uma dupla referencia às orientações culturais e às relações sociais, projetos sociais opostos e estruturas de dominação contestadas. Dessa forma, o campo social que é contestado pelos movimentos não pode ser concebido enquanto um campo de batalha no qual o modelo de ação militar (estratégia) é apropriado. Mas o que se contesta no terreno social não são os mecanismo do Estado ou do mercado? Isso é, claro, a sociedade civil. De acordo com Touraine, a sociedade civil é o lócus do “lado leve” da ação coletiva – dos movimentos sociais. Certamente, eles ascendem e decaem juntos: ambos requerem certa autonomia do Estado para existir, e ambos podem ser destruídos por um Estado total. Ainda que os movimentos sociais não objetivem o Estado; eles envolvem confrontos entre adversários civis, sociais dentro e sobre as instituições da sociedade civil. A sociedade civil é vista então nos termos da ação como o domínio das lutas, dos espaços públicos e dos processos políticos. Isso comprime o reino social no qual a criação de normas, 39

Touraine, “Triumph or Downfall”, 220. Em outras palavras, os movimentos sociais lutam pelo tipo de sociedade civil a ser institucionalizadas, onde os “movimentos históricos”, situados no eixo diacrônico, lutam para estabelecer uma sociedade civil e uma sociedade política representativa. 40 Touraine, The Voice and the Eye, 61.

identidades, instituições e relações sociais de dominação e resistência são localizadas. Touraine está ciente daqueles que, implícita ou explicitamente, rejeitam a relevância da “sociedade civil” dos sistemas sociais contemporâneos. Certamente, ele reconhece que o aumento da capacidade da sociedade contemporânea em agir sobre si mesma às custas do poder estatal absoluto e das garantias meta-sociais da ordem social também abrem o caminho para o alargamento da ação do Estado na vida social e cultural.41 Ele também sustenta, contudo, que o aumento da auto-reflexão societária envolve a expansão da sociedade civil e do reino público. Essa dupla visão revela, ao menos num nível descritivo, os novos marcos dos movimentos contemporâneos. A ideia de Touraine de “expansão” da sociedade civil está diretamente relacionada aos movimentos contemporâneos que contestam o controle sobre um amplo alcance das atividades sociais formalmente defendidas do exame público pela tradição, uma esfera privada rigidamente garantida ou as garantias meta-sociais: “o espaço público – Öffentlichkeit – estritamente delimitado em uma sociedade burguesa foi estendido aos problemas do trabalho em uma sociedade industrial e agora se espalha por todos os campos da experiência... Os principais problemas políticos hoje lidam diretamente com a vida privada: fecundação e nascimento, reprodução e sexualidade, doença e morte, e de forma diversa, a mídia de massa consumida nos lares... A distância entre a sociedade civil e o Estado é aumentada enquanto a separação entre a vida 42 pública e privada é destruída” .

As questões levantadas pelos movimentos feminista, ecológico e por autonomia local são então todas conectadas às fronteiras inconstantes entre a vida social, pública e privada e envolve lutas contra formas de dominação arcaicas e recentes nessa área. Em países que já asseguraram as instituições vitais da sociedade civil através de direitos, o terreno novamente aberto é vulnerável à penetração e controle do Estado. É por isso que o Estado moderno que impõe regulação e econômica, o Estado administrativo que intervém na organização social e cultural tanto quanto na ordem econômica, se tornou alvo da corrente liberal revivida que força a expansão dos direitos humanos e a autonomia da sociedade contra o Estado. Touraine insiste ainda, em um dos mais importantes insights que como os movimentos sociais, os conflitos contemporâneos não possuem seus marcos enquanto simplesmente a defesa 41

Ibib., 115. Por “garantias meta-sociais” da ordem social, Touraine quer dizer aquelas coisas como religião, filosofias da história, leis econômicas e teorias evolutivas do progresso. 42 Confere Touraine, “Introduction to the Study of Social Movements.”

e a autonomia da sociedade civil contra o Estado. Ao invés disso, a questão é, acima de tudo, qual tipo de sociedade civil deve ser defendida. Não é suficiente assegurar a autonomia ou mesmo a prioridade da sociedade civil contra Estado, como por exemplo o capitalismo liberal nos Estados Unidos e na Inglaterra mostra, isso pode simplesmente significar a prioridade de elites socioeconômica sobre as elites administrativas.43 Ao contrário, os movimentos sociais devem lutar para defender e democratizar aquelas instituições da sociedade civil nas quais a discriminação, a desigualdade e a dominação se tornaram visíveis e contestáveis. Se nós permanecermos no eixo diacrônico apenas, então o projeto liberal de defender a sociedade contra o Estado certamente pareceria anacrônico, ou na melhor das hipóteses, uma ação de controle servindo primariamente ao interesse de elites dominantes nas instituições não estatais. Mas se permanecermos focados exclusivamente no eixo sincrônico, podemos perder de vista o fato de que o Estado moderno é sempre capaz de intervir no campo dos movimentos sociais, modificando decisivamente ou mesmo abolindo as condições que tornam possíveis os movimentos sociais e suas lutas. A dupla perspectiva que Touraine oferece é crucial para um entendimento do porque a autonomia e a democratização das instituições da sociedade civil, em muitos países do Ocidente, continua no centro dos conflitos sociais contemporâneos: “Mas desde que nós tivemos o privilégio de viver vários séculos de aumento da sociedade civil, não é nosso dever buscar uma grande aliança entre a luta por liberações contra o Estado e o conflito social para prevenir essa luta de ser tomada apenas para os lucros dos 44 líderes da sociedade civil?”

Em suma, seria um grande erro abraçar apenas o projeto liberal de defesa da sociedade contra o Estado, porque isso levaria a relações de dominação e desigualdade dentro de uma sociedade civil intacta. Ao invés de perseguir e esclarecer essa sugestiva linha de questionamento, Touraine, no entanto, se volta para outro nível analítico e constrói um modelo do nosso tipo societário contemporâneo, o qual ele chama de “pós-industrial” ou “programado”, visando especificar os marcos dos movimentos sociais contemporâneos para fundamentar seus anseios que são radicalmente descontínuos com os movimentos anteriores. Enquanto esse modelo teórico pode apontar novas arenas abertas para o conflito, ele tem a desvantagem de obscurecer o significado do conceito de sociedade civil que é tão central para o entendimento de Touraine enquanto ao mesmo tempo leva a uma visão unilateral dos movimentos sociais contemporâneos.

43 44

Touraine, “Triumph or Downfall” 106-107. Ibid., 138.

A sociedade pós-industrial é um tipo societário, afirmado como novo caracterizado por novos locci de poder, novas formas de dominação, novos modos de investimento e um modelo cultural “auto-reflexivo”. Poder, investimento e dominação são localizados no nível da própria produção cultural. As inovações na produção do conhecimento (novas mídias, computadores, bancos de dados) transformaram nossa representação da natureza humana e do mundo externo. “Por essas razões, pesquisa e desenvolvimento, processos de informação, ciências técnica e biomédica, e a mídia de massa são os quatro principais componentes da sociedade pósindustrial”45. Cada vez mais domínios da vida social são abertos para os projetos tecnocráticos de controle ou projetos alternativos para manter a autonomia e assegurar a estrutura democrática interna desses novos terrenos contestados. Em suma, a sociedade pós-industrial representa a si mesma enquanto capaz de produzir seu conhecimento, seus guias normativos e suas formas socioculturais. Os marcos do conflito social se voltam sobre a institucionalização de seu modelo cultural: instituições autônomas, autogovernadas e igualitárias vs. Estruturas controladas por elites, tecnocraticamente gerenciadas permeadas por relações de dominação. O aumento da auto-reflexão acarretada por esses desenvolvimentos governa a mudança na identidade da ação coletiva e nos tipos de movimento que elas desenvolvem. A luta por instituições sociais autônomas e democráticas e a preocupação com formas participativas de associação por parte dos atores coletivos contemporâneos são devido ao reconhecimento de que ambos, os significados e meios da produção social, são produtos sociais. Por isso eles focam nas dimensões culturais e normativas da vida cotidiana e concebem suas lutas nos termos do direito da população de escolher seus próprios estilos de vida e identidades. As novas dimensões da identidade dos atores contemporâneos e o que os faz radicalmente descontínuos em relação aos movimentos anteriores não são então seu repertorio de ação, mas sim o nível de auto-reflexão e a mudança dos loci e dos marcos das lutas que correspondem à emergência de um novo tipo societário.46 A circularidade dessa forma de argumentar é óbvia. A ação coletiva contemporânea é nova porque ela envolve lutas acerca das áreas abertas pela sociedade pós-industrial, mas ela é um novo tipo societário porque gera novas formas de ação coletiva. O modelo teórico de Touraine, no entanto, não significa neutralidade. Certamente, ele espera evitar a circularidade de seu argumento teórico através do sentido de seu método de interpretação sociológica partidário. Seu propósito é destrinchar o comportamento conflituoso

45

Confere Touraine, “Introduction to the Study of Social Movements.” Para uma discussão sobre outros tipos societários, confere Alain Touraine, The Self Production of Society (Chicago: University of Chicago Press, 1977), 92-109. 46

existente na dimensão de um movimento social (em nossas palavras, as novas identidades coletivas auto-limitadas): “O que precisamos descobrir agora é como no nosso tipo de país as relações defensivas contra a mudança contínua podem ser transformadas em lutas sociais e em uma ação anti-tecnocrática, e como essas lutas aumentam a área de atividade política e criam o que podemos chamar de um novo Öffentlichkeit (espaço público)... O problema maior é se mover de uma ação defensiva para uma contraofensiva, de uma busca por identidade para uma ação coletiva, para 47 o controle do processo de mudança” .

Enquanto esse método fornece dados fascinantes da auto-interpretação dos atores coletivos contemporâneos, enquanto revela, em alguma instância, a emergência de uma nova identidade auto-reflexiva, ela não liberta a teoria de sua circularidade. Nós criticamos em outra oportunidade os aspectos dogmáticos da metodologia de Touraine e sua criação de uma hierarquia das formas de luta social para corresponder à teoria dos tipos sociais48. Nós também criticamos sua insistência em uma descontinuidade radical entre os tipos societários e os movimentos sociais enquanto antitéticos, para usar o conceito de sociedade civil. Por “nosso tipo de países” Touraine quer dizer os países que tiveram, ainda tem, e são animados por lutas para preservar e expandir a sociedade civil. Mas a idéia de que a sociedade civil existiu na sociedade ocidental desde pelos menos o século dezessete implica a continuidade institucional e cultural com nosso próprio passado – uma idéia que é contrária às teses dos tipos societários, modelos culturais e movimentos sociais radicalmente diferentes. Enquanto a distinção entre os eixos sincrônicos e diacrônico representa as inovações das lutas contemporâneas visíveis, enquanto isso fornece áreas para análises institucionais da sociedade civil, a teoria evolucionária implícita dos tipos societários concebe a continuidade entre o passado e o presente. Isso torna possível, então, explicar os processos de aprendizagem por parte dos atores coletivos no que diz respeito aos movimentos do passado, as formas institucionais e os projetos societários. O conceito “tipo societário” é muito abstrato para uma análise institucional da sociedade civil. Além disso ao invés de um conceito dinâmico de sociedade pós-industrial é preciso construir aqueles aspectos da luta que não envolvem a nova identidade coletiva autoreflexiva como regressiva e anacrônica. Ao mesmo tempo, a tese dos novos locci de dominação, investimento, poder e protestos parece oferecer uma explicação do caráter dualista – defensivo e ofensivo – das novas dimensões nas ações coletivas contemporâneas. O anterior inclui a preocupação defensiva com a identidade e 47 48

Touraine, “Triumph or Downfall”, 229, destaque nosso. Cohen, Class and Civil Society, 214-228.

a autonomia; o posterior, a tendência a tomar a contra a contra-ofensiva e o engajamento em lutas pelo controle e a democratização das instituições sociais. Para Touraine, diferentemente de Tilly, a ação “ofensiva” não se refere a uma batalha competitiva, estrategicamente orientada para a inclusão e poder no governo, mas sim a luta pela expansão do campo de atividade política e democratizar os espaços públicos já existentes e os novos às custas do controle do Estado e do modelo de sociedade tecnocrático. Ambas, as reações defensivas à mudança permanente e a luta ofensiva contra os projetos tecnocráticos de monopólio e reprivatização do controle das instituições sociais e das inovações culturais são elementos da ação coletiva contemporânea. Dessa forma, a distinção entre o eixo sincrônico e diacrônico possui um inconveniente: ele cega Touraine quanto a uma importante dimensão da ação coletiva, qual seja, as lutas por parte dos atores sociais para garantir a influência nas instituições democráticas dentro e sobre o sistema político e a economia. Sem essa dimensão, a sociedade civil permaneceria vulnerável ao poder político e econômico e o enfoque da ação coletiva seria reduzido a uma única dimensão. O esquema teórico de Touraine não é suficientemente complexo para permiti-lo construir um modelo que integre as melhores partes da teoria da mobilização de recursos. Além disso, embora Touraine ofereça uma sociologia da ação dos novos aspectos dos movimentos contemporâneos, ele não desenvolve uma teoria do tipo de ação pressuposto pela tese do aumento da auto-reflexão. Certamente, ele analisa os processos de comunicação engajados pelos atores coletivos enquanto eles articulam novas identidades e projetos societários. Mas apenas uma auto-reflexão teórica da ação comunicativa do tipo oferecido por Habermas poderia articular a especificidade desses projetos, apontar seus limites e abrir o caminho em direção ao entendimento das relações entre todos os tipos de ação nos conflitos coletivos. Devido a esse nível de análise se perder em sua teoria, Touraine dá um passo em falso ao excluir a interação estratégica do conceito de movimento social e de sua vaga imagem de sociedade civil. Ele está correto em afirmar que um foco unilateral na estratégia perde as dimensões sociais e normativas das lutas contemporâneas que são centrais na emergência de novas identidades coletivas. Mas está errado quanto a restringir a interação estratégica aos níveis mais baixos do conflito ou ao eixo diacrônico da mudança porque, como a teoria da mobilização de recursos claramente demonstra, ambos, os movimentos sociais e a sociedade civil, envolvem a interação estratégica. A recente reformulação de Habermas de sua teoria da ação comunicativa nos permite ver como os paradigmas da ação coletiva discutidos anteriormente podem ser complementados. Sua tipologia de ação corresponde

muito bem às várias lógicas da ação coletiva49. O conceito de “ação teleológica” pressupõe um ator que escolhe entre cursos de ação alternativos (sentidos) com vista para fins e realizações. Isso envolve relações entre um ator e um mundo de estados existentes de assuntos obtém ou podem trazer intervenções propositivas. O grau de racionalidade da ação pode ser avaliado por uma terceira pessoa a respeito do sucesso e da “verdade” – isto é, o ajuste entre as percepções dos atores e o caso atual50. A ação teleológica corresponde então ao conceito de ação racional no centro da teoria da mobilização de recursos. O “modelo do processo político” de Tilly, Tarrow e outros envolve um desvio das teorias de ação racional para teorias da interação racional correspondentes a uma expansão do modelo teleológico para uma estratégia onde os cálculos de sucesso envolvem a antecipação de decisões por parte de pelo menos um ator. Esse tipo de ação pressupõe ainda somente o “mundo objetivo”, mas se inclui dentro de tomadas de decisão de outros. Outros atores são tratados como fatores externos a serem considerados, e não enquanto sujeitos com que se partilha um entendimento. O modelo da identidade pura afirma uma racionalidade da ação específica de um novo movimento social que desvia do conceito de Habermas de ação performática. Esse tipo de ação envolve uma fabricação expressiva e propositiva e o desenclausuramento da subjetividade de alguém (sentimentos, desejos, experiências, identidade) para uma série de outros que constituem um público. Aqui, ao menos duas “relações com o mundo” são pressupostas: uma orientação ao mundo subjetivo desse ator e uma ao mundo externo. A “representação de si” acarreta um esforço para ter a subjetividade e a identidade individual reconhecida. Mas do ponto de vista do ator, as relações interpessoais normativamente reguladas são consideradas apenas enquanto fatos sociais. Então a ação performática pode assumir as qualidades latentemente estratégicas e se torna um gerenciamento de impressão cínica. A dimensão da ação coletiva que abrange a afirmação expressiva de uma identidade não é, assim, uma questão de expressividade espontânea, mas envolve uma encenação planejada e estilizada da identidade de alguém para o propósito de ganhar reconhecimento ou influência. O conceito de Smelser de movimento social normativamente orientado corresponde ao conceito de ação normativa. De acordo com Habermas, o conceito de ação normativamente regulada se refere aos membros de um grupo que orientam suas ações para valores comuns (institucionalizados) que possuem uma força geral obrigatória para relações interpessoais. Cada um tem 49

Jürgen Habermas, The Theory of Communicative Action, vol.1 (Boston: Beacon Press, 1984), 86. 50 Ibid., 85-101.

