Mulheres na cidade: A invisibilidade e a exploração da condição da mulher no espaço urbano

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO

FABÍOLA LESSA VIANNA Nº USP 7214338

MULHERES NA CIDADE A invisibilidade e a exploração da condição da mulher no espaço urbano

Orientador: Professor Associado Marcus Orione Gonçalves Correia

São Paulo 2014

 

 

 

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO

FABÍOLA LESSA VIANNA Nº USP 7214338

MULHERES NA CIDADE A invisibilidade e a exploração da condição da mulher no espaço urbano

Dissertação apresentada como “Tese de Láurea” para a obtenção do grau de bacharel no Curso de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Área de concentração: Direito do Trabalho e da Seguridade Social Orientador: Professor Associado Marcus Orione Gonçalves Correia

São Paulo 2014

 

 

 

Às mulheres que resistem.

 

 

 

RESUMO O presente trabalho busca entender como a cidade não é um espaço neutro e como sua construção é determinada pelos fatores de classe, raça/etnia e gênero. Nosso enfoque é entender como se dá a vivência das mulheres na cidade e quais dificuldades têm de enfrentar em um espaço que reproduz e cria desigualdades sociais. Buscamos descrever e compreender a situação das mulheres chefes de família brasileiras para relacioná-las com a interseccionalidade das opressões e como esta se manifesta territorialmente na cidade. Palavras-chaves: cidade, gênero, interseccionalidade, mulheres chefes de família, desigualdades sociais.

 

 

 

ABSTRACT This study seeks to understand how the city is not a neutral space and how its construction is determined by the factors of class, race / ethnicity and gender. Our focus is to understand how the experience of women in the city is and what difficulties they face in a space that creates and reproduces social inequalities. We seek to describe and understand the situation of women heads of family in Brazil to relate them with the intersectionality of oppressions and how this manifests itself territorially in the city. Keywords: city, gender, intersectionality, women heads of family, social inequalities.

 

 

 

SUMÁRIO

1.   INTRODUÇÃO.........................................................................................................6

2.   A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO...........................................................9 2.1  Produção da cidade.....................................................................................................9 2.2  Cidade enquanto espaço de disputa..........................................................................16 2.3  O direito à cidade......................................................................................................19 3.   MULHERES E MUNDO DO TRABALHO.........................................................21 3.1  Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho..............................................21 3.2  Mulheres no mercado de trabalho.............................................................................27 4.   MULHERES E CIDADE.......................................................................................33 5.   MULHERES CHEFES DE FAMÍLIA.................................................................39

6.   CONCLUSÃO.........................................................................................................49

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................53

 

 

6    

1. INTRODUÇÃO

Primeiramente, o espaço. De início, as mulheres parecem confinadas. A sedentariedade é uma virtude feminina, um dever das mulheres ligadas à terra, à família, ao lar. Penélope, as vestais, figuram seus antigos modelos, as que esperam e velam. Para Kant, a mulher é a casa. O direito doméstico assegura o triunfo da razão; ele enraíza e disciplina a mulher, abolindo toda a vontade de fuga. Pois a mulher é uma rebelde em potencial, uma chama dançante, que é preciso capturar, impedir de escapar. As formas de confinamento, de enclausuramento das mulheres, são muitas: o gineceu, o harém, o quarto das mulheres do castelo feudal retratado por Jeanne Bourin num romance recente, o convento, a casa de estilo vitoriano o bordel. É preciso proteger as mulheres, ocultar sua sedução. Cobri-las de véus. ‘Uma mulher em público está sempre fora do lugar’, diz Pitágoras. ‘Toda mulher que se mostra se desonra’, escreve Rousseau a D’Alembert. O que se teme: as mulheres em público, as mulheres em movimento. A dissimetria do vocabulário ilustra esses desafios: homem público é uma honra; mulher pública é uma vergonha, mulher da rua, do trottoir, do bordel. O aventureiro é o herói dos tempos modernos; a aventureira, uma criatura inquietante. A suspeita pesa sobre os deslocamentos das mulheres, principalmente das mulheres sozinhas.1

O interesse pelo tema de mulheres e cidade surgiu a partir da minha vivência diária na cidade de São Paulo. Enquanto mulher, sinto, diariamente, que cada momento que preciso (e quero) ocupar o espaço público da cidade, a rua, praça, transporte público, etc, tenho que passar por dificuldades pelo simples fato de ser mulher, e que esse não é um problema individual, mas sim de todas as mulheres brasileiras. A percepção dessa situação se desenvolveu graças à participação em projeto de extensão da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo2, que atuava junto com ocupações de imóveis na cidade de São Paulo e com movimentos sociais que lutam por moradia. Nesse contexto, tornou-se claro que as mulheres tinham um papel diferenciado dentro desse movimentos – estavam muito presentes, de maneira diversa ao que costuma ocorrer com organizações, movimentos e partidos políticos, que são majoritariamente masculinos, principalmente no corpo dirigente. Isso me fez buscar compreender qual seria a relação das mulheres com a cidade, com o lar, com a dicotomia criada entre espaço público                                                                                                                 1

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PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2008, p. 135-136. SAJU – Serviço de Assessoria Jurídica Universitária

 

7     e espaço privado, e como tudo isso poderia influenciar na sua vida cotidiana. O protagonismo das mulheres em movimentos que tenham como pauta a questão da moradia (“lar”) é um fator essencial para compreender todas essas relações. A atuação junto a esses grupos me trouxe também a percepção de que as mulheres não vivem a ocupação do espaço público de maneira igual aos homens – a cidade traz dificuldades dependendo qual a condição social de cada pessoa. Busco entender como a cidade se relaciona com as desigualdades sociais, e como sua produção está interligada com a reprodução capitalista, e qual o papel da cidade nesse processo Minha intenção é, portanto, relacionar como a construção social do espaço urbano se relaciona com as relações sociais de sexo3. Busco questionar o discurso da neutralidade: tanto em relação ao espaço urbano, quanto em relação do que se entende em ser mulher; para, finalmente, entender o que significa ser mulher na cidade. Para isso, tive que buscar não apenas as desigualdades de gênero, mas também aquelas de classe e raça/etnia, pois são tão determinantes quanto à primeira para a produção capitalista do espaço. Se as mulheres estão presentes na rua o tempo todo, isso não significa que a ocupem de forma plena e que tenham seu direito à cidade realizado. É importante deixar claro que se tem o conhecimento de que a opressão das mulheres também existe no campo, porém para manter o foco deste trabalho, abordaremos unicamente a questão da mulher na vida urbana, com algumas observações quando estas forem pertinentes à temática deste trabalho. Além disso, é mais do que claro que as opressões

de

gênero,

por

serem

indispensáveis,

conforme

explicaremos

no

desenvolvimento do trabalho, ao modo de produção capitalista, estarão presentes em todos os âmbitos da vida. O machismo é difundido por todo tipo de relação social, e optamos por abordar sua relação com o espaço urbano.                                                                                                                

3

“As condições em que vivem homens e mulheres não são produtos de um destino biológico, mas, sobretudo, construções sociais. Homens e mulheres não são uma coleção – ou duas coleções – de indivíduos biologicamente diferentes. Eles formam dois grupos sociais envolvidos numa relação sociais específica: as relações sociais de sexo. Estas, como todas as relações sociais, possuem uma base material, no caso o trabalho, e se exprimem por meio da divisão sexual do trabalho entre os sexos, chamada, concisamente, divisão sexual do trabalho.” KERGOAT, Danièle. “Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo”. In: HIRATA, Helena; LABORIE, Françoise; LE DOARÉ, Hélène; SENOTIER, Danièle. Dicionário Crítico do Feminismo. Editora São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 67.

 

 

8     Para tanto, o trabalho será organizado em quatro capítulos. No primeiro capítulo será analisado como ocorre a construção social da cidade. Explicaremos por que a cidade não é cenário – um palco neutro das relações sociais – mas agente na produção e reprodução das relações humanas. Nesse sentido, buscaremos entender como a cidade se constrói enquanto um território de desigualdades e como ajuda a criá-las ou/e mantê-las. Como essa relação é dinâmica e a construção da cidade está sempre em movimento, entenderemos quais são os tipos de resistência que se colocam contra a lógica do capital na cidade, terminando com a ideia de direito à cidade que agrega a pauta de luta por reforma urbana. No segundo capítulo, abordar-se-á as relações sociais de sexo, como é construída uma diferença entre o que significa ser mulher e ser homem, e como estas diferenças serão decisivas para a criação da divisão sexual do trabalho. Além disso, abordaremos a posição das mulheres no mundo do trabalho, como suas ocupações precárias, salários mais baixos e duplas (e triplas) jornadas de trabalho. Por fim, passaremos pela dicotomia criada pela divisão sexual do trabalho entre esferas pública e privada, que será essencial para compreender a posição da mulher na cidade, espaço público por excelência; e no lar, espaço considerado privado. No terceiro capítulo, uniremos as informações desenvolvidas nos dois primeiros capítulos – cidade e mulheres – e buscaremos entender como a desigualdade de gênero se manifesta no espaço urbano e ainda, como é fundamental para a sua construção e manutenção nos moldes econômicos vigentes. Buscaremos compreender o cotidiano e dificuldades das mulheres na cidade e como esta é um espaço pensada por homens para homens. Finalmente, no último capítulo, analisaremos as mulheres chefes de família brasileiras e seu crescimento nas últimas décadas, para ilustrar a interseccionalidade das desigualdades de classe, gênero e raça/etnia que podem se materializar no espaço das cidades nessas mulheres. Buscaremos, com base em dados do IBGE4, a vida cotidiana das mulheres chefes de família, qual sua relação com o mundo do trabalho, de que classe social são, como vivem no espaço urbano, entre outras informações, para entender como as opressões criam um cotidiano diferenciado para cada grupo social.                                                                                                                 4

 

PNAD (Plano Nacional de Amostras por Domicílio) 2009

 

9    

2. A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO

2.1 Produção da cidade

Começaremos com a afirmação de que a cidade não é cenário. Não se pode entender o espaço urbano como um palco no qual as relações sociais acontecem, como algo enrijecido, neutro e alheio ao sistema de produção. O espaço urbano é produzido socialmente, e não só é reflexo do modo de produção atual, como é dele produto. A cidade tem aparecido como elemento exterior à sociedade, mas na realidade a cidade tem história, é uma obra e está sempre em construção. Contrapõem-se as ideias de cidade enquanto cenário e de cidade enquanto produto, e quando falarmos em cidade ou espaço urbano, estaremos sempre nos referindo à ideia de uma construção social contextualizada a um momento histórico. A ideia de materialidade pura deve ser superada para passarmos à ideia do espaço como produção social, pois este é determinado pelo momento histórico. Passamos do espaço-palco, no qual o espaço urbano era considerado alheio às relações sociais, servindo apenas de cenário no qual estas se desenvolviam, ao espaço-produto, que também participa das relações sociais, não sendo mais considerado como um elemento neutro, mas sim como ator social, sendo o espaço também componente ativo, um elemento dinâmico5. As relações sociais são determinadas pelo momento histórico, também são produtos sociais, e estão em consonância com o desenvolvimento das forças produtivas presentes em cada local. No modo de produção capitalista atual, a produção tende cada vez mais a                                                                                                                

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CARLOS, Ana Fani Alessandrini. “Da ‘organização’ à ‘produção’ do espaço no movimento do pensamento geográfico” In CARLOS, Ana Fani Alessandrini; DE SOUZA, Marcelo Lopes; SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão (orgs.) A produção do espaço urbano: agentes e processo, escalas e desafios. São Paulo: Editora Contexto, 2013. Ainda: “Como partimos da premissa de espaço produto, isto é, o espaço geográfico enquanto produto das relações que estabelecem, num determinado momento histórico entre sociedade e meio-circundante, estamos analisando o espaço geográfico como um elemento dinâmico, e componente ativo na relação do qual é produto, e não simplesmente como agente passivo”. CARLOS, Ana Fani Carlos. “A cidade e a organização do espaço”, 1981, p.1.

 

 

10     diversificar-se e tomar novas formas, visando sempre ao lucro daquele que detém os meios de produção. Expande-se socialmente e territorialmente as formas de produzir, de modo que o próprio espaço físico, urbano ou rural, assume a condição análoga à de mercadoria, tornando-se quase um produto que pode ser “consumido”. Além disso, a cidade não é passiva na produção ou na concentração de capitais, mas intervém diretamente enquanto espaço urbano na produção e nos meios de produção6. Observa-se que a lógica do capital redefine o valor do território na cidade – o que antes poderia ser unicamente visto como valor de uso do espaço, passa a ter também valor de troca, modificando a maneira de apropriação do espaço pela sociedade. O núcleo urbano se mantém como é pois exerce duplo papel: “lugar de consumo e consumo de lugar”7: as cidades adquirem maior caráter de troca e valor de troca, mas não perdem seu valor de uso, pois oferecem, ainda que de maneira cada vez mais residual, espaços para realização de atividades específicas. “(...) a oposição entre valor de uso (a cidade e a vida urbana, o tempo urbano) e o valor de troca (os espaços comprados e vendidos, o consumo dos produtos, dos bens, dos lugares e dos signos) surgirá em plena luz”8, gerando, ainda, uma relação de dinamicidade, que resulta em certa complementação e contradição entre esses dois tipos de funções urbanas, pois para adquirir valor de troca, deve-se cada vez mais diminuir o foco no valor de uso, ou seja, a cidade enquanto “mercadoria” volta-se exclusivamente para o mercado e para interesses econômicos (individuais), enquanto que a cidade que é meio necessário para a vida cotidiana da população, oferecedora de serviços, é voltada a interesses sociais gerais coletivos ou de grupos específicos, voltando espaços às necessidades sociais e não à exploração econômica. A grande contradição na produção espacial se situa entre a produção de um espaço que satisfaça as necessidade dos meios econômicos e políticos (valor de troca) e “na reprodução do espaço enquanto condição, meio e produto da reprodução da vida social”9. Importante ressaltar que: Nessa perspectiva, desvenda-se o espaço em sua dupla determinação: enquanto localização de todas as atividades da sociedade em seu conjunto; enquanto processo e movimento, tem seu conteúdo definido e determinado pelo conjunto das relações sociais em seus momentos constitutivos específicos. Nessa direção,

                                                                                                                6

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora, 2013, p. 53. Idem, p. 20 8 Ibidem, p. 36ff 9 CARLOS, Ana Fani Alessandrini. A condição espacial. São Paulo: Editora Contexto, 2011, p. 72. 7

 

 

11     o espaço é o lugar da reprodução social de forma indissociável: produto, meio e condição dessa reprodução.10

Ou seja, de um lado aponta-se para a objetividade e do outro para a subjetivação, produção de uma consciência sobre o mundo concreto. No limite, cria-se produção das relações sociais, da ideologia, cultura, conhecimento. Essa relação dinâmica entre valor de uso e troca gera uma grande tensão na vida cotidiana da cidade, já que as práticas espaciais da cidade se realizam por uma contradição entre demandas econômicas e políticas, e demandas sociais, aquelas necessárias para a vida social e sua reprodução. Percebem-se níveis de realidade para fornecer uma resposta mais clara sobre as tensões existentes na vida cotidiana tendo como origem o “espaço compreendido como movimento e processo que se realiza como condição, meio e produto da reprodução da sociedade”11. São níveis de realidade, pois mesmo que cada um tenha um foco diferente, completam-se e contrapõe-se em uma relação pautada pela dinamicidade. A relação entre esses níveis (econômico, político e social) sintetiza a prática sócio-espacial que expõe o movimento da produção/reprodução de toda a sociedade, num movimento contraditório em que nenhum nível ou escala de produção espacial é excluído, posto que se realizando como justaposição entre esses níveis e no interior de cada um, constituindo-se como totalidade contraditória. Nessa perspectiva, desvenda-se o espaço em sua dupla determinação: enquanto localização de todas as atividades da sociedade em seu conjunto, e enquanto processo e movimento definido e determinado pelo conjunto das relações sociais em seus momentos constitutivos específicos. Nessa direção, o espaço é o lugar da reprodução social de forma indissociável, mas também o produto, meio e condição dessa reprodução. O entendimento da produção do espaço se evidencia, portanto, na necessidade do desvendamento do modo como se realiza, concretamente, o processo de reprodução da sociedade em sua totalidade, no qual o mundial aparece como tendência inexorável.12

Se o processo de produção da cidade tem como sujeito a sociedade, mas possui uma apropriação privada, não poderia deixar de existir contradição na produção e vivência do espaço urbano. Pressupõe-se, no formato atual de produção do espaço, a existência da propriedade privada. É esta que será determinante para definir a destinação do produto produzido, como será dividido e por quem será consumido.

