“Não vou deixar usarem a minha cultura”! O papel da cultura no ativismo de fã-gamers em League of Legends

May 26, 2017 | Autor: Tarcízio Macedo | Categoria: Game Theory, Communication, Game studies, Intercultural Communication, Science Communication, Popular Culture, Computer Games Technology, Video Games, Use of story-telling in games, Digital Culture, Culture, Fan Studies, Multiplayer Online Games, Media Activism, Social Activism, Communication Theory, Cyberculture, Fan Cultures, Digital Games, Fandom, Online Fandom, Fan Theory and Culture, Sociability, Cybercultures, Digital Theory and Culture, Activism, Youth activism, Cibercultura, Games, New Media and Digital Culture, Sociality, Digital Activism, Cultura Popular, New Media and Political Activism, New media, Social Network Sites and Youth Practices, Youth Online sociability and Identity, Media and Digital Literacies, Participation and Civic Engagement, and Tensions between Public and Private, Youth Online Sociability and Identity, Online activism, Fanfiction, Fan Communities, Gamers, Digital Cultures, Activismo, Digital Culture, Cyberculture, New Media Studies, Forms of Sociality, Popular Culture, Computer Games Technology, Video Games, Use of story-telling in games, Digital Culture, Culture, Fan Studies, Multiplayer Online Games, Media Activism, Social Activism, Communication Theory, Cyberculture, Fan Cultures, Digital Games, Fandom, Online Fandom, Fan Theory and Culture, Sociability, Cybercultures, Digital Theory and Culture, Activism, Youth activism, Cibercultura, Games, New Media and Digital Culture, Sociality, Digital Activism, Cultura Popular, New Media and Political Activism, New media, Social Network Sites and Youth Practices, Youth Online sociability and Identity, Media and Digital Literacies, Participation and Civic Engagement, and Tensions between Public and Private, Youth Online Sociability and Identity, Online activism, Fanfiction, Fan Communities, Gamers, Digital Cultures, Activismo, Digital Culture, Cyberculture, New Media Studies, Forms of Sociality
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“Não vou deixar usarem a minha cultura”! O papel da cultura no ativismo de fã-gamers em League of Legends1 Tarcízio Macedo, PPGCom-UFPA, PA, Brasil Resumo Neste artigo, partimos de uma observação de um movimento comunicativo de resistência gerado no antigo fórum oficial brasileiro do jogo on-line League of Legends (LoL), de maio a junho de 2014. Defendemos a hipótese de que os atos de resistência cultura e econômica dos fãs do jogo estão baseados em uma relação cultural que funciona como elo que cria engajamento e reforça as práticas de resistência frente à conduta da empresa em cobrar por um bem virtual inspirado, pela primeira vez no game, em um elemento da cultura brasileira e amazônica: o mito da Iara, remodelado sob a forma de skin para a personagem Nami. A metodologia constitui-se de um processo articulado por dois eixos, baseado na triangulação metodológica e no uso de protocolos etnográficos guiados por uma abordagem lurking. As conclusões apontam para a diversidade das apropriações e usos dos fãs da cultura como um vetor que liga, estabelece laço, une, encontra-se naquilo que é o interesse comum de uma parcela significativa do fandom de League e permite uma relação de socialidade entre os que compartilham da comunidade, agindo como impulsionadora da prática e dos atos de resistência. Palavras-chave: Ativismo de fã-gamers; Socialidade; Comunicação e Cultura. Introdução Tendo em vista que toda comunidade de conhecimento é construída a partir de interesses comuns recíprocos, qual a função da cultura, representada pela imagem da personagem Nami Iara no jogo League of Legends2, no movimento comunicativo de ativismo de fã-gamers que tomou conta do antigo fórum oficial brasileiro do jogo on-line entre os meses de maio a junho de 2014? Trata-se, nesta pesquisa, de refletir sobre o papel da cultura e de sua manifestação primeira, a imagem da personagem, na constituição do que definimos como manifestação do ativismo de fã-gamers em League e da comunidade de conhecimento, e inteligência coletiva, que o engajamento gera no âmbito do potencial de representação política da comunidade brasileira de jogadores de LoL. A importância do contexto cultural, e de sua representação imagética neste movimento, aponta para a dinâmica de uma estética do estar junto em que o fator cultural funciona como valor gregário que aproxima os diversos membros e auxilia na organização política descentralizada dos fãs contra a atitude capitalista da empresa. Nossa análise sugere que uma

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Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA. 2 League of Legends (LoL), ou apenas League, é um jogo em ambiente digital produzido e distribuído pela empresa norte-americana Riot Games. O jogo possui uma versão nacional desde 2012, totalmente dublado para o país. Mais informações sobre o game estão disponíveis em Macedo e Amaral Filho (2015).

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expressão frequente e significativa para a construção do engajamento de cunho resistente e da formação desta comunidade de conhecimento é a cultura, cuja representação encontra-se na imagem da personagem Nami Iara. O objetivo deste artigo é também, portanto, mostrar que as memórias, imaginários, inconscientes, símbolos nacionais de pertencimento etc., ou seja, tudo aquilo que pode ser definido como a cultura praticada em certos espaços geográficos, atuam de modo decisivo como mediadores no contexto das ações de fãs em ambientes digitais. A partir do tecido social presente neste movimento de resistência3, intentamos refletir sobre o que está na origem do processo social que não é específico dessa comunidade de fãs, mas que pertence a uma categoria fundamental partilhada: os interesses comuns que ligam, reúnem e levam as pessoas a resistir. Tal conjuntura remete a procura por laços de socialidades4 temporárias ou duradouras, de um estar-junto, mesmo virtualmente, que o próprio fenômeno engendra e atrai. É, sem dúvida, uma nova forma de laço social que igualmente merece atenção. Por meio deste recorte específico, queremos compreender um dentre muitos elementos que podem motivar essas práticas interacionais de resistência nessas novas ambiências comunicativas, como os fóruns on-line, em que os indivíduos compartilham informações e relacionam-se nesses espaços por meio de práticas interacionais emergentes que se propagam no cenário comunicacional contemporâneo. Trata-se de discutir a forma que acreditamos ser o referencial estruturante da interação neste ativismo de fã-gamers5 em particular: a cultura como uma aisthesis para a resistência. Comunidades virtuais: formas de associação na cultura contemporânea A palavra “comunidade” pode ser utilizada para abordar diversos tipos de grupos sociais. Conforme nos alerta Leandro (2008, p. 156), apesar de uma quantidade variada de aplicações, a definição da terminologia passa pela dimensão subjetiva, principalmente. Ao discorrer sobre “comunidade”, podemos abordar diferentes questões que subjazem ao fenômeno, tais como a questão da territorialidade, o viver comum, o estar-junto (MAFFESOLI, 3

Partimos do pressuposto da resistência como um processo de engajamento e cultura participativa relevante, constituído a partir do choque entre os discursos capitalistas da empresa e o de pertencimento cultural do público de fãs (MACEDO; AMARAL FILHO, 2015; 2016, p. 159; MACEDO, 2016b, 9-10). 4 O termo socialidade é resgatado por Maffesoli (2003, 2010) a partir de sua interpretação da obra de Simmel (2006) para definir os novos ajuntamentos urbanos, baseados nas relações banais do cotidiano, no presenteísmo, no hedonismo e no sentir coletivo, características típicas, segundo Maffesoli (2003, 2010), das sociedades ocidentais contemporâneas. 5 Em Macedo e Amaral Filho (2016) e Macedo (2016b) realizamos uma ampla revisão bibliográfica a respeito dos conceitos de ativismo, ativismo de fã, participação política, engajamento cívico, ativismo de fã-gamers, resistência e movimento comunicativo que não cabem neste artigo. Por ativismo de fã-gamers descrevemos como “[...] um tipo específico de prática de contestação e resistência vinculada a conteúdos lançados ou existentes em plataformas de jogos digitais por um lobby específico de fãs, referindo-se ainda a uma forma de engajamento cívico e participação política gerada em espaços comerciais ou não-comerciais” (MACEDO; AMARAL FILHO, 2016, p. 162).

