Narrativas Insurgentes: Subversões e Apropriações da Comunidade Modder na Indústria dos Jogos Eletrônicos

September 8, 2017 | Autor: Fernando Spuri | Categoria: New Media, Video Games, Cibercultura, Jogos eletrônicos, Modding, Novas Midias
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES CURSO DE GESTÃO INTEGRADA DA COMUNICAÇÃO DIGITAL EM AMBIENTES CORPORATIVOS - DIGICORP

Narrativas Insurgentes: Subversões e Apropriações da Comunidade Modder na Indústria dos Jogos Eletrônicos

Fernando Costa Spuri Lopes

SÃO PAULO 2014

Narrativas Insurgentes: Subversões e Apropriações da Comunidade Modder na Indústria dos Jogos Eletrônicos

Fernando Costa Spuri Lopes

Monografia

apresentada

à

Escola

de

Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo como requisito básico para obtenção de título de especialista em Comunicação Digital.

Orientador: Daniela Osvald Ramos

São Paulo 2014

Autorizo a reprodução total ou parcial deste trabalho por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Spuri Lopes, Fernando Costa Narrativas Insurgentes: Subversões e Apropriações da Comunidade Modder na Indústria dos Jogos Eletrônicos. Fernando Costa Spuri Lopes: orientador Daniela Osvald Ramos. São Paulo – 2014. 58 fls. Monografia (Especialização Lato Sensu) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade da São Paulo, 2014.

Palavras-chave: Cibercultura, Novas Mídias, Jogos Eletrônicos, Video Games, Mod, Sociabilidade Virtua

Narrativas Insurgentes: Subversões e Apropriações da Comunidade Modder na Indústria dos Jogos Eletrônicos

Fernando Costa Spuri Lopes

Monografia apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo como requisito básico para obtenção de título de especialista em Comunicação Digital.

Aprovado em ____ de ____________ de 2014.

Aprovado por:

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Daniela Osvald Ramos

À Mina W. H. e Kuscha, por tudo.

Resumo Conceituamos historicamente os jogos como objeto cultural e como eles se transformaram em algo bastante diferente quando passam a habitar o cenário midiático contemporâneo, configurando-se como jogos eletrônicos. É analisada sua evolução como texto midiático dentro do ambiente cibercultural e, a partir disso, como esses jogos são modificados por jogadores-criadores dependendo do contexto social que estão inseridos e a sua importância como objeto representativo dessas comunidades. Para ilustrar a variedade de experiências narrativas comunitárias que surgem nesse cenário, são analisados os casos do mod Day Z, versões para multijogadores feitas por fãs de GTA: San Andreas e a experiência intitulada Twitch Plays: Pokemon. Esses exemplos, bastante distintos em formato e intenção, são representações da enorme gama de novos objetos culturais emergentes da ludicidade na sociedade em rede.

Palavras-chave: Cibercultura, Novas Mídias, Jogos Eletrônicos, Video Games, Mod, Sociabilidade Virtual

Abstract This essay historically conceptualizes games as cultural objects and how they have transformed into something significantly different when inserted in contemporary media landscapes, turned into electronic games. The evolution of media text is analyzed within the cyberculture environment, and considering this, how these games are modified by players-creators depending on the social context they are inserted and its importance as a representative object in these communities. The variety of community narrative experiences that arise in this scenario are illustrated through study cases of Day Z mod, multiplayer versions made by GTA: San Andreas fans and the multimedia experience entitled Twitch Plays: Pokemon. These examples, very different in format and intent, are representations of the vast range of emerging cultural objects of play-element in network society.

Keywords: Cyberculture, Nem Media, Videogames, Mods, Virtual Sociability

Lista de Imagens 1.2.1 - Dispositivo de tubos de raios catódicos para divertimento

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2.2.1 - Tela de início original de Castle Wolfenstein (1981)

30

2.2.2 - Tela de início modificada por Castle Smurfenstein (1983)

30

2.2.3 - Cena do jogo DOOM (1993)

31

3.1.1 - Programadores testando Spacewar! (1961)

37

3.1.2 - Tela inicial de Zork (1979)

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3.1.3 - Capas de alguns livros-jogo lançados no Brasil

38

3.1.4 - Primeiras edições dos livro de regras de Dungeons & Dragons

39

3.1.5 – Imagem do jogo Akalabeth: World of Doom (1980)

39

3.1.6 - Imagens do jogo Wizardry (1981)

39

3.1.7 - Cena onde diversos jogadores e avatares se encontram em Ultima Online (1997)

43

3.2.1 - Cena típica de DayZ, onde jogadores se reúnem para sobreviver durante a noite

46

3.2.2 - Jogadores de GTA Torcidas membros da U.P.C. (União Punho Cruzado, grupo que agrega diversas torcidas organizadas) se preparam para enfrentar seus adversários

50

3.2.3 - Interface de Twitch Plays: Pokemon

52

3.2.4 - Emblemas dos Anarquistas e dos Democratas em Twitch Plays: Pokemon

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Lista de abreviaturas e siglas

GTA

Grand Theft Auto

HIC

Humam Computer Interface

MMOS

Massively multiplayer online game

RPG

Role Playing Game

UPC

União do Punho Cruzado

WAD

Where’s All The Data

Glossário

Cinematics / Cutscenes

Sequência dentro do jogo que não é interativa, interrompendo a jogabilidade para apresentar algum fragmento narrativo. Conhecido em português como Motor do Jogo, o Game Engine é um programa e/ou um conjunto de bibliotecas utilizados pelos desenvolvedores para criar jogos, que automatiza diversos tipos de mecânicas e renderizações.

Game engine

Game mechanics

Massively Multiplayer Online Game

Metagaming

Modder

Standalone

Twitch

São as regras e mecânicas que permitem que o jogador interaja com o jogo, conseguindo assim progredir dentro da narrativa. Jogos massivos que suportam grandes quantidades de jogadores simultâneos dentro do seu universo. Universo expandido dos jogos, onde plataformas como wikis e fóruns mantidos pelos fãs que buscam amplificar o conteúdo e seu conhecimento sobre o jogo. Indivíduo ou grupo que modifica componentes do universo da computação. Pode ser aquele que modifica computadores fisicamente, assim como aqueles que modificam jogos e códigos de programação. Termo utilizado quando algum mod se desvincula do jogo originalmente baseado para ter uma versão independente. Plataforma de streaming de vídeos focada no universo dos vídeo games, transmitindo principalmente jogos em tempo real e campeonatos de e-sports.

