Música e educação indígenas: pensando a transmissão musical como prática cultural e um evento cotidiano

September 29, 2017 | Autor: Rafael Severiano | Categoria: Music Education, Education, Etnomusicology, Indigenous Music
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MÚSICA E EDUCAÇÃO INDÍGENAS: pensando a transmissão musical como prática cultural e um evento cotidiano1

Rafael Severiano2 [email protected] Universidade Federal do Pará

Resumo: Este texto é um recorte da pesquisa que está sendo realizada em nível de mestrado, que tem por objeto a cultura musical dos índios Tupinambá no Brasil colonial. A pesquisa é documental e bibliográfica, com abordagem etnomusicológica, tendo como fontes primárias os relatos de cronistas, missionários e viajantes, que estiveram no Brasil colonial e como fontes secundárias estudos bibliográficos sobre a organização social dos Tupinambá e de sociedades ameríndias em geral. Através das noções de transmissão e cotidiano, propõe-se que a transmissão de saberes seja pensada como prática cultural, instrumento que permite visualizar a educação dos Tupinambá no período colonial. Aborda-se ainda, a capacidade da música de mediar saberes, na perspectiva de Serge Gruzinski e, o papel dela na cadeia intersemiótica nos rituais indígenas das terras baixas da América do Sul, proposto por Rafael José de Menezes Bastos. Apresentamos, aqui, como conclusões, que a transmissão musical ocorria nas práticas culturais e nos eventos cotidianos onde as gerações mais novas aprendiam com as mais velhas. Essa transmissão musical criava e recriava significados, conferindo significado à realidade e ainda, o modelo de educação da sociedade em questão era baseado na tradição oral, configurando assim, uma Pedagogia do Cotidiano. Palavras-chave: Música indígena; Educação Musical e Etnomusicologia.

Introdução Neste estudo busca-se uma compreensão, a partir de relatos históricos, de aspectos musicais da sociedade Tupinambá colonial, um dos povos que habitavam o atual Brasil quando da ocupação portuguesa. Etnomusicologia, Educação e Educação Musical, são disciplinas que já possuem em seu bojo um longo processo de construção interdisciplinar. A partir do diálogo feito com essas áreas do conhecimento, aponto para a necessidade do estudo da Educação Musical como uma prática cultural e um evento cotidiano.

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Trabalho apresentado no XI Seminário do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará: Pesquisa Qualitativa em Educação. 2 Discente no Programa de Pós-Graduação em Artes. Integrante do Laboratório de Etnomusicologia da UFPA, do Grupo de Pesquisa Música e Identidade na Amazônia – GPMIA (UFPA) e do Grupo de Pesquisa História e Educação na Amazônia – GHEDA (UEPA).

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Os Tupinambá do Brasil colonial Dados como extintos desde o século XVII, os Tupinambá tiveram seu reconhecimento oficial pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 2001. De acordo com a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), atualmente existem 4.729 índios vivendo em cerca de 23 diferentes comunidades que compõem a Aldeia Tupinambá de OlivençaBa. Estes estão em um longo processo de resistência, resgate histórico e cultural e questões territoriais3. Embora os Tupinambá atuais não sejam o objeto dessa pesquisa, fica aqui o registro. Foi em 23 de abril de 1500, que ocorreram os primeiros contatos dos colonizadores europeus com os povos nativos do Brasil (VEIGA, 2004). Para Veiga estes nativos “foram provavelmente tupiniquins representando uma das três grandes seções em que os Tupis da costa foram divididos, Tupinambá e Carijó sendo os outros” (ibid., nossa tradução). Para Clastres (1978), as sociedades do litoral – os Guarani inclusos – são de longe as mais conhecidas. O conhecimento dessas sociedades, aqui se sublinha os Tupinambá no período colonial, chegaram até nós pelos muitos relatos de cronistas, missionários e viajantes, que deixaram preciosas descrições de uma cultura até então intacta. Esse conhecimento dos grupos Tupis-guaranis que habitavam a costa brasileira nos dois primeiros séculos da conquista depende de um material razoavelmente extenso, mas sobre tudo variado em sua origem: crônicas, cartas missionárias e relatos de viagem (FAUSTO, 1992). Para Fausto (idem) é razoável a homogeneidade de informações apresentadas em tais fontes, nos permitindo assim, um certo grau de segurança na tentativa de reconstrução dessas sociedades, o que não nos dispensa de uma leitura crítica, feita a partir da situação dos autores, por exemplo.