                                                                                                               

10

CARLOS, Ana Fani. “Diferenciação socioespacial”. Disponível http://revista.fct.unesp.br/index.php/revistacidades/article/viewFile/569/600. Acesso em: 16 out 2014. 11 Idem, p. 74. 12 Ibidem, p. 81.

 

em:

 

12     A cidade se transforma com a propriedade privada. Cria-se uma busca constante pela privatização do espaço público, para que este possa ser comercializado e se tornar uma espécie de mercadoria. Por isso torna-se cada vez mais raro o sentimento de espaço público comum, sendo este desvalorizado na lógica do capitalista. É realizado para garantir o mínimo necessário para satisfazer a necessidade básica da população, o que resulta na existência de transporte precário, moradia precária e lazer precário – em uma vida precária. Isso ocorre justamente por haver uma inversão de prioridade em torno da capitalização do espaço, enquanto o valor de uso do espaço é deixado, sempre que possível, de lado. Portanto, trata-se do momento histórico em que a existência generalizada da propriedade privada reorienta e organiza o uso do lugar. Momento também em que o espaço-mercadoria se propõe para a sociedade enquanto valor de troca destituindo-o de seu valor de uso e, nessa condição, subjugando o uso, que é condição e meio de realização da vida social, às necessidades da reprodução da acumulação como imposição para a reprodução social. É exatamente nesse momento que a extensão da propriedade se realiza plenamente, ganhando novos contornos, através da produção do espaço enquanto mercadoria e produzindo novas contradições. Neste período da história, realiza-se socialmente, por meio da apropriação privada, a lógica do valor de troca sobre o valor de uso que está no fundamento dos conflitos tanto no campo quanto na cidade. 13

O sentido da utilidade passa a dar as coordenadas, não só da cidade e seu território, como da vida das pessoas que nela vivem, de maneira que estas passam a ser instrumentos na reprodução do espaço, e suas casas perdem qualquer tipo de simbolismo ou valor que não o de troca: tornam-se casas-mercadorias que podem, a qualquer momento, ser objeto de troca ou simplesmente derrubadas, já que quem dá as regras da organização do espaço da cidade é o crescimento econômico e suas necessidades, que utilizam o espaço urbano como condição fundamental no processo de acumulação. Logo, não há mais a noção de habitar e viver a cidade, reduzindo-se estas completamente a uma finalidade utilitária. Essa é a ideologia predominante na produção do espaço urbano, e é dessa maneira também que se mantém a desigualdade social e a exclusão territorial. Ora, se a divisão da produção é feita de maneira desiquilibrada, com base em uma desigualdade social, que estrutura e sustenta a sociedade capitalista, com a produção e a apropriação do espaço urbano não teria como ser diferente14.                                                                                                                 13

Ibidem, p. 67. “Num tal processo intervêm ativamente, voluntariamente, classes ou frações de classes dirigentes, que possuem o capital (os meios de produção) e que geram não apenas o emprego econômico do capital e os investimentos produtivos, como também a sociedade inteira, com o emprego de uma parte das riquezas produzidas na “cultura”, na arte, no conhecimento, na ideologia. Ao lado, ou antes, diante dos grupos sociais dominantes (classes ou frações de classes), existe a classe operária: o proletariado, ele mesmo dividido em 14

 

 

13     A urbanização é um fenômeno de classe. É necessário nesse processo que seja extraído um excedente de alguém e de algum lugar, enquanto que o controle sobre sua destinação concentra-se na mão de poucos, quais sejam, os detentores dos meios de produção. Verifica-se, mais uma vez, a conexão existente entre desenvolvimento do capitalismo e a urbanização15. As exclusões econômicas manifestam-se no espaço também como exclusões espaciais. Grande exemplo disso se encontra na contraposição centro-periferia, que aponta a existência de uma área central na cidade onde se concentram serviços, infraestrutura, capital, empregos, etc.; e uma periferia distante e precária, de onde se desloca diariamente a população que será utilizada como mão-de-obra para trabalhar no centro. É importante ressaltar que dentro de tal dicotomia existem variantes e casos diversos que não se aplicam totalmente à regra, como por exemplo a cidade do Rio de Janeiro. Porém, ainda serve como base para descrever a exclusão espacial em grande parte das áreas urbanizadas brasileiras. O processo de expansão das regiões periféricas foi uma característica marcante das cidades brasileiras até o fim da década de 1980. De acordo com BOGUS E PASTERNACK16, em todas as capitais estaduais brasileiras, as taxas de crescimento do munícipio-núcleo (centro) foram menores do que aquela dos municípios da periferia, criando regiões metropolitanas adensadas que concentravam (e concentram) a população mais pobre. Se tomarmos como exemplo a cidade de São Paulo, a dicotomia centroperiferia é válida: há o centro expandido onde se encontra uma grande concentração de renda, serviços e empregos, e de condomínios fechados, nova forma de exclusão, que criam novas cidades dentro da cidade com a intenção de ter de sair do espaço “privado” o mínimo possível (o que resulta em ruas vazias e menos movimento humano nos bairros ricos do centro); e uma periferia (que pode ser mais próxima ou nos grandes extremos da cidade) na qual há uma concentração de trabalhadores e trabalhadoras de baixa renda, serviços precários e distantes, transporte escasso, e onde a rua figura ainda como um local de

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                camadas, em grupos parciais, em tendências diversas, segundo os ramos da indústria, as tradições locais e nacionais” LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora, 2013, p.21. 15 HARVEY, David. “The right to the city”, In New Left Review, n. 53, 2008. 16 BOGUS, Lucia Maria Machado; PASTERNACK, Suzana. “A cidade dos extremos”. PRONEX, UFRJ.

 

 

14     encontro no qual as pessoas estão presentes17. Mesmo que o centro propriamente dito em São Paulo encontre-se num momento de “deterioração” 18 e esteja passando por um processo chamado de “revitalização” 19 , não deixa de concentrar grande número de empregos e serviços, atraindo a população em grande quantidade durante o horário comercial; e ainda, apesar de não ser um bairro residencial em si, o centro histórico encontra-se ao lado de diversos bairros valorizados que concentram a residência de uma população de renda mais alta. A divisão centro-periferia será também importante para analisarmos, mais adiante, os domicílios chefiados por mulheres. Mas não se pode limitar somente à desigualdade de classes para compreender a (re)produção da cidade. As opressões de gênero e raça/etnia, estruturantes para o sistema capitalista de maneira geral, serão também estruturantes na construção de um espaço urbano desigual. Trata-se de desigualdades que se materializam no espaço. Nesse sentido: “É impossível esperar que uma sociedade como a nossa, radicalmente desigual e autoritária, baseada em relações de privilégio e arbitrariedade, possa produzir cidades que não tenham essa característica” 20. Se tomarmos como referência a ideia centro-periferia, poderemos verificar que há grande desigualdade racial na sociedade brasileira e que esta se materializa de diversas formas, sendo uma delas na cidade. Há maior concentração de negros e negros na periferia, que é composta por bairros mais pobres, do que naqueles localizados no centro das cidades.                                                                                                                

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“Se definirmos a realidade urbana pela dependência em relação ao centro, os subúrbios serão urbanos. Se definirmos a ordem por uma relação perceptível (legível) entre a centralização e a periferia, os subúrbios serão desurbanizados” LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora, 2013, p.27. 18

“A deterioração, ou apodrecimento, é um processo natural que só ocorre com os seres vivos. Essa ideia pretende esconder o processo real rotulado de “decadência!” e que é de responsabilidade da classe dominante, mas que não quer assume-lo. A verdade é que a chamada “decadência” decorreu do fato de essa classe ter abandonado o centro , dele retirando suas lojas, escritórios, cinemas etc., e mesmo suas moradias, como as da Av. São Luís. Justamente a partir do momento em que o centro deixa de ser patrocinado pelas elites e passa a ser patrocinado pela maioria popular, cria-se a ideia de que ele está se deteriorando. Mais ainda. Justamente quando a maioria toma conta do centro, cria-se a ideia de que esse não é mais o centro da cidade, e que essa teria um novo centro. (…) A realidade é que a classe dominante considera que o centro que for seu (e não da maioria) será o centro da cidade. Há mais de uma século a clientela de alta renda vem abandonando o centro de São Paulo e deixa seus “restos” para as camadas populares (às quais pertence hoje todo o centro “velho). O deslocamento do centro de São Paulo – sempre na direção do crescimento dos bairros residenciais dos mais ricos – pode ser traçado pelo deslocamento de ruas que sintetizam o comércio e/ou os serviços das elites”. VILLAÇA, Paulo. “São Paulo: segregação urbana e desigualdade” In Estudos Avançados 25 (71), 2011, p. 22. 19 Expressão utilizada para descrever o processo de mudança e tentativa de revalorizar a região, mas que discordamos do uso, pois pressupõe trazer vida novamente a um lugar, e qualquer pessoa que passa na Praça da Sé durante a semana, por exemplo, sabe que o que não falta no centro é vida humana. 20 MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petropolis: Vozes, 2001.

 

 

15     Ora, se os negros estão muito mais presentes nos bairros de renda baixa, há de se concluir que existe uma desigualdade econômica fundada pela diferença de raça/etnia, logo, uma desigualdade racial. Ainda, não é só a desigualdade de classe e raça que serão materializadas no espaço urbano: a opressão de gênero, o machismo, o patriarcado, também terá papel importante na segregação urbana das mulheres (como violência sofrida nas ruas, menor apropriação do espaço público, historicamente de predominância masculina, insegurança pela falta de serviços como iluminação nas ruas, transporte precário, que as coloca como mais vulneráveis à violência), o que será desenvolvido nos próximos capítulos. A desigualdade é determinada pela relação de poder existente na sociedade, que se divide em grupos sociais e classes, e é importante entender como essa relação se produz e reproduz. Para se manter na posição favorável nesse processo de produção, a classe dominante deve não apenas estar no domínio dos meios econômicos e políticos, mas também dos culturais. Isso se dá a partir da ideologia, que é usada como estratégia de classe para sustentar sua situação de privilégio. Ainda, as estratégias de classe, social ou politicamente, têm a intenção de segregar, de maneira consciente ou inconsciente21. Não se trata somente de uma violência repressiva (que também é utilizada para controle, por exemplo, da periferia, com uma enorme quantidade de assassinatos de jovens negros pela polícia nessas áreas mais distantes do centro e menos visíveis), mas também de um controle dos saberes que mantêm o poder. Ao mesmo tempo que o ser humano produz o mundo objetivo físico, produz também uma consciência sobre ele. Sem ela, não é possível vislumbrar que a classe oprimida, numericamente muito maior que a classe dominante, mantivesse também tal situação. É essa a lógica perversa de tal ideologia: é tão dominante que atinge os oprimidos e as oprimidas. De acordo com Le Fèbvre 22, há três aspectos na segregação, que são por vezes simultâneos e por vezes sucessivos, que são os seguintes: espontâneo, que provém das rendas e das ideologias; voluntário, que cria os espaços separados; e programado, que é                                                                                                                 21

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora, 2013, ps. 97 98. HARVEY, David. “O direito à cidade”. Disponível em: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao82/tribuna-livre-da-luta-de-classes/o-direito-a-cidade . Acesso em: 16 out 2014.

22

 

 

16     realizado sob o pretexto da arrumação e do plano. Percebe-se, nessa convergência de fatores, que a ideologia exerce papel fundamental para a manutenção do status quo. O Estado também tem seu papel de manutenção da desigualdade: Convergem também Estado e Empresa para manter a segregação. O primeiro, Poder Público, claramente não pode assim admitir – disfarçado numa ideologia humanista, que transforma-se em uma utopia, pois a ideia de poder tornar a cidade um local mais agradável e habitável é cada vez mais distante e impõe desafios que o Estado não seria capaz de ultrapassar já que, obviamente, colabora com a lógica do capital de (re)construção do espaço urbano e, mesmo que tenha esforço e ideologia contrários, não pode deixar de se inserir no jogo do capital.23

E ainda: A cidade e o urbano não podem ser compreendidos sem as instituições oriundas das relações de classe e de propriedade. Ela mesma, a cidade, obra e ato perpétuos, dá lugar a instituições específicas: municipais. As instituições mais gerais, as que dependem do Estado, da realidade e da ideologia dominante, têm sua sede na cidade política, militar e religiosa. Elas aí coexistem com instituições propriamente urbanas, administrativas, culturais. Motivos de certas continuidades notáveis através das mudanças da sociedade.24

A cidade, ao reproduzir relações sociais, reproduzirá também inevitavelmente a lógica da dominação. Vai expressar as desigualdades estruturantes do sistema, quais sejam, classe, raça e gênero. Estas determinarão o espaço urbano e nele se manifestarão.