o direito de esperar que todos os outros irão cumprir com normas compartilhadas. Então, somando ao pressuposto do mundo externo, a ação normativa envolve uma relação com o mundo social e a identidade social – isto é, um contexto normativo que designa a totalidade das relações interpessoais legitimas. Isso significa que as dimensões cognitivas e motivacionais são relevantes para a afirmação de validade da ação normativa e que o aprendizado pode ocorrer em ambos nos níveis. A ação pode ser avaliada nos termos de sua conformidade com uma norma dada; as normas podem ser afirmadas em termos de como elas merecem ou não ser reconhecidas na base de um padrão aceito. Deve-se notar que, para Smelser, os movimentos que não agem em nome de uma ordem última de normas válidas se tornam irracionais. A ação comunicativa toma o segundo nível de questionamento de normas num próximo passo. Esse conceito vai além dos limites da teoria da ação de Parsons e Smelser. Ele se refere ao processo intersubjetivo lingüisticamente mediado pelo qual os atores estabelecem suas relações interpessoais e coordenam suas ações envolvendo definições negociadas de situações (normas) e a chegada a um acordo. Visto que ação normativa pressupõe um consenso que é meramente reproduzido com cada ato interpretativo, a ação comunicativa envolve comunicação não cerceada sobre atores que precisam criar antes um consenso. Isso envolve uma relação autoreflexiva das dimensões de todos os três “mundos” – o objetivo, o subjetivo e o social. Aqui, qualquer aspecto de nosso conhecimento culturalmente arraigado se torna problemático e pode ser tematizado e testado através de um questionamento de anseios válidos. O conceito de Touraine de movimento social utiliza essa concepção de ação comunicativa. Se aplicarmos essa análise da ação abstrata para a estratégia conceitual descrita anteriormente, torna-se claro que, embora cada um tenda a filtrar as formas de ação analisada pelos, eles podem informar o estudo da ação coletiva. Para isso, é perfeitamente concebível que um movimento social concreto possa envolver todas as formas de ação. Isso é óbvio no caso das ações coletivas contemporâneas. Os setores chave dos novos movimentos, do feminismo à ecologia, possuem uma relação auto-reflexiva com os mundos objetivo, subjetivo e social na medida em que eles tematizam aspectos da identidade social e pessoal, defendem normas existentes, contestam a interpretação social das normas, criam comunicativamente novas normas, e propõem meios alternativos de relação com o meio ambiente. Conforme foi indicado anteriormente, toda ação coletiva envolve também atividades estratégias orientadas instrumental e normativamente. Não há então razão pela qual a análise das várias lógicas da ação coletiva deve ser vista como incompatível, desde que elas não são entendidas como a única forma de racionalidade da ação coletiva para a exclusão de outros. Além disso, na base

dessa análise, pode-se observar que os movimentos podem lutar simultaneamente pela defesa e democratização da sociedade civil e para a inclusão dentro da expansão da sociedade política. Enquanto a análise dos tipos de ação acomoda as várias lógicas da ação coletiva, ela não consegue explicar uma configuração particular dentro de dado movimento e nem unir os tipos em um modelo teórico coerente. Para isso é preciso voltar-se para uma análise da sociedade civil. O trabalho de Touraine nos aponta a direção certa, mas não oferece uma teoria da sociedade civil. Ao invés disso, ele faz uso da categoria sem explicar sua articulação interna. Ele também não explica quais mecanismos conectam as várias esferas umas às outras e ao Estado e à economia. Conseqüentemente, a lógica dualista dos movimentos contemporâneos é desconstruída enquanto as alternativas são direcionadas apenas à sociedade civil. A abordagem da mobilização de recursos sofre dessa cegueira oposta, ressaltando apenas estratégias direcionadas às estruturas políticas e econômicas. Os paradigmas que competem entre si no estudo dos movimentos sociais nos levam então a uma escolha insatisfatória: cada um interpreta os movimentos nos termos de uma lógica estratégica de organização voltada para pressionar as “grandes estruturas” do Estado e da economia, ou optar por um esforço no âmbito das identidades, normas, modelos culturais e formas associativas articuladas pelos próprios atores mais inovadores, objetivando atingir as instituições da sociedade civil. O que precisamos é um modelo teórico que possa acomodar ambas abordagens e explicar a lógica dualista dos movimentos contemporâneos.

Teoria Social Dualista e Movimentos Sociais Contemporâneos.

Nós começamos com a reivindicação de que os movimentos constroem os modelos culturais, as normas e instituições da sociedade civil enquanto os principais marcos do conflito social. Claramente, as tentativas de influenciar as estruturas econômicas e o governo estatal também exercem um importante papel nesses movimentos. Por exemplo, os ecologistas se voltaram para o Estado para restringir os atores econômicos de saquear o meio ambiente enquanto os ativistas dos direitos civis e as feministas têm, através de várias estratégias organizativas, apontando para a pressão do Estado para decretar e forçar leis assegurando os direitos das minorias e das mulheres na economia, na sociedade civil e no governo. Alguns componentes dos novos movimentos organizaram partidos políticos (os mais famosos são os “Verdes” da Alemanha Ocidental) enquanto os outros têm visto como trabalhar dentro dos partidos existentes ou exercer pressão na sociedade política através de esforços em

lobbies, sem abandonar seus vínculos com os ativistas dos movimentos e as associações fora do sistema político. Então, os movimentos políticos têm uma dupla face e uma lógica de organização dualista. No capítulo 9 nós revisamos os pressupostos teórico-sociais dessas reivindicações reformulando as categorias da sociedade civil e política nos termos da distinção entre sistemas e mundo da vida desenvolvida por Habermas. Agora traçamos o vínculo entre a teoria social dualista e os movimentos sociais de forma mais explicita. Nós argumentamos que a reconstrução entre sistema e mundo da vida nos termos das categorias das sociedades civil e política produz o instrumental de que precisamos para descrever ambos os aspectos, defensivos e ofensivos, dos movimentos contemporâneos. As contribuições mais significativas à teoria dos movimentos contemporâneos são três teses que, se tomadas em conjunto, oferecem uma compreensão dentro dos marcos da ação coletiva contemporânea51. O primeiro postula que a emergência da modernidade cultural – das esferas diferenciadas da ciência, da arte e da moralidade, organizadas sobre suas próprias reivindicações internas válidas – levadas, com isso, a um potencial aumento da auto-reflexiva (e da subjetividade descentrada) acerca de todas as dimensões de ação e das relações com o mundo. Isso abre a possibilidade de uma relação pós-tradicional, pós-convencional com as dimensões chave da vida social, política e cultural, e de suas coordenações através dos processos autônomos de interação comunicativa. Isso formaria a base para mais modernização do mundo da vida através de uma incorporação dos potenciais conquistados da modernidade cultural dentro da vida cotidiana, envolvendo a substituição de uma coordenação do tipo gemeinschaftliche (“comunidade”) por formas potencialmente auto-reflexivas. A segunda tese envolve a “institucionalização seletiva” dos potenciais da modernidade (auto-reflexão, autonomia, liberdade, igualdade, sentidos [meanings]). O modelo dualista de sociedade, que traça a distinção entre sistemas e o mundo da vida, repousa no centro dessa tese. Nesse modelo, os processos envolvidos na modernização da economia e dos Estado são distintos daqueles envolvidos na “racionalização” do mundo da vida. Por um lado, temos o desenvolvimento das estruturas midiáticas nas quais a racionalidades estratégica e instrumental são desencadeadas e expandidas; de outro o desenvolvimento de instituições comunicativamente coordenadas culturais, sociais e socializantes igualitárias, apropriadas para as novas formas de subjetividade descentrada tornadas possíveis pela modernização cultural. A racionalização societária tem sido dominada, no entanto, pelos imperativos dos subsistemas; isto é, os requisitos do crescimento capitalista e do 51

Confere Habermas, The Theory of Communicative Action, vol. 2 (Boston: Beacon Press, 1984), 332-403. Para uma discussão crítica da abordagem de Habermas dos movimentos sociais ao longo dos anos, confere Cohen “Strategy or Identity”, 708-716.

direcionamento administrativo têm predominado sobre os anseios do mundo da vida. A “institucionalização seletiva” dos potenciais da modernidade tem então produzido uma super-complexidade e novas formas de poder no lado sistêmico, e o empobrecimento e subdesenvolvimento da promessa institucional do mundo da vida. A “colonização do mundo da vida” relacionada ao desenvolvimento capitalista e aos projetos tecnocráticos das elites administrativas têm bloqueado e continuam a bloquear esses potenciais. A terceira tese insiste no caráter bilateral das instituições do nosso mundo da vida contemporâneo, isto é, a idéia de que a racionalização societária tem acarretado os desenvolvimentos institucionais na sociedade civil, envolvendo não apenas a dominação, mas também a base para a emancipação. A teoria dualista da sociedade coloca os principais elementos da sociedade civil – legalidade, publicidade, associações, cultura de massa e a família – no centro da discussão. Aqui a dimensão da análise institucional se perde na teoria de Touraine dos tipos societários. O ponto relevante para nós é o fato de que o esboço de Habermas acerca de desenvolvimentos dentro de uma sociedade civil moderna já existente (embora incompleta) provém um meio para compreender o duplo caráter dos movimentos contemporâneos e também suas continuidades e descontinuidades com o passado. A ideia do duplo caráter da composição institucional da sociedade civil é um ganho real, porque vai além de uma ênfase unilateral sobre a alienação ou a dominação (Marx, Foucault) e de um foco igualmente unilateral sobre a integração (Parsons, Durkheim). Somos assim levados a proporcionar os meios teóricos para evitar uma alternativa extrema entre a visão apologética e a revolução total. Se as sociedades civis modernas não são totalmente reificadas, se nossas instituições não são completamente impregnadas pelas relações de poder desiguais, então se torna possível pensar nos termos dos potenciais positivos da modernidade que são melhor defendidos e expandidos através de uma política radical, mas auto-limitada. Considerado junto à tese da colonização isso nos permite explicar porque a sociedade civil é o alvo assim como o terreno da ação coletiva contemporânea. Essas teses, tomadas em conjunto, revelam as apostas dos movimentos contemporâneos na luta acerca da destradicionalizaçao e democratização das relações sociais na sociedade civil. A redefinição das normas culturais, das identidades individuais ou coletivas, das funções sociais apropriadas, dos mocos de interpretação e da forma e conteúdo dos discursos (o que chamamos de “políticas de identidade”) faz parte desse projeto. No entanto, desde que as instituições autoritárias são sempre reforçadas pelo controle desigual de dinheiro e poder, e desde que a colonização das instituições da sociedade civil por esses meios impede uma maior modernização, os atores coletivos contemporâneos precisam se direcionar também para a sociedade política. Uma “política de inclusão” objetiva atingir as instituições políticas para ganhar

reconhecimento de novos atores políticos como membros da sociedade política e ganhar benefícios para aqueles a quem “representam”. Uma “política de influencia” almejada para alterar o universo do discurso político para acomodar a necessidade de novas interpretações, novas identidades e novas formas, é também indispensável. Apenas com essa combinação de esforços a colonização administrativa e econômica, que tende a congelar as relações sociais de dominação e criar novas dependências, pode ser restrita e controlada. Finalmente, uma maior democratização das instituições políticas (uma “reforma política”) é também central para esse projeto. Sem esse esforço, qualquer ganho dentro da sociedade civil seria certamente fraco. Enquanto a democratização da sociedade civil e da defesa de sua autonomia diante da colonização econômica ou administrativa podem ser vistas como o objetivo dos novos movimentos, a criação de “sensores” dentro das instituições políticas e econômicas (reforma institucional) e a democratização da sociedade política (as políticas de influência e inclusão) que abriria essas instituições às novas identidades e normas igualitárias articuladas no terreno da sociedade civil, são meios de assegurar esse objetivo52. Não estamos afirmando que o próprio Habermas forneça um paradigma teórico sintético acerca dos movimentos sociais que é tornado possível por esse modelo. Enquanto as teorias dos movimentos disponíveis têm muito a aprender com esse modelo, a teoria de Habermas poderia se beneficiar integrando os resultados de outras análises contemporâneas. Certamente sua discussão mais recente acerca dos novos movimentos sociais se ilude por ser baseada em uma interpretação unilateral da concepção dualista que ele mesmo introduziu. A abordagem de Habermas dos movimentos tem se desenvolvido ao longo do tempo. Sua análise anterior era mais próxima da de Touraine 53. Assim como Touraine, ele via a Nova Esquerda e especialmente o movimento estudantil enquanto os agentes em potencial de uma democratização societária contra os projetos tecnocráticos no funcionamento das instituições sociais e na esfera pública existente. Esses movimentos parecem assegurar a promessa de novas identidades sociais, racionais, e de uma cultura política democrática revivida na medida em que buscou ampliar e democratizar os espaços públicos da universidade para a comunidade política. Em termos mais teóricos, Habermas atribui dois papéis interrelacionados aos movimentos sociais. Primeiro, os movimentos foram vistos como o elemento dinâmico dos processos sociais de aprendizado e de 52

Confere a seção conclusiva desse capítulo para uma discussão mais completa acerca dos quatro componentes da lógica dualista dos movimentos contemporâneos. 53 Alain Touraine, The May Movement (New York: Random House, 1971); J. Habermas, Student und Politik (Frankfurt: Suhrkamp, 1961), Protestbewegun und Hochschulreform (Frankfurt: Suhrkamp, 1969) e Toward a Rational Society (Boston: Beacon Press, 1970).

formação identitária. Baseando-se em potenciais incorporados nas tradições culturais e em novas formas de socialização, os movimentos sociais transpõem as estruturas de racionalidade latente disponíveis na prática social, de modo que eles possam encontrar em incorporações de novas identidades e normas. Segundo, os movimentos com projetos democráticos possuem o potencial para iniciar os processos pelos quais a esfera pública pode ser revivida e discursos institucionalizados, dentro de uma ampla gama de instituições sociais. Esses papéis foram situados apenas de forma muito abstrata nos desenvolvimentos institucionais contemporâneos, no entanto, devido ao fato de que a antiga tese de “unidimensionalidade” da escola de Frankfurt ainda assombrava as conclusões de Habermas acerca das instituições sociais, políticas e econômicas existentes. Enquanto ele critica, então, (como Touraine) a retórica revolucionária dos movimentos dos anos sessenta por desviar a atenção do projeto de democratizar as instituições sociais e políticas em nome de sua tomada total, ele não poderia fornecer alternativa a sua crítica totalizante da sociedade moderna54. Nós criticamos a versão anterior da teoria de Habermas devido a seu “déficit institucional”, isto é, devido a ele localizar os potenciais emancipatórios nos níveis abstratos da modernidade cultural e no processo de socialização e não articulação institucional da sociedade civil55. Habermas resolveu essa dificuldade ao introduzir a concepção dualista da sociedade civil como base para analisar o caráter bilateral das instituições contemporâneas56. Ele interpreta os potenciais ambivalentes de nossas instituições sociais nos termos de um confronto entre os imperativos do sistema com as estruturas de comunicação independentes. Como implicação, essas instituições são abertas tanto para as lutas defensivas para proteger e democratizar a infraestrutura da vida cotidiana quanto para os projetos ofensivos de reforma institucional radical. O mais irônico é que seu trabalho recente rendeu o que nós consideramos uma interpretação extremamente unilateral dos novos movimentos sociais, porque em sua concepção esses movimentos soam principalmente reações defensivas contra as colonizações do mundo da vida57. Habermas sustenta que o que está em jogo nas novas formas de resistência e conflito não é a defesa de um mundo da vida sociocultural tradicional (comunicativo, difuso, atributivo), mas de um que seja já em partes modernizado. Ele também faz a distinção entre a defesa de propriedades e status adquiridos no terreno de um mundo da vida modernizado e experiências 54

J. Habermas, Die neue Unübersitlichkeit (Frankfurt: Suhrkamp, 1985), 81-82, oferece uma reavaliação de sua afirmação política anterior acerca da Nova Esquerda. 55 Confere Cohen, Class and Civil Society, 194-288; Jean L. Cohen, “Why More Political Theory?” Telos n. 40 (verão de 1970): 70-94. 56 Ver a discussão em Habermas, The Theory of Communicative Action, vol. 2, 385. 57 Os movimentos que Habermas se refere como novos são os movimentos feminismo, ambiental, pacificista, jovens, minoridade, anti-nuclear e de iniciativa cidadã. (Habermas, The Theory of Communicative Action, vol. 2, 393).

de ação “defensivas” envolvendo em novas formas de cooperação e comunidade. Esta última forma o núcleo do novo potencial de conflito. Contudo, os novos movimentos são vistos apenas como formas de resistência e retirada visando conter a onda de sistemas de ação formalmente organizados em favor das estruturas comunicativas. Embora eles signifiquem a continuidade da capacidade do mundo da vida de resistir à reificação, e então tomem um sentido positivo, Habermas é cético quanto a seu “potencial emancipatório” e suspeito quanto a sua natureza aparentemente anti-institucional, anti-reformista e defensiva. Em suma, ele não vê os novos movimentos como sustentadores das novas identidades sociais (racionais), mas sim como presos em particularismos. Nem os vê enquanto orientados para, ou capazes de fomentar a institucionalização dos potenciais positivos da modernidade ou de transcender uma política expressiva de retirada. Contudo, Habermas está no caminho certo quando argumenta que os novos conflitos surgem sobre a “costura entre os sistemas e o mundo da vida” – precisamente sobre aqueles papéis que institucionalizam os meios do poder e do dinheiro e do poder e fazem a mediação entre as esferas públicas e privadas e os subsistemas econômico e administrativo. A resistência aos papeis funcionalizados de empregador e consumidor, cidadão e cliente, certamente caracteriza muito da ação coletiva: “É só esses papéis que são alvo de protestos. A prática alternativa é diretamente contra... a mobilização da força de trabalho dependente de mercado, contra a expansão de pressões de competição e desempenho em todo o caminho da escola elementar. Isso também toma a reivindicação na monetarização dos serviços, relacionamentos e no tempo, na redefinição consumista das esferas privadas da vida e dos estilos de vida pessoais. Além disso, a relação dos clientes com as agências de serviço deve estar aberta e reorganizada de uma forma participativa. ... Finalmente, certas formas de protesto negam 58 da definição do papel de cidadão” .