Educação Musical, Educação e Etnomusicologia Atualmente, no Brasil, Jusamara Souza tem sido uma das principais referencias em se tratando de Educação Musical. Das diversas temáticas que a autora aborda uma que aqui merece destaque é sobre a educação musical no cotidiano. Segundo Souza (2007) os fenômenos musicais na contemporaneidade demandam a busca de novas perspectivas 3

http://pib.socioambiental.org/pt/povo/tupinamba . Para Tupinambá atual, Cf. Alarcon (2013).

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analíticas capazes de explicar as mudanças nas formas de fazer música que por sua vez trazem novas formas de educar musicalmente. Com esse quadro, a autora sugere que como educadores musicais precisamos adequar nossas representações e práticas pedagógicomusicais coerentes com o nosso papel social nesse continente [América do Sul]. Souza (2013) discute o cotidiano como um campo de pesquisa, apresentando as teorias sobre o assunto. Para Souza as diversas teorias do cotidiano estão ancoradas no campo da filosofia e sociologia, sendo, pois, extremamente diversificadas. Cada uma dessas abordagens sobre a vida cotidiana possui seu próprio corpus teórico definido e seus próprios métodos de trabalho (ibid.). A autora coloca que, de maneira geral, essas teorias “analisam os processos de criação simbólica e as regras implícitas e explícitas no mundo da vida cotidiana privilegiando as relações intersubjetivas” (ibid., p.16). Essas teorias sobre o cotidiano partem da concepção de que a sociedade é uma construção em círculos concêntricos a partir das interações simples, e consideram a vida cotidiana como âmbito no qual se cria e se compreende o sentido do social (TEIXEIRA apud SOUZA, 2013, p.16).

O aprendizado, pelo indivíduo, dos costumes e valores de seu espaço e tempo, se dá através da rotina e na convivência (cotidiano) com os demais membros da sociedade na qual este está inserido (ou se insere). Nessa relação social, “os indivíduos apropriam-se da linguagem, dos objetos e instrumentos culturais, bem como dos usos e costumes de sua sociedade” (HELLER apud SOUZA, idem). Sem essas apropriações, seria impossível a existência e convivência de qualquer indivíduo em qualquer sociedade humana (SOUZA, idem). Além das pesquisas nas áreas de educação e ciências sociais, estudos vêm sendo realizados também no campo da educação musical. Segundo Souza (idem), também na educação musical o conceito de cotidiano possui diversos sentidos e conotações. Para Richter (2001), o conceito deve ser entendido no plural, como diferentes mundos da vida presentes no dia a dia, do qual a música seria uma parte (apud SOUZA, idem). Para Nettl (2005), os etnomusicologistas levaram um tempo considerável para se interessarem pelo estudo de como a música é ensinada/transmitida. O autor está

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convencido de que esta questão é central para compreensão dos fundamentos de um sistema musical, sua gramática e sua sintaxe. As sociedades possuem maneiras diferenciadas de aprender sua própria música. Entre essas maneiras está a aprendizagem através da experiência musical – que aqui se procura vislumbrar – onde crianças e jovens aprendem os elementos importantes e os valores de sua própria cultura através da experiência musical, e esse processo estende-se por toda a vida (NETLL, 2005). Para Brandão “aprender é participar de vivências culturais” (2002, p. 26). Para o autor nessas participações, os indivíduos criam, recriam, negociam e transformam símbolos sociais e significados da vida e do destino (idem). Assim, aqui se entende por prática cultural essas participações de criação, recriação, negociação e transformação dos valores culturais, que o ensino tradicional, geralmente, não reconhece como sendo atividades onde possa existir educação. Esse quadro vem mudando devido ao grande debate que há entorno dessa questão. Para nós, uma das diversas dimensões possíveis da prática cultural, envolveria a experiência vivida de mundo, o sensível-concreto, pois a vida humana ocorre em grande parte nesse nível (HELLER apud SOUZA). Pode-se considerar que a transmissão de saberes que ocorre na prática cultural, configura-se como uma Pedagogia do Cotidiano. Para Corrêa (2008), essa Pedagogia acontece onde há “aprendizagem de costumes, tradições e saberes adquiridas nas práticas sociais cotidianas, através da comunicação oral” (p. xx). O estudo da transmissão musical na prática social pressupõe a compreensão desta integrada aos demais saberes culturais, e não como uma prática isolada. Beaudet, ao estudar a música dos Wayãpi, diz que esta deve ser estudada de forma integrada aos diversos domínios da cultura, entendendo que esta não deve ser vista como consequência da estrutura social, mas como um importante meio para constituir e organizar a sociedade (BEAUDET apud MENEZES BASTOS; PIEDADE, 1999). Ao se visualizar a música integrada aos demais domínios culturais, é possível perceber como esta desempenha o papel de “intermediadora” entre os diversos domínios culturais.