2.2 A cidade enquanto espaço de disputa

Todo esse processo de construção da cidade pelos moldes do capital, com foco no potencial econômico de troca do espaço e base na propriedade privada, em contraposição ao lado social da cidade que busca atender as necessidades básicas da população em geral, se produz e reproduz constantemente. Porém não é sem resistência. A urbanização é central para a sobrevivência do capitalismo, e, por isso, torna-se ponto privilegiado das lutas políticas de classes. Se a urbanização é um fenômeno de classe, que extrai excedente de alguma parte e o concentra em poucas mãos, decidindo como será investido, deve-se concluir que                                                                                                                

23

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora, 2013, p. 98. Idem, p. 59

24

 

 

17     necessariamente grande parcela da população, da qual justamente é extraído tal excedente, fica fora do seu investimento futuro (sem falar da exclusão das decisões políticas neste âmbito a que também estão sujeitas). É essa mesma população explorada que será expulsa dos centros urbanos para a periferia e será submetida a uma cotidianidade alienada. Submetida a uma situação insustentável de sobrevivência, que se dá por meio da exploração pela classe dominante no sistema econômico e se materializa na exclusão urbana, a classe trabalhadora se torna também protagonista de lutas por mudança da sistemática do espaço urbano. A cidade exclui, segrega e oprime. De outro lado, porém, existem: movimentos sociais urbanos procurando superar o isolamento e remodelar a cidade segundo uma imagem diferente da que apresentam os empreendedores, que são apoiados pelas finanças, pelo capital corporativo e um aparato local do Estado progressivamente preocupado com o empresariamento.25

A cidade é palco privilegiado de lutas sociais e de movimentos organizados que buscam uma nova forma de construir o urbano. E, exatamente pelo fato de a cidade ser fruto das relações sociais e do sistema econômico, lutar por uma mudança nela implica também lutar por uma mudança no próprio sistema econômico. Visto que a cidade é um produto social, se existe vontade e necessidade de transformá-la por grupos organizados, também estarão em busca de transformações estruturantes no sistema de produção, o que resulta que as movimentações por mudança na cidade possuem em si próprias um potencial revolucionário. A superação da situação atual urbana pressupõe uma transformação radical na organização econômica da sociedade, pois sem negar o que fundou o processo das relações sociais urbanas baseadas no território – a propriedade privada – não tem como pensar em outro tipo de relação com o território, com a cidade. Estas têm necessariamente de deixar de ser entendidas como algo externo à sociedade, como cenário, e que devem ser contextualizadas enquanto produto das relações sociais, para que se possa buscar a superação dessa produção e a efetivação do direito à cidade possa tornar-se, então, realidade.

                                                                                                               

25

HARVEY, David. “O direito à cidade”. Disponível em: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao82/tribuna-livre-da-luta-de-classes/o-direito-a-cidade . Acesso em: 16 out 2014.

 

 

18     Nesse sentido, só a classe operária, excluída historicamente dos produtos dos meios de produção e consequentemente da própria apropriação da cidade que não é voltada às suas necessidades sociais mas à sua maior exploração, é quem terá voz para mostrar como o espaço urbano tal como existe é excludente e reproduz a lógica de desigualdade do nosso sistema opressor. Desse modo, a historicidade produz a reprodução social do capital como alienação, e produz também o seu outro, isto é, as lutas de classe, que se desdobram e se ampliam (não sem imensas dificuldades), ultrapassando os limites do mundo do trabalho e da fábrica e redundando em lutas pelo e no espaço.26

As lutas podem ir de acesso à moradia27, contra a segregação (social que se reflete espacialmente), ou mesmo organização de mulheres em busca de creches. Porém, todas elas, mesmo que sejam demandas pontuais e com caráter de reforma, possuem potencial revolucionário e demonstram a luta de classes. Esta se expandiu do espaço das fábricas e tomou a rua como lugar. Novas demandas surgiram, e com o crescente caráter comercial do espaço urbano, é normal que se criem novas situações insustentáveis que se tornarão tema da demanda por mudança por parte dos movimentos organizados. E, como exposto, tais demandas podem ser diversas, passando de algo pontual até algo mais completo, como a luta por uma reforma urbana (e econômica). Em si mesmo reformista, a estratégia de renovação urbana se torna “necessariamente” revolucionária, não pela força das coisas mas contra as coisas estabelecidas. A estratégia urbana baseada na ciência da cidade tem necessidade de um suporte social e de forças políticas para se tornar atuante. Ela não age por si mesma. Não pode deixar de se apoiar na presença e na ação da classe operária, a única capaz de pôr fim a uma segregação dirigida essencialmente contra ela.

                                                                                                               

26

CARLOS, Ana Fani Alessandrini. A condição espacial. São Paulo: Editora Contexto, 2011, p. 48. “Assim, a luta pela moradia não é a luta por um “teto mais serviços”, mas a luta pela vida contra as formas de apropriação privada. Nesta dimensão, a autonomia dos movimentos sociais é condição de sua possibilidade diante da racionalidade do Estado – e neste direção, trata-se de mudar a cidade, e não apenas ajustá-la ao mercado e aos interesses dos segmento que sustentam o mesmo. Os movimentos que emergem enquanto “forças sociais novas”, não provêm do Estado e nem se deixam cooptar por ele, pois visam a negação da cidade enquanto exterioridade – é onde esta possibilidade contida na própria cidade no movimento do devir. Esta positividade realizando-se enquanto sociedade urbana coloca as possibilidades de uma época. Estes movimentos que produzem a consciência de uma sociedade ampliando as possibilidades de ação dizem respeito ao espaço. A vitória desses desafios só ocorre quando conseguem afirmar suas diferenças, portanto realizando-se fora do Estado. A transformação radical da sociedade, mais uma vez o desafio do tema central do simpósio, exige uma ação capaz de transformar a cidade em obra novamente. Este é um sentido que se perdeu no movimento de realização da cidade capitalista, que só se faz presente residualmente, mas é o sentido passível de permitir a apropriação plena dos lugares da cidade, bem como a negação da segregação e com isso, negando o movimento da reprodução da cidade que produz o espaço amnésico e o tempo efêmero, cindindo a vida urbana realizando a propriedade privada, o mundo da mercadoria.” CARLOS, Ana Fani. O espaço urbano: Novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2004, p. 147 27

 

 

19     Apenas esta classe, enquanto classe, pode contribuir decisivamente para a reconstrução da centralidade destruída.28

2.3 O direito à cidade

Dentro desse contexto de mercantilização da cidade e resistência de movimentos organizados, surge o conceito de “direito à cidade”. É justamente no momento em que a cisão entre apropriação e denominação do espaço acentua-se e que o conflito do uso ou da troca dos espaços urbanos tem lugar, torna-se necessário a criação de um conceito como o “direito à cidade” para que as diversas pautas reivindicadas pelos movimentos sociais, mas que no fim levam o denominador comum da necessária transformação da lógica de produção e apropriação do espaço urbano atual, a reforma urbana, sejam agrupadas. Quando as formas espaciais das nossas cidades se baseiam em “fragmentos fortificados, comunidades fechadas e espaços públicos privatizados mantidos sob constante vigilância”, e temos uma cidade dividida em fragmentos que vivem e funcionam de maneira autônoma, onde os ricos possuem todos os tipos de serviços (escola, lazer, patrulhamento privado) e os pobres vivem uma vida sem serviços (sem água, saneamento, eletricidade pirateada, estradas que se tornam lamaçal, casas compartilhadas), é preciso usar-se de uma estratégia para poder modificar tal situação absurda, e o direito à cidade colabora na busca de criar essa categoria na qual se incluem todos os problemas relacionados à vivência urbana (ou à falta dela).29

É o surgimento do debate do direito que cada um tem, enquanto pessoa pertencente a um grupo coletivo, de vivenciar e viver o espaço urbano, que, na prática, não ocorre. O direito à cidade “não é a liberdade individual de acesso a recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade” 30. Trata-se de uma força coletiva de poder direcionar e modificar o processo de transformação, que permite a liberdade de construir e reconstruir a cidade e a nós mesmos/as. É justamente o esforço para que as pessoas, trabalhadores e trabalhadoras que foram expulsos/as da cidade para as periferias e assim excluídos/as da vivência da cidade, possam perceber o sentido da cidade enquanto obra criativa e coletiva, possam vivenciá-la por inteiro.                                                                                                                 28

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro Editora, 2013, p. 113. HARVEY, David. “O direito à cidade”. Disponível em: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao82/tribuna-livre-da-luta-de-classes/o-direito-a-cidade . Acesso em: 16 out 2014. 30 Ibidem 29

 

 

20     Luta-se por outro urbanismo não mais baseado nessa ideologia e estratégia de classe, e para isso é necessário uma ferramenta capaz de descrever e entender os problemas e que caminhe na busca de soluções. Esse é o papel do direito à cidade, que inclui direitos jurídicos, mas que já se sabe há muito que estes não são suficientes para modificar nenhuma situação concreta de desigualdade, pois não se pode transformar algo material por meio de direitos simbólicos e formais, que na prática não tem nenhum resultado. O direito à cidade se materializa em todas as movimentações por reforma urbana, é exatamente essa busca a um espaço urbano que inclua a todos e todas.

 

 

21    

3. MULHERES E MUNDO DO TRABALHO

3.1 Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho

No primeiro capítulo colocamos a opressão de classe, gênero e raça/etnia como necessárias à reprodução do sistema capitalista, a partir da experiência do espaço urbano: a exploração das classes sociais baixas (trabalhadores e trabalhadoras), da mulher e do povo negro constituem bases estruturantes do sistema produtivo atual. Desenvolvemos também como as diferenças de classe são constituídas e manifestam-se no espaço, e abordamos a opressão de raça/etnia. Neste capítulo buscaremos entender melhor a desigualdade de gênero e seus principais efeitos no mundo do trabalho, para depois desenvolver como esta se exprime no espaço urbano. Para explicar a desigualdade entre homens e mulheres e a opressão destas no e pelo sistema capitalista, deve-se partir do conceito de “relações sociais de sexo”. Trata-se de: Uma relação construída socialmente que se caracteriza por ser antagônica, assimétrica e hierarquizada. Danièle Kergoat (2003) 31 aponta que a construção social desta relação tem uma base material e não apenas ideológica e, por ser hierarquizada, ela se constitui como uma relação de poder e de dominação. 32

Ou seja, é uma construção social que significa e hierarquiza o que é ser homem e mulher. Desde crianças meninos e meninas são educados/as de maneiras distintas. As brincadeiras destinada a cada gênero são prova do que se espera de cada um/a deles: as meninas brincam de “casinha”, de boneca, o que desde cedo já começa a mostrar-lhes que a elas é destinado o cuidado ao ambiente familiar e aos filhos e filhas. Aos meninos cabe mais jogos de aventura, tecnologia, ou ainda qualquer coisa de ação e construção que não seja relacionada com o cuidado, pois chega a ser “mal-visto” meninos que brincam com coisas de meninas (também por uma questão de homofobia, que tem uma relação intrínseca com a desigualdade de gênero).                                                                                                                

31

KERGOAT, Danièle. “Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo”. In: EMILIO, Marli; TEIXEIRA, Marilane; NOBRE, Miriam; GODINHA, Tatau (orgs). Trabalho e cidadania ativa pata a mulheres: Desafios para as políticas públicas. São Paulo: Coordenadoria Especial da Mulher/ Prefeitura Municipal de São Paulo, 2003, pp. 55-63 32 FREITAS, Taís Viudes e GODINHO, Tatau. “Divisão sexual do trabalho e mercado de trabalho brasileiro” In Revista do Dandara, São Paulo, nº01, p. 32

 

 

22     Essa diferença na socialização entre meninas e meninos vai moldando as diferenças sociais de sexo. Como é algo realizado desde o início da vida (quando o bebê ainda nem nasceu já é destinada a cor rosa para as meninas – pois esta seria a expressão da feminilidade – e a cor azul aos meninos – cor da masculinidade), são criadas expectativas sobre cada gênero e regras que associam o homem e a mulher a características específicas, que são consideradas “naturais”. Com o discurso de que as diferenças de comportamentos entre mulheres e homens têm origem biológica, espera-se que as características de cada pessoa sejam determinadas pelo simples fato de esta ter nascido biologicamente homem ou mulher. Os homens teriam sempre, dentro dessa lógica, as características de força, coragem, racionalidade e virilidade; e as mulheres, delicadeza, sensibilidade e prestatividade. Nossa intenção é mostrar que também o que se entende por feminino e masculino é uma construção social, e não algo que possa ter tomado como natural. E logo, se não é algo posto, um dado fixo, nada impede que possa ser desconstruído. O discurso da biologia, que destina quais as características são de mulheres e quais são as dos homens, é utilizado para justificar que exista uma divisão de papéis, a divisão sexual do trabalho, que é indissociável da relação social de sexo e que com ela forma um sistema. 33 Já que as mulheres seriam mais sensíveis, delicadas e prestativas a cuidar dos/as outros/as, a elas caberia o trabalho reprodutivo, o cuidado do lar e da família; e já que os homens teriam mais força, coragem e racionalidade, a eles caberia o trabalho produtivo, que envolve mexer com máquinas, dados, tecnologia e produção. Essa divisão seria a base material da relação social de sexo, mantida por uma base ideológica, que origina a opressão feminina e mantém-na disfarçada no discurso da naturalidade.34 A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e socialmente. Tem como características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a

                                                                                                                33

Idem, p. 33. Não acreditamos tampouco que seja possível realizar uma dicotomia entre sexo e gênero, considerando o primeiro como expressão pura da biologia e o segundo como expressão cultural. As diferenças biológicas entre mulheres e homens também têm por base fatos culturais, não são um dado natural no qual a cultura não incide. É necessário também entender o lado cultural do que se tem por “natural”. 34

 

 

23     apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares etc.).35

Uma divisão de trabalho entre mulheres e homens existiu em diversos tipos de sociedades e sistemas econômicos, mas é no capitalismo que ela se torna essencial e indissociável ao sistema

36

. Torna-se parte da estrutura capitalista de exploração,

acumulação e circulação de capital. Com o discurso da biologia, de que as diferenças entre os sexos teriam origem na natureza e não na cultura, fica ainda mais fácil mascarar a opressão feminina, pois esta perspectiva tira qualquer caráter político da divisão sexual do trabalho. Nesse sentido também, a formação econômico-social capitalista, estágio mais avançado das sociedades baseadas na propriedade privada dos meios de produção, se configura como aquela que, por ter desnudado o fundamento econômico de si própria, necessita construir a mais ampla e bem elaborada capa sob a qual ocultar as injustiças sociais.37

E, como afirmado acima, essa é uma função que o capitalismo realiza muito bem, pois consegue construir tal ideologia mesmo para as próprias mulheres, vítimas do patriarcado, mas ao mesmo tempo criadas para ajudar a mantê-lo e consequentemente manter sua exploração. A divisão sexual do trabalho hierarquiza o trabalho reprodutivo em relação ao produtivo: o primeiro não é valorizado pela sociedade, em primeiro lugar porque não é enxergado enquanto trabalho, e sim como algo que a mulher/esposa/mãe faz por amor e dedicação a sua família, e em segundo lugar pois não é remunerado. Essa hierarquização torna o trabalho doméstico feminino completamente invisibilizado em relação ao trabalho produtivo, pois é este último que traz a renda para a família, enquanto, pela lógica do capital, o trabalho reprodutivo não cria nem agrega valor, e assim seria inferior em relação ao produtivo, que é o único valorizado socialmente. Cria-se uma base dual para a família: o                                                                                                                

35

SAFFIOTTI, Heleith. A mulher na sociedade de classes: Mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013, p. 234. 36 “O aparecimento do capitalismo se dá, pois, em condições extremamente adversas à mulher. No processo de individualização inaugurado pelo modo de produção capitalista, ela contaria com uma desvantagem social de dupla dimensão: no nível superestrutural, era tradicional uma subvalorização das capacidades femininas traduzidas em termos de mitos justificadores da supremacia masculina e, portanto, da ordem social que a gerara; no plano estrutural, à medida que se desenvolviam as forças produtivas, a mulher vinha sendo progressivamente marginalizada das funções produtivas, ou seja, perifericamente situada no sistema de produção”. SAFFIOTTI, Heleith. A mulher na sociedade de classes: Mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013, ps. 65/66. 37 Idem, p. 330.