Sumário

Introdução

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1) O jogo como objeto social e a computadorização da cultura

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1.1) O jogo como elemento inerente à sociedade humana

13

1.2) As novas mídias e os jogos eletrônicos

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2) A sociedade em rede e a cultura de mods

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2.1) As comunidades virtuais

23

2.2) Os novos jogadores e os mods como exemplo da sociedade em rede

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3) Narrativas comunitárias ou como os mods tornaram-se representações sociais/culturais

36

3.1) Narrativas em jogos eletrônicos e novas experiências comunitárias narrativas

36

3.2) Narrativas comunitárias como representações culturais

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Considerações finais

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Bibliografia

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Introdução A sociedade em rede e a digitalização da cultura alteraram o tecido social, criando um cenário midiático inédito que aponta novos tipos de relações interpessoais e uma nova maneira de se consumir mídia. Neste trabalho, buscamos analisar uma subcultura referente a um dos principais representantes desse novo cenário midiático: os mods de jogos eletrônicos. O primeiro objetivo foi analisar os mods – fragmentos de textos caóticos e inconstantes –, como uma representação metalinguística da cibercultura e da pósmodernidade. A partir da análise do conceito e de alguns exemplos práticos como objeto de entretenimento, propusemos um olhar que mostrasse parte de um amplo cenário, mas também que tentasse explorar as entrelinhas de suas especificidades e do lugar que habita. O objetivo teórico foi aproximar autores que conceituam jogo desde meados do século passado a autores e obras publicadas nos últimos quatorze anos, ilustrando a evolução dos jogos como objeto presente e moldante da vida social até o surgimento desse novo fenômeno digital narrativo que são os vídeo games. Os autores consultados são das áreas de Comunicação, Ciências Sociais e Game Design, misturados na intenção de se traçar um panorama sobre a produção do jogo como produto narrativo, da sua importância dentro do mix de consumo de entretenimento, sua função como vetor de mensagens e sua capacidade de ser resignificado dependendo do contexto cultural em que é colocado. Da análise dessas funções e como elas se recombinam, foram levantados pressupostos sobre como um texto aparentemente tão específico e representativo para um grupo nichado pode ser analisado por um olhar que permita extrair considerações sobre a atual disposição social e sobre os indivíduos neste cenário.

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1) A progressão do jogo como objeto cultural Ao longo do capítulo, será analisado o termo “jogo” e algumas de suas variações conceituais, começando com a análise primordial de Johan Huizinga, realizada na primeira metade do século XX. A progressão do significado do termo deverá ser o ponto de partida para entender histórica e culturalmente a importância dos jogos e como eles acompanham, se desenvolvem e moldam a própria sociedade. Buscando entender o significado da atividade de jogar na sociedade pósmoderna, a análise irá concentrar-se na transição da mesma, seus princípios e ferramentas analógicos, para sua ressignificação a partir da cultura digital (ou computadorizada, termo bastante utilizado por Lev Manovich). Transição essa que transforma os jogos em experiências narrativas digitais em uma das linguagens mais representativas das novas mídias.

1.1) O jogo como elemento inerente à sociedade humana Segundo o Dicionário Houaiss, o jogo é: “1. Designação genérica de certas atividades cuja natureza ou finalidade é recreativa; diversão, entretenimento; 2. Atividade, submetida a regras que estabelecem quem vence e quem perde; competição física ou mental sujeita a uma regra, com participantes que disputam entre si por uma premiação ou por simples prazer.”; até “13. Por extensão de significado ou fig.: conjunto de condições, regras, convenções estabelecidas para determinada situação”. A grande amplitude de definições exemplificam o quanto o termo, apesar de possuir alguns elementos-chave, é abrangente. Para ilustrar até onde esse conceito se estende e o quanto ele está embrenhado na própria concepção de cultura, Johan Huizinga alarga-o, colocando como elemento fundamental da comunicação humana: As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde o início, inteiramente marcadas pelo jogo. Por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e com essa designação elevá-las ao domínio do espírito. Na criação da fala e da

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linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda a expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é um jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza (HUIZINGA, 2012, p.7).

Aqui, o jogo é apresentado como toda e qualquer forma de significação humana, que serve como interface entre metáforas criadas que aproximam a “matéria das coisas pensadas”, criando uma ponte entre a subjetivação e a ação realizada pelo homem, dando forma a estruturas sociais, econômicas e religiosas. Em todas esses estruturas existe um território de acordos e regras definidas, sejam eles implícitos ou explícitos, que necessariamente são conhecidos e obedecidos pelos seus participantes. O jogo, em suas diversas formas, é uma dimensão essencial do humano, sendo encontrado em todos os tempos e civilizações. A conceituação do termo ao longo desta monografia acontecerá a partir da proposta de Johan Huizinga em seu livro Homo Ludens. A obra, escrita em 1938, aborda prioritariamente os jogos comuns ao início do século XX, período supostamente distante dos jogos eletrônicos, mas que apresenta os fundamentos que são utilizados ainda hoje por diversos autores, teóricos e designers como edificantes para se pensar o jogo em si. O autor se limita em sua definição a descrever as principais características desse fenômeno, já que o próprio conceito adquire diferentes significados dependendo do seu contexto social e em que língua é falado, e “deve permanecer distinto de todas as outras formas de pensamento através das quais exprimimos a estrutura da vida espiritual e social” (HUIZINGA, 2012, p. 10). As principais características do jogo para Huizinga são: 1, a liberdade de sua prática, ou seja, aquele que participa do jogo o faz por vontade própria e consciente; 2, uma atividade “não-séria”, ou seja, oposta à seriedade. Apesar de poder ser jogado seriamente, a atividade do jogo está diretamente ligada ao divertir-se; 3, de não ser vida real, mas um intervalo à vida cotidiana que tem uma finalidade autônoma e como objetivo a sua realização em si. Em suas palavras, “numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como “não-séria” e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total” (HUIZINGA, 2012, p. 16). 14

Pensadores tecnocratas e objetivistas já consideraram o jogar uma atividade despropositada e desnecessária, significativa somente para “sociedades primitivas” ou ao universo infantil. Huizinga problematiza a questão e, sem dar respostas diretas, apresenta novos pontos de vista, relativizando o jogo como atividade humana, presente e parte importante em todas as sociedades, onde a sua importância e função variam de acordo com cada uma delas. Buscando entender os motivos lógicos de por que se joga, esbarra em explicações biológicas e comportamentais, mas conclui que a sua própria existência está relacionada à natureza supra-lógica da condição humana: (...) Alguns definem as origens e fundamento do jogo em termos de descarga da energia vital superabundante, outras como satisfação de um certo “instinto de imitação, ou ainda simplesmente como uma “necessidade” de distensão.(...) A própria existência do jogo é uma confirmação absoluta da natureza supra-lógica do situação humana (HUIZINGA, 2012, p. 6).

Uma característica comum ao jogo, independentemente da sociedade em que está inserido, é sua capacidade de representação ordenada, um mediador entre pessoas ou grupo de pessoas que “introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada” (HUIZINGA, 2012, p. 13), que comunica, cria e reestrutura laços sociais. O jogo passa a ser um ornamento da vida real, um complemento que se torna uma necessidade para o indivíduo e sua sociedade, reforçando valores e traços característicos dos jogadores ou daqueles envoltos no universo lúdico. Como ornamento imprescindível, os jogos se aproximam do sagrado, sendo os próprios cultos interpretados como um acontecimento similar aos jogos, já que sua delimitações (com localidades restritas de prática, funções bem delimitadas entre indivíduos, conjuntos de regras) são equivalentes. A qualidade lúdica dos jogos pode ser própria das ações mais elevadas, como ações litúrgicas, assim como a alegria e o divertimento ligados aos dois exemplos podem transformar-se em momentos de tensão e arrebatamento. Segundo Huizinga “A frivolidade e o êxtase são dois polos que limitam o âmbito do jogo”. (HUIZINGA, 2012, p. 24). Aproximando o jogo e suas características do universo do sagrado, o autor o aborda como um campo de estudos até então inédito nas ciências sociais, colocando-o ao lado de temas complexos que exigem uma análise mais ampla, relativizada, que deve estar associada a outras áreas de conhecimento científico. A 15

importância das atividades lúdicas nos grupos sociais vai além das necessidades biológicas diretas de indivíduos e habita a categoria de atividades repletas de significados . A finalidade a que obedece é exterior aos interesses materiais imediatos e à satisfação individual das necessidades biológicas. Em sua qualidade de atividade sagrada, o jogo naturalmente contribui para a prosperidade do grupo social, mas de outro modo e através de meios totalmente diferentes da aquisição de elementos de subsistência (HUIZINGA, 2012, p. 12).