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Ao tratar do papel da música na cadeia intersemiótica4 do ritual das sociedades indígenas das terras baixas da América do Sul (TBAS), Menezes Bastos (2007) aponta para a intermediação como uma das características da música dessa região. Essa questão foi estudada por autores como Smith (1997) na Amazônia peruana, entre os Amuesha e por Menezes Bastos (1978) no alto Xingu entre os Kamayurá (apud MENEZES BASTOS, 2007). Ao sintetizar o estudo de Smith (1997), Menezes Bastos diz que este caracteriza o papel da música na trama ritual Amuesha como o de centro integrador dos discursos nela presentes, centro este que por assim dizer costura a unidade da expressão ritual a partir da diversidade existente entre os referidos discursos. Tudo se passa ali como se a música fosse o lugar centrípeto para onde convergem — em sua diversidade — os discursos visuais, olfativos e de outros canais que compõem os ritos. A partir daí, esse lugar passa a ser centrífugo, recompondo a diversidade discursiva ritual (2007, p. 297).

O caso Kamayurá é semelhante, a música atua como um “sistema pivot” que intermedeia, no rito, os universos das artes verbais, expressões plástico-visuais e coreológicas. Integração de um lado, intermediação do outro, é esse o papel da música na cadeia intersemiótica do ritual da região das TBAS (idem). Basso (1985) estudando os Kalapálo confirma essa perspectiva. Para ela a natureza da performance ritual é musical, postulando o conceito de ritual musical, sendo a própria música a ‘chave’ da performance. Para a autora é possível falar de uma generalidade quanto ao papel da música na cadeia intersemiótica do ritual nas TBAS (idem). Esse papel intersemiótico da música pode ser aproximado, em um plano mais amplo dentro de cada cultura, à noção de passeurs culturels de Gruzinski (apud FONSECA, 2003). Essa noção foi utilizada por ele mesmo como instrumento analítico dos processos de mestiçagem cultural nos movimentos de colonização, em especial os ocorridos entre os séculos XV e XIX. Esta noção tem sido utilizada por diversos pesquisadores e historiadores, sendo considerada um pressuposto teórico-metodológico da História Cultural. Fonseca (2003) traduziu a expressão passeurs culturels como mediadores culturais que seriam:

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Para Barros (2014), a comunicação intersemiótica, envolveria “a transmissão de códigos culturais em linguagens diversas – cênica, dança, corporal, musical, mitológica”.

6 Elementos – pessoas, objetos – que atuam como mediadores entre tempos e espaços diversos, contribuindo na elaboração e circulação de representações e do imaginário. Por seu forte enraizamento cultural e sua grande mobilidade, esses mediadores atuam como catalisadores de ideias, sendo capazes de organizar sentidos e de criar um sistema de conexões dentro do universo cultural no qual transitam (FONSECA, 2003, p. 68).

Assim sendo os mediadores culturais constituem-se num valioso instrumento de análise de culturas e seus cruzamentos, possibilitando também a “análise dos processos de elaboração, difusão e compartilhamento de representações sociais e imaginários” (ALBUQUERQUE, 2012).

Noção de transmissão musical Adota-se o termo transmissão musical ao invés de ensino e aprendizagem, - este último mais em voga na área educacional -, pela perspectiva antropológica da noção de transmissão. Para Queiroz (2010) ensino e aprendizagem são dois entre os diversos aspectos com que os saberes são transmitidos culturalmente. Nesse sentido, a transmissão musical envolve ensino e aprendizagem de música, mas também abrangem valores, significados, relevância e aceitação social, bem como uma série de outros parâmetros que caracterizam a seleção, ressignificação e, consequentemente, transmissão de uma cultura musical em um contexto específico (ibid., p.3).