 

 

24     homem provedor e a mulher na função de dona-de-casa e mãe, e mesmo que ela trabalhe, sua renda será vista como simplesmente complementar à do homem. Essa forma particular da divisão social do trabalho tem dois princípios organizadores: o princípio de separação (existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem “vale” mais que um trabalho de mulher)38. Esses princípios são válidos para todas as sociedades conhecidas, no tempo e no espaço. Podem ser aplicados mediante um processo específico de legitimação, a ideologia naturalista. Esta rebaixa o gênero ao sexo biológico, reduz as práticas sociais a “papéis sociais” sexuados que remetem ao destino natural da espécie. Se os dois princípios (de separação e hierárquico) encontram-se em todas as sociedades conhecidas e são legitimados pela ideologia naturalista, isto não significa, no entanto, que a divisão sexual do trabalho seja um dado imutável.39 Acontece que o trabalho doméstico, em primeiro lugar, cria sim valor: ao transformar, por exemplo, a comida em alimento há agregação de valor. Além disso, a gratuidade e desvalorização criam um cenário de exploração da força de trabalho feminina, que é necessária para a lógica de reprodução do capital, pois é a partir do trabalho da reprodução que se permite o cotidiano da vida das pessoas (família e do homem trabalhador da esfera produtiva) e, ainda, é pelo trabalho da mulher que se reproduz a força trabalhadora, que se criam as novas gerações que poderão ser utilizadas como mão de obra40. Explica-se: o trabalho doméstico, gratuito e invisível da forma como é realizado,                                                                                                                 38

“Na sociedade de classes, o trabalho, a par de ser alienado enquanto atividade, gera um valor do qual não se apropria inteiramente o indivíduo que o executa, quer seja homem, quer seja mulher. Esta, entretanto, se apropria de menor parcela dos produtos do que faz o homem. É óbvio, portanto, que a mulher sofre mais diretamente do que o homem os efeitos da apropriação privada dos frutos do trabalho social. Seria ilusório, todavia, pensar-se que a maior exploração de que é alvo a mulher reverte em benefício do homem. As categorias de sexo, diferentemente, por exemplo, das minorias religiosas ou étnicas, não gozam do mínimo de autonomia. Cada uma é o complemente necessário da outra na função reprodutora e ambas são parcelas da família enquanto unidade de consumo”. SAFFIOTTI, Heleith. A mulher na sociedade de classes: Mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013, p. 73. 39 HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. “Novas configurações da divisão sexual do trabalho”. In: Cadernos de Pesquisa, v.37, n.132, p. 595-609, 2007. 40 “Como aponta Helena Hirata (2002), foi necessário que o movimento feminista denunciasse a invisibilidade deste tipo de trabalho, sua importância para o desenvolvimento social e econômico e sua relação indissociável do processo de organização da sociedade para que se começasse a discutir criticamente a separação artificial entre trabalho produtivo e reprodutivo. Ao evidenciar a separação dessas duas esferas como um constructo social, que alimenta o capitalismo, o movimento feminista trouxe a exploração do trabalho das mulheres para dentro das análises do sistema capitalista e da sociedade em geral, denunciando sua posição fundamental na organização econômica e social e que até então permanecia apagada (Faria e Nobre, 2002; 2003).” FREITAS, Taís Viudes e GODINHO, Tatau. “Divisão sexual do trabalho e mercado de trabalho brasileiro” In Revista do Dandara, São Paulo, nº01, p. 33

 

 

25     não entra “na conta” do capital: é o que permite que o homem da família, por exemplo, trabalhe mais, pois não realiza as tarefas, que também deveriam ser sua, com a casa e com a família e é o que permite que as mulheres ocupem cargos mais precarizados e seus salários sejam vistos como complemento do masculino, visto como o verdadeiro provedor para as necessidades da casa, e que as mulheres aceitem trabalhos de meio período, irregulares, com salários baixos ou que não respeitam os direitos mínimos da trabalhadora. Não se poderia, portanto, vislumbrar a continuação do capitalismo sem a exploração do trabalho doméstico (das mulheres), da maneira como é, desvalorizado, pois assim tem-se uma base gratuita no sistema de produção. Se entrasse na conta final do capital, os lucros diminuíram, e haveria maior distribuição de renda, o que não interessa ao capitalista. A divisão sexual do trabalho, entre esferas produtivas e reprodutivas, cria também uma divisão entre espaço público e espaço privado. Se o trabalho reprodutivo, destinado às mulheres, é realizado no lar, será ele, portanto, sempre associado ao âmbito privado. Já o reprodutivo, dos homens, é realizado na rua, empresa, fábrica, trabalho fora do espaço da casa, portanto no espaço público. Essa divisão faz com que o espaço público seja de dominação masculina, excluindo as mulheres. Essa exclusão é grave se pensarmos que o espaço público é considerado o espaço político por excelência, sendo que o lar sempre foi colocado como espaço unicamente de competência da família (ou seja, realiza-se uma hierarquização de esferas, considerando a casa/lar/família como algo “apolítico”, que não deve ser publicizado). Mesmo que não se possa falar, desde que as mulheres integraram de maneira massiva o mercado do trabalho no Brasil, principalmente a partir da década de 8041, que elas não estão presentes no espaço público, é fato que não deixou de haver uma dominação masculina neste âmbito. A dificuldade de apropriação do “público” pelas

                                                                                                               

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“As desvantagens sociais de que gozavam os elementos do sexo feminino permitiam à sociedade capitalista em formação arrancar das mulheres o máximo de mais-valia absoluta através, simultaneamente, da intensificação do trabalho, da extensão da jornada de trabalho e de salários mais baixos que os masculinos (...)”.SAFFIOTTI, Heleith. A mulher na sociedade de classes: Mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013, p. 67. Trata-se da marginalização do trabalho feminino e tal cenário persiste ainda, pois as mulheres continuam tendo salários mais baixos que os homens, de maneira geral. Ainda, se considerarmos a exploração feminina pelo trabalho doméstico realizado no âmbito familiar, perceberemos que sua exploração será ainda maior, visto que este tipo de trabalho não é valorizado socialmente e nem remunerado, mas é essencial à continuidade do sistema capitalista, que explora também das contradições de gênero de maneira estrutural.

 

 

26     mulheres é ainda fator determinante da opressão de gênero, como será apresentado no próximo capítulo, que explora a relação de gênero com a apropriação do espaço urbano.42 Essa dicotomia público/privada foi (e é) crucial para a compreensão da opressão das mulheres, pois com ela surge a ideia de que tudo o que ocorre no âmbito da família, do lar, ou seja, no espaço privado, é problema apenas da família e não deve haver intervenção pública, nem de outras pessoas nem do Estado, para resolver. O problema dessa ideia é que legitima a violência contra a mulher, que ocorre em sua grande maioria por pessoas conhecidas (companheiros, maridos, familiares) exatamente no âmbito privado.43 É a base da expressão popular “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Acontece que são estes os casos nos quais é extremamente necessária a intervenção da sociedade, pois as mulheres vítimas de violência doméstica tem enorme dificuldade em sair dessa situação, pois dependem ou economicamente ou mesmo emocionalmente dos parceiros violentos, e talvez por não querer desmanchar o núcleo familiar, visto que ainda caberia a elas os cuidados dos filhos e do lar, em caso de separação do casal. Trata-se de situação muito frequente e muito delicada de se resolver, mas já existem, ainda que não resolvam a base estrutural do problema, medidas de proteção dessas mulheres e intervenção para que saiam dessa situação de violência, como a Lei Maria da Penha, criada exatamente para combater a violência doméstica; as delegacias especiais para mulheres (que são alvo de inúmeras críticas); entre outras.                                                                                                                

42

Atualmente, as mulheres ocupam menos de 10% dos assentos no parlamento brasileiro. Entretanto, 52,1% do eleitorado do país (74,4 milhões) é composto pelo sexo feminino, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/eleicoes-2014/reserva-de-vagas-para-mulheres-nao-traz-resultado-nasurnas-dizem-especialistas-3670.html Acesso em: 15 out 2014. 43 Estudo preliminar do Ipea estima que, entre 2009 e 2011, o Brasil registrou 16,9 mil feminicídios, ou seja, “mortes de mulheres por conflito de gênero”, especialmente em casos de agressão perpetrada por parceiros íntimos. Esse número indica uma taxa de 5,8 casos para cada grupo de 100 mil mulheres. Estima-se que a cada ano, no mínimo 527 mil pessoas são estupradas no Brasil, segundo estudo divulgado pelo IPEA. Desses casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. Segundo dados do Sinan, 89% das vítimas são do sexo feminino Entre os homens, só 14,7% dos incidentes aconteceram na residência ou habitação. Já entre as mulheres, essa proporção eleva-se para 40%. Cinco mulheres são espancadas a cada 2 minutos no país; 91% dos homens dizem considerar que “bater em mulher é errado em qualquer situação”. Uma em cada cinco mulheres consideram já ter sofrido alguma vez “algum tipo de violência de parte de algum homem, conhecido ou desconhecido”. O parceiro (marido ou namorado) é o responsável por mais 80% dos casos reportados. Disponível em: http://www.compromissoeatitude.org.br/sobre/dados-e-estatisticas-sobre-violencia-contra-asmulheres/ Consulta em: 15 out 2014.

 

 

27     Justamente pelos motivos expostos acima, uma das grandes reivindicações do movimento feminista foi (e é) a de afirmar (e reafirmar) que “o pessoal também é político”, de forma que o que acontece dentro do lar, visto como pertencente ao âmbito exclusivamente privado, mesmo que seja entre quatro paredes, é sim interesse da sociedade toda, que não pode aceitar violência, seja esta praticada na rua ou dentro de casa. É também uma reinvindicação para pôr fim nessa falsa dicotomia entre espaços público e privado. Tornar do privado um assunto público é necessário para que possa haver igualdade de gênero. Não há que se falar na família, no privado e na intimidade como refúgio das dificuldades enfrentadas pelas mulheres na rua e no espaço público, porque na esfera privada são vividas duras formas de opressão e violência. A associação da mulher ao privado e do homem ao público é fruto da divisão sexual do trabalho, fruto de desigualdade e injustiça. Uma maneira, portanto, de diminuir tal desigualdade é exatamente trazendo para o domínio público/político a esfera do lar. Além disso, trata-se de uma falsa dicotomia entre vida não-doméstica e doméstica, visto que muitas vezes as duas esferas se misturam. Ao dizer que o pessoal é político, as feministas querem dizer que as relações entre os sexos, mesmo que privadas, não estão alheias a dinâmica de poder, que tem historicamente sido colocada como a face contrária à política. É impossível deixar a vida doméstica alheia ao “político”, ao público, e mesmo ao Estado – a questão é entender como o Estado vai influenciá-la. Portanto, as feministas afirmam que a distinção liberal existente entre público e doméstico é ideológica no sentido de que apresenta a sociedade a partir de uma perspectiva masculina tradicional baseada em pressupostos sobre diferentes naturezas e diferentes papéis naturais de homens e mulheres, e de que, como concebida atualmente, não pode servir como um conceito central a uma teoria política que irá, pela primeira vez, incluir todas nós.44

3.2 Mulheres no mercado de trabalho

Dentro da divisão sexual do trabalho, um ponto importante é que grande parcela das mulheres também está presente no mercado de trabalho (trabalho reprodutivo). Isso não                                                                                                                 44

 

OKIN, Susan Moller. “Gênero, o público e o privado”. In: Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2), 2008.