Na visão de Habermas, no entanto, os desafios dos movimentos a esses papéis são vistos como puramente defensivos. Ele interpreta as tentativas dos atores coletivos para chegar com contra-instituições dentro do mundo da vida para limitar a dinâmica interna do sistema econômico e político-administrativo, não apenas como "reativa", mas como projetos comunalistas tendencialmente anti-modernos de des-diferenciação e retirada59. A única exceção que ele vê é o movimento feminista. Apenas ele possui uma lógica dual e um potencial emancipatório claro: um lado universalista e ofensivo voltado para a inclusão política e direitos iguais, juntamente com um lado defensivo e particularista focado em identidades, valores alternativos, e a derrubada das formas de vida concretas marcadas pelo monopólio masculino e uma prática cotidiana 58 59

Habermas, The Theory of Communicative Action, vol. 2, 395. Ibid., 396.

unilateralmente racionalizada60. A primeira dimensão vincula o feminismo à tradição dos movimentos liberação, burgueses e socialistas, e aos princípios morais universalistas. A segunda os vincula aos novos movimentos sociais. Conforme indicado anteriormente, no entanto, os novos movimentos de resistência, incluindo a segunda dimensão do feminismo, envolvem exclusivamente reações defensivas à colonização. Embora o rótulo “particularista” acerca das identidades, normas e valores alternativos e embora a carga de uma “retirada” em categorias biológicas ou atributivas do gênero. De acordo com Habermas, a dimensão emancipatória do feminismo não envolve portanto nada de novo, enquanto a nova dimensão do feminismo sofre os mesmos inconvenientes dos outros movimentos. Acreditamos que essa análise dos novos movimentos em geral e do feminismo em particular está equivocada. A interpretação de Habermas do que é novo nesses movimentos enquanto reações defensivas e particularistas à penetração da vida social pelos meios do dinheiro e do poder envolve o reavivamento da clássica tese da ruptura61. Isso por sua vez deriva de uma interpretação unilateral de sua própria teoria dualista. Então a análise de Habermas dos movimentos não faz jus ao potencial de sua teoria, por duas razões. A primeira tem a ver com a falência em traduzir as categorias da sociedade civil em uma conceitualização completa da sociedade civil e política. As passagens sugestivas nas instituições públicas e privadas do mundo da vida negligenciam uma dimensão chave que o habilitaria a evitar a tese da ruptura, qual seja, as associações. A despeito de seu reconhecimento de que as lutas contemporâneas são situadas acerca das dimensões da reprodução cultural, da integração social, e da socialização, ele falha no vínculo destas com o lado positivo das instituições dentro das sociedades civil e política62. Ao invés de reconhecer que os novos movimentos possuem um papel a ser desempenhado na maior modernização dessas esferas, ele percebe apenas sua defesa cara a cara com a expansão dos mecanismos direcionadores. Na melhor das hipóteses, ele vê os novos movimentos enquanto possuidores do potencial para contribuir para o aprendizado junto às dimensões da transmissão cultural e da socialização, mas não da mudança institucional dentro da sociedade civil. Habermas está errado ao concluir a partir de seu enfoque em reinterpretar tradições e identidades que o que está envolvido nesses novos movimentos é apenas uma política cultural anti-institucional. Os movimentos 60 61

Então, ele redescobre os tipos de ação coletiva “reativo” e “proativo” de Tilly.

Acerca disso, sua análise é menos perceptiva que aquela de Touraine, que diz que os movimentos sociais buscando atingir normas e identidades da sociedade civil envolvem uma luta com um adversário social e que as apostas do conflito são a futura forma institucional da sociedade civil. 62 Habermas, The Theory of Communicative Action, vol. 2, 392.

também geram novas solidariedades, alteram a estrutura associativa da sociedade civil e criam uma pluralidade de novos espaços públicos enquanto expandem e revitalizam espaços que já são institucionalizados. Isso envolve desafiar os papéis que fazem a mediação entre os sistemas e o mundo da vida. O outro lado da ação coletiva contemporânea, no entanto, acarreta a mudança institucional junto a dimensão da integração social. Isso envolve conflito sobre as relações sociais nas instituições civis variando da família às esferas públicas. A tendência de Habermas em ver os subsistemas enquanto “autoreferenciados-fechados” retira de sua visão a possibilidade de uma reforma institucional nesses domínios. Sua separação demasiado rígida desses domínios dos sistemas e do mundo da vida o cega para as estratégias ofensivas dos movimentos contemporâneos almejados para criar ou democratizar receptores dentro dos subsistemas, isso torna o sucesso tautologicamente impossível. Conseqüentemente sua explicação dos movimentos não faz jus a tese da duplicidade institucional aludida anteriormente, a qual a lógica dualista dos movimentos é direcionada. E leva então a uma análise redutiva dos movimentos da juventude, da ecologia, da iniciativa cidadã e a descontruir a lógica dualista quando ele a percebe, como no caso do feminismo. Nossa reconstrução da distinção entre mundo da vida e sistemas ao longo das linhas de uma teoria da sociedade civil corrige esses dois pontos cegos. Por um lado, nos traduzimos o conceito de mundo da vida na articulação institucional de uma sociedade civil assegurada por direitos. Por outro, argumentamos que há receptores para a influência da sociedade civil dentro da sociedade política (e econômica) e que isso pode, dentro dos limites, ser adicionado e democratizado. Consequentemente, em nossa versão da concepção de sociedade dualista a lógica dualista de todos os novos movimentos pode ser trazida a tona. Nossa abordagem permite observar que os movimentos operam em ambos os lados da divisão entre sistemas e mundo da vida, e então estamos aptos a harmonizar as contribuições de ambos os paradigmas da ação coletiva. Nosso modelo também fornece uma interpretação mais sintética do significado da ação coletiva “ofensiva” e “defensiva” do que aquela encontrada nas abordagens discutidas anteriormente. Nessa explicação, o aspecto “defensivo” dos movimentos envolve preservar e desenvolver a infraestrutura comunicativa do mundo da vida. Essa formulação captura o aspecto dualista dos movimentos discutido por Touraine assim como pela compreensão de Habermas de que os movimentos podem ser os sustentadores dos potenciais da modernidade cultural. Isso é a condição necessária para esforços bem sucedidos em redefinir identidades, reinterpretar normas e desenvolver formas

associativas democráticas e igualitárias. Os modos de ação expressiva, normativa e comunicativa possuem seu lugar próprio aqui; mas essa dimensão da ação coletiva envolve também esforços para assegurar mudanças institucionais dentro da sociedade civil que correspondam aos novos significados, identidades e normas que são criados. O aspecto “ofensivo” da ação coletiva se direciona para as sociedades políticas e econômicas – os reinos da mediação entre a sociedade civil e os subsistemas do Estado administrativo e da economia. Certamente, isso envolve o desenvolvimento de organizações que possam exercer pressão para inclusão dentro desses domínios e possa extrais benefícios deles. Os modos de ação coletiva estratégica/instrumental são indispensáveis para tais projetos. Mas as políticas ofensivas dos novos movimentos envolvem não apenas lutas por dinheiro ou reconhecimento político, mas também uma política de influência direcionadas aos membros políticos (e talvez econômicos) e projetos (autolimitados) de reforma institucional. Como podemos então compreender as tentativas de tornar os subsistemas mais receptivos às novas questões e preocupações, mais sensíveis às necessidades e auto-entendimentos dos atores na sociedade civil e mais democráticos internamente do que eles são hoje em dia? Em outras palavras, aqueles elementos dos novos movimentos que se direcionam para a sociedade política (e que um dia talvez se direcionem à sociedade econômica também) articulam um projeto de reforma institucional democrática e autolimitada almejada para a ampliação e democratização das estruturas do discurso e compromissos que já existem nesses domínios.

Uma crítica feminista a teoria social dualista.

Enquanto acreditamos que todos os movimentos sociais contemporâneos são passíveis de análise nesses termos, vamos focar no movimento feminista para traçar nosso ponto de vista. Diversas discussões interessantes da relevância da teoria social dualista de Habermas já apareceram63. No artigo mais compreensível sobre o assunto, Nancy Fraser afirma que, longe de facilitar a compreensão do feminismo, a teoria social dualista de Habermas, e especialmente sua distinção entre sistema e mundo da vida, não é “cega quanto ao gênero”, mas também “em muitos aspectos androcêntrica e ideológica”64. Fraser propõe uma crítica muito mais radical da teoria social dualista do que a que temos esboçado acima. Devido ao fato de 63

Nancy Fraser, “What‟s Critical about Critical Theory? The Case of Habermas and Gender”, New German Critique n. 35 (primavera/verão de 1985): 97-131. Para uma visão diferente, ver Linda Nicholson, Gender and History: The limits of Social Theory in the Age of the Family (New York: Columbia University Press, 1986) 64 Fraser, “What‟s Critical about Critical Theory?, 11

essa crítica visar o aparato dos conceitos da teoria social dualista de que nos apropriamos e revisamos, vamos considerá-la em detalhes. Tratam-se de cinco processos fundamentais: 1. Fraser sustenta que a distinção entre sistemas e mundo da vida leva interpretar a família enquanto uma instituição socialmente integrada possuidora de uma relação extrínseca, acidental com o poder e o dinheiro 65. Localizar a família moderna e a economia capitalista oficial em lados opostos da divisão sistemas/mundo da vida é esconder o fato de que as famílias contemporâneas são sistemas econômicos e locais de trabalho, coerção, permuta, exploração e violência. Além disso, isso legitima a separação institucional moderna entre a família e a economia oficial, o cuidado com as crianças e o trabalho pago, e as esferas pública e privada que tem sido um anátema para o feminismo contemporâneo66. Habermas então é alegadamente cego para o fato de que cuidar das crianças é um trabalho não pago para supervisionar a produção do poder de trabalho apropriadamente socializado que a família troca por pagamentos67. 2. Um argumento um pouco diferente se faz a respeito da distinção de Habermas entre as formas de integração social convencionais, normativamente asseguradas, e aquelas que são auto-reflexivas, comunicativamente estabelecidas e pós-convencionais. Fraser reconhece que essa distinção fornece recursos críticos para analisar relações interfamiliares tornando o “consenso” acerca das normas familiares e dos papéis a respeito do grau em que eles são pré-reflexivos ou conseguidos por meio de um diálogo viciado pela injustiça, coerção e desigualdade. No entanto, ela afirma que um esforço insuficiente é colocado sobre o fato de que as ações coordenadas pelo consenso normativamente assegurado na família patriarcal nuclear são ações reguladas pelo poder. O erro aqui repousa na aparente restrição de Habermas no uso do termo “poder” para os contextos burocráticos. Como implicação, as relações de poder dentro da família são interpretadas enquanto resultado de pressão externa sobre ela (pressões econômicas, no caso do capitalismo clássico; pressões burocráticas no caso do Estado de bem estar)68. 3. Essa abordagem implica, de acordo com Fraser, que a dominação masculina é um sinal de insuficiente modernidade das relações sociais. O fato de que o patriarcado é um produto intrínseco e não acidental do capitalismo é então obscurecido69.

65

Ibid., 107. De acordo com Fraser, Habermas vincula essa distinção àquilo entre a reprodução material e simbólica. 66 Ibid, 109. 67 Ibid., 115. 68 Ibid., 109. 69 Ibid., 124.

4. Embora Fraser (de forma um pouco inconsistente) elogie a expansão de Habermas da distinção clássica entre público e privado em um esquema quadri-partido de família, esfera pública, economia e Estado (claramente baseada na distinção entre sistemas e mundo da vida), ela argumenta que os potenciais críticos desse modelo são bloqueados pela cegueira quanto ao gênero na abordagem como um todo. Habermas está enganado ao conceituar os papéis acerca dos quais há relações de troca entre os quatro termos do modelo tomam forma (trabalhador, consumidor, cliente e cidadão) em termos neutros quanto ao gênero. Além disso, ele não faz menção ao fato de que esses papéis são complementados pelo quinto papel crucial que é o cuidado das crianças70. O ponto de Frazer aqui é que o vínculo entre os dois conjuntos de esferas públicas e privadas são esboçados em muito através do meio do gênero quanto através do dinheiro e do poder71. Finalmente, Fraser argumenta que a tese da colonização leva Habermas a não representar as causas e a desconstruir o escopo do desafio feminista ao Estado de bem estar capitalista. De acordo com essa tese, as esferas públicas e privadas da sociedade civil cessam de subordinar os sistemas econômico e administrativo de normas e valores da vida cotidiana, mas são ao invés disso subordinados cada vez mais aos imperativos desses sistemas. Fraser aponta, no entanto, que as normas patriarcais continuam a estruturas as relações da economia capitalista regulada pelo Estado, conforme é indicado pela contínua segmentação da força de trabalho e da estrutura dos sistemas de bem estar social. Então, os canais de influência entre os sistemas e o mundo da vida são multidirecionais. A análise de Habermas das ambivalências das reformas do Estado de bem estar, no entanto, falha ao não notar o subtexto de gênero nesses desenvolvimentos. O fato de que as mulheres são esmagadoramente os novos clientes precisamente dessas “ambivalentes” reformas dos sistemas de bem estar permanece não comentado. A teses da colonização dos Estados de bem estar compõe então os erros e lacunas derivados da conceituação teórica original de divisão entre sistemas e mundo da vida. Isso é androcêntrico ou cego quanto ao gênero. Essa crítica levanta aspectos que não podem ser ignorados, especialmente se espera-se argumentar que a teoria dualista conforme a 70

Ibid., 115. Ibid., 113. Fraser atesta: “Por omitir qualquer menção ao papel de cuidar das crianças, e por falhar ao tematizar o subtexto de gênero subjacente aos papéis de trabalhador e consumidor, Habermas falha em entender precisamente como o local de trabalho capitalista é vinculado a família nuclear moderna, restrita e de comando masculino. Da mesma forma, por falhar ao tematizar o subtexto masculino do papel de cidadão, ele perde... o modo pelo qual o papel de cidadão-soldado-protetor masculino vincula o Estado e à esfera pública, não apenas um ao outro, mas também à família e ao local de trabalho pago... E ele perde, finalmente, o modo como o papel feminino de cuidado das crianças vincula todas as quatro instituições uma a outra ao supervisionar a construção de sujeitos de gênero, masculino e feminino, necessário para preencher todos os papéis no capitalismo clássico” (117) 71

reconstruímos contribui para o entendimento dos movimentos contemporâneos. O caso é, certamente, que Habermas não prestou muita atenção ao gênero, e a cegueira quanto ao gênero de seu modelo certamente obscurece aspectos importantes dos arranjos institucionais que ele procura compreender. Dessa forma, a reivindicação que a distinção entre sistemas e mundo da vida e a tese da colonização são antitéticos à essas preocupações não é convincente. De fato, muitas das dificuldades citadas por Fraser não repousam sobre todo o modelo teórico, mas sim na interpretação que Habermas faz dele72. Então, nos iremos mostrar que o volume da parte válida de sua crítica não pode ser acomodado em nossa versão revisada do modelo, que pode por sua vez iluminar algumas formas de dominação e conflitos específicos do feminismo contemporâneo73. 1. Conforme vimos, Fraser rejeita a distinção entre sistemas e mundo da vida, argumentando que não há meio significativo para diferenciar as categorias entre as esferas do trabalho pago e não pago, entre a família e a economia “oficial”74. Certamente, ela argumenta que não há garantia de que uma organização integrada de forma sistêmica poderia ser mais patológica que outro trabalho. Essa resposta, no entanto, perde a real crença na distinção entre sistema e integração social e não é em si mesma convincente. Enquanto Habermas, em seus momentos mais marxistas, tenta traçar a distinção entre os processos reprodutivos simbólicos e materiais, o centro de sua teoria repousa em uma distinção mais importante entre os modos de coordenação de ação e não nos elementos substantivos da ação em si mesmos. A reivindicação, em suma, na qual Fraser não é totalmente desaprovada, é que há uma diferença fundamental entre os processos (reprodução cultural, integração social e socialização), as relações sociais, e as instituições nas quais o peso da coordenação precisa ser comunicativo, não aqueles que podem ser “direcionados pelos meios” sem distorção, como os mercados e burocracias. Isso não é porque o trabalho ou a atividade 72

Além disso, Fraser pressupõe os aspectos chave da teoria de Habermas da modernidade mesmo quando ela a critica e mesmo quando ela reconstrói seu subtexto de gênero tematizado 73 Nós não pretendemos de forma alguma argumentar que essa teoria é suficiente para direcionar todas as preocupações feministas. Seria certamente necessário que ela fosse suplementada pelas contribuições cruciais da filosofia feminista psicanalítica e pós-moderna. Mas até onde vai uma teoria social, nós achamos que a teoria dualista da sociedade civil é notavelmente fértil. 74 Fraser, “What‟s Critical about Critical Theory”, 99-103. Ela toma Habermas em suas palavras de que essa distinção é vinculada a uma distinção substantiva entre a reprodução simbólica e material do mundo da vida. Ela argumenta de forma correta que não é possível distinguir entre as atividades com base em uma distinção “com base natural” entre o material e o simbólico, e ela critica Habermas por se apoiar nesses pressupostos. Essa crítica ecoa em nós mesmos; confere Andrew Arato e Jean L. Cohen, “Politics and the Reconstruction of the Concept of Civil Society” em Axel Honneth et al., ed., Zwischenbetracthungen Im Prozess der Aufklärung (Frankfurt: Suhrkamp, 1989). Não é real, contudo, que a teoria social dualista resiste ou sucumbe a distinção reificada entre o simbólico e o material.

produtiva/criativa tem lugar apenas no segundo domínio, mas porque os significados, normas e identidades não podem ser mantidos, reinterpretados ou criados através de substitutos funcionais para os complementos coordenadores da interação comunicativa. O centro da diferença entre conjuntos formalmente organizados de relações sociais (subsistemas) e outros repousa na tendência dos anteriores de neutralizar o pano de fundo [background] normativo dos contextos informais, habituais, ou moralmente regulados de ação que são presos às reivindicações válidas e para substituir por aqueles contextos de ação que são gerados pelas leis positivas ou pelos “meios direcionadores”75. Os últimos são coordenados pelos meios que operam através dos códigos lingüísticos; esses códigos, no entanto, aliviam os atores da necessidade de concordarem mutuamente na definição de uma situação envolvida em toda interação relevante, ultrapassando assim (ou tornando impossível) a referência à reivindicações normativas válidas. Sentidos, normas e identidades não criados nesses contextos, mas são usados (ou reforçados) para propósitos sistêmicos. Ver a família enquanto um sistema econômico acarretaria então em uma tomada robusta da teoria dos sistemas76 (a tornando assim imune ao tipo de crítica normativa que Fraser procura fazer) ou um desentendimento daquilo que um sistema é na teoria de Habermas: um conjunto de relações formalmente organizadas, direcionadas pelos meios sistêmicos. Se a intenção é desafiar os sentidos, normas e identidades que são constitutivos das desigualdades de gênero, esta é a conduta errada a tomar. A abordagem teórica dos sistemas oblitera a própria dimensão em que estes são criados e reproduzidos. Embora as famílias exerçam funções econômicas, embora elas possam ser e são operacionalizadas pelos imperativos dos subsistemas administrativo e econômico, embora haja interação estratégica dentro dela da mesma forma que nas trocas de serviços e trabalho por dinheiro ou apoio, e embora elas sejam distribuídas segundo o gênero, as famílias não são dessa forma sistemas econômicos. Da mesma forma, elas não podem ser descritas enquanto sistemas administrativos embora elas com certeza possam estar imbuídas de relações de poder77.