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2014), ao sentimento de pertencimento, o sentimento coletivo de estar com outros, de “nós”. “Esse sentimento propicia o estabelecimento de interconexões de comunicação, desde o mais primitivo momento histórico até a vida contemporânea” (LEANDRO, 2008, p. 156-157). Pode-se afirmar que este sentimento de pertença e existência de interesses comuns, como a cultura, são os firmamentos para concretizar as conexões entre membros da comunidade, porque serão estes valores que manterão a unidade social em contraponto a todos os fatores que podem afastá-los. “A dimensão subjetiva se coloca, assim, como mais significativa do que outras dimensões, como a da espacialidade, também inegavelmente associada à ideia de comunidade” (LEANDRO, 2008, p. 157). Rheingold (2005) foi o primeiro autor a difundir o conceito de comunidade virtual, a partir de 1993. Para ele, uma comunidade virtual é um espaço de agregação cultural formada pelo encontro de um grupo de pessoas no ciberespaço sistematicamente, que podem ou não atenderem uns aos outros pessoalmente. Esse tipo específico de comunidade virtual é movido pelo compartilhamento de ideias e palavras, nas quais existe a coatuação dos seus integrantes, por meio do compartilhamento de interesses, valores, metas e posturas de apoio recíproco, por meio da tela de um computador e pela rede. Como qualquer comunidade, o conjunto de membros aderem a um determinado contrato social (mais fluído) e que compartilham certos interesses (RHEINGOLD, 2008, p. 3). Palacios (1998, on-line) elenca os elementos que caracterizam uma comunidade clássica: o sentimento de pertencimento, uma territorialidade (geográfica e/ou simbólica); a permanência; a ligação entre sentimento de comunidade, de caráter cooperativo e emergência de um projeto comum; a existência de formas próprias de comunicação; e a tendência à institucionalização. Segundo Palacios (1998, on-line), “o cyberespaço parece conter todo tipo imaginável de comunidade”, desde as mais engajadas, de discussões, de marcas, até as mais solidarias, voltadas para causas sociais, políticas e humanas. Em uma crítica ao pensamento de Bauman (2003), Costa R. (2005) argumenta que a noção de “comunidade” do autor é demasiado romântica, por impedir a compreensão do que está ocorrendo nos movimentos coletivos da nossa época. Ele argumenta que, ao contrário do que Bauman (2003) percebe, o processo de comunidade realizado em ambientes digitais é baseado na cooperação e trocas objetivas de ideias, experiências e conteúdos, não na permanência de laços sociais duradouros, como critica Bauman (2003), que se relaciona a um dos princípios das comunidades clássicas que Palacios (1998) nos mostra. De toda forma, a “‘comunidade’ produz uma sensação boa por causa dos significados que a palavra ‘comunidade’ carrega: é a segurança em meio à hostilidade” (BAUMAN, 2003, p. 7). 3

Conforme Castells (2003, p. 48), as comunidades virtuais funcionam baseadas em duas características fundamentais: o valor da comunicação livre, horizontal, na qual as práticas em comunidades virtuais são de livres expressões globais, e o que o autor chama de formação autônoma de redes, ou seja, a possibilidade permitida a qualquer indivíduo de descobrir sua própria direção na internet, e, “não a encontrando, de criar e divulgar sua própria informação, induzindo assim a formação de uma rede” (CASTELLS, 2003, p. 49). Kozinets (2014, p. 17) argumenta que existe algum senso de continuidade na participação e uma interação social sustentada por uma certa familiaridade entre os membros para determinar “afiliação à comunidade”, tais como autoidentificação como um membro, repetido contato, familiaridade recíproca, conhecimento compartilhado de alguns rituais e costume, algum senso de obrigação e participação. As comunidades virtuais organizam-se por meio de grupos de pessoas inter-relacionadas em busca da inteligência coletiva, em potencial6. Um grupo humano se interessa em se estabelecer como comunidade virtual para beirar-se do ideal do coletivo inteligente7, mais capaz de instruir e ser instruído, de criar e propagar. Tais grupos são assegurados por meio do processo de produção recíproca e bilateral intercâmbio de conhecimento. Segundo Jenkins et al (2014, p. 209), os interesses dos membros de comunidades virtuais são coletivos e envolvem “dar forma a representações, declarar significados e valores, alterar termos de serviços e condições de trabalho e utilizar as plataformas para movimentos maiores em prol da mudança social”, característica esta última presente em parte das relações comunitárias que se estabelecem enquanto ativismo de fãgamers em League. A respeito da formação de comunidades em jogos tradicionais, os clubes, Huizinga (2000, p. 13) dizia que esses ajuntamentos de jogadores tendem a uma permanência, mesmo após o fim do jogo. [...] a sensação de estar “separadamente juntos”, numa situação excepcional, de partilhar algo importante, afastando-se do resto do mundo e recusando as normas habituais, conserva sua magia para além da duração de cada jogo. O clube pertence ao jogo tal como o chapéu pertence à cabeça (HUIZINGA, 2000, p. 13).

No contexto do nosso objeto, a comunidade virtual poderia ser considerada uma das etapas para a constituição de um clube. Neste estudo, a comunidade virtual que analisamos é o antigo fórum oficial do jogo mantido pela empresa que administra o jogo. “A comunidade

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Em Macedo e Amaral Filho (2016), defendemos a hipótese do ativismo de fã-gamers como constituído a partir das dinâmicas da inteligência coletiva. 7 Conforme Lévy (2003, p. 94) nos lembra, “o coletivo inteligente não submete nem limita as inteligências individuais; pelo contrário, exalta-as, fá-las frutificar e abre-lhes novas potências”.

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pertence ao jogo tal como o chapéu pertence à cabeça” (MACEDO; AMARAL FILHO, 2016, p. 154). Abordagem metodológica: percorrendo caminhos, delineando uma trilha No início deste trabalho, dissemos que nosso objetivo é buscar compreender qual o papel da cultura representada pela imagem da skin Nami Iara na construção da prática do ativismo de fã-gamers em League, uma vez que ela é o motivo principal que gera o engajamento e a participação dos fãs. Para viabilizar este objetivo, as metodologias aplicadas à pesquisa foram adaptadas conforme as exigências colocadas pelo objeto. Para este fim, realizamos uma proposta metodológica sustentada por dois eixos para constituir nossa esfera empírica. Neste trabalho, utilizamos das duas grandes estratégias analíticas de dados desenvolvidas dentro da pesquisa empírica: a análise quantitativa e qualitativa. A este tipo de pesquisa, segundo Freitas e Jabbour (2011, p. 9), de mescla de abordagens e métodos de pesquisa é chamado de triangulação metodológica, ou, conforme preferem outros pesquisadores, de mixed-methodology, baseada a partir da utilização combinada e continuada sequencialmente de uma fase de pesquisa quantitativa seguida de uma fase qualitativa, ou o contrário. Com base neste pensamento, posicionamo-nos dentro de uma gama de pesquisadores que misturam as duas abordagens, de modo que buscamos a apropriação do aporte quantitativo8 para fornecer e estimar o impacto do movimento, compilados em dados, que direcionam uma melhor análise qualitativa posterior de modo a contextualizar, aprofundar e tencionar os detalhes das singularidades do levantamento de dados quantitativos. A priori, realizamos uma observação do movimento in loco durante o mês de maio a junho de 2014 de como o movimento manifestava-se. Posteriormente, a partir de uma segunda etapa exploratória realizada em julho de 2014, partimos para um mapeamento do movimento travado no fórum para estimar seu impacto, auxiliando ainda na delimitação do corpus e na construção de amostras qualitativas. Nesta fase, realizamos coletas de dados por palavraschaves na época em que o fórum oficial permitia o uso desta ferramenta. Em um terceiro momento, realizamos duas triagens, uma parcial entre os dias 12 e 13 de julho de 2015 e uma segunda varredura, mais sistemática e refinada, cujo objetivo era procurar validar os resultados anteriores e acrescentar outra palavra-chave associado ao movimento, seguindo para uma análise quantitativa do impacto comunicativo do ativismo no fórum. Realizamos um mapeamento quantitativo do movimento para construção de uma amostragem com base em

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Contudo, pela limitação textual, apenas expomos alguns dos critérios, fatores e resultados desse mapeamento e análise qualitativa para nos determos na análise qualitativa.