 

28     significa, porém, que deixem de realizar o trabalho da casa. Surge, então, o que é denominado de “dupla jornada de trabalho”, que é a presença das mulheres no mundo do trabalho, mas a continuidade de sua responsabilidade pelos cuidados dos trabalhos da casa, da família e dos filhos e das filhas. Pode se falar ainda em uma tripla jornada quando participam da política, fora as dificuldades que este espaço proporciona às mulheres (dados do nº de politicas mulheres no brasil); ou mesmo tripla jornada quando decidem estudar em escolas para adultos ou realizar curso superior. A partir dos anos 1980, realizou-se no mercado de trabalho brasileiro um grande aumento da participação feminina. Mesmo que já existisse antes dessa data mulheres que participavam da esfera produtiva45, foi a partir daí que o mercado assistiu um expressivo crescimento das mulheres, que remodelou a vida feminina e a própria sistemática dessa esfera da vida social, caracterizando um processo de feminilização do mundo do trabalho. Assim mesmo, por mais que exista uma porcentagem significativa de mulheres no mundo laboral, não se pode afirmar que não exista desigualdade entre homens e mulheres ou que estejam em uma situação equilibrada em relação a possibilidades, salários e condições de empregos. As mulheres trabalhadoras possuem empregos mais precarizados e menos valorizados. Nota-se também que há uma diferenciação entre os trabalhos predominantemente femininos e masculinos, por mais que hoje já se encontre diversas funções mistas. As mulheres concentram os empregos relacionados às suas supostas características naturais, como o emprego de domésticas, de cuidado de crianças, idosos ou doentes, ou qualquer função que tenha como base o cuidado e manutenção do cotidiano das pessoas e da família. É sempre a ideia do que seria “ser mulher” por natureza que vai determinar as suas vidas. Ainda, são as mulheres que sofrem mais com o desemprego; e com a precarização, especialmente quando são retiradas do mercado de trabalho para em seguida serem reinseridas em condições mais precárias e menos valorizadas, onde muitas vezes não há garantia de direitos mínimos trabalhistas.

                                                                                                               

45

“A mulher das camadas sociais diretamente ocupadas na produção de bens e serviços nunca foi alheia ao trabalho. Em todas as épocas e lugares tem ela contribuído para a subsistência de sua família e para criar a riqueza social”. SAFFIOTTI, Heleith. A mulher na sociedade de classes: Mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013, p. 61.

 

 

29     Esse é o caso dos processos de terceirização e do trabalho em domicílios, bem como do trabalho em tempo parcial – que normalmente é acompanhado por salários reduzidos – e do trabalho informal. Nestes as mulheres estão em maioria.46

A articulação entre trabalho doméstico e a profissão das mulheres no mundo do trabalho é ponto crucial para compreender como se desenvolve a carreira profissional feminina, o que afeta mulheres de todas as classes sociais, ainda que de diversas maneiras. Ter um emprego significa participar da vida comum, ser capaz de construí-la, sair da natureza para fazer a cultura, sentir-se menos insegura na vida. Uma atividade ocupacional constitui, portanto, uma fonte de equilíbrio. Todavia, o equilíbrio da mulher não pode ser pensado exclusivamente como o resultado do exercício de uma atividade ocupacional. Seu papel na família é contrapartida necessária de suas funções profissionais, nas sociedades capitalistas. Sua força de trabalho ora se põe no mercado como mercadoria a ser trocada, ora se põe no lar enquanto mero valor de uso que, no entanto, guarda uma conexão com a determinação enquanto mercadoria da força de trabalho do chefe de família. Por tudo isso e ainda pelo arquétipos femininos que a sociedade constrói e alimenta, a adaptação da mulher às duas ordens de papéis que lhe cabe executar (se simultaneamente, de modo intermitente em grande parte dos casos) é tarefa complexa.47 Para as aquelas das classes econômicas mais favorecidas, que normalmente são as mesmas que se inserem na minorias crescente de mulheres em carreiras de nível superior e em cargos de chefia, a questão se resolve a partir da contratação de outras mulheres para realizarem suas atividades domésticas. A presença da empregada doméstica é marcante nos lares das famílias brasileiras.48

A mulher rica consegue então tirar o peso do trabalho doméstico de suas costas, mas para isso precisa contratar outra mulher em seu lugar, em um trabalho precário, informal e com baixos salários. Já para aquelas mulheres que não podem contratar outras mulheres para trabalharem em seu domicílio, por uma questão de renda, e por não possuírem o tempo preciso para conciliar ambas atividades da esfera familiar e da profissional e remunerada, a solução acaba sendo inserir-se no mercado em trabalhos flexíveis, que tem menor tempo de trabalho mas são caracterizados por baixos salários, informalidade e ausência de direitos trabalhistas. Todas essas obrigações impostas às mulheres geram uma sobrecarga de funções, principalmente da mulher da classe trabalhadora, e mantém a naturalização da exclusividade da responsabilidade feminina pelos cuidados da casa e da família, colocandoas em situação de maior dificuldade financeira, pela dificuldade de conciliar ambas as                                                                                                                 46

FREITAS, Taís Viudes e GODINHO, Tatau. “Divisão sexual do trabalho e mercado de trabalho brasileiro” In Revista do Dandara, São Paulo, nº01, p. 32. 47 SAFFIOTTI, Heleith. A mulher na sociedade de classes: Mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013, p. 96. 48 FREITAS, Taís Viudes e GODINHO, Tatau. “Divisão sexual do trabalho e mercado de trabalho brasileiro” In Revista do Dandara, São Paulo, nº01, p. 35.

 

 

30     funções e ainda manter a família49. Será analisado, no capítulo final, o que ocorre quando são as mulheres que chefiam o domicílio e têm que agregar em si todas as funções da casa e do mundo do trabalho. Importante é, ainda, lembrar que a opressão de raça, ao lado da de classe e gênero, também é fundamental para compreender o local que cabe aos negros no mercado de trabalho e, mais ainda, o local que cabe à mulher negra (e pobre) na lógica capitalista. As opressões não se somam: não se pode dizer que uma trabalhadora negra seria mulher + negra + pobre. Criam-se novas categorias, pois a opressão se molda a cada um desses fatores e na junção deles. Por isso é importante a ideia de interseccionalidade50, que estuda a maneira como as diferentes formas de opressão (classe, gênero e raça) se relacionam. Para Collins (2000) há, nas sociedades marcadas pelo racismo e sexismo, uma matriz de dominação que se caracteriza por opressões que se intersectam. Neste sentido, um modelo de “soma de opressões” comumente acionado para afirmar que mulheres negras sofrem dupla ou tripla discriminação, é incapaz de compreender estas interconexões entre formas distintas de opressão se sobrepõem e se influenciam mutuamente. Há que se ter em mente, segundo Collins (2000), que gênero, raça e classe social são sistemas distintos de opressão subjacentes à única estrutura de dominação. E, mais uma vez, afirma Collins (2000), uma mera comparação entre sistemas de opressão é contraproducente, pois corre-se se o risco de hierarquizar formas de opressão que são, em ultima analise, completamente imbricadas umas às outras. (...) A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as conseqüências estruturais e

                                                                                                               

49

“O movimento feminista reivindica que não apenas o trabalho domestico e de cuidados deva ser tomado como uma responsabilidade igualitária entre homens e mulheres, como também cabe ao Estado assumir parte deste tipo de atividade, inclusive pela oferta de políticas públicas, como por meio de restaurantes e lavanderias coletivos, creches, ampliação da jornada escolar, entre outros (Silveira, 2008).” FREITAS, Taís Viudes e GODINHO, Tatau. “Divisão sexual do trabalho e mercado de trabalho brasileiro” In Revista do Dandara, São Paulo, nº01, p. 35. Ainda, sobre a transformação da situação de opressão da mulher: “A emancipação feminina é, pois, problema complexo, cuja solução não apresenta apenas uma dimensão econômica. Mesmo a mulher economicamente independente sofre, na sua condição de mulher, o impacto de certas injunções nacionais e internacionais. Desde o desenvolvimento da indústria farmacêutica até as ideologias, tudo reflete na condição feminina. Eis por que qualquer ética socialista não pode perder de vista a condição singular em que tem lugar a existência feminina.” SAFFIOTTI, Heleith. A mulher na sociedade de classes: Mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013, p. 135. 50 “No contexto brasileiro Luiza Bairros partilha de opinião semelhante à de Crenshaw, ao afirmar que: raça, gênero, classe social e orientação sexual reconfiguram-se mutuamente formando [...] um mosaico que só pode ser entendido em sua multidimensionalidade. [...] Considero essa formulação particularmente importante não apenas pelo que ela nos ajuda a entender diferentes feminismos, mas pelo que ela permite pensar em termos dos movimentos negro e de mulheres negras no Brasil. Este seria fruto da necessidade de dar expressão a diferentes formas da experiência de ser negro (vivida através do gênero) e de ser mulher (vivida através da raça) o que torna supérfluas discussões a respeito de qual seria a prioridade do movimento de mulheres negras: luta contra o sexismo ou contra o racismo? - já que as duas dimensões não podem ser separadas. Do ponto de vista da reflexão e da ação políticas uma não existe sem a outra. (BAIRROS, 1995: 461).” RODRIGUES, Cristiano. “Atualidade do conceito de interseccionalidade para a pesquisa e prática feminista no Brasil”. In: Fazendo Gênero 10: Desafios Atuais dos Feminismos, 2013.

 

 

31     dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras.51 Conquanto seja o fator sexo um critério menos conveniente do que o fator raça para a conservação o domínio das camadas privilegiadas, constitui sempre um elemento pelo menos potencialmente discriminador e, portanto, estratificatório. Nesta medida, contribui substancialmente para fornecer aos diferentes tipos de sociedade assentadas sobre a economia de livre iniciativa a camuflagem de que necessitam a fim de amenizarem as tensões sociais por ela geradas e, portanto, de resguardarem sua estrutura de mudanças fatais para o modo de produção vigente ou aceleradoras da transformação interestrutural (CREESHAW, 2002:177).52

Quando é observada a desigualdade social no Brasil, percebe-se sem dúvida que existe uma grande diferença social entre negros/as e brancos/as. Não poderia esperar-se outra coisa de um país que foi um dos últimos no mundo a abolir a escravidão e que nunca criou medidas de inserção do negro, escondendo-se no discurso da igualdade racial formal que ignora as condições materiais de desigualdade e o racismo ainda tão forte na sociedade brasileira.53 “No caso brasileiro, nossa pobreza, de modo geral, tem cor: é mulata, negra; e isso remete imediatamente à experiência da escravidão, instituição fundamental para a acumulação econômica no Brasil por trezentos anos.54” A desigualdade econômica no Brasil é gritante: entre a classe trabalhadora, são os negros que se encontram em situação mais vulnerável e precária; e ainda, dentro os negros, é a mulher negra a que se encontra na situação mais precária. Relacionando com o que foi colocado no primeiro capítulo desse trabalho, quando pensamos na dicotomia centro-periferia, haverá uma diferença de ocupação da cidade pelas classes sociais, na qual a classe economicamente dominante ocupa o centro enquanto a classe trabalhadora fica na região periférica. É no centro que se concentram as ofertas de emprego e de serviços necessários à vida cotidiana da população – a classe trabalhadora                                                                                                                 51

Citado em: RODRIGUES, Cristiano. “Atualidade do conceito de interseccionalidade para a pesquisa e prática feminista no Brasil”. In: Fazendo Gênero 10: Desafios Atuais dos Feminismos, 2013. 52 SAFFIOTTI, Heleith. A mulher na sociedade de classes: Mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013, p. 329. 53 Segundo pesquisa do IBGE, negros ganharam 57,4 % do salário dos brancos em 2013. Em termos numéricos, estamos falando de uma média salarial de R$ 1.374,79 para os trabalhadores negros, enquanto a média dos trabalhadores brancos ganham R$ 2.396,74. http://umhistoriador.wordpress.com/2014/01/30/racismo-no-brasil-negros-ganharam-574-do-salario-dosbrancos-em-2013. 54 REGO, Walquiria Leão; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania. São Paulo: Editora UNESP, 2014, p.20.

 

 

32     tem que passar por um esforço diário de transporte precário, para se locomover de áreas extremamente distantes dos locais de trabalho (e dos serviços de maneira geral), perdendo grande parte do seu dia dentro de transportes precários e cheios. Quando analisamos quem é essa população, a qual não resta alternativa financeira que não a periferia distante e precária para morar, nota-se que a desigualdade racial também se manifesta especialmente: o centro (expandido), área mais rica da cidade, é predominantemente branco enquanto a periferia, a parte pobre, é predominantemente negra. Não é somente a desigualdade de classe e de raça que se manifestam no território urbano, mas também a desigualdade de gênero.

 

 

33    

4. MULHERES E CIDADE

Como tentamos argumentar ao longo dos capítulos anteriores, a cidade é precária para a maioria da população, que sofre diariamente com a falta de acessos aos serviços mais básicos e fundamentais para a vida cotidiana, como moradia, oferta de emprego, serviços coletivos, nos quais se inclui saúde, educação, transporte e lazer. Mas, é fundamental a utilização da categoria gênero para compreender a materialidade da desigualdade urbana na perspectiva feminista: são atribuídas a homens e mulheres diferenças que comprovam que o pensamento masculino constrói as cidades. Por isso devese ter em perspectiva que gênero é um dos maiores elementos articuladores das relações sociais no contexto urbano. Com base na divisão sexual do trabalho, base da sociedade capitalista patriarcal, tem-se influência das atribuições domésticas femininas que se traduzem fortemente na vida pública. As mulheres, dentro dessa divisão, são consideradas responsáveis pela esfera reprodutiva, que é realizada no espaço doméstico, o que acaba transformando-as nas grandes (e únicas) responsáveis do espaço privado, e privando-as da vivência mais intensa, da própria apropriação do espaço público, local das atividades produtivas, que são vistas como “naturalmente” masculinas. Acontece que as mulheres também precisam (e mais do que isso, querem) participar da vida no espaço público, mas toda vez que nele se encontram, têm de levar consigo as responsabilidades oriundas do mundo privado. Ainda, a desigualdade entre homens e mulheres, a opressão feminina, constitui um dos pilares do sistema capitalista, sendo que este não poderia sustentar-se sem tal base patriarcal. Mais, se a cidade é fruto das relações sociais, e não apenas palco aonde estas se reproduzem, materializará o espaço urbano todas as contradições inerentes ao sistema econômico, que é uma das dimensões do social. E mais ainda, se a cidade também é em si uma construção social (assim como a desigualdades de gênero, classe e raça) terá também o espaço urbano como base tais opressões e será este em si próprio instrumento opressor do sistema. Nesse sentido,

 

 

34     Falar das desigualdades não é apenas tratar do problema do ponto de vista do acesso desigual aos espaços e processos das cidades; é, acima de tudo, reconhecer que as desigualdades entre mulheres e homens não atravessam a produção e reprodução das cidades, mas são, por princípio, elementos constituintes das mesmas. Esta é uma distinção importante, na medida em que se atuamos apenas no plano das desigualdades de acesso, estaremos trabalhando os impactos da estrutura na vida das mulheres - o que é importante, mas não o suficiente –, enquanto que ao assumirmos as desigualdades de gênero como estruturadoras e dinamizadoras das cidades estaremos enfrentando a questão do poder e consequentemente dos privilégios que os homens têm com a conservação dessa estrutura.55

As mulheres estão, ainda que de maneira muito mais precária que os homens, presentes no mercado de trabalho. As mulheres da classe trabalhadora sempre estiveram presentes nesse mercado, pois as famílias pobres não poderiam sobreviver apenas com o salario do homem provedor; e a partir da década de 80 houve grande inserção de mulheres no mundo do trabalho provenientes de todas as classes sociais. Se elas estão presentes no mundo da produção, significa que estão presentes também no espaço público, ou seja, a cidade também conta com alta participação das mulheres nas ruas. Porém há uma diferença fundamental entre estar presente e apropriar-se da cidade, e este último ponto não faz parte da realidade das mulheres. Uma coisa é constatar a presença das mulheres na cidade, outra completamente distinta é pensar a produção desse espaço tendo como preocupação política e analítica a estrutura e a dinâmica das relações das desigualdades entre mulheres e homens. Falar das desigualdades não é apenas tratar do problema do ponto de vista do acesso desigual aos espaços e processos das cidades, é, acima de tudo, reconhecer que as desigualdades entre mulheres e homens não atravessam a produção e reprodução das cidades, mas são, por princípio, elementos constituintes das mesmas.56 Todo tipo de relação social tem que se realizar no espaço, não seria diferente no tocante ao gênero. Mulheres vivenciam cidade de maneira diferente dos homens – gênero interfere na mobilidade feminina e utilização dos espaços públicos e privados. Especialmente pela dicotomia entre trabalho produtivo e reprodutivo (divisão sexual do trabalho), que resulta em uma divisão entre espaços público e privado, na qual o último seria aquele destinado às mulheres, estas atuam de maneira muito presente nos movimentos de luta por moradia na cidade. O trabalho reprodutivo, historicamente destinado às mulheres (cuidados com a casa, com a família, atenção aos filhos) acaba por dar um valor                                                                                                                 55

GOUVEIA, Taciana. “Mulheres: sujeitos ocultos das/nas cidades”. Disponível em http://www.forumreformaurbana.org.br/biblioteca/artigos-de-interesse/51-genero-e-feminismo/128-mulheressujeitos-ocultos-das-nas-cidades. Acesso em 15 out 2014. 56 Idem.

