Museus, memória, criatividade e mudança social

September 19, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Arqueología, Historia, Museologia, Criatividade, Memoria
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Publicado em edição brasileira, ISSN 1981-6332

Revista MUSEU - cultura levada a sério O portal definitivo que mostra os bastidores dos museus, a criatividade dos profissionais da área e seus projetos inovadores, divulgando a cultura no Brasil e no mundo. Museus, memória, criatividade e mudança social

Pedro Paulo A. Funari [1]

Os museus surgiram no bojo da constituição dos estados nacionais e dos projetos de formar cidadãos uniformes, que compartilhassem as mesmas origens e características. Foram criados e floresceram, ainda, no âmbito das grandes potências imperiais que tinham nos museus de aspiração universal, como o Louvre ou o Museu Britânico, um meio de asseverar a superioridade das metrópoles. Serviam, pois, de guardiães da memória nacional e universal, sem, no entanto, ambicionar atingir o homem da calçada, como se dizia à época, pois que tardou para que a educação de massa almejasse levar o povo aos recintos sacros dessas instituições, que mais se assemelhavam a catedrais.

Isso tem mudado, de forma acentuada, nas últimas décadas, ainda que o processo seja lento, desigual e muito marcado por especificidades locais. Portanto, qualquer generalização seria simplificadora, na medida em que convivem, hoje, museus criativos e museus que continuam como depósitos pouco atrativos ou explicativos, com vitrines empoeiradas, em toda a parte. De todo modo, contudo, houve uma crescente percepção que os museus não podem apenas custodiar objetos, por mais que essa tarefa continue a manter sua relevância. Num mundo em crescente processo de desmaterialização e que caminha para a comunicação e para a diversão em tempo integral, o museu tem sido afetado de forma particular. Está-se conectado todo o tempo e ouve-se sempre algo para distrair. Além disso, a fuga da dor, da violência e das ansiedades de um mundo em constante mutação, induz ao gozo imediato.

Estas condições impõem novos desafios para os museus, que têm dificuldade em competir com o entretenimento ubíquo e com a busca do prazer imediato. Por isso, a criatividade tem sido elemento central por parte de todos que se dedicam aos museus, de uma forma ou de outra. Criar consiste em trazer algo ao mundo por meio do uso das mãos, se pudermos relacionar o termo ao grego kheir (mão, de onde vem cirurgia, algo feito com as mãos). Essa materialidade do termo não é casual, nem desimportante. São as mãos que permitem tanto criar uma exposição, como ao visitante que possa experimentar as sensações dos objetos. Tocar nas coisas vai contra o fetiche tão bem difundido de inviolabilidade do artefato, como se ele precisasse ser preservado das impurezas trazidas pelo manipulador. Mais do que isso, a aura da intocabilidade leva, como já alertaram tantos estudiosos, a um efeito de relação erótica com o objeto que se apresenta como um corpo mágico que só pode ser olhado. A criatividade envolve, portanto, permitir que os sentidos sejam usados pelos frequentadores dos museus. Com isso, ademais, se pode chegar à dimensão tanto do prazer, como da viagem onírica para outras realidades que o museu pode ensejar.

Essa inclusão social, contudo, não precisa nem deve ser apenas reconfortante, como um sonho em direção a um mundo perfeito, como se todos pudessem, no passado, ser faraós, imperadores, andar de liteira e ser carregados por escravos. Chegar às pessoas significa mostrar, também e de forma principal, as tensões sociais, a diversidade e a pluralidade de perspectivas e de aspectos da vida social. Isso serve para a mudança social em direção a relações sociais menos desiguais e excludentes e mais abertas à convivência com o outro. Isso é um objetivo humano universal, mas tanto mais relevante o é no contexto brasileiro, uma das sociedades mais desiguais do mundo. Além disso, tendo vivido por tantos séculos a escravidão, por tantas décadas a exclusão das grandes maiorias, ditaduras violentas (1937-1945 e 19641985), os museus têm, ainda, uma tarefa relevante de mudar a percepção social de que tais exclusões e abusos do passado possam ser considerados naturais ou aceitáveis. A criatividade consiste, também, em permitir que as pessoas se coloquem no lugar do outro e percebam a abominação da exclusão e da opressão social. Os museus podem ter, assim, um papel libertador e cabe a todos que neles militam e os frequentam colaborarem para que isso se generalize. Tarefa nem sempre fácil, mas recompensadora pela liberdade que projeta nas almas.

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[1] Professor do Departamento de História e Coordenador do Centro de Estudos Avançados da Unicamp.

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Postado em: Terça-feira, 14 de maio de 2013 | 18:30 por Editoria RM

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