75

Habermas, The Theory of Communicative Action, vol. 2, 310. Para uma discussão mais detalhada desses pontos, conferir o capítulo 9. 76 Para uma tentativa não convincente, ver Niklas Luhmann, Love as Passion: The Codification of Intimacy (Cambridge: Harvard University Press, 1987). 77 Fraser, no entanto, também tende a confundir o nível de análise dos mecanismos coordenadores com a análise dos vários tipos de ação. Ela insiste então que a ação estratégica e instrumental ocorrem nas instituições do mundo da vida – as famílias – e que a ação comunicativa (baseada em normas patriarcais) ocorre nos subsistemas. Mas esse não é um argumento sério contra a distinção entre sistemas e mundo da vida; de fato, isso é sempre afirmado pelo próprio Habermas. Todos os tipos de ação aparecem em todas as instituições. As categorias abstratas de sistema e mundo da vida indicam apenas onde repousa o peso da coordenação em dado esquema institucional. Poderíamos também rejeitar as referências à família como um sistema econômico por outro conjunto de razões: as psicodinâmicas da

O trabalho realizado pelas mulheres dentro da família não é reconhecido, remunerado e compensado, e isso é então uma desvantagem das mulheres mesmo no mercado de trabalho “oficial” (reforçado pela imagem da dependência no “ganha pão” do homem). Dessa forma não ajuda descrever o cuidado das crianças apenas como o resto do trabalho social. O fato de que isso pode e tem sido parcialmente transferido para os centros de cuidado infantil ou enfermarias, e então tenha sido remunerado, não significa que isso possa ser formalmente organizado da mesma forma que outro trabalho ou que seja desejável ou possível transferir o cuidado das crianças para conjuntos institucionais inteiramente integrados de forma sistêmica. A coordenação comunicativa da interação permanece no centro do cuidado infantil, como sabe qualquer pai, babá ou professor de enfermagem. A menos que se advogue a total institucionalização da pré-escola das crianças e a total mercantilização do cuidado infantil como a única alternativa a ser levantada pelas mães integrais, então é preciso assumir que as crianças chegam em casa em algum momento do dia – no ponto em que elas requerem atenção, cuidado e nutrição. Além disso, enfermarias, creches e escolas são elas mesmas instituições dentro da sociedade civil. Elas têm seu lado burocrático e econômico, claro, mas quanto os pré-requisitos organizativos ou econômicos sobrecarregam os afazeres comunicativos do cuidado ou do ensino, eles subvertem a razão de ser das instituições e tem conseqüências patológicas (crianças famintas e ignorantes). Enquanto é certamente concebível que mais afazeres domésticos podem migrar do lar para o mercado, certamente há e deve haver um limite para isso. Não concordamos com a noção de que todas as atividades produtivas, reprodutivas ou criativas devam necessariamente tomar a forma do trabalho assalariado. Mesmo quando o são, isso não significa que o modelo institucional em que essas atividades ocorrem possa ser analisado enquanto um sistema econômico. Apenas a afirmação enganosa de que todo o “trabalho social” é equivalente, e então igualmente passível de ser distorcido pela integração sistêmica poderia considerar a socialização primária e a alimentação infantil como outro emprego qualquer. Apenas, em suma, interpretando simplesmente como locais de tempo de trabalho social necessário não pago poderiam as diferenças entre relações interfamiliares e relações sociais de produção desaparecer de vista. Mas essa breve afirmação tem sido criticada por muitas feministas poder estender as categorias da crítica marxista ao capitalismo para âmbitos para os quais eles não foram direcionados originalmente78.

formação identitária em geral e das identidades de gênero em particular podem dificilmente ser analisadas nesses termos. 78 Confere Alison M. Jaggar, Feminist Politics and Human Nature (Totowa,NJ: Rowman and Littlefield, 1988), 51-83, 207-249. Ver também o artigo clássico de Heidi Hartman “The Unhappy Marriage of Marxism and Femminism: Toward a More Progressive Union” em Lydia Sargent, ed., Women and Revolution (Boston: South End Press, 1981), 1-42.

Se alguém estiver disposto a admitir que uma economia moderna exige que algumas formas de trabalho devem ser transformadas em mercadoria e formalmente organizadas, a questão central para uma teoria crítica é a forma de distinguir os tipos de atividades que devem ser deixadas para o mecanismo de mercado, ou formalmente organizadas, das que não devem. Há dois âmbitos distintos aqui. Por exemplo, as críticas feministas dos “contratos de sub-rogação” desafiam a possibilidade ceder os bebês em troca de dinheiro (mercantilização) e saúde adequando a gravidez e o parto a um modelo de contrato de trabalho. A mercantilização, em tais casos, parece distorcer a relação da mulher com seu corpo, ela mesma, e seu filho, e não é necessário explicar esta intuição com base em argumentos naturalistas ou essêncialistas79. A idéia da infraestrutura comunicativa das relações sociais da sociedade civil basta para explicar as distorções surgidas da entrega dessas relações ao mercado. E enquanto o cuidado e a escolarização envolverem trabalho pago (mercantilização de professores ou serviços de babás), isso não significa que essas atividades possam ou devam ser formalmente organizadas. Elas não possuem a mesma forma, propósito ou sentido que outro trabalho assalariado. As instituições públicas e privadas nas quais o cuidado infantil e o aprendizado são localizados são os principais elementos da sociedade civil, a despeito de os serviços profissionais envolvidos serem remunerados. Em suma, alguns critérios são necessários para afirmar como ou não a mercantilização ou organização formal teria implicações a respeito de certas formas de atividade ou interação que são inaceitáveis ou desnecessárias na sociedade moderna. Nossa teoria da sociedade civil oferece um bom começo nessa direção. Em vez de tentar tornar os papéis de trabalhadora e dona de casa compatíveis com a assimilação da última na primeira, uma análise que procede da distinção entre sistema e mundo da vida levaria a desafiar o subtexto de gênero de ambos os papéis, enquanto insiste em sua diferença. A modernização já envolve a migração do trabalho (incluindo a educação) do lar para o mercado. Mas, certamente uma boa parte da solução especificamente feminista para o duplo fardo da mãe trabalhadora, à subordinação e insegurança ligadas ao papel de dona de casa, e às desigualdades do mercado de trabalho precisa então acarretar a des-gênerificação do cuidado e alimentação das crianças e das regras do cuidado da casa junto a uma luta contra a divisão de gênero das funções no local de trabalho. Pagamentos para o trabalho doméstico e o cuidado das crianças apenas reforçaria o caráter de gênero e bloquearia ainda mais as mulheres em serviços mal pagos. A “divisão do trabalho” doméstico claramente acarreta uma relação de poder baseada em parte na dependência econômica que priva as mulheres de uma escolha verdadeira e de uma voz igual na distribuição dos afazeres; de ambas derivam

79

Confere Barbara Stark “Constitucional Analysis of The Baby M Decision”, Harvard Women’s Law Journal 11 (1988): 19-53.

e reforçam sua posição inferior no mercado de trabalho80. É essa relação que precisa ser desafiada. Mas essa abordagem não repousa na analogia destorcida entre as famílias e os sistemas econômicos e entre o cuidado das crianças e outros trabalhos produtivos. Ao contrário, isso envolve um desafio às normas patriarcais que definem as famílias e vinculam o gênero ao cuidado da casa e outros papéis. Certamente, a grande possibilidade de articular e desafiar os meios pelos quais a economia capitalista moderna e a igualmente moderna família nuclear se intersectam (através dos papéis de gênero) pressupõe sua diferenciação. As mudanças na identidade, na concepção normativa e no jogo interno da estrutura familiar não levariam a alterar o fato de que as relações interfamiliares, incluindo o cuidado infantil, precisam ser comunicativamente coordenadas. Ao contrário. Pode-se até criticar a família contemporânea como injusta, enquanto deformada por distribuição desigual de poder, dinheiro, e por relações de gênero assimétricas, se não se pressupor sua infraestrutura comunicativa81. 2. A distinção entre orientações convencionais e pós-convencionais captura uma dimensão chave do poder nas normas de gênero existentes. As formas que a dominação masculina toma na família nuclear patriarcal e os meios pelos quais ela estrutura as categorias de trabalho (e as relações de cliente no Estado de bem estar) e as identidades de gênero correspondentes são modernas no sentido histórico e descritivo 82. Mas elas não são racionais nem modernas no sentido normativo, isto é, no modo como Habermas utiliza essas palavras. As normas subjacentes à dominação masculina são um exemplo de tradicionalismo por excelência; isto é, são baseadas em um “consenso” normativo convencional congelado e perpetuado pelas relações de poder e desigualdade que levam a todo tipo de patologias no mundo da vida. A atitude tradicionalista diante de normas de fato baseadas nesse consenso não significa que normas relevantes são formas prolongadas de desigualdades de 80

Estudos da divisão doméstica do trabalho indica que muitas mulheres desejam uma divisão mais eqüitativa do trabalho doméstico, mas não podem conquista-la por causa das diferenças de poder e na capacidade de obter rendimentos. Para uma discussão dos aspectos da família em transformação e os modos pelos quais as mulheres são privadas de uma voz igual na família ver Kathleen Gerson, Hard Choices (Berkeley: University of Califórnia Press, 1985). Ver também Susan Okin, Justice, Gender, and the Family (New York: Basic Books, 1989), 134-170. 81 Além disso, em nosso ponto de vista, é precisamente porque a família é uma instituição principal da e na sociedade civil (e não um pressuposto natural da sociedade civil nem apenas mais um componente do subsistema econômico) que os princípios igualitários podem ser aplicados a ela em uma extensão maior que em uma firma ou num sistema burocrático. 82 Para uma interessante explicação da emergência dos papéis de gênero modernos nos Estados Unidos do século XIX, ver Carl Degler, At Odds: Women and the Family in América from the Revolution to the Present (New York: Oxford University Press, 1980). Degler também dá uma boa explicação do debate sobre o impacto da forma de família de companheirismo e o culto da domesticidade que se formaram em torno da delegação feminina aos papéis de mulher e mãe na segunda metade do século XIX (ver principalmente as páginas 210-328).

status pré-modernas. Isso significa que elas são isoladas das críticas e tradicionalizadas, como eram antes. Com certeza, elas são baseadas em uma sociedade civil seletivamente racionalizada, e é isso precisamente que bloqueia sua maior modernização no sentido normativo que a teoria de Habermas tenta articular. Além disso, conforme indicado no capítulo 9, a divisão dos subsistemas do mercado e do Estado do mundo da vida é a pré-condição para a liberação os potenciais culturais da modernidade e para libertação a interação comunicativa da reprodução ritualisticamente sacralizada das normas convencionais. O mundo da vida não pode ser internamente diferenciado, as instituições não podem ser modernizadas, a subjetividade não pode descentralizada, e os papéis não podem ser desafiados até a interação comunicativa seja aliviada de sua tarefa de coordenar todas as áreas da vida. 3.Dessa forma, há mais para a dominação masculina que apenas o estigma moderno do tradicionalismo, e Fraser faz um bom serviço ao assinalar uma dimensão que se perde na análise do poder de Habermas, embora ele não busque preencher a lacuna deixada. É um equivoco restringir o termo “poder” às relações hierarquicamente estruturadas nos controles burocráticos sem fornecer outro termo para articular as relações sociais assimétricas em outras instituições. É melhor distinguir entre os diferentes tipos de poder ou, ao invés, entre os vários códigos de poder e modos de operação do poder. De outra forma, não há meios para conceitualizar a habilidade diferencial de impor normas, definir identidades e silenciar interpretações alternativas das necessidades, da masculinidade e da feminilidade. O tradicionalismo resulta dessa habilidade, mas não a leva em consideração. É importante que saibamos como as várias formas de poder operam na construção do gênero, como elas permeiam os processos de socialização e como as normas e identidades geram intersecções na sociedade civil com o funcionamento do poder enquanto meio dos controles burocráticos. Isso envolveria uma análise das relações de poder que é suplementar ao invés de antitética à concepção de poder como um meio coordenador. Nós afirmamos que a organização formal é uma pré-condição (e ainda uma marca de identificação) da construção do subsistema autônomo do poder 83. É um requisito necessário para o poder funcionar enquanto um meio condicionante (e ser institucionalizado enquanto tal). Mas não é o único modo no qual o poder opera nem seu único código. Como muitos já apontaram, o poder gerado fora das regras formais existe dentro das organizações; relações de poder existem antes da emergência histórica do poder enquanto um meio, e as relações de poder operam em contextos que não são formalmente organizados84. 83

Ver nota 17, cap. 9. Ver Niklas Luhmann, Macht (Stuttgart: Enke Verlag, 1975), 47-48. As menções de Luhmann apenas exemplificam a institucionalização precedente do meio do poder, mas ele claramente concebe a possibilidade da geração e utilização do poder fora do subsistema 84

Definiremos poder de forma geral enquanto a transferência de seletividade (a habilidade em determinar o que pode ser feito e dito). O poder opera através de condições de expectativa (e expectativa das expectativas), vinculando combinações de alternativas relativamente preferidas ou rejeitadas entre pelo menos duas pessoas85. Essa transferência pressupõe ambos, a disponibilidade das sanções negativas e um código (ou vários códigos) de poder. Muitos, mas não todos, os códigos de poder incorporam desigualdades que distinguem indivíduos elevados e rebaixados, superiores e inferiores. Numa dessas aparências, dentro de um contexto formalmente organizado, o poder opera como um meio condicionante que pode ser estendido para fora para operacionalizar relações e instituições da sociedade civil que não são em si mesmas formalmente organizadas e portanto conquistam objetivos administrativos86. Desse jeito, o meio do poder desacopla a coordenação da ação da formação do consenso na linguagem e neutraliza a responsabilidade dos participantes na interação87. O que conta aqui não é mais a presença de uma hierarquia burocrática rígida, ou uma estrutura de dominação no sentido de uma clara cadeia de comando88, mas a formalização do contexto de ação no qual as regras abstratas e impessoais (sejam escritórios ou funções) se tornam ao menos o canal oficial (entre vários) através dos quais o poder (a seleção do que pode ou não ser feito e dito) flui. Então, o esquema binário de interações em conjuntos de códigos formais (principalmente a distinção legal/ilegal) produz uma atitude objetivante na direção da situação da ação, uma abstração das pessoas concretas, e certa qualidade automática na continuação da interação89. O poder não opera apenas como um meio direcionador90. Há, é claro, relações de poder dentro dos controles institucionais que não são formalmente organizadas e então carecem de condições necessárias para a fixação do político (91ff.: ele explicitamente menciona o poder na família). Luhmann não fornece razão para pensar a existência de formas não reguladas pelo meio [sistêmico] do poder, apesar de sua identificação geral da modernidade com as formas de interação organizadas de modo mediado. Como pode-se esperar, o trabalho de Foucault se destaca em analisar múltiplas formas de poder não sistêmicas. 85 Luhmann, Match, 7, 11-12, 22-24. 86 Em uma organização formal, com uma série de códigos operando, pode haver diferentes formas de desigualdade – que podem ou não convergir em uma cúpula hierárquica – assim como relações de poder não hierárquicas operando ao mesmo tempo. 87 Habermas, The Theory of Communicative Action, vol. 2, 263. “se responsabilidade significa que alguém pode orientar a ação de alguém para reivindicações válidas criticáveis, então a coordenação da ação que foi desvinculada do consenso comunicativamente conquistado não requer mais a responsabilidade dos participantes. 88 Isso seria o conceito teórico de dominação weberiano. 89 Habermas, The Theory of Communicative Action, vol. 2, 268-270. Habermas explica em quais meios o poder se difere do dinheiro enquanto um meio direcionador sistêmico. 90 Os códigos responsáveis pela transmissão de poder podem tomar a forma de comandos vinculados a ameaças e envolve comunicação em linguagem comum. Isto é, o poder pode operar como “dominação” num sentido teórico de ação. Ele pode também operar como uma forma geral de comunicação; veja abaixo.