A noção de ensino e aprendizagem traz consigo o pensamento de que “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 2011, p.25), ou seja, pressupõe-se um processo contínuo entre o educador e o educando, e isso em qualquer espaço de educação, formal e não formal. A noção de transmissão pode ser questionada, isso se a considerarmos apenas como transferência de conhecimento, o que não é. A perspectiva aqui adotada é que mesmo em um monômio, na transmissão temos um que ensina e aprende ao ensinar e um que aprende e ensina ao aprender, como propôs Freire (op. cit.), configurando assim a circulação e a apropriação de saberes.

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A Educação entre os Tupinambá Diversos estudos5 abordaram vários aspectos da sociedade Tupinambá, tais como festejos do nascimento, da menarca 6 , do ritual de perfuração do lábio inferior dos mancebos, dos momentos anteriores e posteriores à guerra; das cerimônias canibalescas, das reuniões políticas, da consulta aos espíritos, da fabricação do cauim 7 , dos rituais mortuários, da couvade 8 . Em todas essas ocasiões, fazia-se presente as bebidas fermentadas, cantigas, danças e instrumentos musicais (ALBUQUERQUE, 2011; 2012). A transmissão dos diversos saberes culturais na sociedade Tupinambá se dava conforme a orientação e o exemplo dos mais antigos, que preparavam as gerações mais novas para a tarefa de seguirem com o modelo de organização em vigor. Sendo assim, os diversos saberes culturais eram mantidos e transmitidos às novas gerações mediante práticas, costumes e rituais repetidos nas mesmas ocasiões e oportunidades (MARIOSA, 2003). A preparação dos filhos para integrar a ordem social tribal acontecia desde cedo: “as crianças aprendiam vendo e fazendo” (FERNANDES apud MARIOSA, 2003). Estas práticas eram então, além de celebrações, o momento onde um conjunto de saberes era transmitido às gerações mais novas pelas mais velhas, sendo um locus de circulação e apropriação de saberes, dentre eles os saberes musicais. Além dos rituais, a transmissão de tais saberes acontecia também em eventos cotidianos, no relacionamento direto dos indivíduos da sociedade. Assim, seja no cotidiano ou nos diversos rituais, a transmissão de saberes acontecia por excelência na prática cultural, pois o próprio cotidiano constitui-se em tal.

Transmissão musical A transmissão musical entre os Tupinambá colonial acontecia no cotidiano. Cardim observou que os pais ensinavam os filhos, desde muito pequenos, a bailar e cantar (2009). Como se procura evidenciar, a transmissão musical acontecia nos diversos rituais

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Cf. CLASTRES, 1978; FERNANDES, 1989; VIVEIROS DE CASTRO, 1986; 1999; 2002; SZTUTMAN, 2005; ALBUQUERQUE, 2011; 2012; THOMAS, 2014. 6 Ritual de passagem das moças para a vida adulta marcada pela primeira menstruação. 7 Bebida fermentada feita de mandioca e/ou outras frutas. 8 Tipo de resguardo masculino após a mulher dar a luz.

8 [...] assim recontam o modo com que os tais nomes alcançaram, como se aquela fora a primeira vez que a tal façanha acontecera; e daqui vem não haver criança que não saiba os nomes que cada um alcançou, matando os inimigos, e isto é o que cantam e contam (MONTEIRO apud FERNANDES, 2003, p. xx, grifos nossos).

A educação ocorre no ato dos guerreiros recontarem suas façanhas e das crianças assimilarem estes contos, ou seja, houve circulação e apropriação de saberes, portanto, houve educação. Tem-se a educação partindo de um agente educador específico: o guerreiro que está a cantar e contar suas façanhas. Nota-se ainda a mediação da música, esta atuando como um catalisador de ideias, organizando sentidos e criando conexões na cultura tupinambá, ou seja, atuando como passerurs culturels e ainda, integrando e intermediando os domínios culturais. Ao enfatizar o domínio de saberes que as mulheres mais velhas acumulavam durante a vida, Albuquerque (2012, p.122) diz que na ocasião que as mulheres se reuniam para conversar, esse saber acumulado era transmitido às mulheres mais novas. Vê-se um momento cotidiano. Essa transmissão de saberes acumulado acontecia também nos rituais, como por exemplo, nessa passagem de Cardim (2009) sobre a recepção do matador ritual, uma das diversas “cenas” que compunham o ritual antropofágico: [...] sai com coro de ninfas que trazem um grande aguidar9 novo pintado, e nele as cordas10 enroladas e bem alvas, e posto este presente aos pés do cativo, começa uma velha como versada e mestra do coro a entoar uma cantiga que as outras ajudam, cuja letra é conforme a cerimônia [...] e por isso diz um dos pés de cantiga: nós somos aquela que fazemos estirar o pescoço ao pássaro, posto que depois de outras cerimônias lhe dizem noutro pá: si tu foras papagaio, voando nos fugiras.