Os jogos e sua imensa capacidade de imersão e distração já foram considerados como uma atividade puramente escapista, que leva a consciência e a percepção dos jogadores para lugares distantes da realidade, com pouco ou nenhum efeito sobre ela. Em uma visão que amplifica a abordagem de Huizinga, podemos enxergar o jogo como uma escapatória propositiva, um momento de deslocamento repleto de significados e extremamente importante para a manutenção e renovação do próprio tecido social. Os jogos são artifícios lúdicos que tornam a vida mais suportável, levando-a além da sobrevivência, aplicando uma camada de novas ou mais intensas sensações ao dia a dia. Jogos têm a capacidade de empoderar quem não tem poder e tirar o poder daqueles que o detêm, mesmo que

por

um

momento,

oxigenando

elementos

sociais



estabelecidos (MCGONIGAL, 2011, posição 175). O jogo não é uma atividade exclusiva do ser humano, podendo ser observado em diversas espécies de animais. Mas para o ser humano, o jogo nos acompanha e nos molda ao longo da história, sendo adaptado e readaptado às estruturas sociais, de poder, filosóficas e psicológicas, sempre reforçando ou desconstruindo visões de mundo. No próximo capítulo, esse fenômeno social tão amplo é analisado a partir da digitalização da cultura, tendo como principal objeto de estudo o fenômeno midiático dos jogos eletrônicos.

1.2) As novas mídias e os jogos eletrônicos Os jogos analógicos como o xadrez, a corrida e outros exemplos que foram objeto de estudo de Huizinga passam a coexistir com novos formatos. A grande diferença entre os jogos até meados do século XX e os jogos eletrônicos que se 16

popularizam no final do século XX é a transformação dos elementos lúdicos e da própria dinâmica do jogo em objetos midiáticos narrativos digitais. Essa transformação acontece devido a uma nova disposição social e midiática denominada cibercultura. A cibercultura está ligada à evolução das Tecnologias de Informação e de Comunicação (TIC) dentro de uma perspectiva histórico-social. Lemos (2003) fala de uma nova relação entre tecnologias e a sociabilidade configurando a cultura contemporânea,

emergente

a

partir

da

convergência

da

informatização/

telecomunicação na década de 1970. Já Manovich (2001) afirma que o ecossistema midiático e social atual é resultado da síntese da história de duas indústrias: a da computação (a busca pela eficiência em processamento de dados) e das tecnologias midiáticas (captação, armazenamento, distribuição e transcodificação de textos midiáticos), criando um ambiente onde todos os textos agora também são dados. Em meados do século XX, o computador digital moderno é desenvolvido para executar cálculos de dados numéricos com mais eficiência (...). Em um movimento paralelo, nós testemunhamos a ascensão das tecnologias de mídia modernas que permitem o armazenamento de imagens, sequências de imagens, sons e texto utilizando formatos de materiais diferentes (...) A síntese dessas duas histórias? A tradução de toda a mídia existente em dados numéricos acessíveis através de computadores” (MANOVICH, 2001, 1 p. 20) (tradução nossa) .

A fusão dessas duas capacidades distintas criou um cenário sociocultural inédito e disruptivo, já que todo objeto midiático pode ser traduzido em dados numéricos e acessado através de uma interface que o torna novamente legível chamadas de Humam Computer Interface (HCI). Agora fica na mão dos usuários a possibilidade de armazenamento, distribuição e edição de todo e qualquer objeto midiático. E é dentro desse cenário que surge uma nova espécie de mídia, que se apropria de elementos comuns de formatos anteriores, mas que tem como resultado objetos totalmente diferentes. Manovich aponta 5 princípios fundamentais para entender as novas mídias. Esses princípios não são determinantes, mas distinguem essas novas experiências dos objetos midiáticos pré-sociedade em rede e pré-HCI. O primeiro princípio, da 1

“In the middle of the twentieth century, a modern digital computer is developed to perform calculations on numerical data more efficiently (...). In a parallel movement, we witness the rise of modern media technologies that allow the storage of images, image sequences, sounds, and text using different material forms.(...). The synthesis of these two histories? The translation of all existing media into numerical data accessible through computers.”

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representação numérica, define que todos os objetos podem ser descritos formalmente, matematicamente, através de números e funções, permitindo assim que o objeto por inteiro ou trechos dele sejam programáveis. O segundo princípio, a modularidade, pode ser considerado como a própria “estrutura fractal da nova mídia”. Todos os elementos da mídia são agrupamentos discriminados (discretes) de elementos que, mesmo agrupados em objetos de diferente escala, mantém suas identidades separadas, como pixels, polígonos ou caracteres. Os próprios objetos, resultado do conjunto desses elementos, podem ser recombinados em objetos ainda maiores, mas que mesmo assim são capazes de manter suas identidades. A automação, terceiro princípio, se apresenta como a possibilidade dos usuários ou programações modificarem ou criarem objetos midiáticos utilizando templates, algoritmos e comandos em interfaces. Para utilizações corriqueiras, como programas de edição de foto, vídeo e música, se aplica o termo de automação low level; automações mais complexas, envolvendo múltiplas variáveis, capazes de criar sistemas praticamente independentes de tratamento de dados, são consideradas de high level, tendo no seu ápice a hipotética existência e automanutenção da inteligência artificial. O quarto princípio é a variabilidade, apresentado pelo autor com os sinônimos mutável (mutabilidade) e liquidez, defendendo a possiblidade de que um objeto de mídia possa existir em diferentes e, potencialmente, infinitas versões, sem possuir versão definitiva. Tipicamente, um novo objeto serve como matéria-prima para outros objetos, e assim sucessivamente. O quinto e último princípio é a transcodificação, que é capacidade de tradução e re-conceitualização de textos e seus significados para outros formatos. Em suas próprias palavras, “categorias culturais e conceitos são substituídos, no nível de significado e/ou linguagem, por novos derivados da ontologia, epistemologia e pragmáticas do computador.” (MANOVICH, 2001, p. 47), criando um novo e dinâmico léxico perante o potencial de que todo e qualquer texto pode ser transcodificado em outros objetos, seja ele complementar ou disruptivo do seu original. Os jogos eletrônicos são uma linguagem diretamente ligada à fusão da história do processamento de dados com a evolução dos formatos midiáticos, e representam um exemplo direto da aplicação de todos os cinco princípios das novas mídias. 18