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cinco critérios: (1) local de incidência, (2) temporalidade, (3) representatividade numérica e popularidade (agregação), (4) especificidade temática e (5), por fim, aceitação e vínculo. Durante estas fases iniciais de observação e mapeamento, foram recolhidos exemplos e realizadas anotações diversas parar aprofundamentos na segunda etapa, quantitativa. Neste segundo momento, utilizando de protocolos do método etnográfico sob um viés lurking, realizamos novas observações nos dias 21 a 25 de outubro de 2015. Nessa etapa de observação, analisamos como os fãs articulavam-se a partir do elemento cultural no fórum para impulsionar o ativismo de fã-gamers. A respeito do uso do método etnográfico nesta pesquisa, conforme apontam Fragoso et al (2013, p. 188), tal abordagem é passível de combinação com outros métodos e técnicas, reforçando e desvelando uma perspectiva holística de determinado fenômeno, ampliando reflexões a partir da utilização de outros aparatos teórico-meotodológicos para estudos empíricos. O ambiente da internet permite uma proliferação na escala de milhões de mundos onlines, sites e comunidades de fãs, fóruns de discussões e uma infinidade de outros espaços que propiciam discussões dos mais variados tipos. São ambientes nos quais há uma variedade de fandoms9 de produtos midiáticos dispersos em diversas plataformas distintas nos quais pesquisadores podem utilizar como campo de estudo de pessoas, culturas e jogos (COTE e RAZ, 2015, p. 97). No processo de coleta de dados quantitativos, construção de amostras qualitativas, observação no ambiente on-line e nas distintas fases analíticas este estudo possui inspirações etnográficas. Segundo Fragoso et al (2013, p. 168), uma pesquisa que utiliza deste recurso metodológica apropria-se de partes dos procedimentos considerados etnográficos de pesquisa possibilitando a inclusão de protocolos metodológicos e práticas de narrativa para formar a análise dos dados, sem os rigores ou o comprometimento que são aplicados em um estudo de viés etnográfico. Na época da realização da pesquisa, o fórum de LoL, palco para os debates e as discussões travadas sobre a criação da skin10 inspirada na Iara, sofreu uma grande mudança11 que o tornou um arquivo sobre a história da comunidade de League desde a chegada do servidor 9

A expressão inglesa fandom é um neologismo criado a partir da contração das palavras ingleas fan e kingdom, que significam respectivamente fã e reino. Logo, a palavra fandom significaria “o reino dos fãs” ou a “comunidade dos fãs” que promove uma variedade de formas de letramento que perpassam diversas possibilidades criativas que vão desde comentários, notícias, ilustrações, ficções de fãs, etc. (MACEDO; AMARAL FILHO, 2015, p. 151). 10 Skins são itens vendidos dentro do jogo que alteram os designs de personagens dentro jogo, funcionam como “peles” ou vestimentas para personagens e incorporam de referências estéticas e culturais diversas. Eles são adquiridos por meio de moedas virtuais em League, obtidas por meio da troca por dinheiro (MACEDO; AMARAL FILHO, 2015, p. 234). 11 A mudança entrou em vigor no dia 10 de fevereiro de 2015. Disponível em: http://goo.gl/fsPVNI.

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ao Brasil. O fechamento do fórum o tornou estático, desativando uma série de funções antes disponíveis e impedindo qualquer usuário de atualizar ou modificar qualquer comentário ou conteúdo, além disso a mudança de nomes no jogo feitas pelos fãs permitidas no game não seria mais atualizada automaticamente no fórum, o que dificulta ainda mais o acesso aos informantes. Com o desligamento do fórum, houve também a remoção de várias ferramentas, como o sistema de buscas e o sistema de classificação de posts que antes eram disponíveis, o que dificultou consideravelmente e demandou maior tempo para a delimitação do corpus a ser analisado. O fato do fórum estar desativado exigia, portanto, a busca por estratégias e alternativas para compreender e delimitar a pesquisa sem, no entanto, comprometer a análise e os resultados. Por conta desta razão, inicialmente não conseguimos entrar em contato com uma quantidade considerável dos fãs participantes do movimento comunicativo de resistência para que pudéssemos realizar algumas etapas fundamentais do estudo etnográfico – eis um dos motivos pelos quais utilizados um estudo de inspirações etnográficas. A partir do mapeamento e análise qualitativa do corpus empírico, esta pesquisa interessa-se pela análise de interações de uma quantidade considerável de fãs que participaram de discussões no que tange a respeito do nosso tema focal, a partir do qual procuramos defender a hipótese de que os atos de resistência12 dos fãs podem ser baseados em uma relação cultural que funciona como elo que cria engajamento e reforça as práticas de resistência frente à conduta da empresa em cobrar por um bem virtual inspirado em um elemento da cultura nacional brasileira e amazônica. Dentro dos estudos na internet, existem diversos modelos de observação on-line, específicos para cada objeto empírico e que reivindicam abordagens próprias. Nessa multiplicidade de possibilidades metodológicas existe uma prática na qual o ato de observação do pesquisador pode não ser conhecida, considerada uma prática “à espreita” ou “encoberta”, a partir da qual o intercâmbio entre o investigador e o informante ocorre abertamente por meio da presença on-line do pesquisador em determinado ambiente digital: tal perspectiva é conhecida como lurking13. Nela, Fragoso et al (2013, p. 192) identificam o chamado pesquisador “silencioso” ou lurker. Evidentemente, como indicam as autoras, a inclusão do pesquisador no campo, apesar de não ser um participante ativo incorporado previamente na cultura em questão ou não se 12

Por atos de resistência, circunscrevemos às formas de engajamento dos fãs no âmbito da cultura participativa, de modo mais específico qualquer tipo de interação no âmbito da comunidade virtual de LoL que esteja posicionando a opinião de um fã explicitamente contra à venda da skin da Nami Iara ou insatisfeito com a decisão da empresa (MACEDO; AMARAL FILHO, 2016, p. 149; MACEDO, 2016b, 1). 13 Segundo Fragoso et al (2013, p. 192), é o ato de entrar em fóruns, comunidades on-line, listas de discussão, dentre outros, apenas como observador, contudo, sem participação ativa com os membros. Isto, por si só, não seria permitido uma vez que o fórum estava desativado para comentários.

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apresente enquanto tal, já provoca uma mudança no objeto. Eis, portanto, mais uma justificativa que utilizamos para uma abordagem de inspirações etnográficas. Como toda e qualquer abordagem metodológica, há ganhos e perdas com essa prática e isto deve ser esclarecido, sempre tomando cuidado para proteger e garantir o anonimato de todos os informantes. A escolha desta abordagem menos intrusiva perante o grupo pesquisado, descrita neste artigo, é realizada e refletida de acordo com questionamentos e justificativas éticas que foram confrontadas ao longo do curso de desenvolvimento desta pesquisa e que, muito seguramente, possui impacto nos resultados. Além disso, partimos do pressuposto que o pesquisador lurking deve mostrar-se aos poucos para a comunidade e construir um processo metodológico contínuo que, atualmente, encontra-se em fase de elaboração para a segunda etapa desta pesquisa. Para fins de análise, serão consideradas as interações diversas classificadas como “atos de resistência” na matéria de lançamento da skin (“Deixe-se conquistar pela canção da Nami Iara”, com 310 comentários), e em algumas publicações do tipo tópico no fórum oficial do jogo, sobretudo uma postagem (“Sobre o preço da Nami Iara”) de um funcionário da empresa informando a decisão da mesma sobre a mobilização gerada a respeito da skin. O tópico com maior quantidade de interações por meio de comentários (740 dispostos em 75 páginas internas do tópico, o equivalente a 36,58% do total de respostas) e visualizações (67,981, o equivalente a 45,81% do total de visualizações) foi justamente este cujo objetivo era esclarecer a decisão da empresa sobre o preço da skin, que também foi a última incidência (publicação) sobre o tema no fórum, mas que gerou amplo debate e o maior número de práticas de resistência durante a existência do movimento. Entretanto, cabe ressaltar que nossa análise não se limita apenas a uma publicação com o maior grau de incidência participativa da comunidade de fãs, seja de comentários ou visualizações, mas também de outros tópicos (a saber, “Nami Iara será 975 RP”, “Nova Skin: Nami Yara a caminho!!!” e “Skin da Nami ta de graça para os BR ou não???”, cada uma com respectivamente 7, 8 e 10 comentários) que ajudam a contextualizar a movimento e nos quais são travados ricos debates entre alguns poucos fãs. Apesar de não alcançarem visibilidade e repercussão na comunidade, estes espaços e os argumentos utilizados nos comentários enquadram-se na perspectiva de um movimento de resistência de fã-gamers na internet. Desta forma, analisamos um total de 765 comentários dispostos em 78 páginas do fórum e em 310 comentários na matéria de lançamento da skin no site do game (não há numeração de páginas) realizados nos cinco objetos escolhidos. A formação de uma comunidade de conhecimento 8

