Mudança Climática e COP-21: Transformações na Ordem Internacional [MUNDO EM FLUXO 02]

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Mudança Climática e COP-21: Transformações na Ordem Internacional
Carlos Frederico Pereira da Silva Gama

A mudança climática trouxe efeitos paradoxais para as relações internacionais. Por um lado, em contraste com outras épocas de ansiedade existencial, o medo de acontecimentos catastróficos não para nas fronteiras, não é contido por muros, tampouco se detém diante de trincheiras e arame farpado.

Por outro lado, a indefinição – dantes paranoica – se tornou confortável. O medo desterritorializado é disparado por ações humanas mais complexas que os apertos de botões e chaves viradas da destruição nuclear mutuamente assegurada (MAD). A sobreposição de diferentes práticas humanas cotidianas ao longo de milênios começa a cobrar seu preço. A espécie humana se tornou a maior força transformadora da Terra num curto período catastrófico: o Antropoceno. O medo de um súbito fim do mundo foi transportado para um horizonte de futuro em lenta extinção.

A conferência COP-21 que acaba de se encerrar em Paris, França, mobilizou dois imaginários. A responsabilidade de governos de mais de 190 países enfrentarem crises globais no presente sem mutilar as chances das gerações futuras.

O futuro do presente é um tempo complexo. Quanto menor o detalhamento da agonia silenciosa, menor o sentimento de participação no horror vindouro. Não nos sentimos os únicos responsáveis pelo triunfo da catástrofe. A indefinição do futuro nasce da enormidade de erros passados e o presente assume contornos heroicos. "Hoje, a raça humana se juntou por uma causa", disse o diretor-executivo do Greenpeace, o sul-africano Kumi Naidoo.

No calor da hora, chefes de governo e estado se mobilizaram para reduzir o aquecimento global até 2100. Como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o documento final da COP-21 contém mais que uma declaração de intenções e menos que um plano de execução detalhado. Traz uma promessa que demandará esforços. Nas palavras de Naidoo: "O que realmente importa é o que acontece depois da conferência".

O caráter terapêutico das negociações não pode ser subestimado. Os líderes dos estados-membros da ONU lidam com expectativas de quase 10 bilhões de pessoas. Ainda tememos erros de cálculo e percepções errôneas (misperception) de lideranças políticas. As decisões em Paris afetaram todas as formas de vida na Terra.

As respostas tradicionais das relações internacionais para "problemas globais" giram em torno de estados soberanos territorializados e suas assimetrias. Das mais de 190 delegações, uma pequena parte contribui com 70% das emissões globais de gases do efeito estufa: China, Estados Unidos, União Europeia, Índia, Rússia, Indonésia, Brasil, Japão, Canadá e México. Nesse pequeno clube, a COP-21 representou uma transformação na relação entre a outrora superpotência, os EUA, e os emergentes que se tornaram grandes economias poluidoras.

Os EUA foram decisivos para o fracasso do Protocolo de Quioto, repudiado por George W. Bush como parte de sua estratégia de deslegitimação das instituições multilaterais, amplificada pela "guerra ao terror". A crise econômica de 2008 desmoralizou a postura unilateral de governo Bush, já enfraquecido pela reação claudicante aos estragos do Furacão Katrina. Barack Obama foi eleito prometendo mudar a matriz energética dos EUA: menor dependência do petróleo (de Oriente Médio e Venezuela) via investimentos "sustentáveis".

A COP-21 consolidou essa inflexão na postura dos EUA. Após 2008, os países emergentes demandaram que os mecanismos decisórios internacionais sejam tornados "progressistas", "acolhedores", "eficientes". Os BRICS se legitimaram por ser mais pluralistas que os EUA, lutando por democracia e eficiência. Considerada um marco por Obama, a conferência dissipou tensões que poderiam levar a confrontos desfavoráveis. Reconhecendo demandas emergentes, a transformação sistêmica foi buscada via cooperação, pela rota institucional.