Todas as suas unidades são

representações numéricas e modulares,

automatizadas nos mais variados tipos de macros ou algoritmos, que podem e são reconstruídas e modificadas pela comunidade de criadores resultando nos mais variáveis textos midiáticos, transcodificados em todo um meta-verso expandido em sua volta. Sintetizar todos esses princípios não é mérito dos jogos eletrônicos, mas neles se encontra um valioso exemplo das novas mídias, que foi se desenvolvendo junto com a própria computadorização da cultura. O modo como as TIC possibilitam a transposição de meios e linguagens para a base digital tem deflagrado uma série de transformações no sistema de mídias e de entretenimento contemporâneo, segundo Jenkins (2008). Os jogos eletrônicos estão inseridos nesse ambiente, e fazem parte de uma categoria de entretenimento que, através de representações e simulações do ser humano, suprem necessidades que antes estavam embarcadas nas intra-relações sociais fora do ambiente digital. Nos jogos, são possíveis interações entre humanos e máquinas, além de interações humanos e humanos, todas mediada pelas HCI. “No caso dos jogos eletrônicos, por hardware e software, que oferecem dispositivos de interação e processos de vida simulados, utilizando modelos perceptivos e elaborando respostas” (MASCHIO, 2007, p.18). Apesar de se apresentar como uma mídia interativa, não se pode limitar a interatividade como adjetivo exclusivo dos jogos eletrônicos. O conceito de “mídia interativa”, hoje bastante utilizado por profissionais do mercado digital, pode ser perigoso quando usado para representar somente algum tipo de interatividade física do usuário com o texto através de interfaces. Os processos psicológicos que preenchem as lacunas conforme assistimos, ouvimos, lemos ou seja qual for o processo que nos relacionamos com as mídias, formando hipóteses, memórias e identificação em relação aos textos, necessários para a interpretação, também são interatividade (MANOVICH, 2001, p. 57). Além da interação literal possível nos jogos eletrônicos, as interações humanas que já aconteciam com mídias anteriores à cibercultura também são absorvidas por essa nova linguagem. Nativos desse cenário cibercultural, os jogos eletrônicos acompanharam não só o fenômeno da nova produção de objetos midiáticos, como também a revolução na distribuição desses novos objetos pela rede. Os jogos, assim como a internet, cresceram e foram se popularizando ao longo das décadas, moldando e sendo moldados pelos dispositivos que os antecederam e ditando novos usos para aqueles 19

que ainda serão criados. Como linguagem, os jogos eletrônicos “apropriam-se ludicamente das tecnologias digitais, mesclando cultura, arte eletrônica, linguagens da literatura, fotografia, cinema, vídeo e histórias em quadrinhos” (MASCHIO, 2007, p. 37). Além de carregar todo o potencial imersivo já inerente aos jogos analógicos, os jogos eletrônicos, assim como todas as narrativas nativas da cibercultura, possuem uma característica que, segundo Manovich, as tornam ainda mais atraentes, chamada metarrealismo. O metarrealismo é capacidade da mídia de iludir, ou convencer os seus usuários, declarando-se como mídia, se autodestruindo continuamente conforme as mensagens são transmitidas através dela. (...) o conceito de Walter Benjamin de “percepção no estado de distração” encontra sua perfeita realização. A periódica reaparição do maquinário, a contínua presença do canal de comunicação na mensagem, previnem que o sujeito caia no mundo dos sonhos da ilusão por muito tempo, fazendo com que ele alterne entre a concentração e o distanciamento (MANOVICH, 2 2001, p. 207) (tradução nossa).

Esse elemento inerente às novas mídias parece mais sedutor que outros formatos midiáticos mais passivos, pois entrega ao usuário uma sensação de mais poder, já que as mensagens que chegam até ele variam entre a abordagem direta e a ilusória. Isso faz com que os usuários dos jogos eletrônicos e de quaisquer outra nova mídia se relacionem com elas através de fragmentos suturados, entre momentos de ilusão e de sua suspensão, que tem se provado uma alternância eficiente em absorver os usuários. Assim, a mídia já tem embutida a sua autocrítica e, “(...) O usuário investe na ilusão precisamente porque ele tem controle sobre ela” (MANOVICH, 2001, p. 209).

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“(...) Walter Benjamin’s concept of “perception in the state of distraction” has found a perfect realization. The periodic reappearance of the machinery, the continuous presence of the communication channel in the message, prevent the subject from falling into the dream world of illusion for very long, make her alternate between concentration and detachment.”

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A gênese dos jogos eletrônicos é considerada por muitos a patente do “dispositivo de tubos de raios catódicos para divertimento”3, feita em 1947 por Thomas T. Goldsmith e Estle Ray Mann. Esse foi o primeiro dispositivo eletrônico que, inspirado na tecnologia dos radares da época, permitia ao usuário controlar em uma tela a simulação de um míssil sendo disparado em alvos. Esse primeiro vídeo game consistia em uma interface com um conjunto de regras pré-definidas, simulando alguma atividade humana (normalmente militar ou esporte) em que o usuário utilizava um dispositivo de controle para fazer escolhas que apresentam um resultado imediato na tela. A capacidade desse dispositivo em permitir a tomada de ações sobre uma base de dados pode ser considerada a origem da linguagem digital, apesar de possuir diversos elementos e componentes analógicos em sua estrutura.

Imagem 1.2.1 - Dispositivo de tubos de raios catódicos para divertimento.

Desde então, os vídeo games evoluíram para diversos formatos, passando dos pioneiros e restritos jogos de computador da década de 1960 e 70 limitados aos laboratórios universitários e militares mais sofisticados da época, passando pelos 3

Cathode ray tube amusement device.

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populares arcades (ou fliperamas) da década de 1970 e 80, desembocando na explosão dos consoles domésticos a partir de 1985, que se consolidaram durante a década de 1990 e que, atualmente, se apresentam como um dos principais produtos de entretenimento do mundo. Os jogos, hoje, estão disponíveis em praticamente todos os dispositivos eletrônicos que estão ao alcance dos consumidores. Com a computodarização da cultura substituindo todos os elementos que eram constantes no ecossistema midiático por variáveis, esse ambiente de textos fractais é um fértil campo de experimentação para todos os usuários e jogadores que estão dispostos a criar sobre objetos midiáticos comerciais, principalmente quando se organizam em comunidades.

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2) A sociedade em rede e a cultura de mods A disposição da sociedade em rede alterou não apenas os jogos, mas o próprio tecido social, criando um cenário midiático inédito que resultou em novos tipos de relações interpessoais e um novo jeito de se consumir mídia. Novos tipos de identidade surgiram, assim como novas formas de comunidades, não mais restritas a localidade ou laços familiares. Indissociáveis dessa cultura ciber geradora de ambientes conectados, os jogos eletrônicos e seus experimentos, tanto mercadológicos quanto artísticos, são representações diretas dessa nova realidade. Uma de suas representações mais orgânicas, auto-organizada, nativa e mantida pela própria interconectividade, fruto do livre acesso dos indivíduos ao conhecimento, tempo excedente e entusiasmo coletivo, é a cultura dos mods.

2.1) As comunidades na cibercultura O ideal de comunidade passa por uma releitura dentro da cibercultura. Enxergamos a “nova comunidade cibercultural” como uma diferente organização coletiva, que, em rede, redimensiona-se para uma relação onde o engajamento, comprometimento e a sensação de pertencimento dos usuários é o que os mantém conectados. Esse novo momento na história é resultante de uma somatória de mudanças sociais e midiáticas que foram acontecendo ao longo do século XX e avançaram para o século XXI. Um dos macroacontecimentos que gerou esse novo tipo de organização, muito anterior à popularização dos dispositivos eletrônicos ou da internet, foi o aumento do tempo livre na população economicamente ativa de algumas das economias pós Segunda Guerra: Desde a Segunda Guerra Mundial, aumentos no PIB, no nível educacional e na expectativa de vida obrigaram o mundo industrializado a se defrontar com algo que nunca precisamos lidar em escala nacional: tempo livre (...) O tempo livre cumulativo nos Estados Unidos pós-guerra começou a atingir bilhões de horas coletivos por ano, ao mesmo tempo em que piqueniques e times de boliche passavam a fazer a parte do passado. Então, o que fizemos com todo esse tempo? Na maior parte, vimos televisão (SHIRKY, 2011, p. 10).