poder enquanto meio. Aqui, também, o poder opera através de “códigos binários” que transferem a seletividade, expedem a comunicação e evitam os riscos do dissenso enquanto eles não são desafiados. Mas esses “códigos” têm uma estrutura diferente daqueles vinculados ao meio direcionador nos contextos formalmente organizados. E o mais importante, eles não substituem completamente a linguagem comum nessa função coordenadora; ao contrário, eles envolvem processos de consenso de segunda ordem na formação lingüística. Eles também não envolvem relações sociais impessoais. Habermas analisou o prestigio e a autoridade moral nesse sentido, fazendo a distinção entre essas “formais generalizadas de comunicação” e o meio direcionador. O prestígio e a autoridade moral podem motivar a ação ou a complacência, mas as reivindicações válidas subjacentes a elas também ser desafiadas; e se essas não sobreviverem a crítica, sua base normativa e seu poder de motivar o colapso também. Além disso, a autoridade moral e o prestigio permanecem fortemente vinculados aos contextos e pessoas particulares91. É razoável assumir que a lista de “formas generalizadas de comunicação” poderia ser expandida para incluir status, autoridade e gênero 92. Além disso, na linha da distinção de Habermas entre a ação normativa e a comunicativa, que nós distinguimos entre formas que permitem a tematização comunicativa e o questionamento até um ponto fixo (como a autoridade tradicional) e formas que são construídas dentro de um princípio que permite tematização irrestrita, questionamento e até mesmo crítica. É também possível para a estrutura de uma forma generalizada de comunicação para mudar, por exemplo, de uma autoridade tradicional para democrática, do status para o mérito ou de uma concepção de gênero para outra. Nós sustentamos que o gênero é uma forma generalizada de comunicação ou ainda, o código dessa comunicação. Os códigos de gênero existentes, mesmo historicamente mutáveis e nesse sentido dificilmente tradicionais, são então interpretados como um ponto de parada do questionamento num significado complexo supostamente inquestionável que é definido como “natural”. O fato de que esse poder opera através dos códigos de gênero, reduzindo a seletividade livre de alguns e expandindo a de outros, é o mais importante aspecto paradigmático de qualquer teoria que se diga feminista. O gênero não é mais um meio direcionador [no sentido sistêmico], mas sim um conjunto de códigos dentro e através dos quais o poder opera. Fora das organizações formais (onde ele serve como um código secundário do 91

Habermas, The Theory of Communicative Action, vol. 2, 275. Luhman, por exemplo, sob uma posição análoga de generalização de influência, fala de autoridade, prestígio e liderança, todos localizados a nível de funcionamento entre o poder como um meio e de comandos diretos. Confere Luhmann, Macht, 75-76. Isso confirma nosso ponto de que as formas generalizadas de comunicação podem agir como formas de poder. Insistimos, no entanto, que os códigos nunca são totalmente fixos, mas são abertos a reinterpretação, aos desafios e a apropriação criativa pelos atores. 92

meio do poder), o gênero continua a deslocar a linguagem da comunicação ordinária e facilitar a articulação do poder. No entanto, a codificação do gênero não desacopla completamente a interação do contexto do mundo da vida do conhecimento culturalmente compartilhado, as normas válidas e as motivações compreensíveis. As normas do gênero e das identidades são baseadas em última instância no reconhecimento intersubjetivo das reivindicações válidas normativas e cognitivas. Enquanto os entendimentos convencionais do gênero são também redutíveis ao gasto da energia interpretativa e dos riscos de atender o entendimento mútuo, sua habilidade de motivar a ação e complacência é ainda vinculada às alternativas de concordância ou falha de consenso93. Esse “efeito de alívio” não é neutro em relação ao reconhecimento intersubjetivo das normas, identidades e significados. É claro, o poder peculiar das interpretações pós-convencionais nesse domínio repousa no fato de que os significados e as normas em causa são ligados às identidades que são transmitidas através da socialização primária e reforçadas nos processos de socialização secundaria na vida adulta. O poder operando no código do gênero delimita não apenas o que se entende como natural e não-natural, masculino e feminino, macho e fêmea, atrativo e não atrativo, objetos sexuais apropriados e não apropriados, mas também constrói o significado dos corpos e opera sobre eles. A normas e identidades de gênero são, somando-se a isso, reforçadas, direta ou indiretamente, por sanções positivas e negativas que podem ser vinculadas (mas não precisam ser) ao acesso desigual ao dinheiro e ao poder enquanto meios. Elas precisam portanto ser desafiados em duas frentes: os códigos convencionais de gênero precisam ser dissolvidos pelos atores que tomam a responsabilidade de criar novos sentidos e novas interpretações em suas próprias mãos, enquanto as desigualdades na distribuição do dinheiro e do poder precisam ser contestadas. 4. É nesse sentido que a identidade de gênero vincula os domínios públicos e privados da sociedade civil um ao outro e à economia e a administração estatal94. Tomando o gênero como uma forma de comunicação generalizada, o código do poder, distinto mas reforçado pelos meios do dinheiro e do poder gerados nos subsistemas, nos dá um rico modelo teórico para articular a distinção entre público e privado em termo de gênero.

93

Eles proporcionam alívio da complexidade mundo da vida, mas, ao contrário dos meios direcionadores sistêmicos, não tecnicizam o mundo da vida. Confere essa discussão em Habermas Habermas, The Theory of Communicative Action, vol. 2, 227. 94 Fraser propõe tratar o gênero como um “meio de troca” visando explicar o modo pelo qual ele vincula os vários domínios institucionais. Fraser, “What‟s Critical About Critical Theory?”, 113-117. É claro, Fraser deseja interpretar o gênero como um meio assim como dinheiro e poder. Ela perde a distinção entre o meio direcionador sistêmico e as formas de comunicação e então é leva à visão equivocada de que o gênero como um código de poder funciona do mesmo modo como outros meios. Mas isso não pode ser dessa forma, pelas razões dadas no texto.

A maior lacuna no trabalho de Habermas é sua falha em considerar o caráter de gênero dos papéis de trabalhador e cidadão que emergem ao longo da diferenciação da economia de mercado e do Estado moderno do mundo da vida. As historiadoras feministas documentaram a construção paralela dos papéis de dona de casa e mãe e a restrição das mulheres a esse papel (assim como ao de educadoras) como o outro lado da moeda da transição da economia familiar para o modo capitalista de produção e a substituição da monarquia autocrática pelas formas de constitucionalismo republicana e liberal95. Como o trabalho pago se torna dominante, o papel de trabalhador passa a ser entendido dentro do gênero, enquanto papel masculino, enquanto a família é construída para ser uma esfera privada, o domínio da mulher, no qual o trabalho “real” é realizado. O mesmo é válido para a concepção republicana de soldado-cidadão, que por definição exclui mulheres96. Não é de forma acidental que enquanto os papéis do chefe de família masculino e do cidadão homem são cristalizados, o culto da domesticidade emergiu para fornecer os componentes ideológicos de um novo papel de esposa e mãe. É claro, o papel de pai também se desenvolve, mas esse foi um papel vazio, outro nome para o ganha pão. Então, enquanto um meio generalizado de comunicação, as relações de poder de gênero foram construídas em todos os papéis desenvolvidos na (seletivamente racionalizada) sociedade moderna97. Deveria ser óbvio que essa reconstrução do subtexto de gênero da articulação institucional da sociedade capitalista moderna nos conjuntos de relações públicas e privadas não enfraquece a teoria social dualista que temos defendido. Ao invés, isso pressupõe o argumento de que o mundo da vida “reage de modo característico” para a emergência dos subsistemas econômico 95

Para uma visão ampla desse processo nos Estados Unidos ver Julie Mathaei, Na Economic History of Women in América (New York: Schoken Books: 1982); Degler, At Odds; Joan B. Landes, Women and the Public Sphere in the Age of France Revolution (Ithaca: Cornell University Press, 1988). 96 Landes, Women and the Public Sphere, Judith Shklar, Men and Citizens (Cambridge, England: Cambridge University Press, 1969). 97 Seria, no entanto, equivocado deduzir da perspectiva feminista na diferenciação discutida acima que a articulação institucional da sociedade civil e totalmente negativa. Ao contrário, o potencial cultural da modernidade entrou na articulação institucional, embora seletivamente. Portanto, o caráter ambivalente, refletido nos debates acerca das teorias feministas, da família moderna. A família "companheira" composta por um chefe de família homem, uma mulher dona de casa e seus filhos produz intimidade, privacidade e um novo foco na individualidade da criança. Isso constitui também um terreno ideológico e institucional no qual a mulher pode começar a desenvolver sua própria concepção de identidade (self) e o poder para afirmar o controle sobre seu corpo e sua vida. A restrição das mulheres à esfera domestica, no entanto, seguiu lado a lado com o bloqueio de seus direitos mais básicos e o status de individualidade autônoma, sua personalidade, e cidadania, que parecem incompatíveis com o papel de educadora. Pelo fim do século XIX, o desenvolvimento do sistema de salário de família (combatido por homens trabalhadores organizados), a exclusão da mulher dos movimentos sindicais e as "leis protetoras do trabalho" que excluíam mulheres dos trabalhos, colocaram as mulheres em uma situação de dependência que somente recentemente começou a ser seriamente questionada, ideológica e estruturalmente. A perspectiva feminista revela então o caráter duplo da família que é paralelo à dualidade das instituições públicas e privadas da sociedade civil, discutidas no cap. 9.

e do Estado por serem internamente diferenciadas nas esferas pública e privada da sociedade civil, em conjuntos de instituições orientadas para a transmissão cultural, integração social, socialização e individualização98. Em nossa análise da sociedade civil, a aquisição de direitos civis acionáveis, não importando o quão seletivos e problemáticos eles possam ser, institucionaliza as esferas pública e privada da sociedade civil e sujeita o Estado e a economia a suas normas. As normas em questão aqui, é claro, não são aquelas que Fraser tem em mente quanto ela se apropria da concepção do caráter multidirecional da influência entre das várias esferas públicas e privadas do capitalismo clássico. As normas de gênero patriarcais são dificilmente “garantias da liberdade” e então tem justificado a exclusão das mulheres daqueles direitos e normas que eram. Como implicação, as normas de gênero que formatam os papéis sociais chave mediando entre as instituições precisam se sujeitar à crítica e ser substituídas por identidades e papéis não-patriarcal. 5. É verdade também, é claro, para o caso dos sistemas do Estados de bem estar. Nos afirmamos que as normas da sociedade civil e política continuam a exercer influência na economia e no Estado através das instituições mediadoras das sociedades política e econômica. Os “receptores” para a influência societária nessas esferas são, no entanto, restritos em seu escopo e altamente seletivos a respeito de quais normas eles mobilizam ou reforçam. As normas de gênero patriarcal estão certamente entre o último caso, e elas estruturam os papéis e políticas colocadas no lugar por muitas reformas de modelo de bem estar. Desde que essas normas (já apoiadas por desigualdades no dinheiro e no poder) constituem as mulheres enquanto dependentes, não é surpresa que elas compreendam a maior parte daqueles que se tornam clientes. A questão chave hoje não é mais como, mas quais normas do mundo da vida serão decisivas99. A tese da colonização ressalta os problemas associados com a direção oposta das trocas: a penetração pelo meio do poder e do dinheiro (e pela organização formal) dentro da infraestrutura comunicativa da vida cotidiana. Isso tende a reificar e esgotar os recursos culturais não renováveis que são necessários para manter e criar identidades pessoais e coletivas. Isso inclui os recursos que são necessários para criar normas não patriarcais no mundo da vida e desenvolver associações solidárias e participação ativa que poderia ajudar a afirmar sua influência nos subsistemas. A análise esboçada, mas extremamente sugestiva, de Habermas das novas formas de juridificação utilizadas pelos Estados de bem estar ressalta as ambigüidades envolvidas no duplo processo de troca entre os sistemas e o mundo da vida. Por um lado, 98

Fraser admite tanto: "uma leitura sensitiva quanto ao gênero desses arranjos... reivindica os anseios de Habermas de que no capitalismo clássico a economia (oficial) não é toda poderosa, mas é, ao contrário, inscrita, em muitos aspectos importantes, dentro e sujeita às normas e sentidos da vida cotidiana" ("What's Critical about Critical Theory?", 118). 99 Fraser, What's Critical about Critical Theory?, 124.

juridificação no domínio da família envolve a extensão de princípios jurídicos fundamentais às mulheres e crianças que tinham antes negada sua personalidade jurídica de direito sob a doutrina de cobertura (ao menos em países anglo-americanos). Em outras palavras, princípios igualitários substituiram as normas patriarcais, sob a forma de direitos - direitos da criança contra os pais, da mulher contra o marido, etc. Esses novos direitos tendem a desmantelar a posição de pai de família em favor de uma distribuição mais equitativa de competências e de direitos entre os membros da família. A direção da influência aqui flui claramente da sociedade civil para o Estado, envolvendo a escolha de normas. São essas normas que são reforçadas na sociedade civil pelo Estado como o resultado final da feitura das leis. Por outro lado, se a estrutura da juridificação envolve os controles administrativo e judicial que não suplementam simplesmente os contextos socialmente integrados com instituições legais, mas substituem essas relações pela operação do meio da lei, como é sempre o caso dentro da lei do Estado de bem estar, então a emancipação na família é vinculada ao custo de um novo tipo de limite100. Especialistas (juízes ou terapeutas) se tornaram avaliadores dos novos direitos e conflitos acerca deles. Eles intervem com seus meios jurídicos ou administrativos nas relações sociais que se tornam formalizadas, dissociadas e reconstruídas enquanto casos individualizados a serem auxiliados jurídica ou administrativamente como qualquer outro setor envolvendo relações entre adversários. Julgamentos formais, individualizados e ainda universalizados, que não podem lidar com a complexidade dos contextos retiram o poder do cliente ao antecipar suas capacidades de participar ativamente em encontrar soluções para seus problemas. Esse é então o meio da lei em si mesma que viola as estruturas comunicativas da esfera que foi juridificada nesse sentido. Essa forma de juridificação vai além da codificação legal externa dos direitos. A penetração administrativa da sociedade civil acarreta antecipações ao desenvolvimento dos processos de resolução dos conflitos que são apropriados para estruturas de ação orientadas para o entendimento mútuo. Isso bloqueia a emergência dos processos discursivos na formação da vontade e nos procedimentos orientados para o consenso de negociação e tomada de decisão. É preciso também a abstração dos contextos, condições, relações e necessidades específicas de cada “caso” individual. É precisamente o efeito enfraquecedor deste tipo de tomada de decisão descontextualizada, individualizada, e formalista que as analistas feministas das recentes reformas do direito de família têm descrito e criticado em detalhes101.

100

Habermas, The Theory of Communicative Action, vol. 2, 369. Confere Lenore Weitzman, The Divorce Revolution (New York: Free Press, 1985); Debora L. Rhode, Justice and the Gender (Cambridge: Harvard University Press, 1989); Martha Fineman and Nancy Thomadsen, ed., At the Boundaries of Law (New York: Routledge, 1991). 101

O debate e a confusão sobre se é desejável buscar direitos nesse domínio tem permeado a discussão feminista. Acreditamos que a distinção entre a lei como instituição e a lei enquanto meio e a tese da colonização são úteis aqui. A teoria da sociedade civil construída junto a essa linhas permite conceituar um importante aspecto daquilo que faz dos novos “direitos” tão ambíguos. Nessa abordagem, se torna claro que a ambivalência da legislação cara a cara com os “direitos iguais” das feministas nesse domínio se baseia em um verdadeiro dilema: a aquisição de igualdade formal através de meios e técnicas que abstraem os contextos particulares, os diferentes níveis e bloqueiam a criação de relações sociais igualitárias dentro da sociedade civil é um ganho ambíguo, certamente. Em um contexto de desigualdade não apenas substantiva (o velho insight marxista), mas também de identidades frágeis e contestadas, esses meios gerarão novas dependências ou proverão a ressurgimento de velhas normas patriarcais como defesa contra o lado desagregador da penetração estatal. As formas de vida tradicionais patriarcais foram formalmente deslegitimadas pelos novos direitos para as mulheres e crianças, mas as relações entre clientes e especialistas que proliferaram na sociedade civil pelo meio da lei também não aboliram as desigualdades substantivas no poder ou na voz e nem facilitaram a criação de novos significados, identidades e normas. Como efeito, as novas relações verticais entre o sujeito legal e o juiz ou assistente social substituíram a interação comunicativa horizontal necessária para gerar novas formas de solidariedade, normas igualitárias e formas de vida que substituam as antigas. Conseqüentemente, os processos autônomos de tomada do poder coletivos e a criação de identidades não patriarcais na sociedade civil foram bloqueados102. Seria extremamente equivocado assumir, no entanto, que todas as reformas do Estado de bem estar tem a mesma lógica ou estrutura. Certamente reformas legais que asseguram a liberdade dos trabalhadores assalariados para assegurar sindicatos e barganhar coletivamente, que os protege de serem demitidos por essa ação coletiva, e que asseguram a representação sindical nos conselhos das empresas são diferentes das garantias de meios testados para pais solteiros que cuidam da casa e dos serviços sociais que “ensinam os clientes como funciona exatamente o cuidado infantil e responsabiliza os provedores de acordo com algum modelo pré102

Curiosamente, é precisamente a idéia de uma ameaça a infra-estrutura comunicativa da sociedade civil, articulada na teoria social dualista, que Fraser mais é contra. Ela contesta a idéia de que haja qualquer distinção categórica a ser feita entre as reformas do Estado de bem estar direcionadas para o local de trabalho assalariado e aquelas direcionadas para a dinâmica interna das famílias. Para ela, a ambivalência "empírica" da reforma nos últimos casos decorre do caráter patriarcal do sistema de bem estar e não do caráter inerentemente simbólico das instituições do mundo da vida. Certamente, ao rejeitar a distinção entre sistema e mundo da vida como androcêntrica, ela argumenta que não há base teórica para uma avaliação diferenciada dos dois tipos de reforma; confere Fraser "What is Critical about Critical Theory?", 122-123.