Uma comunidade de conhecimento é concebida por Jenkins (2009, p. 57) como uma nova forma comunitária que surge no contexto da convergência. Para o autor, “essas novas comunidades são definidas por afiliações voluntárias, temporárias e táticas, e reafirmadas através de investimentos emocionais e empreendimentos intelectuais comuns” (JENKINS, 2009, p. 57). Um indivíduo pode ainda pertencer a diversas comunidades, bem como se deslocar de um grupo para outro de acordo com a mudança de interesses pessoais. Por sua vez, as comunidades funcionam por meio da produção colaborativa mútua e pela partilha recíproca de saberes. Tais grupos atuam para estimular cada membro a procurar por novas informações em prol do bem comum que mantém os laços associativos entre as partes (JENKINS, 2009, p. 57). Lévy (2003) denomina de comunidades de conhecimento uma organização de consumidores midiáticos que procuram desempenhar maior potência em suas relações de negociação com os conteúdos dos meios de comunicação por meio do poder aglomerado. O que não se consegue realizar sozinho, constrói-se coletivamente. Este processo estaria suscitando o nascimento de uma nova força colaborativa na cultura digital, e as ações desta comunidade de conhecimento colaborativo mudariam as formas como a cultura de massa opera. Uma comunidade de conhecimento é construída a partir de interesses intelectuais mútuos, conforme afirma Jenkins (2009, p. 48), na qual os seus membros trabalham em equipe para construir novos conhecimentos, em domínios com a ausência de especialistas tradicionais. A avaliação e a busca por esse conhecimento estão permeadas por relações solitárias e divergentes, ao mesmo tempo. Analisar o funcionamento de uma comunidade de conhecimento pode revelar muito sobre a natureza social do consumo de mídia na contemporaneidade e mostrar como o conhecimento torna-se uma ferramenta de poder importante na era da convergência midiática (JENKINS, 2009, p. 48). No nosso objeto, a skin da Nami Iara atende a um antigo anseio dos jogadores brasileiros, um certo requisito de uma cultura em se ver representada no universo do jogo14. A primeira incidência sobre o movimento gerado pela skin no fórum oficial foi encontrada na página 1492 do subfórum “Discussão Geral” no dia oito de maio (data da notícia da prévia da skin), dentre as 3462 disponíveis naquela sessão específica. Foram criados vários tópicos sobre

Tópicos criados no fórum como “RIOT precisamos de uma skin em homenagem ao Brasil”, no dia 26/06/2013, com 183 upvotes e responsável por 85 páginas de discussões entre fãs e funcionários da empresa, e “[Discussão aberta] Inspirações culturais no League of Legends”, no dia 20/03/2014, com 42 upvotes e responsável por 45 páginas de discussões com jogadores e membros da Riot Games, retratam o anseio da comunidade pela representação no jogo, como uma forma de ganhar visibilidade. Disponível, respectivamente, em: http://goo.gl/7VAjtR e http://goo.gl/EEWNka. 14

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o possível anúncio de uma skin representativa do Brasil. Em alguns desses tópicos, foi possível verificar alguns comentários. Finalmente a SKIN BRASILEIRA que representa um tema uma cultura uma historia, não a representação banal e boçal de um filme que apenas nos passa violência e a impressão de um Pais sem preceitos. Espero que demonstre que foi feito em homenagem a nosso servidor para que o mundo conheça um pouco de nossa cultura (grifo final nosso).15

A parte grifada, no que diz respeito à homenagem ao servidor brasileiro, será um assunto igualmente debatido pela comunidade após o lançamento oficial da skin. A pesquisadora Hine (2000), ao pensar sobre a internet como objeto de estudos, propôs dois modelos de abordagens teóricas, passíveis ou não de estarem conectados, para que se possa construí-la conceitualmente: a internet enquanto artefato cultura e enquanto cultura. Segundo Fragoso et al (2013, p. 41), a perspectiva da internet enquanto cultura é amplamente aceita como um espaço distinto do offline, de modo que os estudos focalizam aspectos de fenômenos que ocorrem nos ambientes digitais. Contudo, este estudo procura perceber a internet a partir da visão enquanto um artefato cultural, mais especificamente percebendo a skin Nami Iara enquanto um artefato cultural. O conceito de artefato cultural é proveniente da antropologia e dos estudos sobre as comunidades (FRAGOSO et al, 2013, p. 42). Segundo nos mostra Shah (2005, p. 8), um artefato cultural [...] pode ser definido como um repositório vivo de significados compartilhados que são produzidos por uma comunidade de ideias. Um artefato cultura é um símbolo comunitário de pertencimento e possessão (no sentido não violento e não religioso da palavra). Um artefato cultura se torna infinitamente mutável e gera muitas autorreferências que são mutuamente definidas, muito mais do que gera uma narrativa linear central 16. Por estar além do alcance da lei, o artefato cultural torna-se um signo para a construção da Ordem Simbólica dentro da comunidade. Ele carrega uma autoridade ilegítima, que não é sancionada por sistemas legais ou pelo Estado, mas pelas práticas vivenciadas pelas pessoas que as criam (tradução nossa).

Encarar a skin Nami Iara como um artefato cultural, um reservatório repleto de significados que são compartilhados e ambientados culturalmente, permite perceber as inserções da tecnologia na vida cotidiana. Desta forma, favorece o entendimento da rede como um elemento da cultura e não como uma entidade distante e fronteiriça a ela, em um panorama Excerto de comentário de um fã em post, intitulado “Nova Skin: Nami Yara a caminho!”, publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 08/05/2014. A resposta recebeu 1 upvotes. Alguns dos pequenos problemas de formatação nesta e em outras citações de fãs presentes neste estudo foram marcados em itálico, além disso, igualmente utilizamos deste recurso para dar ênfase em partes específicas das falas dos informantes. Optamos por manter padrões de linguagens, transcrevendo-os diretamente da internet, para conservar a originalidade dos enunciados dos fãs. 16 Para uma melhor contextualização sobre as múltiplas narrativas dos fãs para a empresa sobre o caso Nami Iara, confira Macedo e Amaral Filho (2016). 15

