Na China, a conversa é outra - Caderno Opinião - Jornal O Globo - 25/04/2004

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Domingo, 25 de abril de 2004 O Globo OPINIÃO
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Na China, a conversa é outra

FILIPE PINTO MONTEIRO

Quase ninguém percebeu, mas no domingo (14 de março) marcado pelas
esmagadoras vitórias eleitorais do Partido Socialista na Espanha e do mais
famoso ex-agente da KGB na Rússia, Vladimir Putin, ocorreu o que, talvez,
tenha sido mais importante para a História contemporânea do que os
resultados eleitorais na Espanha e na Rússia: a regularização da
propriedade privada na China comunista.

Pouco se falou sobre isso, talvez pela atenção concentrada no trauma
provocado pelos ataques terroristas do dia 11 de março. O que é
interessante, porque provavelmente a política espanhola não deve mudar
radicalmente com a chegada dos velhos socialistas ao poder e muito pouco
acontecerá de diferente na Rússia de Putin, a não ser o aprofundamento das
reformas pró-mercado.

Mas na China a conversa é outra. Quais as implicações para o
desenvolvimento do capitalismo chinês com a proteção da propriedade
privada? Só o tempo dirá. Uma coisa é certa: a ala governista empresarial
cresce cada vez mais no núcleo do Partido Comunista Chinês (PCC).

A China é na verdade um grande paradoxo. Socialismo de mercado ou
capitalismo vermelho? Ninguém sabe responder. Aqui no Brasil, professores
tentam ingenuamente explicar as mudanças aos seus alunos: "A China realizou
uma perestroika (reestruturação), sem uma glasnost (transparência ou
abertura)".

O que os líderes chineses querem é a construção do "socialismo do tipo
chinês". Ou seja, a idéia de desenvolvimento do "sistema de economia de
mercado socialista". Uma teoria talvez de difícil compreensão no Ocidente,
mas claramente influenciada pelos antigos e reiterada pelos novos
empresários chineses que ingressaram no PCC.

Com a chegada da nova geração ao poder, traduzida pela figura de Hu Jintao,
o secretário-geral do partido, a estabilidade econômica aliada a um
crescimento extraordinário de 7% a 8% ao ano, se tornou prioridade do
governo.

O novo núcleo do PCC vê como positiva a aproximação com o Ocidente,
traduzida na chegada de mais investimentos, na absorção de tecnologias para
o país e no aumento das exportações. É possível que com a emenda sobre o
resgate da propriedade privada aprovada no Parlamento chinês as áreas não
abertas ao capitalismo se desenvolvam. No entanto, o nivelamento com as
atuais Zonas Econômicas Especiais, já abertas a economia de mercado, só
ocorrerá a longo prazo, se ocorrer.

Provavelmente veremos uma situação parecida com a que se encontra
atualmente na Alemanha, onde a área oriental do país sustenta um desemprego
maior que a média da União Européia, além de conflitos internos traduzidos
em extremismos e diferenças ideológicas. Regiões remotas da China
continental ainda sustentam fortes tradições maoístas, que provavelmente
levarão a conflitos interioranos, sem falar nas guerrilhas maoístas ainda
existentes no oeste chinês.

As Zonas Econômicas Especiais formam uma espécie de laboratório chinês
utilizado para a reforma capitalista em andamento desde a época de Deng
Xiaoping, o líder que promoveu uma verdadeira "desmaotização" na China.
Nestas zonas especiais encontram-se desde empresas estatais clássicas,
passando por empresas de capital misto, até empresas familiares,
individuais e privadas.

Esses "parques-modelos" de desenvolvimento foram utilizados não só para
intercâmbio científico e tecnológico, mas também de idéias e culturas,
irradiando para fora de seus limites a idéia de reabertura ao Ocidente.

A "ocidentalização" em si é um fenômeno muito bem visto pelos chineses, que
vislumbram uma sociedade de consumo estimulada por um governo que considera
necessário a reforma de "antigos hábitos e costumes" — como deixou claro o
ex-secretário-geral do PCC Jiang Zemin. No entanto, abrir a mão do poder
centralizado e unipartidário é uma idéia que não passa pela cabeça dos
líderes chineses. Talvez essa paulatina mudança visando ao estímulo de
forças pró-mercado esteja ocorrendo devido ao fato de que a nomenklatura
chinesa vê com bons olhos a manutenção de seus privilégios e hierarquias
também em uma economia de mercado.

É necessário prestar atenção para entender a importância que o dragão
chinês exercerá nas relações internacionais, a cada salto que o país
realiza rumo à abertura completa de sua economia. A China tem a oferecer ao
mundo o maior mercado consumidor em potencial e uma estabilidade econômica
e política pouco comum na Ásia.

FILIPE PINTO MONTEIRO é estudante de história da UFRJ e estagiário da
Fundação Biblioteca Nacional.

N.R.: O colunista Luis Fernando Verissimo volta a escrever neste espaço em
maio.
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