concebido”103. A diferença entre esses tipos de reforma não é totalmente capturada no que se refere ao gênero (ou, para esse fim, à raça) a que ela se direciona. Além disso, o fato de se declarar que as mulheres são objetos de um tipo de reforma, e os homens de outra, permite afirmar que são as próprias reformas que tornam alguém habilitado e outro debilitado. A teoria social dualista permite fazer exatamente isso. O antigo conjunto de reformas, diferentemente do último, não cria clientes isolados de uma burocracia estatal, mas ao invés dá poder aos indivíduos para agir juntos, coletivamente, para desenvolver novas solidariedades e para conquistar um maior equilíbrio nas relações de poder porque são direcionados a uma área que já é formalmente organizada104. Essas reformas criam “receptores” no subsistema econômico para a influência das normas e modos de ação da sociedade civil ao colocar procedimentos para a resolução discursiva de conflitos em seu lugar, dessa forma afirmando o controle do último sobre o primeiro sem diferencia-los. O segundo tipo de reformas faz o contrário: ele traz toda a força das agências administrativas dentro de áreas que não são e não devem ser formalmente organizadas. Isso ameaça a infraestrutura comunicativa e a autonomia da sociedade civil e prejudica as capacidades de “beneficiários” dos atores intrínsecas a eles mesmos, ou então prejudica sua capacidade de resolver conflitos discursivamente. E ainda, não se argumentaria porque a juridificação, regulação ou os benefícios materiais na sociedade civil por definição humilham ou enfraquecem aqueles a quem eles pretendem ajudar. A questão que surge não como a juridificação (a criação de novos direitos) ou a intervenção estatal (a garantia de novos benefícios) deveria ocorrer na sociedade civil, mas que tipo de direitos legais, relações administrativas ou benefícios monetários devem ser estabelecidos. Considerando que as mulheres são o alvo primário/ as beneficiarias do bem estar nesse domínio, certamente essa questão não é uma “distorção” das preocupações feministas105. A versão feminista da crítica ao Estado de bem estar precisa ter sua continuação reflexiva106. Então, a descolonização da sociedade civil, bem como 103

Parece ser a posição da própria Fraser quando ela aponta que há dois diferentes tipos de programas nos Estados de bem estar: um "masculino" almejado para o benefício dos chefes de família, e outro "feminino" orientado para "aspectos negativos do individualismo possessivo" para as "Falhas domésticas" (Fraser "What is Critical about Critical Theory?", 122-123). 104 Habermas, The Theory of Communicative Action, vol. 2, 35. 105 certamente, se ignorarmos esses assuntos, eles não desaparecerão, mas serão (e têm sido) reformulados de modo antitético ao feminismo. Pensamos na crítica neo-conservadora do Estado de bem estar, cujas reivindicações querem a remoção dos mecanismos integradores dos sistemas da sociedade civil enquanto ela é re-tradicionalizada. 106 Já há um interessante debate dentro do feminismo sobre esse assunto. A literatura é vasta; para entrar na discussão, ver Linda Gordon "What Does Welfare Regulate?" Social Research 55, n.4 (inverno de 1988): 609-630, e Frances Fox Piven e Richard A. Cloward, "Welfare Doesn't Shore Up Traditional Family Roles: A Reply to Linda Gordon" Social Research 55, n.4 (inverno de 1988) 631-648.

sua modernização (no sentido de substituir normas patriarcais sustentadas de forma convencional por normas comunicativamente conquistadas) são ambos projetos feministas. Assim, também o é o desenvolvimento de instituições que possam influenciar os sistemas econômico e administrativo. O primeiro projeto permitiria a juridificação apenas nas formas que fortalecem os atores na sociedade civil sem sujeita-los ao controle administrativo. O segundo dissolveria a dominação masculina nas instituições públicas e privadas. O terceiro acarretaria em reformas estruturais na sociedade política e econômica para torna-las receptivas e complementares às novas identidades e, novamente, às instituições igualitárias e democratizadas da sociedade civil 107.

Políticas dualistas: O exemplo do movimento feminista

Estamos agora em posição para apresentar nossa alternativa para a interpretação de Habermas da lógica dualista dos movimentos feministas contemporâneos. Nos argumentamos que os alvos primários dos novos movimentos sociais são as instituições da sociedade civil. Esses movimentos criam novas associações e novos públicos, tentam tornar as instituições existentes mais igualitárias, enriquecer e expandir os espaços públicos na sociedade política, as expandindo potencialmente e as suplementando com formas adicionais de participação cidadã. No caso do feminismo, o foco na derrubada das formas de vida baseadas na dominação masculina e a reinterpretação das identidades de gênero complementa as tentativas de assegurar a influência de identidades de gênero novas, mais igualitárias dentro dos espaços públicos das sociedades civil e política e atingir a inclusão política nesses termos108. Dada a estrutura institucional dualista das esferas pública e privada da sociedade civil moderna, não há razão para ver a primeira orientação como uma retirada. Interpretar as políticas defensivas do feminismo simplesmente 107

Por exemplo, uma vez que o trabalhador típico não é mais construído em torno da figura do homem chefe de família, mas como um homem ou uma mulher que também é responsável em alguma medida pelo cuidado com as crianças ou os idosos, a necessidade de revisar as estruturas do trabalho e do tempo de trabalho se torna óbvia, e o argumento da criação de creches no local de trabalho, cronogramas de trabalho flexíveis, e licença maternidade, por exemplo, se torna mais forte. Certamente não é casual que as feministas tenham começado a articular e lutar por essas reformas. Claramente, esse esforço precisa complementar as tentativas de transformar as hierarquias de gênero dentro das instituições da sociedade civil. 108 Para uma discussão recente sobre a necessidade de aplicar normas de justiça para a família em particular e para as relações de gênero em geral, ver Okin, Justice, Gender and the Family. É claro, há muitos movimentos novos que buscam a meta oposta; o movimento do direito à vida, por exemplo, tem como meta básica a retradicionalização das principais instituições da sociedade civil.

como uma reação à colonização, almejada apenas como decorrência da onda dos sistemas de ação formalmente organizados é um equivocado. Então, também, o tom pejorativo do rótulo “particularista” das preocupações com identidades, concepções de gênero, novas interpretações necessárias, e coisas do tipo. Esses não devem ser tomados como um sinal de retirada em comunidades organizadas acerca de categorias naturalistas da biologia e do sexo. Ao contrário, essas preocupações focam nos pressupostos normativos e na articulação institucional da sociedade civil. A intervenção feminista constitui um desafio às esferas pública e privada. Ela busca iniciar e influenciar os discursos, normas e identidades através da sociedade. Esses projetos são universalistas na medida em que desafiam as restrições e desigualdades nos processos comunicativos (públicos e privados) que geram normas, interpretam tradições e constroem identidades. Para ter certeza, o conteúdo das novas identidades que emergem desses desafios é particular. Como Touraine claramente demonstra nenhuma identidade, coletiva ou particular, pode ser universal. Mas algumas identidades envolvem um alto grau de auto-reflexão e autonomia do ego que outras, e é isso que distingue aquelas identidades de gênero particulares que são baseadas em normas sexistas hierárquicas e as que não são. Dada a óbvia permeabilidade das instituições políticas e econômicas pelas normas societárias, não há também razão para excluir a possibilidade de desenvolvimento de instituições democráticas e igualitárias capazes de influenciar e controlar a política e a economia. Os movimentos feministas contestam as normas e estruturas da dominação masculina impregnando a sociedade civil, mas elas também desafiam governos e políticas gerais em particular. A dimensão “ofensiva” das políticas feministas certamente objetiva o Estado e a economia, pressionando por inclusão em termos igualitários 109. Isso é “emancipador e universalista” como Habermas certamente afirma, mas universalismo a inclusão igualitária das mulheres no mundo do trabalho e da política envolve uma mudança nos padrões masculinos por trás de uma estrutura que se alega neutra nesses domínios. Uma vez que o “trabalhador típico” não é mais construído como o chefe de família masculino, a estrutura do tempo de trabalho, a duração do dia de trabalho, a natureza dos benefícios e o valor dos serviços precisam ser adequadamente revistos. E uma vez que “o cidadão responsável” não é mais interpretado como o soldado homem, a inclusão da mulher na política e na esfera do Estado precisa acarretar mudanças significativas nesses domínios. Em suma, as políticas ofensivas da “inclusão”, para serem realmente universalistas, acarretam reforma institucional. A lógica dualista das políticas feministas envolve então: um discurso comunicativo político de identidade e influencia que objetive a 109

Isso envolve uma ampla variedade de estratégias variando entre lobbies no congresso ou no poder executivo, políticas orientadas para direitos com foco nas cortes, e trabalho em partidos políticos, dependendo da estrutura de oportunidade política.

sociedade política e a sociedade civil, e uma política de inclusão estrategicamente racional, e a reforma almejada nas instituições políticas e econômicas. Certamente, quase todas as maiores análises do movimento feminista (nos Estados unidos e na Europa) mostraram a existência e a importância das políticas dualistas110. Um breve olhar na trajetória do movimento estadunidense ilustrará esse ponto. Os teóricos da mobilização de recursos e da oportunidade política argumentam que organização, redes, aliados e a presença de um ciclo de protestos, e uma atmosfera de reforma são centrais para a emergência e o sucesso dos movimentos. A disponibilidade desses fatores nos anos sessenta e setenta tem sido bem documentada pelas estudiosas da “segunda onda” do feminismo111. Então, também, tem impacto sobre as mulheres as mudanças estruturais que facilitaram sua entrada massiva no mercado de trabalho, na universidade e na política112. Mas nem a mudança estrutural nem o crescimento dentro do pertencimento e da especialização política das organizações de mulheres nem a existência de aliados poderosos bastaram para o aumento dos direitos das mulheres e para a agenda feminista 113. Os recursos, organizações e lideranças do movimento feminista existiram desde a virada do século [20]; o que tem se perdido foi o eleitorado massivo que 110

Para uma abordagem hermenêutica, da observação participante, ver Sara Evans, Personal Politics (New York: Random House, 1977). Para uma análise que se baseie na teoria da mobilização de recursos e ao mesmo tempo explica o papel da privação, ver Jo Freeman, The politics of Women's Liberation (New York: McKay, 1975). Esses ensaios no volume editado por Mary Fainsod Katzenstein e Carol McClurg Mueller, ed. Women's Movements of The United States and Europe (Philadelphia: Temple University Press, 1987), focam no papel da consciência no movimento feminista. A despeito de seus locci variados, todos esses trabalhos confirmam nossa tese de que uma lógica dualista sempre operou nos movimentos feministas. 111 Enquanto sua ênfase varia, muitas das discussões da origem da "segunda onda" do feminismo acentuam as mudanças estruturais que se seguiram e os desenvolvimentos tencnológicos que transformaram o papel da mulher no século vinte: os avanços na ciência médica que baixaram a taxa de nascimento e o tempo dedicado ao cuidado infantil, o aumento da instabilidade conjugal, os dispositivos de economia de trabalho que deram a mulher mais tempo para outras tarefas além do cuidado da casa, melhorias na oportunidade educacional, integração da mulher na força de trabalho, integração formal da mulher nas universidades, deslocamento da função feminina fora de casa devido a urbanização e a industrialização, e o aumento do investimento do governo na providência de serviços sociais. Em si mesmas, no entanto, as mudanças estruturais não podem explicar a gênese ou a lógica dos movimentos; ver Klein, Gender Politics, 1-32. 112 Klein, Gender Politics, 32-81. 113 Organizações, de recursos, liderança e base, nacionais, na forma de associações voluntárias de mulheres (que não eram originalmente feministas em sua ideologia, mas focavam assuntos femininos) foram construídas entre 1890 e 1925, e essas associações usaram seus recursos para promover os direitos das mulheres através dos anos sessenta. Como no caso do movimento das mulheres do século XIX, as feministas contemporâneas emergiram no contexto de outros movimentos sociais ativos. Além disso, houve uma vantagem com a orientação de reforma geral dos anos de Kennedy e Johnson. Em 1961, o presidente Kennedy estabeleceu uma Comissão Presidencial do Status da Mulher, a primeira desse tipo, e organizações estaduais do mesmo tipo surgiram em seguida. Ver Evans, Personal Politics, e Klein Gender Politics.

permitiu sustentar as demandas para os direitos das mulheres, isso é, a conscientização das mulheres114. Os estudiosos dos movimentos também incluem a emergência de uma consciência de grupo, de uma solidariedade e de um senso de descriminação injusta entre as pré-condições da ação coletiva política, embora a forma que essa ação toma varie com a estrutura do Estado e das instituições políticas (sindicatos, partidos) no país115. No caso das mulheres atingir a consciência dos grupos envolveu um desafio explícito às normas tradicionais que identificaram as mulheres principalmente em termos de papéis, de mãe e esposa, e justificaram desigualdades, exclusão e discriminação. Em suma, o entendimento tradicional do lugar da mulher e a identidade foram desafiados, e novas identidades interpretadas, antes que o desafio à discriminação sexual pudesse aparecer enquanto um assunto legitimo, e as mulheres pudessem ser mobilizadas em torno dele. Certamente, isso rapidamente se tornou tão evidente enquanto os setores chave do movimento feminista, que houve um problema profundo subjacente à inexplicável resistência aos direitos iguais: as identidades de gênero socialmente construídas convencionalmente preservaram o privilégio masculino e trabalharam contra a autonomia feminina e à auto-determinação da mulher. Então, antes de qualquer padrão de política ofensivo de reforma e inclusão se tornar fértil, a consciência feminista e a ideologia precisaram ser desenvolvidas por parte do movimento das mulheres e então transmitidas aos demais através das diferentes políticas de identidade, almejadas nas esferas públicas e privadas da sociedade civil116. Houve ainda enfoque precisamente naqueles arranjos institucionais e processos envolvidos na construção da identidade de gênero e o slogan “o pessoal é político”.

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Como Ethel Klein acertadamente coloca, "Este lobby tradicional não pode, por si só, conseguir passar por um amplo espectro de legislação dos direitos das mulheres. Os esforços de organizações especificamente feministas, tal como NOW, WEAL, NWPC, grupos feministas radicais, foram críticos para reunir as tropas e que formam o movimento social necessário para transformar a preocupação com as questões das mulheres em ação ". (Gender Politics, 5) Ver também Freeman, The Politics of Women's Liberation, 28-29; Joyce Gelb e Marian L. Palley, Women and Public Policies (Princeton: Princeton University Press, 1982), 18. 115 Para uma comparação das formas tomadas pelos movimentos das mulheres em vários países, ver Joyce Gelb "Social Movements 'Sucess': A Comparative Analysis of Feminism in the United States and the United Kingdom", em Katzenstein e Mueller, ed. Women's Moviment of the United States adn Europe, 267-289; "Equality and Autonomy: Feminist Politics in the United States and West Germany", ibid. 172-195; e Karen Beckwith "Response to Feminism in the Italian Parliament: Divorce, Abortion, and Sexual Violence Legislation" ibid., 153-171. 116 As principais exceções nesse aspecto são a Suíça e a Noruega. Aqui, a existência de partidos social-democratas poderosos constituiu uma "estrutura de oportunidade política" diferente daquela nos Estados Unidos, França e Itália. Muitos benefícios para as mulheres foram promulgados através de pressão dentro desses partidos e não através da atividade de movimentos feministas autônomos. No entanto, começaram debates nesses países, como acerca do desejo de uma sociedade civil mais autônoma e de um movimento feminista autônomo. Ver Sylvia Hewlett, A Lesser Life (New York: Willians Morrow, 1986), 341-383; Helga Hernes, Welfare State and Woman Power (Oslo: Norwegian University Press, 1987).

Não deveria ser surpresa então que o movimento feminista tenha adotado uma estratégia dualista, buscando atingir tanto o Estado (e economia) como a sociedade civil. Nem é surpreendente que a dualidade encontre expressão organizativa em dois ramos distintos e desconexos do movimento. O ramo “antigo” (mais velho quanto à idade das ativistas e temporalmente anterior) incluiu uma margem de grupos de interesse focados na inclusão política e econômica e tentando exercer influência através dos sistemas político e legal para lutar contra a discriminação e atingir direitos iguais 117. O ramo “novo”, emergido da nova esquerda e do movimento pelos direitos civis, formado em grupos autônomos de base, vagamente interligados, buscando atingir as formas de dominação masculina dentro das esferas públicas e privadas da sociedade civil. Esses foram os grupos que articularam a grande mobilização dos assuntos “de gênero” do aborto, os contraceptivos, do estupro, da violência contra a mulher e outros desse tipo. Seu enfoque na identidade, auto-ajuda, levante de consciência, e proselitismo através da mídia subterrânea, suas próprias publicações alternativas e as universidades, foi almejado pela consciência feminista se espalhando e conquistando mudanças institucionais nas relações sociais baseadas nas normas de gênero tradicionais e desiguais da sociedade civil118. Pelo fim dos anos sessenta, os dois ramos do movimento começaram a se aproximar. As “insiders” da política tomaram muitos assuntos articulados pelas feministas “de base”, enquanto as últimas passaram a entrar em massa nas ramificações locais das organizações políticas nacionais119. Em meados dos anos setenta, “as organizações do movimento feminista tomaram todas as vias políticas para alterar o governo. Elas abordaram partidos políticos, o congresso, as cortes e o ramo executivo; elas usaram as emendas constitucionais, os lobbies legislativos e os protestos políticos”120. Ao mesmo tempo, as organizações que tinham originalmente 117

Confere Freeman, The Politics of Women's Liberation, 48-50; Klein, Gender Politics, 931; Gelb e Palley, Women and Public Policies, 24-61; Ann N. Costain e W. Douglas Costain, "Strategy and Tatics of the Women's Movement in the United States; The Role of Political Parties" in Katzenstein e Mueller, ed., The Women's Movements of United States and Western Europe, 196-214. 118 Para uma explicação da emergência desse ramo do movimento feminista ver Evans, Personal Politics. 119 Enquanto o antigo primeiro evitou os esforços dramáticos de ação direta dos últimos grupos, e o segundo tinha pouco interesse em esforços de lobby dos insiders tal como o NOW [National Organization for Women - seria a maior organização feminista estadunidense, nota do tradutor.], a distinção nítida entre os defensores dos direitos mulheres ("as feministas liberais") e os grupos de libertação das mulheres ("as feministas radicais"), desapareceu depois de 1968. O NOW envolveu-se no patrocínio de ações de protesto de massa, e quando um número considerável de militantes feministas se juntou setores locais, elas também abraçaram muitas das questões das radicais de antes (como o aborto), bem como a sua ideologia participativa e seu foco na auto-determinação e autonomia, juntamente com a igualdade de direitos. Ao mesmo tempo, em virtude de adesão a organizações como a NOW, as ativistas do movimento aprenderam a importância da política de influência. Para uma análise detalhada dessa trajetória no feminismo norte-americano, ver Costain e Costain, “Strategy and Tatics of the Women‟s Movement in the United States” e Gelb e Palley, Women and Public Policies. 120 Costain e Costain, “Strategy and Tatics of the Women‟s Movement in the United States”, 201.