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Com todo esse tempo livre, ao mesmo tempo que a atomização dos indivíduos se fortalecia, a televisão apareceu como o grande receptáculo desse excedente. Suprindo artificialmente as inter-relações sociais, ao mesmo tempo em que não exigia nenhum tipo de contrapartida do espectador com seu grande alcance e a competência narrativa necessária para imergir quem a assistia, foi a TV que abrigou o excedente cognitivo coletivo das pessoas durante anos. Esse fenômeno é comum ao redor do mundo e desde sua entrada no Brasil, nos anos 50, a televisão está presente e ainda continua como o aparato midiático mais popular do País 4. Assim como a televisão, a indústria cinematográfica, a fonográfica, a literária, a dos vídeos games e todas as outras grandes estruturas de broadcasters que criam textos midiáticos comerciais e massivos estão focadas em alcançar o maior e mais abrangente número de pessoas, oferecendo opções de lazer para serem consumidas nesse tempo livre. Essas indústrias formalizaram e fortaleceram o modelo de broadcast centralizado, onde os objetos midiáticos eram produzidos por poucos e transmitidos para muitos. Esse modelo perdurou durante muito tempo como a única opção possível, já que altíssimos custos estavam atrelados à produção e distribuição dessas mídias. Com a popularização da Internet e dos dispositivos/interfaces que possibilitam às pessoas acessá-la, os usuários agora possuem meios de consumo midiáticos que também são meios de produção. Nesses dispositivos, representados principalmente pelos computadores e smartphones, além de consumir o que é feito por outros, é possível criar e compartilhar material, além da possibilidade de se comunicar sobre aquilo que está sendo consumido, produzido ou compartilhado (SHIRKY, 2010). Assim, surge uma nova camada de textos, criados e distribuídos pelos antes espectadores, transformados agora em usuários e potenciais criadores. Com a transformação dos textos em dados facilmente transmissíveis e na simplificação das ferramentas de edição, a lógica do broadcast foi sendo complementada por linhas de transmissão que se formaram entre pessoas e grupos de pessoas. Pioneiro dos estudos sobre a cibercultura, Lévy (1993) já pregava a vocação das HCI para o desenvolvimento da sociabilização.

4

Conforme dado de: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2012-04-27/ibge-pela-1-vez-domiciliosbrasileiros-tem-mais-tv-e-geladeira-d.html, acesso em 20 de julho de 2014.

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Apesar desse novo panorama midiático, a lógica da transmissão e produção de grandes emissores, centralizadores e poderosos, não foi subvertida nem superada. As emissoras de TV, grandes estúdios e seus equivalentes em outros mercados continuam responsáveis pelos objetos midiáticos de maior alcance, mas que agora coexistem com todo um metauniverso de co-criadores ao seu redor. A mídia comercial, para o bem e para o mal, é a fonte de material para a nossa linguagem moderna de comunicação. O movimento atual talvez não seja de superação desse modelo estabelecido de cultura comum, mas de reconhecimento de uma nova camada de comunicação e compartilhamento cultural. Isso é sobre comunidades folk, amadoras, nichadas e nãomercadológicas que fazem sua produção cultural mobilizando, criticando e remixando a mídia comercial e funcionando como uma área de testes para novas formas radicais de cultural (RUSSELL apud JENKINS; FORD; 5 GREEN, 2013, p. 233) (tradução nossa).

Misturam-se o caminho da mídia tradicional, hierárquico e de cima pra baixo, com o trajeto sinuoso e horizontalizado das “novas mídias”, potencializado pela emergência de redes sociais digitalizadas, que conectam indivíduos e seus interesses. Shirky (2010) postula que, com a sofisticação tecnológica e comunicacional do século XXI, os seres humanos podem produzir informações de forma descentralizada e que diversas facetas da motivação humana – força ancestral

à

própria

civilização



encontram

um

terreno

fértil

para

seu

desenvolvimento na rede. Acrescente tempo livre ao excedente cognitivo somado de todas as pessoas conectadas em rede, situados na sociedade pós-industrial, e nos encontramos em um cenário propício para a criação de comunidades virtuais focadas no aprofundamento de interesses comuns, que podem ou não circundar grandes textos midiáticos massivos. Essas comunidades são mantidas e criadas, em sua maioria, por amadores, que direcionam seu talento em função daquilo que gostam, daquilo que os faz se sentirem pertencentes e lhes coloca dentro de uma economia moldada pelas trocas de capital social. A coordenação desses grupos amadores, que antes da internet permaneciam pequenos e informais, agora possuem ferramentas para

5

“Commercial media, for better and for the worse, provide much of the source material for our modern language of communication. The current moment is perhaps less about overthrow of this established modality of common culture, but more a plea for recognition of a new layer of communication and cultural sharing. At best, this is about folk, amateur, niche and non-market communities of cultural production mobilizing, critiquing, remixing commercial media and functioning as a test bed for radically new cultural forms.”

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que eles sejam grandes e públicos e “podem, com mais facilidade, tornar públicos os seus interesses, e os grupos podem equilibrar, também com mais facilidade, motivação amadora e grandes ações coordenadas” (SHIRKY, 2010. p. 79). Nota-se que nesse ecossistema midiático os objetos massivos e os objetos nichados, que atendem a grupos e gostos mais específicos possuem funções diferentes, porém complementares, na socialização e criação de identidade dos indivíduos. O consumo de objetos midiáticos acontece para suprir tanto uma demanda de socialização, quanto de diferenciação. O conteúdo da grande mídia é a base e o espaço de discussão comum entre a maioria, que permite a socialização entre diversos tipos de pessoas e se dissemina através dos laços genéricos e fracos entre indivíduos. Já o conteúdo nichado se espalha porque fortalece e cria laços fortes, traduzindo interesses particulares e emocionais, distinguindo indivíduos uns dos outros. O conteúdo da mídia de massa nos ajuda a sermos “amigáveis”; conteúdo nichado nos ajuda a encontrarmos nossos “melhores amigos” (JENKINS; FORD; GREEN, 2013, p. 242). As comunidades que se formam a partir de interesses específicos em comum são retroalimentadas pela vontade de conhecer mais aquilo do que se gosta, de compartilhar e conhecer pessoas que fazem parte do mesmo universo semântico. No cerne dessas redes está o ímpeto da circulação de informação e do capital social. O conhecimento é algo bastante combinável dos seres humanos e que, se somado, é altamente transformador. No livro The Economics of Knowledge, Dominique Foray, economista francês da École Polytechnique Fédérale, na Suiça, identifica que dentro desses grupos o tamanho da comunidade, o custo de compartilhamento de conhecimento, a clareza sobre o que é compartilhado e as normas culturais de quem o recebe são as condições que permitem o compartilhamento de ideias e a troca de informações sejam eficientes e transformadores. Nessas comunidades, o capital social e intelectual circula livremente e é acumulativo: quanto mais se investe seu capital e mais se partilha seu conhecimento, mais enriquecidos ficam o próprio indivíduo e o grupo o qual faz parte. Essas comunidades, formadas ao redor de interesses e balizadas pela economia da troca de conhecimento, são o cenário onde o universo expandido dos jogos eletrônicos floresce. Como a televisão foi em seu início, os jogos se apresentam como um dos mais pungentes, imersivos e magnéticos textos midiáticos 26

da pós-contemporaneidade, que transforma o tecido social e a individualidade conforme é consumido e compartilhado. Um novo receptáculo de excedente cognitivo se forma, habitado pelos que hoje são denominados de jogadores (gamers).

