Movimentos sociais na era do Antropoceno

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Movimentos sociais na era do Antropoceno1 Moysés Pinto Neto2

RESUMO: A segunda década do século XXI vive um longo ciclo de mobilização social que se alastrou pelo mundo todo, manifestando em comum uma revolta contra as instituições e a descrença nas mediações políticas da democracia representativa. Desde então, tem-se discutido as estratégias dos novos movimentos, sobretudo em face da ausência de um programa específico e lideranças verticais. O texto procura refletir sobre essa "Grande Recusa" a partir de uma nova polaridade política - ortogonal à oposição entre direita e esquerda - que surge na era do "Antropoceno": aceleracionismo e decrescimentismo. A partir disso, procura compreender o "negativo" desses novos movimentos como demanda pelo menor. Palavras-chave: Movimentos sociais - Aceleracionismo - Decrescimento Antropoceno - Estratégia - Política. ABSTRACT: Second decade of 21th century lives a long cycle of social mobilization that expanded itself all the world around, having in common revolt against institutions and suspicion on political mediations of representative democracy. Since then, social movements’ strategies have been debated, especially on the topics of program and leadership. Paper reflects on this “Great Refusal” departing from a new political polarity – orthogonal to the opposition between right-wing and left-wing – that borns in the Anthropocene era: accelerationism and degrowth. In conclusion, paper tries to understand the “negative” of social movements as a petition for a minor politics. Key-words: Social movements Anthropocene – Strategy – Politics.



Accelerationism



Degrowth



SUMÁRIO: 1. O ciclo de manifestações pós-crise de 2008; 2 - O deslocamento do debate na era do Antropoceno; 3 - Decrescimentistas e Aceleracionistas: uma nova polaridade política?; 4 - O negativo como menor: paixão pelo sub; 5 – Bibliografia mencionada.

1

Esse texto é uma reescrita ampliada para estilo "acadêmico", com citações e mais desenvolvimento teórico, de ensaio anterioramente publicado na revista PISEAGRAMA (Pinto Neto, 2015b) com o título "Política no Fim do Mundo", em estilo mais "jornalístico". 2 Doutor em Filosofia (PUCRS) e Professor da Universidade Luterana do Brasil. Email: [email protected].

1. O ciclo de manifestações pós-crise de 2008

O mundo vive tempos agitados. Depois de a crise de 2008 encerrar a pax da democracia liberal capitalista, as ruas voltaram a abrigar enxames de indignados, aglomerados de milhões de pessoas juntas em protestos mostrando a capacidade de resiliência diante da violência policial, do descrédito da mídia e da indiferença das instituições políticas tradicionais. O ciclo de mobilizações sociais iniciado a partir de 2010 incluiu a Primavera Árabe (Tunísia, Egito, Líbia etc.), passando pela Europa (Grécia, Espanha, Islândia, Turquia etc.), pelos EUA e Canadá e pela América Latina (Chile, Brasil, México, Bolívia, Equador etc.), contendo uma heterogeneidade de motivos e demandas, mas tendo como ponto de encontro constante o déficit de legitimidade da representação e uma descrença geral no sistema (para uma visão geral, ver Castells, 2013). A partir do ponto em que protestos e ocupações passam a fazer parte do cenário político com uma intensidade que não se via desde os anos 60 e 70, não raro se pergunta qual será a próxima etapa das lutas (Nunes, 2014). Nesse sentido, um complexo debate gira em torno das pautas e estratégias dos movimentos. O motivo de preocupação por parte de alguns é que esses movimentos parecem herdeiros em larga escala da geração de 1968, aproximando-se de ideias anarquistas a partir da ojeriza a lideranças verticais, à lógica instrumental meios-fins, à construção de uma identidade rígida e rejeição de alianças, compromissos e negociações com os poderes instituídos, chegando até a uma dificuldade considerável de definir exatamente o que buscam. Dois dos mais famosos intelectuais vivos da esquerda, Alain Badiou e Slavoj Zizek, por exemplo, ao mesmo tempo em que louvam a reemergência das contestações radicais (Badiou chama de "renascimento da história" e Zizek de "ano em sonhamos perigosamente"), manifestam perplexidade na dificuldade dos novos movimentos de construir

organização e disciplina em torno da "ideia comunista", a única que até hoje seria capaz de se apresentar como alternativa à devastadora hegemonia capitalista e que eles, até de certa forma ousadamente, buscam associar a essas manifestações. Zizek afirma explicitamente, por exemplo, ao referir-se à Grécia no citado livro:

Assim, devemos ver nesse desenvolvimento também um desafio: não basta rejeitar o governo especializado e despolitizado como uma forma rude de ideologia; devemos começar a refletir seriamente sobre o que vamos propor no lugar da organização econômica predominante, imaginar e experimentar formas alternativas de organização, procurar os germes do novo naquilo que já existe. O comunismo não é apenas ou sobretudo o carnaval do protesto de massa quando o sistema é momentaneamente interrompido; o comunismo é também, e acima de tudo, uma nova forma de organização, disciplina e trabalho árduo. Independentemente do que se diz sobre Lenin, ele tinha plena ciência dessa necessidade urgente de uma nova disciplina e organização (Zizek, 2012, p. 84).

Em uma linha paralela, mas sem deixar de compartilhar uma crítica similar, a esquerda reformista, integrada nos quadros partidários e alinhada com a Realpolitik, critica a falta de clareza nas pautas dos protestos e seu teor utópico, preferindo se manter alinhada aos tímidos governos que hoje, segundo os jovens que saem às ruas, pouco se diferenciam da direita e seriam responsáveis pelo descrédito da política representativa em geral, não raro implementando os programas liberais que seus rivais não conseguem quando no poder3. Será essa, no entanto, a única interpretação viável? Esse negativo que constitui os novos movimentos seria interpretável apenas à luz da falta? A expressão de Maurice Blanchot que Herbert Marcuse, um dos nomes sempre associados aos movimentos de 1968, consagrou - a Grande Recusa - não 3

Sobre o tema, ver, por exemplo, o debate brasileiro em torno das manifestações de 2013 representando o pólo "governista" que sinaliza essa posição, por exemplo Souza (2014 e 2015), Singer (2013), Santos (2013); para uma visão geral do debate, ver Pinto Neto, 2014), ou o debate entre Alvaro Garcia Linera, Eduardo Gudynas e Salvador Schavelzon sobre o "esgotamento do ciclo progressista" na América do Sul e sua relação com o "neoextrativismo" e práticas políticas verticalistas (Schavelzon, 2014, 2015; Gudynas, 2010; Garcia Linera, 2012).

seria ela própria uma pauta possível? Em outros termos: e se o não fosse uma resposta? A política ocidental e sua reflexão filosófica tem dificuldade para lidar com o negativo. Como tantos mostraram ao longo do século XX, o sonho da razão - que também era o sonho da política - era uma pretensão totalizante, buscando esquadrinhar os mais diversos cantos da realidade nas suas descrições. A Modernidade é a era em que real e racional se confundem, justificando a intervenção humana para transformar o mundo na efetivação dos seus projetos racionalizadores. Mais tarde, a partir da autocrítica dilacerante que ficou conhecida como "dialética do esclarecimento", chega-se à conclusão de que a razão instrumental - orientada pelas relações meiosfins - comandava essa lógica de controle sobre a realidade e funcionava como matriz da violência do dominador, contrariando as finalidades emancipatórias que a racionalidade por si só carregaria (Adorno & Horkheimer, 1985, passim; Souza, 2004, pp. 96-126). Não por acaso um dos autores do respectivo ensaio, Theodor Adorno, elege mais tarde o negativo, aquilo que resiste à pulsão totalitária da razão instrumental e se afirma real para além do pensamento, como emblema da emancipação (Adorno, 2009. pp. 11-56). Sob esse prisma, a necessidade de se estabelecer rapidamente um programa para os protestos, refletindo-se em pautas específicas e negociações "viáveis", parece cair no mesmo problema. Segundo a lógica proposta por Zizek e os reformistas social-democratas, a irrupção do novo precisa ser domesticada e marcada pelo positivo, colocando segundo a lógica dos meios e fins um conjunto de objetivos que, no fim das contas, efetivariam um projeto de poder. É claro que, por outro lado, o purismo é tentador e é mais fácil, especialmente em nível discursivo, sustentar que todo compromisso é reprovável e apenas a condição ascética em relação ao poder e fiel aos princípios é adequada. Sabemos os dilemas que conduzem essas posições, muitas vezes apelidadas pelos seus críticos de "principismo". A fidelidade absoluta a um plano abstrato situada apenas no horizonte da resistência