restringido sua atividade às táticas padrão de pressão política passaram a tomar seus métodos de protesto e persuasão iniciados pelos grupos mais radicais121. Como resultado, a despeito de sua diversidade de organização, pode-se falar em um movimento feminista no singular, composto por varias associações e organizações engajadas em uma ampla margem de estratégias compartilhando uma consciência feminista122. Não há dúvida de que a estratégia dualista do movimento feminista contemporâneo tenha tido sucesso nos termos institucionais, políticos e culturais. Em 1972 apenas, o congresso estadunidense aprovou mais legislação para o aumento do direito das mulheres do que as dez legislaturas anteriores juntas123. As organizações do movimento feminista ajudaram a disparar uma onda de ações legislativas nos assuntos feministas inigualadas na história dos Estados Unidos124. Entre 1970 e 1980, o acesso das mulheres para influenciar as elites políticas aumentou drasticamente, e mais mulheres foram eleitas e apontadas para o serviço público mais do nunca da história estadunidense125. Junto a isso, as cortes se tornaram um alvo importante e produtivo dos movimentos em ambas as suas formas e em ambas as suas frentes. A decisão de demarcação no caso Reed vs. Reed em 1971 iniciou uma séria de casos utilizando a clausula de igual proteção da constituição que retira o estatuto sexualmente discriminatório do mercado de trabalho. A decisão no caso Roe vs. Wade em 1973 usou o direito de privacidade para tornar o aborto legal, registrando e promovendo assim mudanças nas relações de gênero em

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Conforme colocou Wilma Scott Heide, líder do NOW em 1972 "O NOW tem trabalhado dentro e ao longo do sistema para iniciar a transformação e implantar os direitos das mulheres assim como leis e ordens executivas nos contratos públicos... Nossa tática e estratégia inclui cartas solenes, interrupção de reuniões e comitês do Senado, demonstrações e consultas, chamados para coordenar as Greves por Igualdade de 26 de Agosto, retórica e programas positivos, desenvolvimento da consciência fraternal, experiências com novas formas de organização e estilos de liderança" (citado em Costain e Costain, “Strategy and Tatics of the Women‟s Movement in the United States”, 200). 122 Hoje o movimento feminista é composto por, pelo menos, cinco grupos: organizações de filiação de massas; organizações feministas especializadas, incluindo grupos de pesquisa e litígio; lobbies profissionais; grupos de assuntos únicos; grupos tradicionais de mulheres; e um setor de campanhas eleitorais que inclui PAC's e grupos operando dentro do esquema do partido Democrata. Associações feministas continuam a florescer na sociedade civil e organização uma gama de jornais, revistas, boletins, ações diretas, abrigos para mulheres agredidas, creches, grupos de crescimento de consciência, e afins. A despeito do declínio aparente das ações de massa espetaculares, o movimento feminista continua buscando atingir a esfera pública para influenciar a consciência e alterar as normas de gênero. A propagação surpreendente de estudos sobre mulheres nas universidade e escolas de direito é também bastante notável. Ver Gelb e Palley, Women and Public Policies, 26-27; Jo Freeman "Whom You Know vs. Whom You Represent: Feminist Influence in the Democratic and Republican Parties" in Katzenstein e Mueller, ed. Women's Movements of the United States and Europe, 215-246. 123 Gelb e Palley, Women and Public Policies, 26-27; Freeman "Whom You Know”; Klein, Gender Politics, 29-33. 124 Costain e Costain, “Strategy and Tatics of the Women‟s Movement in the United States”, 203. 125 Gelb e Palley, Women and Public Policies, 26-27; Freeman "Whom You Know”.

geral, e em uma dimensão chave da sociedade civil, a família em particular 126. Como muitos analistas sublinharam, no entanto, esses sucessos legais e políticos tiveram seu pré-requisito e condição de sucesso no sentido cultural – a propagação anterior da consciência feminista127. O ponto aqui não o óbvio, que o movimento de massa pode ser estrategicamente útil para novos grupos buscando poder e influência, mas ao invés disso, que sem as políticas de identidade almejadas para as normas, relações sociais, arranjos institucionais e práticas interpretadas na sociedade civil, e sem as políticas de influência almejadas na sociedade política, o sucesso seria indesejado e limitado128. A propagação da consciência feminista foi documentada. O Virginia Slims Poll de 1980 descobriu que 64% das mulheres eram favoráveis à mudança e ao fortalecimento do status da mulher, contra 40% em 1970 129. Além disso, em 1980, 60% da população acreditava que a sociedade, e não a natureza, levou a mulher à preferência pelo cuidado da casa ao invés do trabalho fora130. Junto a isso, 51% preferiam o casamento no qual o marido e a mulher dividem as responsabilidades da casa, e 56% preferiam a responsabilidade compartilhada do cuidado das crianças131. Essas estatísticas indicam mudanças culturais que vão além da aceitação de direitos iguais e a inclusão das mulheres na esfera pública política, embora a última também seja aceita, pelo menos em princípio, para a maioria da população132.

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Reed vs. Reed, 404 U.S. 71 (1971); Roe vs. Wade, 410 U.S. 113 (1973). Os sucessos foram limitados ou seguidos por retomadas significativas. No caso da discriminação sexual, as feministas falharam em tornar o sexo incluído como "classificação suspeita" sob a décima quarta emenda ou garantir passagem do ERA [Equal Rights Movement – movimento da década de setenta que lutava por direitos iguais e, sobretudo, iguais oportunidades econômicas para as mulheres, nota do tradutor]. No caso do aborto, as cortes e a legislação do caso Roe vs. Wade fizeram corte nos direitos de escolha das mulheres, e um movimento anti-aborto surgiu. Além disso, dentro do movimento feminista, os debates têm surgido em torno de cada "sucesso" como os limites da reforma legal no sentido da igualdade de direitos que se fizeram sentir. Nada disso elimina o nosso ponto mais geral. 127 Não estamos argumentando que as feministas ou as mulheres iniciaram as reformas mencionadas acima. Em muitas instâncias, os processos de reforma foram iniciados por outros grupos de interesse por razões que não tinha nada a ver com o interesse das mulheres ou as preocupações feministas. A instituição do divórcio sem traição na Califórnia e mesmo o início da reforma das leis do aborto foram casos em questão. Dessa forma, a dinâmica dessas reformas foi informada pelo discurso feminista, e logo após, pelas ativistas feministas. Ver Weitzman, The Divorce Revolution, e Kristin Luker, Abortion and the Politics of Motherhood (Berkeley: University of California Press, 1984). 128 Desde que as mulheres passaram ser percebidas como indivíduos, as políticas dos direitos iguais não teve chance de sucesso. E desde que a estrutura patriarcal da esfera doméstica, e sua influência negativa no outros domínios da sociedade, foi tematizada e desafiada, os direitos iguais ou equivalentes nunca puderam ser iguais para mulheres. 129 Gelb e Palley, Women and Public Policies, 45. 130 Klein, Gender Politics, 92. 131 Ibid. 132 As coisas parecem diferentes na prática, no entanto. Para uma discussão da divisão de gênero do trabalho doméstico, e das dificuldades que são imposta às mulheres ver Gerson, Hard Choice. Para estatísticas na continuidade da brecha salarial entre homens e mulheres e a feminização da pobreza nos Estados Unidos ver Hewlett, A Lesser Life, 51-138.

Uma política de influência informada pela nova concepção da identidade de gênero torna então possível voltar o acesso para as elites políticas para as medidas necessárias para a conquista dos objetivos feministas. E então o que era real para os Estados Unidos se tornou real para a Itália, Alemanha, Inglaterra e para a França133. Para citar um exemplo, Jane Jenson tem mostrado que a inserção dessas necessidades e interesses da mulher na agenda do governo na França se tornou possível apenas depois do movimento feminista tomar como objetivo fundamental a especificação de uma nova identidade coletiva. Ela argumenta que “a contribuição fundamental para o movimento feminista moderno foi a habilidade de alterar o „universo do discurso político‟ e então postular metas de maneiras bem diferentes das mobilizações de mulheres anteriores134. De acordo com Jenson, o movimento feminista mudou o universo do discurso político que as excluía, ao criar uma nova identidade coletiva para as mulheres, e ao atingir as elites políticas e leva-las a aceitar essa identidade. Jenson também demonstra que as reformas vindas de cima que expandiram os direitos das mulheres, na indiferença de um movimento feminista, não implicam uma mudança no universo do discurso político ou uma alteração da identidade da mulher. Depois da segunda guerra mundial, as mulheres na França adquiriram o direito ao voto, e um acesso mais liberal ao contraceptivo, mas o universo tradicional do discurso que define a mulher enquanto esposa, como apêndices dos homens, e como mães não foi alterado por essas reformas 135. Não o foi até que o movimento feminista entrou no espaço cultural aberto pela nova esquerda, em 1968, e começou a se aplicar aos temas das mulheres, como a crítica da vida cotidiana e do direito à igualdade e autonomia, e redefiniu a identidade coletiva das mulheres em termos feministas, foi então que o universo tradicional do discurso político começou a se alterar e as reformas que foram feministas quanto ao objetivo e impacto ocorreram.

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Katzenstein e Mueller, ed. Women’s Movements of the United States and Europe,

passim. 134

Jane Jenson, "Changing Discourse, Changing Agendas: Political Rights and Reproductive Policies in France" in Katezenstein e Mueller, ed., Women's Movements of the United States and Europe, 64-65. Por "universo do discurso político" Jenson quer dizer o conjunto de crenças acerca de como a política deve conduzida, as fronteiras da discussão política, e os tipos de conflito solucionáveis através dos processos políticos. O universo do discurso político funciona como uma espécie de vígia para a ação política, escolhendo ou proibindo a margem de ação dos atores, os assuntos, as alternativas de governo, as estratégias de aliança e as identidades coletivas disponíveis para a conquista de mudanças. 135 Ibid., 68-80. As mulheres ganharam direito ao voto na França em 1945 como uma recompensa por terem servido na resistência, ao mesmo tempo em que o movimento feminista era moribundo. A Loi Neuwirth de 1968 legalizou o anti-concepcional para mulheres casadas, mas também restringiu a publicidade e o uso para mulheres solteiras. A intenção primária da lei foi ajudar as famílias a controlarem sua fertilidade para encontrarem as metas familiares do bem estar material e do cuidado infantil, não para dar as mulheres uma escolha sobre como ou não ter filhos. As mulheres ainda eram definidas dentro de um esquema de referência familiar.

Isso afirma que o enfoque de Jenson no debate acerca da legalização do aborto é para demonstrar o impacto do movimento feminista no universo do discurso. Certamente muitas estudiosas do feminismo concordam que o que é novo e específico ao movimento feminista contemporâneo em todo o Ocidente, o que trouxe as mulheres para dentro da arena pública em massa, foram os temas de grandes mobilizações, o aborto, a violência contra a mulher (estupro, espancamento de esposas), coerção sexual, assédio sexual e a criação de estereótipos136. As feministas exigiam que os padrões de justiça fossem aplicados em todas as esferas da sociedade civil, incluindo a família. Depois dos direitos formais de cidadania serem garantidos para as mulheres, e enquanto os esforços para ganhar direitos políticos iguais, e terminar a discriminação econômica nos pagamentos e oportunidades, e combater a discriminação sexual e a segmentação da força de trabalho, todo movimento feminista moderno tem se mobilizado principalmente em torno desses assuntos “privados”, “não políticos” e “da sociedade civil” 137. E todo movimento feminista moderno tem explicitamente tentado redesenhar o universo do discurso de forma que as vozes das mulheres possam ser ouvidas, as preocupações das mulheres percebidas e as identidades das mulheres reconstruídas, e as concepções tradicionais dos papéis, corpos e identidades das mulheres, e dominação dos homens sobre eles, interrompida. Para ser feminista nas características, nos novos direitos e nas reformas institucionais foi preciso refletir as mudanças nas identidades de gênero e nas aspirações femininas. A questão do aborto englobou todas estas preocupações. Rapidamente se tornou claro que esta questão lançou o desafio ao universo tradicional do discurso, porque significava uma mudança fundamental na definição do estatuto das mulheres138. O tema da liberdade de escolha e à procura de "controle sobre nossos próprios corpos", expressa mais do que um desejo de igualdade de direitos. Eles simbolizavam a demanda por autonomia em relação aos processos de auto-formação, à autodeterminação e à integridade corporal, em suma, o direito das mulheres a decidir por si o que elas querem ser, inclusive como e quando elas optam por ser mães. Considerado, juntamente com a tematização da violência contra as mulheres, as exigências de leis legalizando o aborto e a criminalização da violência conjugal e do estupro 136

Ibid., 80-86. Gelb e Palley, Women and Public Policies, 30. As feministas também desafiaram as concepções masculinas dos padrões de justiça. 138 O debate do aborto também desafiou a concepção masculina de direitos, ou, ao invés, da pessoa a que os direitos se aplicam. Não deveria surpreender que esse debate tenha colocado um desafio fundamental para a concepção de direitos, desde que tem sido notoriamente difícil conceber um direito de aborto junto às linhas tradicionais do direito de alguém quanto a propriedade de seu corpo quanto há nesse corpo outra pessoa em potencial que claramente "não pertence" a propriedade de alguém. Mas em um modelo de direitos não possessivo, individualista, se torna claro que a pessoa legal, subjetividade moral e a identidade particular da mulher está em questão, e que esses pesos do interesse estatal na vida do feto em seu primeiro trimestre. 137

conjugal, tendo como alvo uma esfera da sociedade civil que, sob o pretexto de "privacidade", já havia sido removido do escrutínio. Por um lado, a privacidade como autonomia estava sendo reivindicada por e para mulheres, por outro lado, a noção de que uma instituição social pode ser privada, no sentido de ser imune aos princípios da justiça foi seriamente desafiada139. Os desafios para a identidade tradicional e papéis atribuídos às mulheres articulados nos debates em torno da questão do aborto influenciaram e alteraram o universo do discurso político: "pela primeira vez, mulheres sozinhas e fora de um quadro de referência da família tornaram-se objetos do discurso político ... o novo discurso sobre a reforma do aborto passou a simbolizar nada menos do que uma mudança no status das mulheres e sua relação com o próprio corpo e com o Estado 140. Esse discurso envolvia uma concepção da mulher como, ao mesmo tempo, autônoma e diferenciada quanto ao gênero (ou seja, com a sua situação específica), como diferente e ainda digna de igual respeito e consideração141. É por isso que a questão do aborto não pode ser interpretada em termos de política de inclusão ao longo das linhas de "movimentos de emancipação burguesa" que trazem os excluídos para a política ou a economia, em termos de igualdade. Pelo contrário, é uma questão ligada à dimensão do "novo" do movimento feminista, pois representa um desafio fundamental para as identidades de gênero tradicionais, as concepções tradicionais de família, ao poder patriarcal, e para a concepção liberal da norma pública e privada esferas da sociedade civil. É um exemplo paradigmático da lógica dual do movimento feminista.

Sociedade Civil e política dualista: um sumário teórico

Argumentamos que a tradução das dimensões relevantes da sociedade civil e do mundo da vida permite trazer sentido à dupla meta política dos novos movimentos sociais: a aquisição de influência através de públicos associações e organizações na sociedade política, e a institucionalização de seus ganhos 139

Confere Anita Allen, Uneasy Acess: Privacy for Women in a Free Society (Totowa, NJ: Rowman e Littlefield, 1988). 140 Jenson, "Changing Discourses, Changing Agendas", 82-83. Para uma análise instigante do discurso feminista sobre o aborto e seu conflito com um discurso tradicionalista, ver Luker, Abortion and th Politics of Motherhood. 141 Por insistir que a mulher seja reconhecida como individuo, pessoa e cidadã enquanto mulher, o movimento feminista contemporâneo uniu os valores do universalismo, a pluralidade e a diferença. Como implicação, o conceito de igualdade antes da lei em si mesma foi se alterando, porque não podia mais significar que direitos iguais e a não discriminação se aplicam apenas para aqueles que estão situados no mesmo modo. Isso porque homens e mulheres não podem ser situados do mesmo modo quando a questão do aborto ou dos direitos reprodutivos vem a tona.