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que se distância da abordagem da internet como cultura, sobretudo, pela integração dos âmbitos on-line e off-line e pelas influências realizadas entre ambos os contextos. O conceito de artefato cultural depreende que há diversas definições culturais em diferentes âmbitos de uso. Enquadrase o objeto internet não como sendo único, e sim multiface e suscetível de adaptações. Pelo fato dos estudos desta abordagem destacarem a perspectiva de artefato cultural observando questões a respeito dos discursos sobre a internet, a exemplo dos discursos libertários alusivos à natureza anárquica e “à atitude contracultural dos hackers e cyberpunks do início da rede [...] e os processos de produção e consumo na construção do sentido dos seus usos sociais” (FRAGOSO et al, 2005, p. 42), trabalhamos nesta perspectiva, uma vez que refletimos sobre as vozes dos fãs em um movimento comunicativo. A noção de internet como artefato cultural possibilita a compreensão do objeto como um espaço intersticial em que as fronteiras entre o on-line e off-line são diluídas e ambos espaços interagem. O interesse comum: a cultura como pertencimento, vetor de socialidade O objetivo deste tópico é mostrar que o lugar físico, as memórias, imaginários, inconscientes e culturas praticadas em certos espaços geográficos atuam de modo decisivo no contexto de ambientes digitais. Apenas o fato de receber algo gratuitamente, um presente, já é um motivo suficiente para muitos se engajarem em prol de uma causa, até mesmo aqueles que sequer possuem competências culturais para compreender o que é a Nami Iara. Isto porque um dos desafios da inteligência coletiva, das comunidades de conhecimento, é lidar com a individualização que se evidencia por meio de múltiplas pautas atendendo a múltiplas vontades (MACEDO; AMARAL FILHO, 2016, p. 167): o interesse pelo benefício pessoal em primeiro lugar, da cultura do “eu” sobrepondo ao “nós”, pois tais comunidades não estão imunes desse processo, apesar de Maffesoli (2014) refletir sobre o declínio do processo de individualismo nas sociedades, ele ainda está presente em diferentes facetas do cotidiano. É um processo de desprendimento do indivíduo das redes de pertencimento que o leva paralelamente a um processo de individualização, da forma como os laços sociais são frágeis e podem facilmente serem desfeitos em casos de conflitos e desagrado para ambas as partes, de modo que o relacionamento interpessoal ganha os ares mercantis (BAUMAN, 2007, p. 8-9). Como corrobora Costa R. (2004, 2005), todo tipo de comunidade, sociedade ou grupo está entremeando em negociações de preferências individuais. O fato de conviver com outrem coloca em questão as próprias preferências individuais das pessoas em relação com as de outros.

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Não pretendemos realizar grandes construções sobre o conceito de cultura, mas o compreendemos a partir de alguns fatores: a cultura condiciona a visão de mundo do homem, por meio da propagação da herança cultural como a narrativa mítica da Iara amazônica, interferindo no plano biológico; possui uma lógica própria de dinamismo, no qual o lugar geográfico possui expressão (o Brasil e a Amazônia) e por meio da qual os indivíduos participam diferentemente de sua cultura (LARAIA, 1986). “O vínculo social”, segundo nos mostra Leandro (2008, p. 157), “mantido em um determinado espaço pode ser entendido como parte de uma comunidade”, caso este vínculo seja realizado a partir de alguma crença, tradição, etnia ou característica outra comum que aproxima aqueles que compartilham tal situação. Nesse sentido, as narrativas, como lendas e mitos, desempenham uma função de vínculo social e organizadora dentro da sociedade, tentando fornecer explicações ao questionamento humano (BENJAMIN, 1994). Para Simmel (2006, p. 71), sociação é, principalmente, interação e o caso mais puro dela é aquela que ocorre entre iguais. “Abstraída da sociação pela arte e pelo jogo, a sociabilidade demanda o tipo mais puro, claro e atraente de interação, aquele que se dá entre iguais” (SIMMEL, 2006, p. 71). Para alcançar a socialidade e a “igualdade” é preciso uma completa “eliminação” temporária daquilo que é inteiramente pessoal e material, dos seus conteúdos objetivos, portanto, para se tornar sociavelmente semelhante perante um grupo. Logo, “cada qual só pode obter para si os valores de socialidade se os outros com quem interage também os obtenham” (SIMMEL, 2006, p. 71), feito isto, haveria um espírito comum unitário no qual prevaleceriam contribuições iguais. Para nós, o que une a todos os fãs no ativismo de fã-gamers em League e permite a socialidade enquanto forma é a cultura. Voltemos nosso olhar para nossa hipótese de que a cultura é um dos fatores que nos liga ao outro, uma maneira contemporânea de referenciar o simbolismo, cuja essência encontra-se na ideia de conjunção para Maffesoli referindo-se à comunicação. Apropriando-nos do nosso autor que reflete sobre a questão comunicativa, a cultura seria aquilo que promove religação, é cimento social. O fenômeno de práticas comunicativas deve aqui ser tido como uma noção que está implícita na socialidade, portanto, enquanto “a cola do mundo”. “A comunicação, antes de tudo, remete ao estar-junto” (MAFFESOLI, 2003a, p. 14). Para uma cartografia dessa inteligência, é necessário verificar as interações de um grupo ou comunidade e de seu correspondente “ecossistema de ideias” (COSTA R., 2004, online). Mas para isso, é preciso compreender o interesse comum que conecta as pessoas a cooperarem e trabalharem cooperativamente em prol de objetivos específicos. Para isto, tanto a memória quanto o inconsciente precisam enquadra-se em um âmbito coletivo. Aos conteúdos do inconsciente coletivo, Jung (2000, p. 16) chama de “arquétipos”. 12

Lembrando Silva (2003), o imaginário é uma língua. Nós nos comunicamos por meio de nossos imaginários, e nos games não seria diferente. Nas palavras do autor, “o imaginário é uma narrativa mítica da era da imagem” (SILVA, 2003, p. 7). Para Maffesoli (2001, p. 75), o imaginário seria uma ficção, opondo-se ao real, apesar disto também é algo que transcende o indivíduo e alcança o coletivo, pertence a um grupo no qual se encontra inserido. Dessa forma, para nosso autor, o imaginário molda e estabelece vínculo, é o estado de espírito de um grupo, de um país ou de uma comunidade. É cimento social e vínculo gregário. A imagem da Iara é a sua própria língua, que, mesmo silenciosa, comunica-se de forma ininterrupta, ocupa mídias tradicionais e inventa formas midiáticas contemporâneas, contagiando gerações, como percebemos em filmes, livros, e jogos como League of Legends. A vida cotidiana, seus hábitos, costumes, rituais, organiza-se ao redor de imagens a partilhar, sejam as imagens mais gerais até as que moldam as intimidades dos indivíduos e de comunidades como de LoL. As comunidades tribais de cada cultura partilham a todo instante essas pequenas emoções e imagens, a partir das quais organizam seu discurso dentro da vasta imensidão do mundo (MAFFESOLI, 2003a, p. 17). Estamos vivendo hoje, a partir do reencantamento do mundo para Maffesoli (2010, p. 116), a “queda das imagens” no mundo da vida, no conjunto do social, antes afastadas pela ciência e pela técnica. “Negadas durante muito tempo, elas [as imagens] invadem, de uma maneira desordenada e anárquica, o mundo contemporâneo” (MAFFESOLI, 2010, p. 118), elas, enquanto forma, mediam a nossa relação entre o eu e o mundo natural e social. Para Maffesoli (2010), a imagem não seria o conteúdo, mas a forma dessa nova sociedade, o elemento que promove a socialidade17, o reencantamento do estar no mundo que possui na experiência, enquanto cimento social que constitui essa dimensão estética de experienciar em comum com outros, o vetor deste processo, Logo, a imagem não seria de transmitir uma mensagem, e sim atuaria primordialmente desenvolvendo a experiência coletiva. Entre outras palavras, a imagem não diz o um dever-ser, ela induz o que é ou poderia ser. As imagens da cultura que povoam nossa memória, imaginário e inconsciente por meio de formas arquetípicas, como a representada no jogo pela skin Nami Iara, tem função gregária, cria microgrupos transitórios, efêmeros (ou não, tudo dependerá de cada indivíduo), gera laço social. O principal papel da imagem em League é aproximar os jogadores, em torno de si, para gerar vínculos e garantir o reconhecimento de si por meio do conhecer o outro e, juntos, consumir de modo compartilhado. A imagem reforça o laço social e emocionará, ela agrega a 17

Para Maffesoli (2003a, 2003b, 2010), a socialidade contemporânea é transfigurada pelas imagens em diversos domínios, no qual a vida social não estaria livre da força imagética.