intransigente pode ser simplesmente um refúgio para não se enfrentar o desafio da experimentação e da errância. Alguns casos põem em questão esse ponto. Por exemplo, o Egito mostra que nem sempre os impulsos de contestação que caracterizam os enxames humanos - no caso, multidões de milhões de pessoas que se reuniram em dois momentos, inclusive resistindo contra a "traição" do exército aos propósitos da insurgência - resultam em transformações efetivas (Castells, 2013, pp. 46-68). Apesar dos protestos por maior democracia em face da "cleptocracia" do regime, uma ditadura sucedeu ao regime derrubado, impossibilitando que aquelas demandas capitalizadas por uma juventude descontente se transforme em mudança real. Da mesma forma, os debates atuais em torno das experiências dos "partidos-movimentos" como Podemos, na Espanha, e Syriza, na Grécia, têm sido extremamente férteis em se posicionar na questão dos limites dos acordos e negociações, do papel das lideranças e das alternativas ao neoliberalismo (ver, sobre o tema, Cava & Beltrán, 2015). Aliás, episódios recentes no Brasil mostraram que não são somente os afetos revolucionários que movem multidões: o ressentimento e a raiva também agregam. A questão, portanto, é delicada e ninguém está em posição de se considerar acima da errância e do experimentalismo. Proponho, a partir disso, um pequeno deslocamento do debate que permitirá visualizar as questões de outro modo.

2. O deslocamento do debate na era do Antropoceno

Enquanto isso, chama atenção um estranho debate acadêmico realizado na Universidade de Stanford recentemente (sabendo-se que as universidades têm sido praticamente o único habitat possível da esquerda nos EUA). Ao contrário dos tradicionais debates entre socialistas e lberais, reformistas e revolucionários, ou mesmo entre comunistas e anarquistas, de um lado estavam os "anarco-primivistas", representados por John Zerzan, e de outro os "transhumanistas", representados por Zoltan Istvan. Enquanto os

anarco-primitivistas postulariam, segundo a versão publicada pelo próprio Zoltan Istvan no prestigiado The Huffington Post, "um retorno para um modo de vida não-civilizado e a desindustrialização", os transhumanistas postulariam "o uso da ciência e da tecnologia para transformar e melhorar a espécie humana" (Istvan, 2014). Se levada a sério, o que a conversa parece representar é que as condições da disputa política parecem ter se alterado significativamente no século XXI. Não estamos mais diante de um reload das grandes polaridades do século passado, mas de uma cena radicalmente alterada que, como veremos, nubla a própria separação clássica da política entre natureza (delegada aos cientistas naturais e considerada como mero objeto de exploração) e cultura (lugar do humano, do espírito, da razão, do esclarecimento). É aqui, nesse novo cenário, que aparece uma chave para entender o negativo sem que se confunda com o purismo. O negativo não precisa apenas significar recusa. A ideia de "Antropoceno" parece ser o elemento novo que entra em jogo no cenário. O conceito de Antropoceno deriva do trabalho do químico Paul Krutzen que, analisando os efeitos da sociedade industrial sobre o ecossistema, passa a considerar que saímos da era geológica do Holoceno para habitar um mundo em que o impacto da atividade humana equivale a uma força da natureza (Crutzen, 2005). Apesar de a noção ter partido do campo das ciências naturais, a repercussão no âmbito da filosofia e das ciências humanas é tão profunda que envolve o questionamento da própria configuração do que Bruno Latour chama de "Constituição Moderna" e seus marcos divisores (1994, pp. 19-52). A própria noção de ciências humanas, tradicionalmente demarcada a partir do horizonte kantiano que na sua fase atual prioriza o "simbólico" como alheio à "natureza" parece perder força, à medida que o próprio "simbólico" invade a natureza e a reconfigura (ver Malabou 2007 e 2012 e Pinto Neto, 2012). Afora isso, o termo anthropos sofre críticas por estender demasiadamente o referente quando, a rigor, estaríamos

falando

dos

efeitos

da

sociedade

industrial

capitalista,

representada aliás por uns poucos países e minorias nesses próprios países (Malm, 2015). Esse ponto, que rende um imenso debate de nomenclatura que tem algumas consequências práticas, recebeu mais fogo quando Dipesh