(novas identidades, formas associativas autônomas igualitárias, instituições democráticas) dentro do mundo da vida. Tentamos explicar a lógica de organização dualista dos novos movimentos nesses termos Há, no entanto, outra interpretação possível da lógica dualista da ação coletiva contemporânea. É possível tentar explicar nos termos de um modelo de estágios (ou um ciclo de vida) no qual todos os movimentos sociais se movem das formas não institucionais, de protesto de ação de massas para a rotina de grupos de interesse ou partidos institucionalizados142. Eles começam na forma de um punhado de redes vagas de associações locais e movimentos de base, como distinção mínima entre “líderes” e seguidores, entre membros e não membros. Nesse estágio inicial os atores coletivos fazem demandas difusas, pautadas em valores e não negociáveis, que são articuladas nos protestos massivos. Esse tipo de ação coletiva é específico do processo de formação da identidade dos novos atores coletivos. A primeira meta desses novos movimentos é formar uma espécie de sujeito que pode se tornar o ator coletivo que participará das negociações e trocas políticas e então o portador de ganhos e perdas. “Há uma categoria de ação que pode ser observada nos conflitos sociais, que pode ser compreendida apenas se for perguntado a eles não quais ganhos e perdas eles irão gerar para os atores, mas como eles gerarão ou não solidariedade. Essas são ações que conotam processos de formação de identidade”.143 Assim, o período formativo dos movimentos sociais, a ação expressiva e a participação direta são apropriados para a meta de articular uma nova identidade coletiva, e a política de influência busca atingir a esfera pública com o propósito de ganhar reconhecimento para o novo ator coletivo. O segundo estágio de atividade de um movimento social envolve a rotinização, inclusão e finalmente a institucionalização144. Apenas os novos atores coletivos bem sucedidos na formação de uma identidade e no reconhecimento político, mudam da ação expressiva para a instrumental/estratégica. A organização formal substitui as redes vagas, as regras de pertencimento e os líderes emergem, e a representação substitui as formas diretas de participação. A lógica da ação coletiva nesse estágio é estruturada pela política de inclusão; o sucesso significa que os outsiders se 142

Confere Jenkins e Eckert, "Channeling Black Insurgency" ou Pizzorno, "Political Exchange and Collective Identity in Industrial Conflict", 293. 143 Pizzorno, "Political Exchange and Collective Identity in Industrial Conflict", 293. 144 Para uma análise do "modelo de estágios" do movimento feminista ver Costain e Costain, "Strategy and Tatics of the Women's Movement in the United States". Ver também Claus Offe "Reflections on the Institutional Self-Transformation of Movement Politics: A tentative Stage Model", in Russel Dalton e Manfred Küchler, ed. Challenging the Political Order: New Social and Political Movements in Western Democracies (Oxford: Oxford University Press, 1990). Offe apresenta uma análise interessante das contradições diante dos novos movimentos sociais em vários estágios de seu desenvolvimento. Ele também argumenta, no entanto, que mesmo no último estágio, da institucionalização, haverá boas razões para esses movimentos manterem aspectos importantes de uma política "defensiva" orientada para a sociedade civil.

tornaram insiders e que há um governo expandido. A mudança na racionalidade da ação coletiva da expressiva para a instrumental, e a mudança na estrutura organizativa da formal para a informal, são compreendidos enquanto um processo de aprendizado envolvendo uma adaptação racional das metas às estruturas políticas. A institucionalização plena envolveria o reconhecimento do grupo (desmobilizado) representado pelos novos insiders políticos enquanto interesses especiais legítimos que são reivindicados se tornarem passíveis de negociação e troca política. O sucesso envolvendo a inclusão de “representantes” na política normal, envolvendo competição partidária, participação em eleições, representação parlamentar, formação de lobbies ou grupos de interesse, e eventualmente ocupar cargos no governo 145. A teoria dos estágios explica a lógica dual dos movimentos nos termos de um modelo de desenvolvimento linear. Além disso, isso parece prover uma resposta tranqüilizante para o dilema Michelsiano que aparenta encarar todos os movimentos em algum momento – o medo de que qualquer movimento no sentido de uma organização formal, inclusão ou institucionalização ira impedir as metas do movimento e ameaçar a existência continua da forma de ação coletiva do movimento. Na medida em que estes processos envolvem cooptação, dês-radicalização, a profissionalização, a burocratização e centralização, o "sucesso" em termos institucionais de sinais de inclusão aponta o final do movimento e a diluição de objetivos (a famosa lei de ferro da oligarquia). Desde que, em sua forma original, esse dilema fluiu logicamente da retórica revolucionária do movimento dos trabalhadores que foi abandonada em seqüência, os teóricos do clico de vida podem dispensa-lo como utópico, não-realista ou mesmo perigoso. Quando fundamentalistas dos movimentos articulam seus medos hoje, na ausência de qualquer reivindicação para se engajar na política revolucionária, eles podem ser acusados de uma indisposição ou incapacidade para o aprendizado. Em suma, se a trajetória normal da ação coletiva é uma mudança da ação expressiva para a instrumental, uma adaptação às limitações do sistema político, e da inclusão política e uma reforma iniciada pelos insiders, então o dilema michelsiano desaparece. Enquanto o modelo dos estágios certamente captura aspectos importantes da dinâmica do desenvolvimento de um movimento social, ele não é capaz de explicar muitos dos aspectos que consideramos significativos nos novos movimentos sociais. Com certeza nossa breve discussão acerca da trajetória do movimento feminista estadunidense desmente muitos de seus pressupostos. Esse movimento possui uma lógica organizacional dualista desde seu início. Enquanto havia a rotinização e institucionalização, ele nunca exclui e nem substituiu a ação coletiva de massa, as associações de base, as 145

Offe "Reflections on the Institutional Self-Transformation of Movement Politics: A tentative Stage Model", 15.

organizações autônomas de auto-ajuda, ou as políticas orientadas para a identidade146. Ao invés de confirmar o modelo linear, o movimento feminista retornava e seguia entre a ação das massas e a pressão política, dependendo das oportunidades políticas disponíveis e dos assuntos em questão. Nem o aprendizado por parte dos ativistas implicou a passagem unidirecional da racionalidade expressiva para a instrumental. Nossa discussão acerca do desenvolvimento organizacional do movimento demonstra que o aprendizado ocorreu nos dois lados e nas duas direções – os políticos insiders tomaram os assuntos e os métodos dos ativistas de base enquanto muitos dos ativistas entraram em organizações formais. Isso não é afirmar que as duas faces do movimento se misturaram, mas sim que a divisão do trabalho entre os dois segmentos mudou ao longo do tempo. Finalmente, as noções de que o alvo do movimento feminista é principalmente o sistema político (e, através dele, a economia) e que o sucesso pode ser interpretado em termos de inclusão, reforma do alto, ou benefícios está equivocada. A luta pelo aborto é mais uma vez um exemplo. As organizações de interesse que buscaram atingir as cortes (nos Estados Unidos) ou os partidos políticos e os parlamentos (na Europa) foram necessárias para conquistar maiores mudanças no direito ao aborto. Mas os desafios às definições tradicionalistas do papel, da identidade e do lugar da mulher repousam no centro da discussão, como opositores novamente mobilizados do direito do aborto. Com certeza, tentativas de alterar as normas, papéis e identidades das mulheres dentro das esferas pública e privada da sociedade civil têm gerado mais resistência (e até mesmo movimentos contrários) que reivindicações por igualdade formal no local de trabalho ou inclusão na esfera política. Os êxitos do movimento pró-vida na mobilização de eleitores e diluindo o direito ao aborto, juntamente com a incapacidade de ganhar a aprovação Emenda de Igualdade de Direitos devem ser entendidos desse modo147. Assim, a reforma legal e a inclusão política dificilmente bastam para definir ou assegurar o sucesso. É claro que política e mobilização de base permanecem na agenda148.

146

O vasto aumento das pressões e políticas eleitorais por organizações profissionais em 1980 era um sinal da institucionalização do movimento das mulheres nos Estados Unidos. No entanto, a força contínua das demonstrações pró-escolha e dos grupos de auto-ajuda indicam que políticas de orientação identitária ainda estão em demasia na agenda. 147 Jane Mansbridge, Why We Lost the ERA (Chicago: University of Chicago Press, 1986); Luker, Abortion and the Politics of Motherhood. A principal oposição ao ERA não vinha dos fatores econômicos, mas de um medo de que o papel da mulher na família fosse alterado. 148 As apostas do movimento feminista repousam todas na institucionalização de uma interpretação pós-convencional da identidade de gênero e de relações de gênero não hierárquicas na sociedade civil. Certamente as mulheres foram "bem sucedidas" em ganhar reconhecimento simplesmente como outro interesse especial "particular e diferente" como outro lobby ou eleitorado dos partidos políticos, a crença universal e transformadora dos "assuntos das mulheres" desapareceria dessa perspectiva. Por outro lado, as feministas foram

É uma virtude do modelo de estágios chamar a atenção para o fato de que os movimentos sociais buscam atingir a sociedade civil assim como a sociedade política. Ele se equivoca, no entanto, na medida em que apresenta estas orientações e descreve a trajetória normal da ação coletiva como um movimento linear de civil para a sociedade política. Há dois problemas com o modelo. Primeiro ele trabalha com uma concepção demasiado simples de aprendizado. Os atores coletivos são levados a aprender apenas junto à dimensão cognitiva instrumental. Isto é, seu aprendizado é definido como um reconhecimento gradual de que as políticas de identidade, simbólicas, não podem ajudar a conquistar suas metas, e o resultado desse aprendizado é uma mudança para uma organização disciplinar hierárquica e ao modelo de ação estratégico-instrumental. Essa perspectiva (que é típica dos partidos políticos) tende a desconsiderar até mesmo a importância da manutenção da identidade e da solidariedade para a estratégia de ação de longo prazo. Isso implica não apenas uma falha de reflexão acerca das bases dos movimentos sociais, mas também a noção de os movimentos não concentrarem simultaneamente os requisitos estratégicos e a construção da identidade. A afirmação tácita dessa abordagem é que as identidades não podem se tornar mais racionais. Conseqüentemente, a construção da identidade não pode se mover de um nível de reflexão que incorpore a tensão entre identidade e estratégia. A história dos movimentos que tem conscientemente combinado as políticas de identidade e a estratégia não pode ser esquecida pela reivindicação de que no fim essas combinações não poderão obter o “sucesso”. Opondo essa visão, nós acreditamos que as evidências empíricas são muito mais ambíguas com respeito ao passado e ao presente dos movimentos, e que o critério de sucesso precisa ser redefinido. Por exemplo, as conquistas e continuidades dos movimentos da classe trabalhadora têm sido em parte devido à sua capacidade de combinar as preocupações políticas e culturais 149. A novidade dos movimentos, a este respeito não está tanto no dualismo como na sua tematização mais enfática desse dualismo. Assim, a recusa da instrumentalização político-cultural e da construção da identidade em prol de uma concepção estreita de sucesso político não deve ser interpretada simplesmente como uma incapacidade aprender. Pelo contrário, pode-se interpretar a resistência à "auto-racionalização" por parte de muitos atores coletivos contemporâneos como resultado de uma percepção sobre uma série de problemas específicos da sociedade civil contemporânea que não podem ser corrigidos pelos meios políticos "normais". Se os instrumentos convencionais de intervenção do governo não são adequados aos novos interpretadas apenas como uma luta por inclusão e igualdade de direitos, os assuntos da identidade de gênero, integridade do corpo, a natureza da família e as estruturas das instituições e relações sociais dentro das esferas públicas e privadas da sociedade civil foram ocultadas. 149 Confere E. P. Thompson, The Making of the English Working Class (New York: Random House, 1963).

problemas surgidos nessas áreas, como relações de família e gênero, práticas de educação e socialização, e biotecnologia, então a ação coletiva autônoma, focada na tomada de consciência, na auto-ajuda e no fortalecimento local envolve de fato um aprendizado. Nas áreas em que identidades, significados convencionais, normas institucionalizadas, padrões de estilo de vida, consumo e práticas de socialização devem ser alteradas para produzir soluções para os problemas sociais, a aprendizagem ao longo da dimensão moral-prática é obrigatório. A política de identidade auto-reflexiva tem aqui seu local apropriado150. O segundo erro foi quanto a certa pobreza política conceitual do modelo. O modelo de estágio acrescenta a política de identidade à política de inclusão e de reforma articulada pela perspectiva da teoria da mobilização de recursos, ainda que como uma fase transitória. Se os dois maiores terrenos da política dos movimentos são a sociedade civil e a sociedade política, então as políticas de identidade e inclusão não podem ser compreendidas de forma análoga, pois elas descrevem a emergência dos atores de cada domínio. As políticas de identidade constituem os atores da sociedade civil; as políticas de inclusão, após as transformações necessárias na organização e na orientação desses atores, os estabelece como membros da sociedade política. As políticas de reforma, finalmente, envolvem a atividade estratégica das organizações e partidos políticos na geração de um governo de Estado. O que se perde é um conceito de relação entre os atores coletivos na sociedade civil e aqueles na sociedade política. Isso ocorre porque no modelo de estágios o anterior desaparece efetivamente com a emergência do último. É assumido então que a sociedade civil, diferentemente da sociedade política, pode agir apenas sobre si mesma. Seguindo os passos da teoria da democracia das elites, o modelo rompe assim com o vínculo entre sociedade civil e política, entre atores civis e políticos. Não há espaço para política de influência por parte dos atores da sociedade civil almejados na sociedade política. Mas apenas a sociedade política é capaz de agir sobre a administração do Estado, então são os atores da sociedade civil aqueles capazes de trazer o discurso aos atores da sociedade política sob sua influência. Essa política de influência, para a qual há uma grande oferta de evidencias empíricas (conforme demonstramos no caso do movimento feminista), é o elemento chave que se perde em muitos paradigmas contemporâneos da análise dos movimentos sociais. Com essa concepção em mente, nos podemos rever o dilema michelsiano que o modelo dos estágios transforma em seu paradigma positivo. Para nós, as transformações dos movimentos em partidos políticos burocráticos ou em lobbies permanecem um modelo negativo e evitável. Reconhecemos a tendência dos movimentos de produzir estruturas organizacionais determinadas pelo poder e pelo dinheiro no momento em que 150

Confere Cohen, “Rethinking Social Movements”.

tentam agir diretamente sobre os subsistemas da administração estatal e da economia de mercado. Acreditamos que a forma do movimento não pode sobreviver ao passo fora das fronteiras do mundo da vida. Os movimentos não podem influenciar as estruturas coordenadas por outros meios que não o normativo e a interação comunicativa sem sucumbir a pressão por auto instrumentalização. Aqui, a distinção entre sistema e mundo da vida continua a fornecer os limites que não podem ser dispensados pelos ativistas que desejam ser efetivos. A auto-burocratização não decorre das políticas de influência. Não há uma “lei de ferro da oligarquia” vinculada à atividade dos movimentos almejadas nas estruturas intermediárias da sociedade política ou nas formas de esfera pública existentes nesse nível. Nossa resposta ao dilema de Michel é apontar o potencial da atual duplicação dos atores nas sociedades civil e política e a possibilidade de um novo tipo de relação entre eles. Não reconhecemos as tensões entre as associações de base no mundo da vida, almejando atingir a sociedade civil e as organizações capazes de afetar, estrategicamente os sistemas do Estado e da economia, mas apenas ao custo da burocratização (penetração pelo meio do poder). Acreditamos dessa forma que um maior nível de auto-reflexão, enraizado num dialogo entre a teoria e os movimentos aos quais ela se direciona, assegura a possibilidade de diminuir esses antagonismos. O programa de democracia radical auto-limitada envolve uma crítica ao fundamentalismo democrático típico dos atores com base na sociedade civil e uma crítica ao elitismo democrático típico daqueles com base na sociedade política. Essa crítica teórica será importante, no entanto, salvo se os atores civis se moverem adiante para uma política capaz de influenciar atores políticos ao invés de se retirarem no outro lado do fundamentalismo que é a passividade. Finalmente, nossa concepção dualista fornece um critério de sucesso para os movimentos que se diferencia daqueles dos ativistas fundamentalistas e dos políticos profissionais. Consideramos que o desenvolvimento de atores auto-reflexivos e auto-limitado capazes de influenciar a discussão política altamente desejável, como o são os partidos políticos que sustentam um alto nível de abertura para a sociedade civil sem se renderem aos requisitos de ação estratégicos ou efetivos. Muita coisa automaticamente se segue desse argumento. Mas, a noção de sucesso nas sociedades civil e política não devem ser assimiladas uma a outra. Na sociedade política, auto-gestão organizacional é uma aspiração; na sociedade civil, não é, e deve atentar para que isso pode em si mesmo levar a transgressões entre as fronteiras do mundo da vida e dos sistemas. O sucesso do movimento social no nível da sociedade civil deve ser concebido não em termos de conquista de certas metas substantivas ou a

perpetuação do movimento, mas sim em termos de democratização de valores, normas e instituições que são enraizadas em última instância na cultura política. Esse desenvolvimento não pode gerar uma dada organização ou a permanência do movimento, mas pode assegurar ao movimento a forma, como componente normal de uma sociedade civil auto-democratizante. Por exemplo, se parte das conquistas dos movimentos é a institucionalização dos direitos, então o fim do movimento social – também devido a sua transformação organizacional e sua absorção em novas identidades culturais criadas – não significa o fim do contexto de geração e constituição de movimentos sociais. Os direitos conquistados pelas revoluções democráticas e pelo movimento dos trabalhadores já funcionam dessa forma frente a frente com o movimento dos direitos civis e outros movimentos. Os teóricos formularam ainda novos direitos apropriados para o desafio ao Estado e a economia por parte dos movimentos contemporâneos. Hoje, ambos os modelos de direitos que prevalecem – um vinculado a posição proeminente dos direitos de propriedade, outro estruturado em torno de modelo de assegurar benefícios estatais – mostraram seu lado ruim151. Assim, direitos institucionalizados são importantes pontos de apóio e catalisadores (precisamente devido a suas contradições internas) para as lutas contemporâneas por direitos. É esse o caso especificamente para as iniciativas “reflexivamente prosseguem” os programas da revolução democrática e do Estado de bem estar ao estabelecer a dignidade do local dos direitos na associação e na comunicação. Esse programa pode ser completado apenas com base em uma estratégia dualista na qual as políticas de identidade, influência, inclusão e reforma tem maior desempenho. Dessa perspectiva uma teoria da sociedade civil, as políticas de influência são o mais importante, porque ela é único meio de deslocar o fundamentalismo do movimento e bloquear o caminho para um elitismo político. Então, as políticas de influência merecem um olhar mais próximo do ponto de vista da teoria política; essa é a meta do capítulo 11, da desobediência civil, um dos mais importantes meios pelos quais os movimentos sociais podem influenciar a sociedade moderna.

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Isto é, a vulnerabilidade da economia capitalista por um lado e o controle administrativo pelas agências do Estado de bem estar por outro.

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