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comunidade, dos que têm prazer com um produto estético similar. Ela funciona como um meio, um elemento primordial, um vetor do vínculo social (MAFFESOLI, 2003b, p. 47). É a partir desses processos que a imagem passa a ter força, ou seja, pelo social na qual ela se integra e liberta um “estar-no-mundo”, um participar do conjunto social, gerando vínculo social (MAFFESOLI, 2010). É próprio, portanto, da dinâmica da imagem de revigorar os sentimentos (aisthesis) partilhados em comum (MAFFESOLI, 2010, p. 98). A imagem, portanto, ajuda nesse “impulso vital” humano que nos estimula à agregação, que faz a todos buscar pela companhia alheia mesmo que momentaneamente. A imagem passa a ser, hoje, um polo de agregação das muitas “tribos”, como na comunidade de League, tanto de quem resiste como de quem apoia. A atividade comunicacional dessa comunidade, nesta perspectiva, e nesse regime de atrações e repulsões (MAFFESOLI, 2010, p. 29), encontram seus códigos, regras, costumes, diminuindo o espaço da vontade racional. Nessa perspectiva, itens como Nami Iara também produzem identificação de cada indivíduo com um grupo, como a cultura brasileira e amazônica, ou uma série de outros, a cultura grega e tantas outras nas quais a fonte “Iara” é reflexo como aponta Macedo e Amaral Filho (2015, p. 243) por meio do qual os fãs podem operar um reconhecimento de si mesmos por meio de algo exterior, seja em um objeto ou em outro. No fim, o que importa é se reconhecer em outro, a partir de outro (MAFFESOLI, 2010, p. 34), ou como diz Simmel (2006, p. 24), a “partilha do comum de objetos no processo de sociação dos seres humanos”. Esses totens, esses distintos itens, objetos de comunicação como as skins, tornam-se vetores de agregação, fornecem uma variedade de cultos comuns. A comunidade de League, portanto, possui uma mitologia comum a seus membros, que tem um “formismo” particular, na acepção de Maffesoli (2010, p. 34), que propicia a esse dado grupo formar-se enquanto tal e garante-lhe autonomia em relação a outros. A dinâmica dos objetos é construída para ser vista em uma relação comunicativa que forma o mundo comum, esse mundo no qual o indivíduo só é o que é na relação com o outro. Por meio dessa skin que propicia uma relação de identificação, os membros da comunidade unem-se a outros fãs que compartilham do sentimento comum de reivindicar pela gratuidade da skin. A comunicação é encontro, e este só é possível quando “se participa de um destino comum” (MAFFESOLI, 2003a, p. 13-14). Essa efervescência coletiva tornada banal, como aquilo que é experimentado em comum, vivido, o que vincula o indivíduo fundamentalmente ao outro, é manifestação da estética em que o emocional encontra-se como alicerce de “sentimentos comuns na experiência

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partilhada, na vivência coletiva” (MAFFESOLI, 2010, p. 83) que repousam na memória e no imaginário da cultura dos indivíduos e age como catalisadores para a resistência. Jenkins et al (2014, p. 319) argumentam que ao longo da história os críticos do imperialismo cultural procuraram advogar a aparente “pureza” das culturas indígenas da chamada influência corrupta de terceiros, mas a análise realizada por Zuckerman (2010, online) estabelece modos pelos quais a mixagem das culturas pode ser, em certo sentido, empoderador para os que objetivam fugir do isolamento cultural e participar de uma conversa transnacional e global. Ao que parece, era este o objetivo e a vontade do público brasileiro, percebido na fala de vários jogadores: “Espero que demonstre [a empresa] que foi feito em homenagem a nosso servidor para que o mundo conheça um pouco de nossa cultura”18. “Podiam ao menos passar aos outros servers uma boa divulgação da mitologia a qual ela foi inspirada, né?” 19, afirmou outro fã. Elencaremos os enunciados de alguns fãs que expressão e expõem a reação quanto à ação da empresa de não citar a referência da skin como sendo uma lenda brasileira, deixando bastante evidente o interesse comum que moveu esta comunidade de conhecimento. [...] ninguém tha pedindo que seja considerada uma skin brasileira seria justo apenas mencionar q foi inspirada em uma lenda brasileira só isso. Não é para dizer: “Spirit Nami é skin do Brasil". Pow quando a skin Ahri Estrela do Pop foi anunciada logo foi associada à Coreia. No caso dessa skin não vai ser associada ao Brasil. O que adianta “adaptação da nossa cultura para o universo do League of Legends” se ninguém sabe disso!20 Ridículo a Riot lançar uma skin “homenageando” - COM ASPAS GIGANTESCAS NESSA DITA HOMENAGEM, porque parece mais uma apropriação cultural! ¬¬ uma lenda brasileira e vendê-la, enquanto que ao fazer a mesma coisa com os outros países os jogadores ganharam as skins. Absolutamente ridículo isso. Lembra muito uma empresa japonesa que registrou “açaí” como nome de uma marca de popas de frutas, e foi multada e perdeu o direito ao uso desse nome. 21 Não adianta fazer skin de homenagem ao país e não divulgar isso pros demais servidores. Ou vocês acham que os americanos conhecem a Iara? Isso foi falta de respeito com a comunidade BR, com o próprio servidor que vocês administram. Eu queria comprar essa skin, mas me recuso a pagar o preço da Nami inteiro pra comprar a skin por metade do preço, e sendo que no fim somente os BR sabem que é

Passagem de comentário de um fã em post intitulado “Nova Skin: Nami Yara a caminho!” publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 08/05/2014. A resposta recebeu 1 upvotes. 19 Fragmento de comentário de um fã em post intitulado “Sobre o preço da Nami Iara” publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 13 upvotes. 20 Trecho de comentário de um fã na matéria de lançamento da skin intitulado “Deixe-se conquistar pela canção da Nami Iara” publicado em “Notícias” em 02/06/2014. A resposta recebeu 7 upvotes. 21 Trecho de comentário de um fã na matéria de lançamento da skin intitulado “Deixe-se conquistar pela canção da Nami Iara” publicado em “Notícias” em 02/06/2014. A resposta recebeu 10 upvotes. 18

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homenagem, isso é se foi realmente uma homenagem ou apenas se aproveitaram das semelhanças e usaram para vender mais aqui.22 O que tem no lol representando nossa cultura? Isso mesmo, titica nenhuma, gangplank forças especias foi em homenagem a um filme, UM FILME, e você quer que a skin que homenageia a nossa CULTURA não seja de graça? [...] a população do Brasil é ignorante o suficiente pra querer pagar uma skin que o próprio país deu as fontes para que ela fosse criada, se essa skin for paga, quero que mude pra nami pira-nha de agua doce porque eu não vou deixar usarem minha cultura e não nos darem nada em troca!!! (grifo final nosso). 23 O engraçado é que falam que a skin foi pensada e inspirada na cultura brasileira. Entretanto, A PRÓPRIA empresa não divulga tal informação ou a história para outros servidores. Para vocês terem uma ideia, o pessoal do NA está pensando que a skin é baseada na Mitologia Grega e as sereias à ela relacionadas. 24 Pois é, inspirada na cultura brasileira em que APENAS os próprios brasileiros sabem disso. Acho que ficaram com vergonha de associar a skin ao servidor HUEHUE BR [como na maioria das vezes são reconhecidos os gamers brasileiros no exterior]. Ai vem o karinha do marketing e fala isso: “...temos que evitar pensar nela como uma skin brasileira,...” Em outras palavras para não atrapalhar a venda dela lá fora. “...adaptação da nossa cultura para o universo do League of Legends...” Tá Bom!!!!!!25 Legal, skin em HOMENAGEM A NOSSA CULTURA tem que SER PAGA. Interessante, pagar por algo que nos representa. ***** riot, sou fã de seus trabalhos e sei que dá MUITO trabalho administrar um joguinho como esse, mas, sério que precisava de uma jogada de marketing dessas? Vocês realmente acham que irão lucrar um pouco mais caso vendam uma skin INSPIRADA EM NÓS? Ah não, sério, parem com isso. Nos ajudem a ajudar vocês, parem um pouco com esse instinto mercenário de Brasileiro.26 Como muitos disseram, os outros servidores estão falando que a skin “brasileira” é sobre a mitologia grega, mas ela é baseada sobre a lenda folclórica “Iara”. Não seria mais simples vocês deixarem Nami Iara para todos os servidores e dar ela para o servidor BR? (Sem contar que ela não representa o Brasil tão bem). 27 Riot, finalmente tivemos algo nosso, da nossa cultura, PORQUE DIABOS VOCES QUEREM LUCRAR NISSO, não serial só legal para os jogadores ser de graça, mas pra o servidor no geral.28