Chakrabarty argumentou que o socialismo soviético teria produzido no seu projeto de modernização resultados muitos similares (Chakrabarty, 2013; Danowski e Viveiros de Castro, 2014, pp. 28-29). De qualquer modo, o ponto de torção no debate do século XX para o XXI em torno do capitalismo e as estratégias de sua superação nos movimentos sociais não pode mais desconsiderar que a situação atual é, sem usar eufemismos, catastrófica do ponto de vista ecológico. Usando a expressão e as ideias que Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro desenvolvem em seu belíssimo ensaio Há mundo por vir?, poderíamos designar esse contexto simplesmente como "fim do mundo" (2014, pp. 1135). Não se trata de um problema escatológico que remete a um futuro distante no qual os ímpios serão julgados e os santos e justos absolvidos, como na escatologia messiânica que irriga, em versões secularizadas ou não, boa parte do pensamento político (inclusive e principalmente de esquerda). O núcleo da questão ambiental é que o problema já está aí, a catástrofe já aconteceu e se trata de organizar a nossa resposta para minorar os efeitos que estão no horizonte calculado e ratificado em numerosas declarações públicas pelos cientistas da terra e pela comunidade científica em geral. Essa condição exige revisar nossos hábitos de pensamento e as utopias baseadas no humano desligado da "natureza", conceito cujo papel serve apenas para transformar outros seres vivos e o entorno biofísico em estoque ilimitado de "recursos" para o crescimento econômico. Pensar o negativo nesse novo contexto poderia ser pensar o menor.

3. Decrescimentistas e Aceleracionistas: uma nova polaridade política?

A partir disso, considerando as inversões e deslocamentos que a ideia de Antropoceno provoca, estamos diante de uma nova polarização ortogonal à tradicional disputa entre direita e esquerda. Levando-se em consideração a natureza infraestrutural que o ecossistema desempenha enquanto condição de possibilidade material para a existência da vida -- e com ela todos os seus

produtos (política, igualdade ou desigualdade, cultura, economia política, tecnologia, mercado, estado, seres humanos, mulheres, homens etc.) -- é possível que essa polaridade, que cruza os polos direita e esquerda e pode ter várias faces de acordo com o ponto de encontro -- torne-se o ponto central de debate, sobretudo a partir das mudanças climáticas que se anunciam em um horizonte próximo. Dentro dessa linha de raciocínio e em um dos polos, Serge Latouche e outros intelectuais vêm propondo um provocativo termo que se contrapõe ao imaginário político que eles denominam "intoxicado" pelos padrões da sociedade do consumo: o "decrescimento" (Latouche, 2009, pp. 4-30). Enquanto assistimos cotidianamente o debate entre empresários, burocratas e da grande mídia em torno dos índices quantitativos e das estratégias para aumentar esses números, representados sobretudo pelo Todo-Poderoso PIB (Produto Interno Bruto), o decrescimento propõe que só a interrupção e minoração desse processo pode ser ecologicamente viável, substituindo a lógica da acumulação e o fetiche da mercadoria pela ideia de qualidade de vida. Com isso, o decrescimento encontra em formas de vida tidas por "atrasadas", como entre indígenas e africanos (Latouche, 1998; Viveiros de Castro, 2011), práticas culturais que permitem dar uma significação qualitativa que não reproduza o ciclo vazio e a felicidade desidratada do consumo. Também sinaliza a ultrapassagem da "sustentabilidade", noção que, muito embora importante e longe de ter produzido todos os seus efeitos, parece estar aquém do tamanho do desafio que se apresenta diante de problemas como as mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, a acidificação dos oceanos ou a crise hídrica (Danowski, 2011 e 2012). Em seu Pequeno tratado do decrescimento sereno, Latouche menciona como proposições decrescimentistas o retorno da valorização e autonomia do local, com a redução do turismo e da produção desnecessária de bens de consumo, a recuperação dos comércios vicinais contra os hipermercados, dos imóveis pequenos contra as torres de apartamentos, da passagem de pedestres e ciclovias contra a prioridade aos carros, um reequacionamento da questão alimentar, chegando, finalmente, a proposta de "saída da sociedade trabalhista" (Latouche, 2009, pp. 115-137).