2.2) Os novos jogadores e os mods como exemplo da sociedade em rede

Na língua portuguesa, não existe distinção nos termos usados para indicar aqueles que praticam esportes daqueles que jogam jogos eletrônicos, já que ambos continuam sendo, conceitualmente, jogadores. Na língua inglesa essa diferença existe, e os que praticam esportes são chamados de players, enquanto os que jogam videogames ou relacionados, são chamados de gamers. O grupo dos “novos jogadores” que serão analisados daqui em diante são os gamers da língua inglesa, ou seja, aqueles que hoje dedicam grande parte do seu tempo livre jogando ou consumindo informações sobre vídeo games. Para serem considerados gamers ativos, esses jogadores precisam gastar pelo menos uma hora por semana jogando em algum dispositivo eletrônico, segundo a NewZoo, empresa de pesquisa especializada no mercado de jogos eletrônicos. Em 2013, os jogadores ativos representavam 1.2 bilhões de pessoas, o equivalente à 18% da população mundial, que movimentaram aproximadamente 70.4 bilhões de dólares.6 Em sua grande maioria, esses jogadores são estudantes e trabalhadores com vidas e tarefas comuns, mas que em suas casas aplicam sua inteligência e talento, muitas vezes subutilizado no trabalho ou na escola, para planejar, coordenar e executar, por livre e espontânea vontade, novos tipos de problemas e desafios que acontecem dentro do universo dos vídeos games (MCGONIGAL, posição 102, Kindle Edition, 2011). Segundo Huizinga (2012) os jogos têm um fortíssimo elemento gregário, e as comunidades de jogadores partilham de uma sensação de estar “separadamente juntos” em situações excepcionais, compartilhando momentos que só esse hermético grupo se sente pertencente. Com o afastamento das normas habituais, a 6

Global Games Market Report Infographics 2013. Disponível em http://www.newzoo.com/infographics/global-games-market-report-infographics/, acesso em 12 de julho de 2013.

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duração e reverberação desses momentos e dessas histórias compartilhadas vão além de cada partida. Apesar da dedicação ao universo virtual, o jogador médio não renega a realidade, fechando-se nesse autoexílio, mas medeia essa atividade com seus relacionamentos, trabalho, educação, compromissos e tudo aquilo que está relacionado à vida real, o dia a dia e seus problemas. Conforme esses jogadores vão dedicando mais e mais tempo à esses universos virtuais, contudo, eles ficam com a sensação de que o mundo real não é gratificante, prazeroso e organizado o suficiente para satisfazê-los (MCGONIGAL, posição 117, Kindle Edition, 2011), gerando assim uma dissonância cognitiva entre o que vivem nos jogos e o que vivem em suas vidas fora desse universo. Esse fenômeno acontece porque os criadores de jogos eletrônicos e a robusta indústria por trás deles investem muito tempo e dinheiro na criação de objetos midiáticos que sejam altamente prazerosos, bem desenhados e entreguem exatamente a experiência que um jogador procura fora do “mundo real”: diversão desafiadora e compensadora, projeção de desejos, alta capacidade de imersão e socialização. Segundo Raph Koster, os game designers são responsáveis pela construção de “padrões suculentos para que nossos cérebros os consumam”7. McConigal defende que, para grande parte dos jogadores seduzidos e imersos nesse universo, a realidade está “quebrada”. Em suas palavras “a realidade não nos motiva efetivamente. A realidade não é projetada para maximizar nosso potencial. A realidade não foi desenhada para tentar nos fazer feliz” (MCGONIGAL, posição 123). Já os jogos são pensados desde sua concepção para conseguir entregar as mais satisfatórias experiências midiáticas possíveis. A dedicação dos jogadores aos seus universos virtuais, entregando a eles seu excedente cognitivo coletivo, foi analisado por Edward Castronova como um “êxodo para o mundo virtual”, que terá consequências significativas no modo de organização social. Ao longo da próxima geração ou na subsequente, um número cada vez maior de pessoas, centenas de milhões, ficará imerso no mundo virtual e em jogos online. Enquanto estivermos jogando, coisas que nós costumávamos fazer do lado de fora, na “realidade”, não acontecerão mais, ou não estarão acontecendo da mesma forma. Você não pode tirar milhões de hora-pessoa da sociedade sem criar um evento de nível

7

"Juicy patterns for our brains to consume".

28

atmosférico (CASTRONOVA apud MCGONIGAL, 2011, Kindle Edition, 8 Posição 92) (tradução nossa) .

Desse êxodo virtual, formam-se comunidades de jogadores ligados por laços fortes, que veem valor no compartilhamento de experiências e conhecimento, onde se transita uma economia em que o capital social é bastante estabelecido e valorizado. Os jogadores e os produtores contam hoje com uma complexa e autossuficiente rede de canais complementares como fóruns, listas de discussão, comunidades virtuais, blogs e websites que servem como fonte de conteúdo sobre o universo expandido dos jogos eletrônicos, atividade essa chamada de metagaming. Os jogos eletrônicos são inseridos dentro dessa efervescência proporcionada pelo surgimento das comunidades em rede, tornando-se um fenômeno cibercultural que amplia e modifica as interações sociais. Tanto dentro da própria estrutura dos jogos eletrônicos, quanto no ambiente que se forma em torno deles, os laços sociais que se criam a partir disso são algo baseado em um princípio fundamental da cibercultura: a interatividade entre indivíduos através das HCI. A interatividade e a socialização baseadas em plataformas digitais ganharam escala com a popularização dos computadores pessoais e do acesso domiciliar à internet. Os jogos eletrônicos já estavam inseridos na cultura através de consoles e computadores, mas a falta de infraestrutura de rede ainda não permitia experiências entre diversos jogadores em tempo real via internet que fossem satisfatórias. Foi a partir de meados dos anos 90, com o aumento da penetração da internet domiciliar, onde a livre circulação de conhecimento encontrava seus caminhos, a troca de informações era intensa e valorizada e a infraestrutura da rede estava robusta o suficiente para promover experiências intra-jogadores satisfatórias, se popularizaram os mods. Mod é a abreviação de “modification”, que no universo dos jogos eletrônicos classificam todas as modificações feita para melhorar, recriar ou hackear partes de um jogo. Esse trabalho pode ser realizado pelos próprios criadores, que recriam suas obras ou as atualizam, mas essa atividade só se mostra um fenômeno orgânico quando comunidades ou indivíduos independentes trabalham para criar

8

“Over the next generation or two, ever larger numbers of people, hundreds of millions, will become immersed in virtual worlds and online games. While we are playing, things we used to do on the outside, in “reality”, won’t be happening anymore, or won’t be happening the same way. You can’t pull millions of person-hours out of a society without creating an atmospheric-level event.”