As moças ao participarem desse cortejo, tinham a liderança de uma mulher mais velha, por dominar os saberes para tal cortejo, inclusive os musicais, que certamente quando mais jovem, aprendera da mesma forma. E o processo repete-se: as moças que agora auxiliam as mais velhas, amanhã estarão no papel desta e auxiliadas por novas moças. Vê-se então, a manutenção e a transmissão dos saberes musicais na prática cultural, aqui o ritual antropofágico.

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Ibirapema, o tacape usado pelo matador para abater o cativo. Mussurana, cordas usadas para amarrar o cativo pela cintura.

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A figura 1 representa um dos muitos momentos que o prisioneiro era levado ao pátio central do aldeamento, e era rodeado pelas mulheres que dançavam e cantavam, e este era obrigado a acompanhá-las. Figura 1 – Mulheres dançando ao redor do cativo.

Fonte: Theodor de Bry (1528-1598), Staden (1930).

É possível esta prática também seja presidida por uma mulher mais velha. Mas gostaríamos de chamar a atenção também para o fato de algumas mulheres terem agarradas a si crianças com tipoias. Essas crianças poderiam ser do sexo masculino ou feminino, pois os relatos apontam que até a criança começar a andar, elas eram totalmente dependentes da mãe, não havendo grandes distinções entre os sexos, conhecidas como peitan, distinção essa que só começaria a efetivar-se de maneira mais clara na fase de idade seguinte, quando estas crianças começavam a andar11.

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Cf. Fernandes (1989 [1948]; 1976).

10 os meninos aprendem [com os homens mais velhos] muito cedo as técnicas necessárias à sobrevivência [...] as meninas, ainda muito pequenas, já manuseiam a terra e imitam as de idade mais avançada, mais adultas e experimentadas na fabricação de vasos e tigelas (EVREUX apud THOMAS, 2014).

Assim os meninos acompanhavam os pais e homens mais velhos e as meninas as mãe e homens mais velhos. Através da prática cultural, seja ela cotidiana ou ritual, os mais jovens eram preparados para integrarem a ordem social. A análise da figura 1 nos permite seguinte reflexão: processava-se, no cotidiano ou nos rituais, uma intensa transmissão de saberes entre as gerações. No caso feminino, estavam ali diversas gerações de mulheres, desde peitan, moças, mulheres e uainuy 12 . Estavam presentes moça que um dia fora uma peitan e que futuramente seria uma mulher; uma mulher que fora peitan, moça e que seria uma uainuy; e a uainuy, que passou por todas as etapas da vida, acumulando um conhecimento considerável sobre os costumes sociais e estava a presidir a cerimônia. Transmissão de conhecimentos, aprender e ensinando, ao ensinar reforçar os conteúdos, não é isso que Freire (op. cit.) nos diz? Não é isso que está evidente acima?

Conclusão Como conclusão, baseados nos relatos históricos combinados com estudos secundários sobre a organização social dos Tupinambá no período colonial, apresentamos que a transmissão musical ocorria nas práticas culturais e nos eventos cotidianos onde as gerações mais novas aprendiam com as mais velhas. Estes eram os “cenários, cenas e situações, onde os símbolos sociais e significados da vida e do destino eram criados, recriados, negociados e transformados” (BRANDÃO, op. cit.). A transmissão musical na forma aqui colocada recriava significados conferindo significado à realidade. A música atuaria catalisando ideias, sendo capaz de organizar sentidos e de criar um sistema de conexões dentro do universo cultural no qual transitava (GRUZINSKI, op. cit.), integrando e intermediando os diversos domínios culturais (MENEZES BASTOS, 2007). O modelo de educação da sociedade em questão era baseado na tradição oral, configurando assim, uma Pedagogia do Cotidiano.

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Mulher com mais de 40 anos, as “velhas” segundo os relatos históricos.

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Diante da necessidade de adequação da Educação Musical proposta por Souza (2007) – e não somente a esta área – às questões atuais, pensar a transmissão musical como uma prática cultural, um evento cotidiano é um passo necessário.

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