Naquele tempo: O trombone em meio às transformações urbanas na \'Bèlle Époque\' carioca.

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Naquele tempo: O trombone em meio às transformações urbanas na Bèlle Époque carioca.

III Simpósio Científico da Associação Brasileira de Trombonistas (ABT/2014). Autor: Osmário Estevam Júnior (Mestre em Musicologia) Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) / Aluno do programa de Pós Graduação em Música (PPGM). Área Temática: Musicologia / etnomusicologia.

Resumo: Este artigo faz uma breve descrição de alguns fatos essenciais para o desenvolvimento da música urbana no Brasil. Leva-se em conta a presença curiosa do trombone em periódicos da época e o uso da música pelos trabalhadores negros, escravos ou livres, e imigrantes. Palavras chave: Bèlle Èpoque carioca, “Pequena África”, Império Brasileiro, trombone e música urbana. Abstract: This article is a brief description of some essential facts to the development of urban music in Brazil. It takes into account the curious presence of the trombone in newspapers of the time and the use of music by blacks, slave or free workers, and immigrants. Keywords: Carioca Bèlle Èpoque, “Little African”, Brazilian Empire, trombone and urban music.

Antes da chegada da família real ao Brasil, a música já vinha se desenvolvendo entre os colonos, sendo que grande parte dos músicos atuantes eram escravos. A música do período colonial tinha se desenvolvido muito no interior de Minas Gerais, incentivada pela riqueza vinda com a extração de ouro e outras preciosidades. No começo da colonização, o Rio de Janeiro dependia muito do cultivo da cana de açúcar feito por escravos africanos, não tinha a mesma riqueza de Minas Gerais, mas atuou neste período, desenvolvendo as suas atividades portuárias, permitindo a entrada de produtos manufaturados europeus, e cafeeiras (FAUSTO, 2014). Depois da vinda da família real portuguesa para o Brasil, a partir de 1808, as atenções vieram a se concentrar mais no Rio de Janeiro, que, em decorrência de ter abrigado toda a corte lusitana e se tornado a nova

2 capital, passou por uma série de transformações urbanas. É em meio a estas transformações que se dá o surgimento da música urbana dos chorões, cujas origens se encontravam na “música dos barbeiros”1, presente no Rio de Janeiro e na Bahia. Para Tinhorão (1998), esta prática começou a ser documentada no século XVIII, quando estes barbeiros, que também eram hábeis em extrair dentes e aplicar sangue sugas, constituíam uma comunidade de músicos que tocam para a sua própria comunidade, diferentemente dos escravos músicos das grandes fazendas, que, comandados por músicos europeus, tocavam para as famílias ricas. Além disso, Tinhorão mostra que os barbeiros eram profissionais do entretenimento urbano e detinham um certo monopólio sobre a música para festas e determinados eventos.

A enumeração de tão variadas solicitações para a música de barbeiros serve desde logo para pôr em destaque um fato sociocultural muito importante: o de que, meio século depois do seu aparecimento, aqueles grupos de instrumentistas negros eram praticamente os únicos fornecedores de um novo tipo de serviço urbano, ou seja, o da música destinada ao entretenimento público. E o pormenor é importante porque, considerando o tipo de público a que essa música se dirigia – os colonizadores portugueses e brancos da terra seus descendentes espalhados pelas várias camadas sociais da colônia -, tal exclusividade no campo da música valia por uma demonstração de superioridade cultural das camadas mais baixas das cidades. [...] Ao contrário dos músicos das bandas das fazendas, cuja finalidade, ostentação e deleite pessoal dos grandes proprietários rurais, levava à preocupação orquestral, quase sempre sob a direção de professores europeus, os barbeiros das cidades agrupavam-se sob a direção de um mestre da sua condição, produzindo em consequência um estilo de música necessariamente mais espontâneo e popular (TINHORÃO, 1998, p. 170-171).