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elementos diferentes dentro de um jogo, como novos mapas, itens, armas, fases, possibilidades narrativas, traduções para outras línguas, personagens e uma infinidade de outras possibilidades. O objetivo dos mods normalmente não está atrelado à monetização, mas sim à circulação de capital social entre a comunidade de entusiastas, que acabam ampliando a vida útil do game ao inserir novos conceitos criativos significativos para os jogadores. O primeiro mod que se tem notícia foi uma versão do título Castle Wolfenstein (1981), chamada Castle Smurfenstein (1983), e foi lançado em 1983. Esse mod alterava a temática original do jogo, de nazistas e Segunda Guerra Mundial, para o universo dos Smurfs, e fazia isso trocando alguns elementos básicos dos gráficos e do som. Essa foi a primeira experiência de mod que chegou ao público, ainda que bastante restrito dos poucos jogadores que possuíam computador nos anos 80.

Imagens 2.2.1 e 2.2.2 – Tela de início original de Castle Wolfenstein (1981) e tela de início modificada por Castle Smurfenstein (1983) , respectivamente.

Apesar de diversas experiências com mods acontecendo entre os anos 1980 e 90, foi em 1993, com o lançamento do jogo DOOM que a história desta subcultura gamer se popularizou. Este jogo, produzido pela id Software, é considerado um dos mais importantes títulos da indústria e peça fundamental na história do modding.

30

Imagem 2.2.3 - Cena do jogo DOOM (1993).

John Carmack e John Romero, dois dos desenvolvedores que criaram DOOM, eram simpáticos aos ideais hacker do copyleft (uma subversão do copyright em que qualquer obra pode ser modificada livremente desde que todas as obras subsequentes

também

mantenham-se

gratuitas),

do

compartilhamento

de

conhecimento e da co-criação. Partindo destes princípios e da experiência que tinham em outros de seus títulos lançados (Wolfstein), sabendo que a comunidade de jogadores demonstrava desejo em conseguir alterar o jogo para criar novas experiências, DOOM foi desenvolvido de uma maneira diferente da que era comum no mercado. Até então, os jogos eram desenvolvidos com programações intrincadas, onde todos os elementos estéticos e mecânicos do jogo eram imbricados e de difícil separação, e o acesso dos elementos que eram procurados pelos modders estavam escondidos. Tendo em vista a dificuldade da comunidade para encontrar os elementos separados necessários para modificação, todos os trechos de código de DOOM que continham as fases, os gráficos e os efeitos de som e música foram 31

armazenados em arquivos/pastas separados chamados WAD (Where's All the Data), que poderiam ser facilmente encontradas e trabalhadas pela comunidade. Isso facilitou aos modders alterar o jogo e criar seus elementos separadamente da game engine, tornando a programação necessária para alteração bem mais simples. Além disso, DOOM também inovou na maneira em que foi distribuído e mantido: Com Doom, id Software é pioneira na nova economia que o crítico de jogos de computador J.C. Herz sumariza em seguida: “Foi uma ideia que chegou em seu tempo. Lance uma versão gratuita, stripped-down (despojada) através de canais de shareware, na Internet, em serviços online, seguida de uma versão spruced-up, registrada e oficial nas lojas.” Quinze milhões de cópias originais de DOOM foram baixadas ao redor do mundo. Ao lançar uma descrição detalhada dos formatos do jogo e um editor de mapas, com novos níveis/fases disponíveis na internet para qualquer um que queira baixar. Aqui foi uma nova economia cultural que transcendeu a relação padrão entre produtores e consumidores ou entre “estratégias” e “táticas” (de Certeau): Os produtores definiram a base da estrutura do objeto, e também lançaram alguns exemplos e ferramentas que permitiram que os consumidores construíssem suas próprias versões, para serem compartilhadas com o consumidor (MANOVICH, 2001, p. 245) (tradução 9 nossa).

Em 1995, dois anos após seu lançamento, DOOM foi o software mais instalado em computadores, superando as instalações do Windows 3.11 e 95. A comunidade de jogadores-criadores foi tão presente na história de DOOM que a id Software chegou até a lançar uma versão do jogo no varejo chamada Final Doom, com dois pacotes de missões criados pela própria comunidade. Com isso, surgiu a primeira grande comunidade de modders, que inspirou diversas outras. Este ambiente amador passou a servir como celeiro para a indústria, que já encontrou lá muitos dos designers de jogos que entram para seus quadros de funcionários. Os mods são uma atividade juridicamente legal quando não infringem direitos autorais, ou seja, enquanto a desenvolvedora do jogo disponibiliza o código-fonte ou programas para a edição de seu produto, disponibiliza editores de mapas e 9

“With DOOM id Software pioneered the new economy that critic of computer games J. C. Herz summarizes as follows: “It was an idea whose time had come. Release a free, stripped-down version through shareware channels, the Internet, and online services. Follow with spruced-up, registred retail version of the software.” Fifteen million copies of the original DOOM game were downloaded around the world. By releasing detailed descriptions of game formats and a game editor, id Software also encouraged the players to expand the game, creating new levels. Thus hacking and adding to the game became an essential part of the game, with new levels widely available on the internet for anyone to download. Here was a new cultural economy that transcend the usual relationship between producers and consumers or between “strategies” and “tactics” (de Certau): The producers define the basic structure of an object, and release a few examples as well as tools to allow consumers to build their own versions, to be shared with other consumers.”

32

elementos para essa finalidade ou entrega seu “motor do jogo” para a comunidade. “Motor do Jogo”, ou game engine, é o sistema de construção, materializado em um software, utilizado como plataforma base de criação. Liberar a engine de um jogo para a comunidade de jogadores e desenvolvedores independentes é como fornecer todas

as

ferramentas,

texturas,

sistemas

de

física,

inteligência

artificial,

renderização, suporte de animações e sons, entre outros tipos de gerências e suportes, para que todos possam criar em cima dele. Com isso, qualquer um que adquira conhecimento para manipular essa engine, pode modificar o jogo original. O mod é considerado ilegal quando as modificações não foram liberadas e os desenvolvedores

independentes

burlam

os

dispositivos

colocados

pelas

desenvolvedoras para assegurar que seu produto não seja alterado. Para conseguir entender um pouco melhor quais são as motivações intrínsecas da comunidade de jogadores e modders, podemos traçar três perfis básicos de habitantes deste universo: os contribuidores, os criadores, e os cheaters. Os contribuidores são parte de uma comunidade que investe no crescimento do universo expandido do jogo, onde são criados mods de novas missões, itens, novas fases, personagens, enciclopédias colaborativas (wikis) e novos caminhos narrativos além daquilo que foi planejado pelos autores. Esse tipo de modificação não descaracteriza o contexto do jogo original, que continua tendo a mesma temática da proposta inicial. Já os criadores, são parte de uma comunidade com intenções criativas mais ousadas, que se apropriam de universos e game mechanics criando jogos com novas mecânicas e narrativas independentes, resultando em obras totalmente diferentes das originais. O resultado de suas modificações são mais disruptivos do que os contribuidores. Os cheaters são aqueles que desenvolvem ou utilizam hacks, tipos de modificação que que alteram as regras e mecânicas do jogo para benefício próprio ou de um grupo, conseguindo assim vantagens competitivas nas partidas que disputam. São constantemente combatidos pelos desenvolvedores, que estão sempre criando e atualizando novas maneiras de impedir que as atitudes tóxicas contaminem a experiência dos demais jogadores. Comunidades dos colaboradores e criadores, dependentes de comprometimento e generosidade, só são possíveis quanto existem estruturas disciplinares bem definidas, normalmente orgânicas e auto-organizadas. Baseados em Howe (2006), 33