 

 

35     ao “lar” diferenciado para as mulheres. Ainda, se considerarmos que muitas vezes estas encontram-se no mercado informal do trabalho e que realizam normalmente trabalhos, ainda que considerados produtivos, dentro do espaço doméstico, o “lar” engloba a fonte de renda, ainda que precária, de muitas mulheres. Por isso que são muitas as mulheres presentes nesses movimentos e também muitas são lideranças, que é algo pouco observado nos movimentos sociais de maneira geral.57 Também são articuladoras de mobilizações de bairro e organizações menores A centralidade da mulher é evidente na vida urbana. Por exemplo, as mulheres vêm definindo sua importância na administração da escassez nos grupos domésticos de baixa renda. ‘No desempenho desse papel, as mulheres articulam redes de parentesco e apoio mais amplos, que significam não apenas a mobilização de recursos materiais’. Além disso, é evidente como o projeto de aquisição da casa ganha centralidade na vida das mulheres, já que esse é o seu lugar no mundo, é onde ela tem importância social e simbólica. Assim como o urbano, a vida das mulheres é delineada pelo espaço privado, da moradia, e, por isso, a forma urbana das cidades reflete as desigualdades de gênero. A dualidade entre direitos e deveres se confunde pelo fardo de se responsabilizar pelo bemestar dos outros que estão em sua volta, já que servir é a palavra de ordem tanto no espaço da moradia como no trabalho e no da sua memória coletiva. Historicamente, sua identidade com a cidade é pautada segundo as regras dos homens. Sua história é escrita pelo pai, pelo irmão, pela mãe, pelo marido, pelos filhos, pela mídia, pela política.58

E mais, considera-se que as características femininas “naturais” são a delicadeza, cuidado, compreensão e submissão em contraposição a força e coragem pelo lado masculino, a luta de resistência na cidade e a luta por moradia são provas de as mulheres são protagonistas nesse processo. O despejo tem um impacto direto e violento na vida das mulheres, o que expressa a própria forma de organização da sociedade e a relação social do sexo. O despejo ocorre, normalmente, no momento em que os homens estão na rua, em tese trabalhando e realizando a atividade produtiva valorizada socialmente e as mulheres estão em casa em suas atividades de “cuidado” e reprodutivas. É nesse momento que o oficial de justiça, acompanhado por força policial em alguns casos, chega. Por serem consideradas mais frágeis, as mulheres são os principais alvos desses profissionais, pois acreditam que não apresentarão resistência para serem expulsas de suas casas. E o despejo ocorre “sob uso da                                                                                                                 57

A presença das mulheres na política institucional é muito baixa, mas também nos cargos de liderança de movimentos sociais, a política não institucional por excelência. Nesse sentido, o movimento por moradia seria uma grande exceção, pois conta com muitas mulheres na direção, pelos motivos analisados acima. 58 BARBOSA, Maria de Lourdes da Silva e OLIVEIRA, Maria Letícia. “O cajueiro amigo – reflexões sobre o impacto dos despejos na vida das mulheres” In Ser, fazer e acontecer: mulheres e o direito à cidade. Recife: SOS Corpo, 2008, p.56

 

 

36     violência simbólica e a ameaça da violência física, tendo seus móveis e utensílios jogados na rua, as mulheres são subjugadas e também “jogadas fora” como mais um objeto”59. Mas não é sem resistência que os despejo ocorrem. A maioria das pessoas que compões as ocupações de terrenos e imóveis, que estão presentes no movimento por moradia e nas mobilizações, o que se chama de “base” dos movimentos sociais de luta por reforma urbana, são mulheres. E se são elas que estão presentes em maioria nesses espaços, também serão ela que terão que enfrentar (e resistir) à repressão contra esses movimentos e ao despejo mais fortemente, seja o delas próprias ou de outras mulheres. “O despejo, por sua vez, deve ser visto como uma das formas de violência que, aliada à violência doméstica e sexual, mais fragiliza as mulheres pobres nas suas possibilidades de construção de autonomia e auto-determinação”.60 Há também que se levar em consideração um fator fundamental para a insegurança que as mulheres encontram na rua: medo da violência e assédio. Espaço público por excelência e que reflete a dominação masculina, a rua é muitas vezes hostil às mulheres. Elas vivenciam o risco constante de serem vítimas de violência sexual e os assédios diários que sofrem (as ditas “cantadas”), que de uma maneira ou de outra, acabam por reafirmar que aquele espaço, o público, a rua, a cidade, não lhes pertence. Sair à rua, ainda que atividade cotidiana de todos e todas, tem um peso muito diferente para as mulheres, que devem sempre se defender e reafirmar o seu direito de estar ali. A questão do assédio sofrido pelas mulheres na rua é a prova da opressão da mulher no espaço urbano. Diariamente as mulheres são submetidas a violências verbais e até físicas pelos homens na rua: são as chamadas “cantadas”. Pode haver quem argumente que estas são apenas “elogios” e que as mulheres deveriam sentir-se lisonjeadas de recebê-las. Nós, ao contrário, afirmamos que o que acontece com as mulheres na rua é assédio e representa a violência oriunda de nosso sistema patriarcal. Os homens, ao dizer alguma “cantada” (uma ofensa) só estão rearfimando que a rua, espaço público por excelência, não as pertence – é uma dominação de gênero, na qual um grupo de acha no direito de constranger o outro, e isso é legitimado por grande parcela da sociedade.

                                                                                                                59

60

 

Idem, p.54. Ibidem, p.57.

 

37     Cada vez que uma mulher é assediada na rua, a mensagem implícita é a de que o corpo feminino, quando exposto no âmbito público, não mais pertence às mulheres. É a objetificação do corpo feminino, que cria a dicotomia entre sujeito e objeto, sendo os homens os sujeitos e a mulher o objeto, este sempre subordinado ao sujeito que é quem tem as escolhas e toma as atitudes. Logo, dentro dessa lógica, quando uma mulher se encontra no espaço público, deverá lidar com as “regras” (classistas, machistas e racistas) deste âmbito, mesmo que estas estejam lá para oprimi-las. Essa ideia se comprova quando pensamos que, estatisticamente, as mulheres estão mais sujeitas a violência no espaço privado, sendo que quem está mais sujeito a violência no espaço público são os homens. Porém, com todo o espaço público hostilizado e com a dominação masculina, as mulheres sentem-se inseguras nos espaços públicos das cidades. A falta de iluminação, de transporte público que as deixe perto de casa (para que não precisem, por exemplo, voltar a pé sozinhas à noite em uma rua deserta), a existência de terrenos baldios não murados, ou mesmo de grandes construções muradas fechadas, até a falta de segurança em praças, parques, etc, faz com que as mulheres ao saírem às ruas sintam medo. Como pode admitir-se que uma cidade seja hostil à metade de sua população? Essa é mais uma vez a prova de que as cidades não são pensadas para (e nem por) mulheres. É a mulher pobre trabalhadora a que mais sofre com a desigualdade de acesso ao espaço urbano, pois sofrem o que sofre a classe trabalhadora com o transporte precário, moradia precária, moradia distante do trabalho, quase nenhum acesso a lazer; e sofrem também o que sofrem as mulheres de maneira geral, como a insegurança na rua, o medo de sofre alguma violência física, como a sexual, ou o assédio nas ruas; e ainda sofrem pela condição de mulheres pobres, pois devem arcar com a dupla jornada de trabalho, sendo as responsáveis pela manutenção do lar e da família com recursos escassos, pela dependência de serviços públicos que são extremamente precários e distantes, como o acesso à saúde, educação dos filhos e das filhas, etc. Importante lembrar que a raça/etnia também deve ser levada em consideração, pois a desigualdade de gênero e de classe estão com ela (e entre si) interligadas, são as três formas que estruturam o sistema econômico, baseado na opressão. Analisaremos a interligação entre opressão de classe, gênero e raça no ambiente urbano, com análise das mulheres chefes de família, que exemplificam bem esse sistema.

 

 

38     A questão da violência contra a mulher no espaço público é ainda legitimada quando se observa o discurso em torno de casos como os de estupro: a as pessoas, de maneira geral, querem saber se as mulheres vítimas dessa violência estavam andando sozinhas na rua, o que faziam tão tarde em uma região conhecida por ser perigosa e, inacreditavelmente, como estavam vestidas. É uma inversão da culpa do agressor para a vítima, uma mulher que estava apenas vivendo seu cotidiano (não importa com quem estava, aonde e nem como estava vestida) é culpabilizada por ter sido agredida. Eis a lógica de uma sociedade sexista, na qual há dificuldade de entender que o corpo da mulher pertence somente a ela e ela pode fazer o que quiser com ele. Ao invés de se entender que a agressão foi culpa do agressor, culpabilizam a vítima, pois por ser mulher, mais “frágil”, deve tomar certas precauções ao andar na cidade. Por isso, o direito à cidade tem que visar combater o sexismo, expressão da sociedade patriarcal, que também se manifesta nas ruas e na própria constituição de cidade. Não ter essa perspectiva é no fim colaborar com a desigualdade de acesso ao espaço urbano entre homens e mulheres, já que considera-lo neutro é uma situação de opressão: a cidade é em si masculina, construída por homens para homens.

 

 

39    

5. MULHERES CHEFES DE FAMÍLIA

Tomando por partida a ideia de que a cidade demonstra e cria desigualdade, e que as mulheres, principalmente as mulheres pobres, têm maior dificuldade de acesso a bens e serviços urbanos e à cidade em si, trataremos a seguir das mulheres chefes de família, uma enorme parcela da população que tem sido considerada uma das mais vulnerabilizadas, que expressam e sofrem com a intersseccionalidade de opressões (raça, classe e gênero), que também se manifestam de maneira concreta no território urbano. A década de 90 é marcada por uma restruturação produtiva e um novo padrão de incorporação da força de trabalho, de maneira que foi um marco para o aumento da presença das mulheres no mercado. Houve um reflexo no interior das famílias, pois as mulheres tiveram que entrar (ou permanecer) de forma massiva no mercado para poder manter os rendimentos familiares no nível anterior. Nesse mesmo período, as cônjuges e chefes femininas, que se caracterizam por padrão de inserção marcado por ocupações precárias, passaram a ter maior peso entre os ocupados da família. As possibilidades de expansão de sua inserção no mercado de trabalho são, principalmente, em ocupações precárias, tais como assalariadas sem carteira assinada, emprego doméstico, autônomas e trabalhadoras familiares, que oferecem baixos rendimentos.61

A presença da mulher no mercado de trabalho é, portanto, marcada pela precariedade, conforme já desenvolvemos nos capítulos anteriores. Observa-se que vem ocorrendo um crescente aumento no número de domicílios brasileiros que têm como referência uma pessoa do sexo feminino. Nota-se uma participação crescente da participação das mulheres chefes de família com ou sem cônjuge na composição dos rendimentos familiares. A renda da mulher ganha um papel importante para a manutenção da família, mesmo que se refira a ela, muitas vezes, como “renda complementar” a do companheiro (no caso de mulheres com cônjuge) ainda que este esteja desempregado ou tenha salário mais baixo do que o dela.

                                                                                                                61

MONTALI, Lilia. “Provedoras e co-provedoras: mulheres-cônjuge e mulheres-chefe de família sob a precarização do trabalho e o desemprego”. In: XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Abep, Caxambu, 2006, p.3.