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Música de Barbeiros (s. f.) – 1. Música executada por um conjunto de ex-escravos negros, no período colonial, que somavam à profissão de barbeiro o ofício de músico. Esta formação, geralmente à da de sopros, ensaiava dobrados, quadrilhas e fandangos, e era requisitada em festas religiosas, folias e outros eventos: “os primeiros barbeiros da rua do Ouvidor (...) simultaneamente barbeiros e sangradores, cirurgiões-dentistas e aplicadores de bichas e ventosas, esses procurados profissionais, escravos todos, em geral negros, raramente mulatos, figuravam em seu posto até adiantada noite, em que, na trégua do trabalho, buscavam na música instrumental, não só uma diversão ao espírito, mas ainda um acréscimo de receita.” (Morais Filho, A. Fatos e memórias, 1904, p.240). [...] -2. Diz-se duma orquestra, bando, qualquer conjunto instrumental ruim, que é “Música de Barbeiros”... (ANDRADE, 1989, p. 355-356).

3 As décadas que antecederam a passagem do século XX para o XIX, foram marcadas por inúmeras transformações sociais e políticas. Algumas foram mudanças relacionadas com a transição do governo imperial para o republicano, que aconteceria definitivamente em 1889. D. Pedro II governava o país desde 1840, quando atingiu a sua maior idade, porém, em 1870, foi publicado o Manifesto Republicano, uma declaração feita por membros dissidentes do partido liberal, liderados por maçons como Quintino Bocaiuva e Saldanha Marinho. Ao mesmo tempo foi criado o periódico A República e o Clube Republicano. Vale a pena destacar que o Imperador D. Pedro II foi um governante muito dedicado ao mecenato musical e grande incentivador de vários compositores, em especial o Maestro Antônio Carlos Gomes. Em vários periódicos da época podemos notar a presença das bandas de música, muitas delas usando instrumentos comprados pelo governo imperial, vindos da França e vendidos no Rio de Janeiro. Entre as marcas preferidas estavam as francesas Goutrot2e Lefévre, sendo a primeira escolhida para os sopros de metais e a segunda para as madeiras. A nota a seguir mostra a publicação de uma prestação de contas a respeito da compra de instrumentos para bandas de música.

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A empresa Gautrot Aîné foi fundada em 1845 por Pierre Louis Gautrot. Em 1855, já estava com uma força de trabalho de mais de 300 funcionários em Paris, tendo produzido mais de 20.000 instrumentos de sopro e de cordas, principalmente para exportação. Em 1867, foi relatado que cerca de 24.000 instrumentos de bronze foram produzidas. Desde o início, a empresa utilzou o recurso de produzir instrumentos de mais baixa qualidade por um preço abaixo do da concorrência, embora tenha produzido instrumentos de maior qualidade também. Em 1882 a empresa foi adquirida por A. A. Couesnon.

4 Figura 1: Prestação de contas da Intendência de Guerra.

Fonte: O Globo, 18/03/1877, p. 4

A cidade outrora colonial do Rio de Janeiro, foi substituída por uma capital “à Francesa”, pois Paris se tornara a grande referência da época e o centro de inspiração da moda. Era o que conhecemos como a Bélle Époque. Este modismo parisiense iniciou ainda nos tempos do império e também atingiu a outras regiões do país, especialmente nas regiões cafeeiras, como em São Paulo, além do Rio de Janeiro, e também no norte do país, onde se fazia extração de borracha. De qualquer forma, apesar de ser difícil definir a duração da Bélle Époque brasileira, é relevante citá-la pela relação direta que teve com as artes. Este período foi marcado por grandes invenções e desenvolvimento de máquinas, como o avião e o automóvel, e marcou também o surgimento das primeiras fábricas no Brasil. A França também teve uma certa influência no universo do trombone desta época, especialmente devido às atividades famosas do Conservatório de Paris, como poderemos

5 notar a seguir, num relato presente no jornal O Globo, onde é comentada a crise que ocorre no Teatro Francês, em especial na Comédia Francesa.