Trecho de comentário de um fã em post intitulado “Sobre o preço da Nami Iara” publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 16 upvotes. 23 Trecho de comentário de um fã em post, intitulado “Nami Iara será 975 RP”, publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 09/06/2014. A resposta permaneceu com 0 upvotes ou downvotes, isto porque era um tópico sem grande visibilidade, mas que possui um debate rico para ser analisado de modo que não poderíamos descartálo. Este fragmento grifado por nós feito pelo fã é o que sintetiza toda a ideia deste capítulo, da cultura enquanto forma de pertencimento, e também é o trecho que é citado no título deste trabalho. 24 Trecho de comentário de um fã em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 14 upvotes. 25 Trecho de comentário de um fã em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 16 upvotes. 26 Fragmento de comentário de um fã em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 04/06/2014. A resposta recebeu 4 upvotes. 27 Excerto de comentário de um fã em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 15 upvote. 28 Trecho de comentário de um fã em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 12 upvote. 22

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Ok, eu desisto, vocês Rioters só respondem o que convêm a vocês e não respondem concretamente o motivo de todas as regiões não levarem o nome Nami Iara. Vocês fazendo isso só confirmam o que todos ja sabem, mais uma skin que vocês fazem baseada em outro país e só querem que o brasileiro acredite que é dele. Não teve ofensa maior que todas as regiões levarem outro nome qualquer além de Nami Iara. 29 [...] Mas uma coisa é certa, isso se trata de um crime contra o patrimônio brasileiro. Link para quem tiver curiosidade: (http://www.dji.com.br/codigos/1940_dl_002848_cp/cp163a167.htm). [...] Acho que muita gente, inclusive eu ficaria satisfeita com um pronunciamento oficial no reddit já que é um lugar aberto internacionalmente falando e nos fórum NA e EU sobre oque se trata a Iara e oque e cultura ela representa, a maior revolta e saber que fora desse país, pessoas não sabem porque aqui é único lugar que ela esta em promoção! E arrogante admitir mas “gringos” são extremamente ignorantes em quesito de educação! Fica uma sensação horrível que a Riot tem vergonha da nossa cultura e se preocupa mais em Lucrar, devo informar para quem não sabe que isso é um CRIME sujeito a muitos processos (grifo nosso).30

Bastava, para muitos jogadores, que a referência fosse mencionada, como a empresa fez na notícia de lançamento da skin Morgana Noiva Fantasma, inspirada na lenda urbana mexicana sobre a Llorona. A empresa, contudo, apresenta seus motivos para essa não vinculação direta: Pelo mesmo motivo que não chamamos de “Morgana a Chorona” [mas sim Morgana A Noiva Fantasma]. Cabe a cada região da Riot escolher o nome que mais se adequa a sua região. Um nome que comunique a ideia de que ela é como se fosse um “espírito do rio” é como maioria das regiões usou... mas se você vir os sites dos servidores latinoamericanos, verá que eles optaram por manter “Nami, la Iara”.31 O objetivo com a Nami Iara nunca foi “espalhar nossa cultura mundo a fora”. É apenas uma forma de transportar um pouco do nosso mito para dentro do jogo. A posição geral é de fazer skins que sejam relevantes para o mundo todo, não só para um país. Muitos estão falando que outras regiões não estão chamando de Nami Iara e sim de River Spirit. Essa decisão cabe a cada região. Cada escritório da RIOT ao redor do mundo tem que entender se “Iara” faz sentido para seus jogadores. Aqui no Brasil também fazemos isso. A “Noiva Chorona” não se chama dessa forma pois a maioria dos brasileiros não conhece esse mito mexicano. Adoraria que nossas histórias indígenas fossem tão conhecidas lá fora como os gladiadores ou os sultões são aqui no Brasil, mas infelizmente não é o caso (grifo nosso). 32

Os relatos dos rioters confirmam nosso pensamento em estudo anterior, no qual elencamos os motivos pelos quais a empresa realizou a troca do nome da skin de Iara para River Spirit em outros servidores do jogo pelo mundo. Dentre os quais, está um processo de hibridismo corporativo, conceito cunhado por Jenkins (2009, p. 156-159), que depende de consumidores com competências culturais que se originam na cultura e nas relações com

Passagem de comentário de um fã em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 11 upvote. 30 Dois trechos de dois comentários de um fã em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 02/06/2014. As respostas receberam, respectivamente, 10 e 6 upvote. 31 Trecho de comentário de um rioter em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 02/06/2014. A resposta recebeu 23 upvote. 32 Excerto de comentário de um rioter em post, intitulado “Sobre o preço da Nami Iara”, publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 03/06/2014. A resposta recebeu 9 upvote. 29

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lugares, somente passível de acesso pelo contexto da convergência global, exigindo, portanto, conhecimento prévio da cultura popular amazônica. Como esse conhecimento ainda é restrito, a empresa precisa compreender as semelhanças e diferenças em relação às tradições paralelas do Ocidente e Oriente, apoiando-se em um ser mitológico mais conhecido, como a sereia, o espírito do rio (MACEDO; AMARAL FILHO, 2015). A frase de um jogador exemplifica esta questão: Quando fiquei sabendo que a “origem” da ideia da skin da Nami era a Iara, eu tinha quase certeza que ela seria dada ao nosso servidor. Mas quando vi o texto que a Riot colocou para anunciar a skin deu pra perceber que eles iriam tornar essa skin mais relacionada a qualquer lenda de sereia do mundo, então eles generalizaram. Se isso for mantido não faz sentido dar a skin mesmo, apesar de ser uma pena já que a skin foi feita pensando na Iara (grifo nosso).33

Dessa forma, valendo-se do arquétipo da sereia (uma fonte mitológica) e de referências de gêneros populares, Nami Iara não precisa ser apresentada ou reapresentada, pelo fato de já ser conhecida por meio de outras fontes. Como pontua Jung (2000, p. 15-16), o inconsciente coletivo, a camada mais profunda da psiquè, é povoada por instintos e imagens primordiais que são herdadas e compartilhadas pela humanidade. Consideramos, neste trabalho, a sereia como sendo o arquétipo, ou seja, o primeiro modelo ou a imagem universal que existe desde os tempos mitológicos a respeito do mito da Sereia, adaptado para a realidade amazônica com a personagem Iara. Contudo, um tanto quanto diferente, o arquétipo encontrado no mito ou no conto de fada é cunhado de um modo específico e transmitido por meio de longos períodos de tempo, conforme compreende Jung (2000, p. 17). Com o mito, entretanto, Jung (2000) percebe um problema, pois os mesmos são elaborações “conscientes”, o que já classificaria o mito como sendo fruto do inconsciente pessoal34, mas Jung (2000) propõe que esta forma do inconsciente repousa sobre uma camada ainda mais profunda, “que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata” (JUNG, 2000, p. 15): o inconsciente coletivo. Portanto, Jung (2000, p. 17) propõe classificar os mitos como manifestações da essência da alma, sendo assim, consegue enquadrá-los dentro do seu conceito de arquétipo e consegue estabelecê-los como fruto das manifestações inconscientes gerais da humanidade.