Nas ruas da Cidade-Luz, ONGs e movimentos sociais repudiaram o que os líderes de estados chamaram "memorável conquista": a ausência de compromissos vinculantes de redução de emissões, a aceitação tácita de um aumento de pelo menos 1 grau e meio na temperatura planetária. As metas voluntárias de cada delegação serão revistas a cada quinquênio. Um mecanismo para monitorar a implementação das metas será criado, sem previsão de punições e incentivos. Como no sistema internacional de comércio, normas multilaterais de meio ambiente (dantes universais e indivisíveis) foram pragmaticamente colocadas de lado.

As críticas da sociedade civil trazem à tona o caráter flexível dos acordos, que entabularam um mínimo denominador comum para uma curiosa parceria Norte-Sul. O contraste com tentativas anteriores é brutal. O Protocolo de Quioto buscou reduzir em 5% emissões de gases que afetam o clima...em relação a 1990. Datas-bases do século XXI se referem a um mundo muito mais degradado, assumido como ponto de partida pelos soberanos em Paris.

Países emergentes demandaram, nesse século de crises, mais representatividade na tomada de decisão e formulação de normas internacionais. Na COP-21, foram contemplados com funções mais importantes do que outrora se podia vislumbrar. O Brasil foi encarregado de facilitar negociações no grupo de trabalho dedicado aos emergentes. O desafio: convencer os emergentes a fazer concessões em troca de autonomia na definição de metas de redução – tarefa que o Itamaraty e o Ministério do Meio Ambiente executaram com sucesso.

A gênese da acomodação pragmática não foi a conferência Rio+20 (2012), esvaziada em suas ambições pela crise de 2008. O processo teve início há um ano, em reunião do G-20 na Austrália, por iniciativa dos dois maiores poluidores (as duas maiores economias) do planeta. A moldura minilateral aceita por EUA e China para reduzir emissões de poluentes e preservar florestas entre 2025 e 2030 rompeu com parâmetros e responsabilidades multilaterais.

China, Brasil e Índia ainda são considerados nações em desenvolvimento – não são obrigadas a cortar emissões de carbono na mesma proporção dos desenvolvidos. Após se tornarem motores do crescimento global, as matrizes energéticas de cada um dos emergentes se chocaram com tentativas de regular os impactos humanos no meio ambiente. Os BRICS não chegaram a um denominador comum para a COP-21 em sua última cúpula, na Rússia.

Sem metas de longo prazo como em Quioto, a flexibilidade satisfaz países emergentes ciosos de suas soberanias e crescentemente poluidores; e países desenvolvidos, que ganham tempo e alívio de exigências de investimentos massivos durante uma crise duradoura. Alguns investimentos previstos na COP-21 já estão em curso (como fundos da União Europeia para desenvolvimento sustentável na Amazônia, reforçados com 200 milhões de euros em 2015, quando a Primeira-Ministra alemã Angel Merkel visitou o Brasil). Olhado isoladamente, o fundo de 100 bilhões de investimentos sustentáveis criado na conferência impressiona. No cômputo geral, as cifras emocionam menos. Num ano de crise, países emergentes criaram bancos de investimento que já nascerão com montantes superiores ao acordado na COP-21.

Em meio à desaceleração do crescimento na transição para uma "economia verde", a China oferece uma liderança alternativa à dos EUA. O país protagoniza ações em múltiplas frentes. Maior consumidora de combustíveis fósseis, maior mercado consumidor e maior população do planeta, a China articula cadeias globais de produção para permitir o fornecimento dos insumos do presente e a paulatina substituição desses por fontes sustentáveis no futuro. O futuro do presente chinês tem implicações (e contradições) consideráveis para os demais.