Figura 2: trombones importados

Fonte: O Globo, 01/09/1882, p.03

6 Muitos músicos, ligados ao fenômeno choro e às bandas de música, cresceram neste período de intensa produção artística, sendo necessária muita organização administrativa nas direções dos numerosos grupos musicais que estavam surgindo. Além disso, o ensino da música nas principais instituições educacionais do Rio de Janeiro segue os moldes europeus, geralmente dentro das escolas italianas, alemãs e francesas, mas certamente toma contornos próprios, devido a necessidade de adaptação às condições locais. O Theatro Municipal do Rio de Janeiro, inaugurado em 1909, durante a prefeitura de Pereira Passos, é um dos maiores símbolos da Bélle Époque brasileira.

Figura 3 – Theatro Municipal do Rio de Janeiro (Cartão Postal dos anos 30).

Fonte: http://umpostalpordia.wordpress.com/ (acessado em 30/06/2014)

Por outro lado, contrastando com o europeísmo em moda na elite brasileira do século XIX, o Rio de Janeiro estava repleto de trabalhadores, muitos italianos, mas a maioria negros. Porém, estes italianos tiveram uma forte influência no ensino da música e certamente no do trombone, como poderemos ver a seguir.

7 Figura 4: Trombonista e professor de música italiano.

Fonte: O Globo, 27 e 28/03/1875, p. 4

Trabalhadores negros, tanto livres como escravizados, estavam construindo esta nova capital. Porém, a escravidão “parecia ocultável” e as distâncias entre escravizados e livres tornavam-se de difícil visualização, pois, de acordo com o professor Marcelo Badaró Mattos (2008), boa parte desta população, incluindo crianças, eram explorados por grandes empresários de fábricas no Rio de Janeiro, ao serem obrigados a encarar condições de trabalho insalubres que se estendiam as moradias, causando assim muitas epidemias de varíola, febre amarela e principalmente tuberculose. Sendo assim, trabalhadores livres e escravos acabaram se juntando numa mesma comunidade, gerando “verdadeiros pedaços ‘africanos’ no Rio da virada do século XIX para o XX”, entre eles, a região que ficou conhecida como “Pequena África”, na região central do Rio de Janeiro, em torno à Praça Onze (MATTOS, 2008). Sobre este espaço de sociabilidade, vejamos a seguir.

Encarado do ponto de vista das redes de sociabilidade ali tecidas, tal espaço era ao mesmo tempo local de moradia e de troca cotidiana de experiências culturais e religiosas que lhe conferiam identidade própria. Nada disso estaria dissociado do ‘mundo do trabalho’ em seu sentido mais restrito. [...] Ainda na primeira metade do século XIX, as habitações coletivas que abrigavam escravos urbanos poderiam servir de rota para os que tentavam o caminho da fuga para a liberdade (MATTOS, 2008, p.76).

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Diante destes fatores, percebe-se a comunidade negra bastante unida em busca de liberdade e de uma vida melhor, sendo que as “Tias”3 eram fundamentais na organização destes espaços comunitários. Entre elas estava a ‘Tia Ciata’4, administradora de uma casa frequentada por chorões, local onde o samba teria nascido. O músico e historiador Leonardo Santana desenvolveu um trabalho intitulado “A Contribuição do Chorinho para a Inserção do Negro na Sociedade Brasileira”. Esta obra trata exatamente do período de passagem do Segundo Reinado (1831-1889)5 para a República Velha, também conhecida como República do Café. Santana (2011) propõe a discussão dos limites e possibilidades de inserção do negro na sociedade brasileira através do choro. Trata-se de uma visão situada num contexto urbano e cosmopolita, num período em que o Brasil passava por um momento de transição socioeconômica, política e cultural.

Acreditamos que se torne mais inteligível situar o negro dentro deste mercado competitivo de trabalho. Afinal, os grupos de choro, a partir de um determinado momento, se encontraram em um processo de profissionalização. Isso significa dizer que a profissionalização dos chorões propiciou aos mesmos uma nova forma organizacional de trabalho, o que os elevou a uma categoria de classe trabalhadora, lançando-os com maiores chances a este mercado competitivo de trabalho preconceituoso e excludente (SANTANA, 2011, p. 113).