Fragmento de comentário de um fã em post, intitulado “Skin da Nami ta de graça para os BR ou não???”, publicado no subfórum de “Discussão Geral” em 22/05/2014. A resposta permaneceu com 0 votos, por ser um tópico sem grandes impactos. 34 Por algum tempo, Freud classificou o inconsciente como algo exclusivamente pessoal, porém, modificou seu ponto de vista em trabalhos posteriores, designando o “id” e “superego”, correspondendo ao inconsciente coletivo (JUNG, 2010, p. 15). 33

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Seguindo o pensamento de Hall (2006, p. 48-49), por exemplo, as identidades nacionais não nascem com as pessoas, mas são formadas e transformadas no interior da representação. Nesta perspectiva, a nação é algo que produz sentidos, ou um sistema de representação cultural como defendemos (MACEDO, 2016a, p. 124), isto porque as culturas nacionais são compostas igualmente por símbolos e representações, como a Iara na cultura brasileira, não unicamente de instituições culturais ou entidades políticas. É importante ressaltar, portanto, que interior ao sentimento de comunidade dos fãgamers de LoL, eles se enquadram/identificam dentro do que podemos chamar de comunidade nacional (brasileira), no qual a Iara funciona como uma representação, um símbolo de pertencimento que impulsiona o debate ao redor dela, ou seja, essas características facilitam o que argumentamos em Macedo e Amaral Filho (2016) ser a Nami Iara um atrator e ativador cultural. Considerações finais Conviver nesse individualismo, estimulado pela lógica de mercado que promove a divisão, a competição e a não unidade (BAUMAN, 2007, p. 9) e pelos valores dominantes dessa sociedade baseada na competição e na vitória (KELLNER, 2006, p. 119), com os interesses coletivos é um desafio que se mostra para o mundo contemporâneo. Mas podemos inferir a partir desta pesquisa que uma justificativa recorrente para que a skin fosse dada ao Brasil era o fato da conexão realizada pelos fãs do bem com a cultura nacional, provocando sentimentos de pertença social. Neste sentido, não limitamos a existência de interesses comuns diversos, distintos e até puramente econômicos e materiais, contudo, nossa análise sugere que um enunciado frequente e um dos mais fortes para a construção do engajamento na comunidade de conhecimento de League para resistência é o cultural. Logo, skins como Nami Iara ajudam a perceber que os indivíduos necessitam se enxergarem nas mídias, sentirem-se representados, funcionando como símbolos e representações do que seria o Brasil no ambiente do jogo. Esses artefatos culturais tornam-se um signo para a constituição da ordem simbólica que operam dentro das comunidades, carregando consigo uma legitimidade sancionada pelas práticas vivenciadas pelos fãs que as apropriam, conectam e estabelecem identificações, apropriações e ressignificações com elementos da sua própria cultural local, sua própria experiência de vida35.

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Como fizeram os brasileiros em relação à Nami Iara e americanos ao relacionarem a skin com a sereia grega pelo desconhecimento cultura da Iara amazônica. Cada fã apropria-se dos produtos culturais conforme suas próprias experiências de vida, seu estar no mundo.

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Portanto, os argumentos críticos sobre a prática da empresa de não citar a homenagem ao Brasil e inseri-lo formalmente perante a comunidade internacional do jogo estão ancorados em um processo de cultura enquanto pertencimento. Em Macedo (2016a), analisamos alguns fatores e lançamos hipóteses sobre a dinâmica de funcionamento do processo de representação brasileira, com ênfase na temática amazônica, em jogos em ambientes digitais. Nesta pesquisa, destacamos a relevância de que elementos distintos atuantes em alguns games funcionam como símbolos nacionais de representação que se apropriam de elementos culturais, enraizados no imaginário e na memória tanto coletiva quanto indivíduo dos indivíduos, com o objetivo de garantir maior identificação com esses artefatos midiáticos. Em estudo anterior (MACEDO; AMARAL FILHO, 2015, p. 246) reforçamos como as empresas utilizam da cultura como uma estratégia de marketing cujo objetivo primeiro é de promover “[...] experiência multissensoriais e multimídia a fim de estabelecer maior conexão e identificação com os consumidores a partir de uma fonte mitológica que repousa no imaginário e na memória coletiva global”. A partir dessa perspectiva, percebemos nestes dois estudos como a lógica cultural atende ao requisito da cultura na era global, a abordagem da cultura passa a ser vista crescentemente como um “recurso” para outros fins, passando a assumir sentidos e ideias de cultura como conveniência na qual as grandes empresas midiáticas lucram com as novas mercadorias da pluralidade abertas pelo processo de convergência global (YÚDICE, 2004). Neste processo, a cultura passa a assumir um caráter fetichista das mercadorias, sendo propulsora do desenvolvimento do capital, transformando a própria lógica do capitalismo contemporâneo em um processo de “culturalização da economia” (ÝUDICE, 2004, p. 35). Entretanto, ao passo que as empresas buscam no fator cultural para garantir lucro, os fãs realizam suas formas de apropriação cultural que, neste caso, encontram na cultura um vetor que liga, estabelece laço, une, encontra-se naquilo que é comum a todos e permite uma relação de socialidade entre os que compartilham da comunidade, agindo como impulsionadora da resistência. Em Macedo (2016b), discutimos como os fãs passam a assumir frequentemente seus papeis de cidadãos ao agirem como fiscais atentos aos usos indiscriminados de discursos emergentes que não correspondam às práticas corporativas das empresas. As apropriações e usos de produtos contemporâneos, como a Nami Iara, ressaltam a sua dimensão simbólica como elo representativo, como imagem mediadora da cultura que estabelece o comum aos fãs na procura de resistir, levando consigo toda a heterogeneidade e os desafios entre a relação individual e coletivo que o processo engendra e repulsa. Nesse sentido, o ato dos jogadores de usar a cultura como pertencimento reforça a resistência no âmbito cultural. Apesar do “pertencimento” e a “identidade” não serem rígidos, 20

não serem garantidos para sempre, mas bastante volúveis, multáveis e negociáveis, e que as decisões dos fãs de se manterem firmes perante tudo isto é um fator crucial para o “pertencimento” e para a “identidade” (BAUMAN, 2005, p. 17). Partindo do pensamento explanado neste tópico, podemos entender como o mito da Iara se incorporou no inconsciente e imaginário da comunidade, tornando-se um elemento importante da constituição dos sujeitos enquanto fãs, dos quais compõem-se e formam um sentimento de identificação com tais arquétipos e memórias. Por fim, as comunidades de fã-gamers pertencem a um circuito de indivíduos que estão conectados por efeito de relações mútuas, portanto, interesses em comum e que, apenas desta forma, criam uma unidade que se caracteriza pelas influências recíprocas que determinam sua união, a qual aqui defendemos a importância do elemento cultural como aquilo que gera laço, aproxima os indivíduos mesmo que por um curto período (o tempo da mobilização) e os incentiva a resistir. O gosto pelas imagens, contemporâneo e intenso, leva a estabelecer o laço entre a comunicação de um lado, a informação de um outro e a imaginação. Conforme Simmel (2006, p. 44), “o que é mais amplamente disseminado é também o que plantou raízes mais firmes em cada indivíduo”, como é o caso da comunidade, da comunicação. League, enquanto comunicação, dá uma nova substância nessa função arcaica que é a comunidade e a comunicação, ele dá aos seus indivíduos um elemento em comum para estar junto, a cultura como uma aisthesis, para resistirem uma vez mais. REFERÊNCIAS BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. ____. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. ____. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ____ (org,), Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221. CASTELLS, M. A galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. COSTA, R. A Inteligência Coletiva: cartografando as redes sociais no ciberespaço. In: Cibersociedad.net. 2004. Disponível em: http://goo.gl/3Rqxeh. Acesso em: 23 out 2015. ____. Por um novo conceito de comunidade: redes sociais, comunidades pessoais, inteligência coletiva. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v. 9, n. 17, p. 235-48, 2005. COTE, A.; RAZ, J. In-depth interviews for games research. In: LANKOSKI, P.; BJÖRK, S. (ed.). Game Research Methods: An Overview. ETC Press: Pittsburgh, 2015. FRAGOSO, S.; RECUERO, R.; AMARAL, A. Métodos de pesquisa para a internet. 2. reimp. São Leopoldo: Sulina, 2013.

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