Por isso, não é apenas entre os supostamente "atrasados" que o decrescimento encontra adeptos: cada vez mais há uma rejeição entre os movimentos sociais contra os processos de "modernização" urbana como construção de estradas, viadutos e obras carrocêntricas, proliferação de arranha-céus e perda dos espaços verdes, privatização e camarotização dos lugares de convivência, gentrificação e militarização da segurança pública, disseminação das técnicas de vigilância e higienização dos espaços públicos, ao mesmo tempo que se fortalecem movimentos como os ciclistas, pedestres, adeptos da permacultura, dos direitos dos animais, das festas abertas ao ar livre, entre outros. Ocupações urbanas recentes no Brasil como a do Parque Augusta, em São Paulo, da Cais Estelita, em Recife, e o Ocupa Saraí, em Porto Alegre, estão sintonizadas essa corrente. Nesses lugares, como escreveu Peter Pal Pelbart sobre o Parque Augusta, não se trata de 'apropriar-se', 'tomar o poder', ou apenas gritar palavras de ordem uníssonas contra o capital ou a gentrificação, mas também zelar pelas árvores, pela circulação livre, pela sustentação coletiva, e experimentar formas-de-vida inabituais, múltiplas, que não têm nome, ainda que os ativistas usem noções aproximativas como horizontalidade, autogestão, organização em rede (Pelbart, 2015).

O contraponto a essa visão é o chamado "aceleracionismo". Defendido primeiro pelo obscuro Nick Land e mais tarde por Nick Srnicek e Alex Williams (2014), autores do "manifesto aceleracionista", pode-se ver a afinidade da corrente com as ideias transhumanistas do Vale do Silício e seus gurus como Ray Kurzweil no discurso em torno do progresso tecnológico e científico como mecanismos que levariam o humano a se separar da sua condição "carnal", transformando radicalmente o mundo de acordo com suas pretensões (Srnicek e Williams, 2015, p. 178). Ao contrário, portanto, da esquerda clássica, que simplesmente continua - da mesma forma que os liberais - entendendo o meio ambiente como "externalidade", os aceleracionistas reconhecem as dimensões radicais do problema, mas rejeitam qualquer tipo de "retrocesso" e propõem a ultrapassagem da condição humana como alternativa. Cientistas famosos como o físico Stephen Hawking, que propôs recentemente viagens interplanetárias com o intuito de colonizar outros planetas para a sobrevivência humana depois da

destruição da Terra, e o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, cujo "sonho" último, segundo Muito além do nosso eu, é transportar o cérebro para um suporte que permita vencer a mortalidade, parecem compartilhar esse imaginário em que a vida e a Terra sucumbem diante da ascensão vertiginosa do espírito humano (Nicolelis, 2011, p. 26). Aparentemente, é mais fácil se libertar do corpo, da vida e do planeta que de certas obsessões escatológicas, mesmo que travestidas com o manto da hard science4. Os aceleracionistas tampouco parecem suportar, como já não o faziam Zizek e Badiou, a falta de pautas claras e a afinidade dos movimentos atuais como o anarquismo da década de 60 do século passado. A proximidade com os hippies, a recusa da autoridade e da verticalização, o autonomismo e a organização plástica sem a disciplina e rigidez da figura do militante, irritamnos

profundamente

e

são

tomadas

como

sintoma

de

impotência.

Recentemente, em um interessante diagnóstico da contemporaneidade, Srnicek e Williams reiteram a tese atacando o que denominam folk politics -associando folk à dupla conotação de "senso comum" (como em "folk psychology") e de "próximo, comunitário, natural" --, no sentido de que ocupações e resistência não seriam suficientes para enfrentar o gigantismo do capitalismo contemporâneo, de modo que seria necessário voltar à ideia de programa e a uma estratégia de longo alcance, inclusive usando a noção de "universal" hoje em dia abandonada pela esquerda (Srnicek e Williams, 2015, pp. 9-13). Mas esse diagnóstico é também uma incompreensão: a própria impotência pode ser entendida como potência no sentido de que não fazer é também exercer uma ação dentro da virtualidade que se apresenta. Os aceleracionistas, apostando excessivamente na estratégia, eliminam toda crítica à instrumentalização da razão e o fato de que nos novos movimentos a própria relação entre meios e fins se dá em outro tipo de equilíbrio. O filósofo Giorgio Agamben, quando retoma a ideia de Walter Benjamin dos "meios 4

Para uma crítica interessante desse tipo de "pós-humanismo", ver, por três ângulos diferentes e complementares, Crary (2014, p. 46) (enquanto perda da experiência), Danowski e Viveiros de Castro (2014, pp. 143-159) (enquanto panaceia que ignora a questão ecológica) e Ludueña Romandini (2010, pp. 217-225) (enquanto repressão final da animalidade pelo projeto biopolítico cristão).