 

 

40    

Segundo Berquó 62 , as chefias femininas crescem no país como um todo, é um

fenômeno tipicamente urbano63, a maioria é do tipo monoparental, destacam-se as mulheres mais jovens, separadas, negras, mais pobres e com baixo grau de escolaridade. A grande concentração da chefia feminina encontra-se nas camadas pobres, visto que a própria condição de pobreza, e muitas vezes miséria, conduz as mulheres ao mercado de trabalho em situações que vão desde o compartilhar a manutenção da casa com o companheiro, até responsabilizar-se sozinha pelo domicilio. Outras variáveis se apresentam como esclarecedoras da questão, como aquelas que dizem respeito ao próprio entendimento do termo “chefia feminina”. Geralmente este é associado à negação da chefia masculina, seja pela ausência do parceiro no domicílio, seja pela condição de viúvas, mães solteiras, ou separadas com dependentes. Mas esse tipo de entendimento é limitado, pois desconsidera não só a diversidade de modelos familiares presentes nas sociedades atuais, mas a diversidade de chefia (tipo e quantidade) que as mesmas podem absorver. Partindo do fato de que as mulheres não se constituem como um grupo homogêneo e universal, pelo contrário, são heterogêneas e estão situadas em contextos diversos e condições distintas, é que se pode afirmar que o próprio entendimento da questão “mulheres chefes de família” deve considerar também uma diversidade de categorias, visto que ela perpassa outras dimensões além de gênero, como classe, raça/etnia e idade/geração (Macedo, 2011).64

De acordo com United Nations65, pode-se encontrar três tipos de domicílio chefiado por mulher: (a) domicílios compostos por somente uma pessoa; (b) domicílios onde há mulheres e crianças mas não homens adultos; (c) domicílios onde há homens adultos presentes mas onde devido à invalidez, desemprego, alcoolismo ou outros fatores, uma mulher é a principal provedora econômica. De acordo com essa concepção, as mulheres só seriam chefes de domicílio ou pela ausência de homens adultos (por divórcio, separação, viuvez, migração da mulher ou do homem) ou pela incapacidade deles em sustentar economicamente suas famílias.                                                                                                                 62

MENDES, Mary Alves. “Mulheres Chefes de Família: a complexidade e ambiguidade da questão”. In: XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, Ouro Preto, 2002, p.2., 2006, p.2. 63 As relações de trabalho no campo são menos individualizadas, o que pode tornar difícil a sobrevivência das famílias se não houver a presença de um homem. 64 MENDES, Mary Alves. “Mulheres Chefes de Família: a complexidade e ambiguidade da questão”. In: XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, Ouro Preto, 2002, p.2. 65 United Nations.”Improving concepts and methods for statistics and indicators on the situation of women”. New York: 1984.

 

 

41     Há outra concepção que também traz três possibilidades de mulheres chefes de família: a) aquela que se define pela ausência do parceiro sem necessariamente acontecer a manutenção feminina; b) aquela em que há a ausência masculina e a manutenção feminina, c) aquela em que há a manutenção feminina, não implicando necessariamente a ausência masculina. Acredita-se que é preciso também levar em consideração que não há um modelo único de chefia, como não existe um modelo pronto de famílias, de classes ou de sociedade. O que se tem são emaranhados de situações que devem ser analisadas dentro do seu contexto. Talvez se deva considerar ainda que a chefia feminina, de um modo geral, não significa a substituição da autoridade masculina pela autoridade feminina. Na verdade, ela se entremeia nessa autoridade masculina de forma sutil e habilidosa como um trabalho silencioso que nem sempre põe à amostra o sujeito feminino como responsável pelos processos decisórios, mas ele existe e é fundamental para o remodelamento cotidiano de papéis e consequentemente das relações de gênero.66

Analisaremos tanto os domicílios chefiados por mulheres sem cônjuge quanto aqueles chefiados por mulheres com parceiros, e perceberemos como a situação mais vulnerável, da qual queremos tratar, é justamente a das primeiras. Para tanto, utilizaremos os dados do PNDA realizado em 2009 e analisados pelo Comunicado IPEA no 65. Segundo dados do IPEA67, no período de 2001 a 2009 houve a continuidade do aumento da proporção de família chefiados por mulheres no Brasil, passando nesse intervalo de tempo de 27% a 35 % dos número de famílias, o que em termos absolutos representa um total de quase 22 milhões de famílias que identificam uma mulher como “responsável”68 no ano de 2009.

                                                                                                               

66

MENDES, Mary Alves. “Mulheres Chefes de Família: a complexidade e ambiguidade da questão”. In: XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, Ouro Preto, 2002. 67 COMUNICADO IPEA NO 65 – PNDA 2009 68 Com a introdução do conceito de "pessoa de referência" em substituição ao de "chefe do domicílio", a PNAD transferiu ao respondente a tarefa de nominar a pessoa, homem ou mulher, responsável pelo domicílio. Essa mudança da perspectiva de gênero foi um salto importante, pois a noção de chefia, pela matriz cultural dominante, poderia ser mais facilmente atribuída à figura masculina do domicílio, marido ou pai.) Essas famílias, no entanto, são bastante heterogêneas e apresentam as mais diversas configurações: mulheres solteiras, separadas ou viúvas com filhos e tendo ou não parentes e/ou agregados em casa; mulheres solteiras, separadas ou viúvas, sem filhos com presença ou não de parentes e/ou agregados; mulheres solteiras, separadas ou viúvas morando sozinhas; e, ainda, mulheres casadas chefiando a família mesmo tendo um marido ou companheiro em casa, com ou sem filhos. COMUNICADO IPEA NO 65 – PNDA 2009

 

 

42     No caso das famílias chefiadas por homens, o arranjo que predomina é o de casal com famílias. Esse cenário é diverso no caso das chefias femininas, nas quais a maior parte é composta por mulheres sem cônjuge e com filhos. O que nos permite concluir que para as mulheres, a chefia familiar está relacionada com a responsabilidade dos filhos e da filhas, pois é historicamente um papel destinado às mulheres na divisão sexual do trabalho, e não apenas à ideia de manutenção econômica como poderia se pensar. A renda das mulheres chefes de famílias sem cônjuge é menor do que a das mulheres referência com cônjuge; e a renda das mulheres chefes de família em geral é menor do que a dos homens nessa mesma posição: em 2009, o rendimento médio dessas eram de R$ 882,09 enquanto o dos últimos de R$ 1.384,11. Uma diferença marcante aborda o tempo médio no trabalho principal: as mulheres chefes dedicavam 36.5 horas por semana em média, enquanto os homens chefes 43,7 horas semanais à jornada remunerada de trabalho. Isso é prova do que discutimos sobre a inserção da mulher no mundo do trabalho, pois necessita de empregos mais flexíveis (que são também os mais precários) para poderem dar conta da carga de trabalho doméstico e do cuidado com os filhos. Nessa mesma data, enquanto as mulheres responsáveis por famílias com filhos e filhas dedicavam em média 30,3 horas semanais ao trabalho doméstico, os homens na mesma situação dedicavam apenas 10,1 horas. Portanto, mesmo que a mulher esteja inserida em massa no trabalho considerado produtivo, o trabalho reprodutivo nunca foi compartilhado com os homens, tornando suas jornadas de trabalho duplicadas. A situação é agravada pela desigualdade social, pois nas famílias com rendas mais baixas e filhos e filhas mais jovens, a participação da mulher nos afazeres domésticos é muito maior. Também há diferenças entre as regiões do país: na região mais pobre, Nordeste, as mulheres chefes de famílias com cônjuge e filhos e filhas dedicavam, em média, 32,6 horas semanais ao mundo doméstico, enquanto no Sul esse tempo foi de 27,9 horas. A maior responsabilidade assumida pelas mulheres chefes, principalmente dentro do recorte racial e social, tem revelado as desigualdades ao compatibilizar a vida laboral com a vida doméstica, pois o lugar que a mulher ocupa na sociedade também está determinado por sua posição na família. O desempenho de atividades domésticas tem consequências diretas sobre a forma como as mulheres

 

 

43    

se inserem no mercado de trabalho e nos demais espaços públicos.69

Ainda, de acordo com dados da síntese de indicadores sociais do IBGE, nos domicílios chefiados por mulheres sem cônjuge e com todos/as filhos e filhas menores de 16 anos, 46,6% tinham renda per capita de até o salário mínimo vigente em 2009. Na região Nordeste, esse número atingia 62,5%. Há uma grande desigualdade nas famílias que têm uma mulher como referência e esta vive com o cônjuge e nas famílias que são chefiadas por mulheres sem a presença masculina. Quando nas duas situações as famílias têm filhos, a renda média das mulheres do primeiro caso era de R$ 958,21 enquanto a das segundas era de R$ 763,68. A desigualdade das mulheres chefes de famílias com as dos homens é ainda mais gritante: as primeiras ganhavam apenas 66% do que ganhavam os homens na mesma situação, considerando famílias com filhos. Os dados acima servem para elucidar a questão que poderia surgir em um primeiro momento quando se fala sobre mulheres chefes de família, que seria uma avanço na questão da autonomia da mulher. Porém, ao deparar-se com tamanha precariedade, é possível questionar o que representa, na vida das mulheres, principalmente daquelas mais pobres e que vivem em partes distantes da cidade, ser chefe de família. A situação de pobreza e miséria é um dos fatores que faz vir à tona a chefia feminina no tocante à provisão financeira feminina, o que não necessariamente está associada a uma questão da emancipação ou autonomia feminina, embora não signifique dizer que esta não esteja presente nesses casos. As mulheres proveniente das camadas mais pobres, por exemplo, moradoras de favelas, são na maioria motivadas a ingressarem no mercado de trabalho pela precária situação financeira vivida, por questões de sobrevivência, o que pode, em segundo plano, conduzi-las a autonomia e posturas emancipatórias.70

No final, a análise é a mesma em relação ao mercado: devemos entender se a participação das mulheres no mercado de trabalho e o crescimento de domicílios chefiados por mulheres estão mais relacionados à emancipação feminina ou à acentuação da pobreza das mulheres. A relação do trabalho com a emancipação feminina encontra-se mais nas camadas médias, não nas populares, nas quais o ingresso no trabalho é consequência da luta pela                                                                                                                

69

IPEA. Comunicado n.65: PNAD 2009 – Primeiras análises: Investigando a chefia feminina de família. 2010. 70 MENDES, Mary Alves. “Mulheres Chefes de Família: a complexidade e ambiguidade da questão”. In: XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, Ouro Preto, 2002.

 

 

44     sobrevivência, tanto que se dá de maneira precária (baixo nível educacional e qualificação; mercado informal; péssimas condições de trabalho e salários) enquanto mulheres de classes média e altas entram em bons postos e buscam independência, autonomia e poder de consumo. Porém, mesmo que as mulheres pobres entrem em situações de maior vulnerabilidade no trabalho, este constitui fato importante de independência das mulheres, de todas as classes sociais. O fenômeno da chefia de domicílios por mulheres constitui uma nova realidade, como insistem em afirmar as assustadas e preocupadas manchetes de jornais e os programas de televisão. Certamente, porém, sua existência tem sido ocultada por um retrato uniforme das formas de organização familiar no Brasil, favorecido, durante muito tempo, pela universalização do protótipo da família conjugal nuclear.71

Não deixa de ser um questionamento ao que se espera da família tradicional, com o homem provedor e a mulher que cuida do lar. Porém, o que pode-se perceber é que é muito difícil para a mulher conseguir sair dessa lógica. Mesmo quando é chefe de seu domicílio, tem que enfrentar uma situação de precariedade que os homens não encontram. Porém, isso não significa dizer que a origem do problema dessas mulheres é a falta da presença de um homem na família, o que seria fortalecer ainda mais o discurso patriarcal. As maiores dificuldades que essas mulheres enfrentam têm por base exatamente o patriarcado que institui a desigualdade entre homens e mulheres. É o fato de não terem a mesma posição que os homens no mercado de trabalho; a sua dupla (ou mesmo tripla) jornada de trabalho, pois mesmo com a entrada da mulher no mundo do trabalho, não houve divisão dessa esfera que continua sendo vista como função natural feminina; As análises de gênero possibilitam entender o que faz com que nove entre cada dez famílias do tipo monoparental sejam chefiadas por uma mulher. A referida crítica à matriz cultural dominante, possibilitada pela perspectiva de gênero, evidencia que ainda são preservados modelos mais ou menos rígidos em torno das expectativas acerca da maternidade ou maternagem e paternidade ou paternagem, em que a “ética do cuidado (Scavone, 2001) é supervalorizada, o que faz com que o filho ainda seja, prioritariamente, objeto de cuidados da mãe. Assim, as ideologias de gênero são a base para se entender o que vai definer a identidade primeira desse grupo – mulher , depois, chefe de família . Inclusive, é o principal fator que lhes define um “lugar” no mundo: tornam- se chefes de família porque são mães , num contexto social que prevê um modelo de maternidade ou maternagem, socialmente construído, baseado na hipertrofia de

                                                                                                               

71

CORRÊA, Marisa. “Repensando a família patriarcal brasileira: notas para o estudo das formas de organização familiar no Brasil”. In: ALMEIDA, Maria Suely Kofes. Colcha de retalhos: estudos sobre a família no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 18.

 

 

45    

suas responsabilidades parentais (Scavone, 2001).72

MACEDO ilustra bem essa questão: As mulheres efetivamente estão em situação de desvantagem em relação aos homens, tanto no que se refere ao usufruto de direitos quanto à carga de trabalho e ao nível de remuneração. Têm desvantagens ainda em relação à possibilidade de mobilidade socioeconômica, já que enfrentam barreiras culturais, legais, obstáculos no Mercado de trabalho, entre outras limitações. Portanto, a desigualdade de gênero não é fictícia, pois as mulheres chefes de família enfrentem dificuldades suplementares, ao terem que administrar sua dupla participação nas esferas da produção e da reprodução, em condições desfavoráveis em relação aos homens que também são chefes de domícilio – e que na sua grande maioria contam com a participação, cada vez maior, das esposas, tanto na tradicional esfera dos cuidas doméstico como no mundo da produção.73 Observe-se, porém, que a crítica realizada por Castro (2001, p.92) é bastante elucidativa acerca dos reais motivos das desvantagens sociais enfrentadas pelas mulheres, nesse contexto: As mulheres de famílias monoparentais [...] foram esposas, ou seja, empobrecem não porque se tornam chefe de família, porque deixaram de ter um provedor, mas, com a maior probabilidade, porque foram esposas antes e, assim, não tiveram as mesmas oportunidades dos homens, casados ou vivendo sós, ou das mulheres sós, de investir em carreira, de socializar-se com as regras do e no mercado.74

A grande questão é compreender que a desvantagem da mulher no mundo do trabalho 75, a carga de trabalho doméstico e de cuidado com os filhos, os salários mais baixos, a discriminação para ocupar o espaço político, a discriminação para ocupar a cidade, tudo isso se reflete na condição das mulheres que são chefes de família. É como se elas condensassem muitas das dificuldades das mulheres brasileiras em situação de pobreza, por isso as tomamos como exemplo do problema de gênero com recorte de classe (que implica, no contexto brasileiro, necessariamente no recorte de raça/etnia) no espaço urbano. Contradições permeiam as relações de gênero desde o âmbito das formas de                                                                                                                 72

MACEDO, Márcia. “Mulheres chefes de família e feminização da pobreza: Uma contribuição crítica dos estudos feministas e de gênero”. In: Congresso Internacional Interdisciplinar em sociais e humanidades, Niterói, 2012, p. 9. 73 Idem, p. 11. 74 Ibidem, p. 12. 75 “Esse aumento das mulheres trabalhadoras no mercado de trabalho não superou os obstáculos de acesso a cargos de chefia e diferenças salariais; estes, embora tenham diminuído nos anos 1990, ainda permanecem e simplesmente significam que as mulheres aceitaram postos de trabalhos miseráveis, para sobreviver com sua família, já que as taxas de desemprego feminino são significativamente maiores do que da população masculina. As trabalhadoras brasileiras concentram-se nas atividades do setor serviço; 80% delas estão ocupadas como professoras, serviços de saúde, comerciarias, cabeleireiras, manicures, funcionárias públicas, mas o contingente feminino mais importante está concentrado no serviço doméstico remunerado, primeira ocupação das mulheres brasileiras. São negras cerca de 56% das domésticas e usufruem ainda os menores rendimentos da sociedade (Melo, 1998).” MELO, Hildete Pereira de Melo. “Gênero e Pobreza no Brasil”. Relatório final do projeto Governabilidad Democratica de Género en America Latina y el Caribe, Brasília, 2005, p. 16.