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“A ‘Tias’, verdadeiros pólos de aglutinação religiosa e cultural, dominavam o ‘pedaço’ porque conheciam muito bem o ambiente das ruas, desde o tempo das escravas vendedoras que ocupavam com seus tabuleiros todos os pontos de circulação da cidade. E as ruas continuavam a ser um espaço de socialização dos trabalhadores, inclusive do ponto de vista da aprendizagem dos ofícios [...] as ‘Tias da Pequena África tinham ancestrais já enraizadas na cidade havia muitas décadas (MATTOS, 2008, p. 76-77). 4 Cozinheira, mãe de santo e animadora cultural. Dona da casa onde se reuniam sambistas e onde foi criado o primeiro samba gravado em disco, "Pelo Telefone", assinado por Donga e Mauro de Almeida. Há controvérsias sobre a data de nascimento de Tia Ciata. Alguns pesquisadores afirmam que a data correta é: 23/4/1854 (ALBIN, 2006). 5 O Segundo Reinado pode ser dividido em Período Regencial (1831 – 1840), e Período de D. Pedro II (1840-1889). Esta divisão em reinados é questionada por historiadores, que consideram todo o Período Imperial (1822-1889) como um único Reinado.

9 Porém, para a compreensão do fenômeno “choro” como um ambiente cultural, deve-se olhar para as “Tias” da Praça Onze, para o albergue da família Vianna, onde, jovens negros, escravos ou livres, tentavam manter a memória de uma cultura africana quase deixada para traz, mas resgatada através de novas leituras, sincretismos e adaptações. Por isso, as dicotomias apontadas por Da Matta (1984) como, “malandros e heróis”, e “desfile de carnaval e desfile militar”, também são observadas na trajetória de grande parte dos músicos chorões, seja através de suas ligações entre o “erudito e popular”, ou ainda, entre “Brasil nação e nação Africana”, e por fim, entre os quintais das casas das “Tias” da “Pequena África” e o palco do Teatro Municipal.

Figura 5 – Propaganda da Casa Faulhaber.

Figura 6: Propaganda dos discos do Candinho

Fonte: O IMPARCIAL, 20/09/1913.

Fonte: O IMPARCIAL, 05/06/1916, p. 11.

Em meio a tudo isso, com a chegada do século XX, ocorreram os avanços comerciais da indústria fonográfica brasileira, com uma intensa produção para exportação, como música brasileira para estrangeiro ouvir, assim justificando que a elite brasileira também pudesse admirar a música que estava a sua volta, já que, apesar do nacionalismo político, a elite brasileira segue as modas estrangeiras. Isto “ajudou” ao choro, enquanto polca, tango e valsa, a ter uma ascensão entre a elite brasileira neste período, já que remete a influências da música europeia. A posterior utilização dos termos como, “maxixe”, substituindo o “tango”, e, “choro”, substituindo a

10 “polca”, já mostra as tentativas de abrasileiramento das formas e criação de um gênero nacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBIN, Ricardo Cravo. Dicionário Houaiss ilustrado da música popular brasileira; Ricardo Cravo Albin, criação e supervisão geral. Rio de Janeiro: Paracatu, 2006. ANDRADE,

Mário

de.

Dicionário

Musical

Brasileiro;

coordenação

Oneyda Alvarenga, 1982-84, Flávia Camargo Toni, 1984-89. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1989. CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao municipal. São Paulo: Ed. 34, 1998. DA MATTA, Roberto. Carnavais Malandros e Heróis: Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª edição. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. DA SILVA, Leonardo Santana. A contribuição do chorinho para a inserção do negro na sociedade brasileira. [Dissertação de mestrado]. Vassouras: Universidade Severino Sombra, 2011. FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. 2ª ed., 6. reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014. FREIRE, Vanda Bellard. Rio de Janeiro, século XIX: cidade da ópera. 1ª ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2013. MATTOS, Marcelo Badaró. Escravizados e livres: experiências comuns na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom texto, 2008. TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998.

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