puros" a partir da noção de gesto, exemplifica-os a partir da dança, que é um movimento destituído de finalidade e ao mesmo tempo expressão da alegria (Agamben, 2015, pp. 51-61). Os novos movimentos parecem carregar esse passo de dança que mescla o público e o privado, corpo e razão, equacionando

de

outra

maneira

aquilo

que

os

aceleracionistas

nostalgicamente gostariam de retomar (Pinto Neto, 2013a). Os atos de ocupação que proliferam pelo Brasil inteiro têm esse sentido que não comunica nada a não ser a si próprio enquanto ocupação, sem instrumentalizar nenhuma pauta. De certa forma, eles encenam a nova sociedade que gostariam de criar, vivem a utopia que desejam sem a deslocar para o horizonte distante (encenação e sonho compartilham a mesma matéria espectral da utopia). Uma tentativa de conciliação entre a aceleração do progresso e a descida decrescimentista aparece na ideia de que "menos é mais", o meio termo entre duas tendências radicalmente diversas. Uma vez ainda o mesmo imaginário que sufoca no positivo e no programático aquilo que prefere não. Menos não é mais, é menos, mas eventualmente pode ser melhor. Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro no já mencionado ensaio associam esse melhor ao surpreendente fato político contemporâneo do devir índio. Ele inclui não apenas aqueles povos de origem indígena que estariam à beira de se integrar definitivamente na sociedade branca e que de repente resolvem, em um movimento inesperado para alguns, voltar a ser índios, mas aqueles que em geral e cada vez mais entram nesse devir (Danowski e Viveiros de Castro, 2014, pp. 157-159) . Testemunhamos, aliás, na paleta de movimentos uma variedade de lutas que encontra seu mais perfeito paradigma nos protestos indígenas contra a Usina de Belo Monte, típica recusa do "progresso" e da aceleração. Em contraponto ao "desenvolvimento extensivo" da sociedade de consumo e do imaginário civilizatório ocidental, Viveiros de Castro propõe a "suficiência intensiva" (Viveiros de Castro, 2011). Trata-se de outra experiência do limite diferente da lógica de colonização e dominação, baseada num envolvimento intensivo que é menor. Contrapõese, portanto, ao Maior do Estado e do mercado que, mais do que fabricar a desigualdade, fabrica a falta. O "viver bem" do menor, portanto, envolve uma

contração que intensifica, multiplicando o múltiplo, ao contrário do "viver mais" da imortalidade, que funciona a partir da extensão totalizante do Um.

4. O negativo como menor: paixão pelo sub

É aqui que, lembrando uma seminal intervenção da #ATOA na Casa de Rui Barbosa, em plena Cúpula dos Povos e Rio+20, abre-se uma fresta de diálogo entre o visionário pensamento de Oswald de Andrade no Manifesto Antropofágico e a condição menor que a catástrofe ambiental exige. Como Oswald percebera e todos os palestrantes à ocasião (D. Danowski, F. Cera, A. Nodari, E. Viveiros de Castro, Marcos Matos) não deixaram de destacar, a civilização ocidental (ou apenas: os brancos europeus) sempre se deixou guiar pelo motivo messiânico da "ascensão", apaixonada pelo "Maior" que confunde Estado e Mercado (Nunes, 2011, p. 46). A descida, ao contrário, é desde sempre associada ao negativo, à decadência, a um estado indesejável que custaria evitar a todo custo. O motivo "falogocêntrico" que Jacques Derrida, por exemplo, explorou numa das suas maiores provocações freudianas, Glas, quando a ascensão hegeliana, a sublimação por excelência do "espírito" é contrastada com o baixo e marginal Genet, chocando "alto idealismo" e "baixo materialismo" (Pinto Neto, 2013b), é a mesma cosmovisão que conduz a essa ascensão muitas vezes chamada de "busca pela transcendência", verdadeira "metafísica da necessidade", como diz Viveiros de Castro, que fabrica antes de tudo a falta e a necessidade extensiva (Viveiros de Castro, 2011). Entender os novos movimentos decrescimentistas e sua luta no fim do mundo ao modo de linha de fuga, por isso, pode ser uma paixão pelo sub, como Flávia Cera na ocasião destacou, em contraponto à obsessão pelo Maior das utopias messiânicas - religiosas ou não - que sobrevivem no imaginário da esquerda. Talvez por isso o não dos novos movimentos simplesmente não seja uma falta a suprir, mas a recusa que é, como um menos, devir revolucionário.

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