 

 

46     apropriação do espaço urbano até as relações de poder, delimitadas pelas forças de dominação social presente (social, simbólica e política). De modo geral, as cidades brasileiras são fruto de uma lógica discriminatória e segregadora, caracterizando a precariedade da vida urbana, desde o âmbito da vida privada (moradia, família) até o da vida pública (transporte, trabalho, etc). Para as mulheres, a escassez territorializada – traduzida na precariedade da infraestrutura urbana, nos contrastes espaciais e opressão social – se manifesta em violência, distinções no acesso aos recursos públicos, aos serviços urbanos, ao trabalho, entre outros. Com isso, por mais que homens e mulheres partilhem da mesma condição social, as mulheres sempre estarão em uma posição desfavorável, pois ambos vivenciam diferentemente o cotidiano urbano. Isso porque há um conjunto de fatores culturais, simbólicos, normativos, institucionais e de “subjetividade sexuais” que radicalizam a forma desigual com que as mulheres são inseridas nas cidades.76”

Se as mulheres já têm mais dificuldade de acesso à cidade, as mulheres chefes de família, que sofrem também com a opressão de classe e compõe um dos grupos sociais mais vulneráveis no espaço urbano, terão uma dificuldade mais acentuada do que a média das mulheres. Há outros fatores que também contribuem para o aumento significativo de mulheres chefes de família nos últimos 10 anos, como o desenvolvimento de novas políticas de redistribuição de renda que vêm sendo implementadas pelo Governo Federal. As principais políticas públicas para esse tema seriam o “Minha Casa, Minha Vida”, programa de financiamento e subsídio de moradias populares para famílias e o “Programa Bolsa Família”, programa de distribuição de renda para famílias em situação de pobreza. Por mais que o crescimento do número de mulheres nessa situação já tenha se intensificado a partir da década de 70, que contavam com 13% de chefias de famílias femininas em 1970 e passou para 26% em 199977, na atual conjuntura o Programa Bolsa Família, principalmente, tem tido um papel importante, pois, de acordo com o governo federal, atingiu, a título exemplificativo, no mês de abril de 2014, 14.145.274 famílias (num total de cerca de 50 milhões de pessoas) e, como é colocado na grande maioria das vezes no nome da mulher, cria um cenário mais propício para que esta possa se colocar em situação de chefe da família.

                                                                                                                76

MACEDO, Márcia. “Relações de Gênero no contexto urbano: um olhar sobre as mulheres” in: Perspectivas de Gênero: Debates e questões para as ONG’s. Recife: GT Gênero – Plataforma de contrapartes Novib/ SOS Corpo Gênero e Cidadania, 2002, p. 12. 77 Dados do IBGE 1970 e 1999

 

 

47     Ao mesmo tempo que: A experiência do Bolsa Família, que fornece um rendimento regular para a grande maioria das mulheres, é muito nova para a maior parte delas. Impactoulhes a vida; contudo, continuam pobres e carentes de inúmeros direitos. Demora certo tempo para que revelem as alterações mais complexas, em especial as referentes a decisões de ordem moral, como separações conjugais ou o desejo de fazê-las (...) Um dos temas que as deixam falar com mais desenvoltura se liga à vivência, às vezes pela primeira vez, de mais liberdade pessoal, como ainda ao ganho de um sentimento precioso: a aquisição de mais respeitabilidade da vida local” (BF 25) Tem relação com mais segurança para a vida pública, para o espaçø público, maior fortalecimento das mulheres.78

Outro ponto essencial para entender a situação de vulnerabilidade das mulheres que chefiam famílias é exatamente a falta de aparelhos público urbanos que possam tornar sua vida cotidiana mais simples. Explica-se: quando a mulher é responsável sozinha pelos filhos (o que, conforme os dados acima, é o que acontece na maioria dos casos) e é responsável também pelo provimento econômico da família, e ainda é também responsável pelos trabalhos na casa, fica muito difícil conseguir administrar todas essas tarefas. Possuem empregos mais flexíveis, informais muitas vezes, precários e com salários mais baixos do que o salário masculino, o que resulta na necessidade de habitar em áreas mais distantes da cidade, pois, se mantêm sozinhas a economia da família, não terão renda alta, ainda conforme análise dos dados acima. Como é sabido, a periferia das cidades costuma ser um dos únicos locais para moradia acessível às famílias pobres, e essas mulheres chefes de família ocuparão um local ainda mais precário nessas partes da cidade. Se a periferia já é por si só uma área precária em relação a serviços básicos como transporte, acesso à saúde, creches, escolas e mesmo no quesito de iluminação na rua e calçamento para trânsito de pedestres, para as mulheres a situação se agrava para aquelas que chefiam sozinhas o domicílio. Essas mulheres têm que cumprir papéis que foram historicamente tidos como funções masculinas, como as de serem as única provedoras da família, e, portanto, farão isso em situação de extrema desigualdade. Isso não significa que não precisam mais desempenhar os papéis historicamente destinados às mulheres de cuidado com a casa e com os filhos e as filhas. Terão que encontrar um meio de equilibrar todos esses papéis, em                                                                                                                

78

REGO, Walquiria Leão; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania. São Paulo: Editora UNESP, 2014, p.25.

 

 

48     situação de pobreza e exclusão urbana, o que as leva a uma situação de vulnerabilidade extrema. A falta de creches, escolas e hospitais na cidade sempre afeta mais as mulheres do que os homens, pois, em última análise, ainda são elas as responsáveis por esse tipo de cuidado. A falta de iluminação nas ruas e de calçamento sujeita-as a uma vida de insegurança todas vez que precisam se locomover pelo espaço urbano. A falta de oportunidades no mercado de trabalho as coloca em situações de precariedade. Isso para todas as mulheres. As mulheres chefes de famílias sofrerão tudo isso, porém em situação de precariedade maior. O direito à cidade dessas mulheres não é efetivado e isso interfere e condiciona suas condições. Porém, mesmo diante de todas essas dificuldades, a possibilidade de mulheres chefiarem famílias sozinhas também pode ser visto como um novo passo à emancipação feminina. Poder optar por não ser mais dependente de um companheiro, não ser mais “obrigada” a continuar em relações que poderiam ser abusivas ou simplesmente não atingirem mais as expectativas que as pessoas buscam ao formar um casal, é um cenário relativamente recente na sociedade brasileira e não pode ser menosprezado.

 

 

49    

6. CONCLUSÃO

Partimos da ideia de que a cidade é uma construção social produto do sistema econômico vigente, que utilizará o espaço urbano para sua produção e reprodução. Discordamos de qualquer tipo de neutralidade do espaço: este não é palco onde as relações sociais se desenvolverão, sendo ele também ator nesse processo. Nesse sentido, a cidade também colabora na produção capitalista e na acentuação das opressões que são base deste sistema: classe, gênero e raça/etnia. A diferença de classe é manifestada cotidianamente na cidade, que também colabora na acentuação dessa desigualdade, por meio da exclusão territorial, da impossibilidade de vivência da cidade como um todo por parte da população pobre e da falta de serviços de infraestrutura básicos, como transporte, moradia adequada, saúde, lazer, etc. Também sentem a desigualdade as mulheres que vivem o espaço urbano: a grande presença destas na rua não significa que dela se apropriam de fato. As mulheres, a partir da divisão sexual do trabalho que também se materializa em divisão entre espaço público e privado, têm menores possibilidades de ocupar o espaço público. E, mesmo quando o fazem, têm de levar consigo todas as responsabilidades do âmbito doméstico que ainda cabe quase que exclusivamente a elas. O sexismo da cidade se manifestará com diferença de acesso à cidade, que será permeado pelo medo constante de ocupar a rua, devido aos assédios que mulheres sofrem no espaço público (tanto a rua quanto os meios de transporte) e pelo medo de violência sexual por falta de iluminação, transporte e de pessoas na rua quando escurece. O acesso desigual ao espaço não é simplesmente resultado da produção e reprodução das cidades: é elemento constituinte delas. Não será, portanto, apenas uma questão de impacto da (falta de) estrutura urbana na vida das mulheres, mas principalmente como as desigualdades de gênero, em associação e interseccionalidade com as outras opressões, estruturam e criam a cidade. É uma questão de poder, de como a cidade é criada por homens e para homens (da classe social dominante) e que se privilegiam com a manutenção dessa estrutura. Por isso, constatar a falta de mulheres nos espaços políticos (espaços públicos por excelência) é fator

 

 

50     essencial para compreender por que a cidade continua sendo um espaço que as segrega. Apontamos também o fato de haver movimentos de resistência à lógica de produção e reprodução da cidade: exatamente por se tratar de produto do sistema econômico, a cidade será palco privilegiado para resistências. Há diversas pautas que giram em torno do tema do espaço urbanos, e todas elas terão em comum a temática da reforma urbana e do direito à cidade, pois qualquer movimento por mudanças na forma de organização urbana, por mais que seja reformista por buscar uma mudança pontual, terá também que ser revolucionário, por entender que a cidade se baseia na lógica do sistema econômico vigente. Destacamos o papel das mulheres nos movimentos da cidade, principalmente naquele por moradia, pois pela divisão sexual do trabalho o lar acaba tendo um valor diferenciado para estas, sendo simbolicamente um espaço de segurança (mas não materialmente, pois é ainda em casa que estão mais sujeitas à violência). A situação das mulheres chefes de família no Brasil pareceu o melhor exemplo para ilustrar todos os aspectos abordados no trabalho, pois é na vida cotidiana destas que a interseccionalidade entre as opressões de gênero, raça/etnia e classe acontece e estas terão manifestação no espaço urbano. São estas mulheres que sentirão na pele o que é ser mulher e pobre em uma cidade e como que ocupar as duas funções da divisão sexual do trabalho, no âmbito privado (lar) e público (emprego) sozinhas pela luta cotidiana por sobrevivência as colocará em uma situação de extrema vulnerabilidade econômica e social. O aumento permanente de famílias chefiadas por mulheres e a sua situação de extrema pobreza no trouxe a reflexão sobre um cenário de possível feminização da pobreza, onde as mulheres, dentre as famílias de baixa renda, são ainda as mais pobres e com situações mais precárias. O que nos parece fundamental é balancear dois pontos sobre as mulheres chefes de família: a autonomia e vulnerabilidade. Primeiro, não se trata de precarização, pois este termo pressupõe uma queda da qualidade da situação – essas mulheres nunca estiveram de fato incluídas, pois ocupam um lugar marginal ao sistema – inserem-se no mercado de trabalho, mas nas posições informais, com os salários mais baixos e sem direitos trabalhistas; inserem-se na cidade

 

 

51     mas na periferia distante, ocupando uma posição de maior vulnerabilidade entre os vulneráveis; na rua, são invisíveis, apenas ocupando-a para locomover-se com dificuldade diariamente. São elas que vão sofrer ainda mais na pele o peso de ser mulher pobre e responsável pela família, tanto pelo trabalho “produtivo” (que traz a renda) quanto pelo trabalho doméstico. São elas que terão que encontrar uma maneira de sustentar os filhos e as filhas, de cuidar da casa, de suprir a falta de equipamentos públicos que seriam fundamentais para suas vidas, como creches, hospitais, lavanderias públicas, restaurantes públicos e mesmo escolas. São elas que estarão nas áreas distantes da cidade, que terão que se sujeitar a transportes públicos precários e cheios, se sujeitando a essa situação que muitas vezes também resulta em violência contra a mulher. São elas que terão que voltar tarde para a casa, em bairros que podem não ter espaço adequado para a circulação de pedestres, sem iluminação, vivendo a insegurança e medo diários de estar na rua depois do anoitecer. Terão, portanto, seu direito à cidade completamente desrespeitado. Porém, é importante considerar, que mesmo no cenário extremamente precário conforme descrito acima, o fato de poderem chefiar famílias sozinhas, sem a presença de um homem ou companheiro, traz a essas mulheres uma autonomia que antes poderia não existir. Poder, por exemplo, ser mãe solteira, por mais que isso traga dificuldades para as mulheres, traz também um mínimo de possibilidade de escolhas, que as colocar como “donas” do próprio destino, dentro de todas as limitações já abordadas. A questão fundamental é entender que essas mulheres não são exceção, mas são necessárias ao sistema econômico que necessita das mulheres para realizarem trabalhos “produtivos” informais, precários e com baixos salários e trabalhos reprodutivos de maneira gratuita79. Em um sistema que se baseia nas opressões de raça/etnia, gênero e classe, é difícil vislumbrar a liberdade das mulheres, e principalmente das mulheres pobres, que sofrem outro tipo de exploração. Porém, há que se valorizar qualquer tipo de avanço que possa tornar o cotidiano um pouco menos doloroso. As mulheres de família se inserem nesse contexto, em situações que são previstas pelo capitalismo e que as coloca em uma                                                                                                                 79

Concordamos com a conclusão de Cláudia Mazzei Nogueria: “Tudo isso evidencia que o capital se opõe frontalmente ao processo de emancipação da mulher, visto que ele necessita, para a preservação de seu sistema de dominação, do trabalho feminine, tanto no espaço produtivo como no reprodutivo, preservando, em ambos os casos, os mecanismos estruturais que geram a subordinação da mulher” NOGUEIRA, Claudia Mazzei. A feminização no mundo do trabalho. São Paulo: Editora Autores Associados, 2004, p. 93.

 

 

52     vulnerabilidade extrema, mas ao mesmo tempo traz um mínimo de liberdade que antes não possuíam. É, e sempre será difícil balancear os dois lados, autonomia e vulnerabilidade, pois os continuam a existir lado a lado, e só se pode vislumbrar uma autonomia total das mulheres em outro tipo de sistema econômico que não utilize sua opressão como base para seu desenvolvimento e exploração econômica.

 

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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