O Brasil aderiu, sem grande controvérsia, aos mecanismos minilaterais desenvolvidos pelos parceiros. As metas anunciadas por Dilma na ONU em Setembro prenunciaram a COP-21. Em 2025, o Brasil reduzirá 37% das emissões em relação a 2005 e produzirá 45% de sua energia a partir de fontes renováveis, metas compatíveis com a retomada do crescimento econômico e o princípio de responsabilidades comuns, porém diferenciadas. Durante a conferência, o Brasil propôs (em conjunto com a União Europeia) um novo mecanismo de mercado de carbono flexível para reduzir emissões no Terceiro Mundo. Além de permitir a participação de estados que reduziram suas emissões (em Quioto, apenas os estados desenvolvidos participavam), o novo mecanismo seria aberto a governos subnacionais e empresas.

Diante dos limites planetários, o medo desterritorializado empurra angústias. Enfrentar contradições presentes aumenta o valor de inovações políticas capazes de produzir rupturas incrementais. Coalizões capazes de propor e sustentar práticas inovadoras, reconhecer conquistas do passado, sem se limitar a repeti-las e impulsionar processos plurais o suficiente para engajar boa parte dos stakeholders numa agenda em expansão e contestação. Além de agregar e incrementar conquistas, capaz de transformar metas voluntárias em sinergias.

No fim do século passado, esforços nesse sentido foram reunidos sob o guarda-chuva conceitual da governança global. Num mundo globalizado porém fragmentado mais complexo que o da Guerra Fria, a busca por ordem e propósito em meio à turbulência de problemas sobrepostos dilui a autoridade e limita formas tradicionais de cooperação. Problemas transnacionais implicam cooperação descentralizada entre soberanos e não-soberanos. Instituições internacionais precisam mudar para mobilizar diversidade normativa.

Reprimida nas ruas de Paris pré-conferência pelo governo Hollande endurecido após atentados terroristas do "estado" islâmico/ISIS/Daesh, a sociedade civil global foi cortejada e repelida ao longo da COP-21. Por triz não ficaram ausentes do documento final menções aos impactos profundos de mudanças climáticas nas desigualdades de gênero – e estas foram incluídas apenas como cláusulas preambulatórias, sem caráter vinculante.

Diante de dificuldades de entes privados e sociedade civil obter providências dos soberanos, a ONU assumiu a tarefa de atrelar pontas soltas entre Sul, Norte, soberanos, sociedade civil e mercados. O desenvolvimento sustentável se tornou um tema central da septuagenária organização. A coexistência de forças diversas é um desafio que, mesmo com reveses, a COP-21 enfrentou. Das cinzas de Quioto surgiu um incipiente mecanismo de governança global. A proposta foi aceita consensualmente pelos estados-membros, graças a esforços da chefe da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudança Climática, Christiana Figueres (Costa Rica).

As negociações da COP-21 colocaram em movimento o que Figueres chamou de "ação crescente". Em conjunções nem sempre democráticas dos poderes públicos com poderes privados, não sabemos precisar os efeitos que as decisões de Paris terão na temperatura planetária. Caberá aos agentes sociais do presente/futuro ampliar esse minimalismo.

As conquistas da história da ONU nasceram como iniciativas informais e se intensificaram com o tempo. A COP-21 foi um passo hesitante na direção de "Nossa Vizinhança Global" (1987) – no qual ambições de coexistência pacífica nascem a partir da readequação dos seres humanos num mundo vítima de consequências não-pretendidas de ações descoordenadas.

Uma visão sustentável de futuro promovida através da diversidade de formas de vida transborda os limites da tomada de decisão de estados soberanos. Vozes marginalizadas, excluídas e dissidentes rompem o pano de fundo das palmas e silêncios soberanos. O conhecimento de experts é questionado por populações que desenvolveram formas de vida mais simbióticas que danosas ao meio ambiente, num aprendizado milenar. Há mais diversidade humana do que 190 estados comportam. Há mais dignidade em vidas não-humanas do que fomos capazes de ver, ao torna-las recursos à espera de apropriação.

Decisões futuras não sairão dos gabinetes higienizados, mas de Marianas enlameadas e Árticos derretidos. Contagem regressiva para o fim da zona de conforto da indeterminação. 


Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e pesquisador voluntário do BRICS Policy Center

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