notamos um trabalho de crowdsourcing permanente em torno dos mods, onde a grande maioria das inciativas criativas surgem e são resolvidas pela própria comunidade. Segundo Shirky (2010), entretanto, apenas o tempo livre e excedente cognitivo não são o suficiente para que esse tipo de cultura massiva de participação prolifere e consiga se estabilizar. Outras quatro variáveis são determinantes para o sucesso: o senso de oportunidade, as motivações humanas, o senso de utilidade comum e interesse público. A oportunidade surge quando a relação entre os criadores dos mods e os jogadores se estabelece horizontalmente, e os jogadores-criadores notam que sua participação tem chances de resultar em transformações reais. A motivação humana, que traz principalmente a sensação de satisfação e pertencimento, também aparecem nessa estrutura, pois embora ganhos materiais nesse universo sejam incomuns, a troca de capital social é bastante valorizada. Essa dinâmica corrobora o senso de utilidade pública e interesse comum, reforçando a importância da comunidade e sua retroalimentação, mostrando que, como Shirky (2010) assertivamente pontua, as “determinações sociais” – as mesmas que mantêm o universo dos mods em constante expansão – são muito mais generosas do que as “determinações protocoladas” – caso de jogos eletrônicos sem código aberto ou de indústrias que se posicionam contra a cultura de “remixabilidade”. A “remixabilidade” de Manovich (2005), descrita como processo transformador pelo qual os meios e as informações que organizamos e compartilhamos podem ser recombinados e construídos criando novas formas, conceitos e ideias mediados pelas tecnologias digitais, é intrínseco à cibercultura. Desde os produtores de DOOM e o seu sucesso massivo como objeto de entretenimento, grande parte da indústria se apropria da remixabilidade e se apoia na capacidade criativa da comunidade, enxergando seus produtos como protótipos ou pontos de partida para a derivação, e não como um texto que se encerra em si mesmo (MANOVICH, 2001, p. 43). Essa parcela de desenvolvedores de jogos e representantes da indústria enxergaram e conseguem se desvincular do Paradigma do Broadcasting, que muitas outras indústrias ainda não conseguem, ou não se interessam, em sair: Sob o paradigma do broadcast, a distribuição é praticamente inseparável da promoção: os dois mecanismos asseguram que produtos produzidos para serem comercializados consigam chamar atenção da mais ampla audiência possível. Em contraste, a circulação de filmes, jogos, música e quadrinhos independentes tipicamente exigem mecanismos participatórios para

34

compensar a falta de verba promocional. A estratégia de comunicação deles normalmente corteja nichos ou comunidades de subculturas que tenham uma forte afinidade com o gênero ou mensagem, e os criadores esperam que esse apoiadores irão promover o seu trabalho para outros com a mesma mentalidade (JENKINS; FORD; GREEN, 2013, p. 230) (tradução 10 nossa).

Os jogos eletrônicos mais populares possuem um fortíssimo aparato midiático com um investimento grande em publicidade, mas também possuem a força de comunidades de entusiastas. Isso demonstra como é mais importante para um jogo eletrônico estar baseado na experiência social, facilitando ao máximo a mobilização de comunidades em torno do texto original. Essas comunidades que se formam, pela sua capacidade criativa e unidade, podem ser autores de textos midiáticos surpreendentes, que, além de criar produtos inéditos, também podem nos apresentar novas formas de se enxergar a cultura.

10

“Under a broadcast paradigm, distribution is almost inseparable from promotion: both mechanisms ensure that a commercially produced product grabs the attention of the most broadly defined audience possible. By contrast, the circulation of independent films, games, music, and comics typically demands participatory mechanisms to compensate for the lack of promotional budget. Their communicational strategies often court niche and subcultural communities imagined to have a strong affinity with their genre or message, and the creators hope these supporters will promote the work likeminded others.”

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3) Narrativas comunitárias ou como os mods tornaram-se representações sociais/culturais Neste capítulo serão analisados os tipos de narrativa que, adaptados, deram origem aos jogos eletrônicos, e os novos tipos de narrativa que surgem a partir das experiências colaborativas vividas nos jogos e em seus universos expandidos. Dentro dessa análise, os mods se apresentam como uma subcategoria que abriga nichos e assuntos de interesses específicos, muitas vezes relevantes para grupos tão herméticos e subversivos que passam a habitar zonas marginais no ecossistema midiático. Nestas, produtos comerciais massivos são re-significados e alterados para atender às demandas específicas dos grupos sociais locais.

3.1) Narrativas em jogos eletrônicos e novas experiências comunitárias narrativas A história dos jogos eletrônicos se confunde com a história da indústria de computadores pessoais e consoles, e estão diretamente ligados à tecnologia acessível ao público geral ao longo das décadas. Inicialmente, os jogos eram simulações simplificadas de combate ou de esportes, mas foram se complexificando ao longo dos anos. Gêneros como ficção científica e fantasia foram a principal fonte de inspiração dos primeiros desenvolvedores de jogos, que faziam parte de uma comunidade formada basicamente por engenheiros e programadores, ávidos consumidores desses gêneros literário e cinematográfico. Como exemplo dessa dualidade entre a mecânicas do jogo e da camada narrativa existente desde os primórdios do campo, pode ser citado o jogo Spacewar!, lançado em 1961 e considerado um dos primeiros jogos digitais da história. Tratava-se de uma simulação de combate que utilizava a tecnologia e a interface de radares da época, mas que emulava uma batalha espacial, juntando tanto o elemento de simulação de combate como o de ficção científica.

36

Imagem 3.1.1 - Programadores testando Spacewar! (1961).

Em sua origem como indústria, os programadores dos jogos também eram os responsáveis criativos dos títulos, acumulando ambas as funções. Este período no qual produtor e criador se confundem é recorrente em fases embrionárias de novos formatos de mídia, assim como os livreiros, responsáveis pela impressão dos primeiros livros, foram também seus editores, ou como os operadores de câmera foram os primeiros diretores de cinema. Novas linguagens e a criação de funções distintas para cada atividade técnica surgem conforme determinado modo de produção se profissionaliza como indústria. Nos primeiros jogos eletrônicos, por serem obras programadas em linguagens técnicas restritas a engenheiros ou cientistas da computação, e por estarem diretamente atrelados à capacidade de processamento do maquinário, os produtores focavam-se em criar primeiro uma game mechanic (dinâmica do jogo) que fosse atraente e desafiadora o suficiente para chamar e reter a atenção dos jogadores. Depois que eram decididas essas mecânicas, uma camada narrativa era sobreposta a isso, envelopando a experiência e atrelando significado à atividade que seria vivida pelo jogador. Essa lógica de produção, que relegava a experiência narrativa a uma 37

camada estética exterior ao processo criativo, começou a mudar no final dos anos 1970, com o lançamento de alguns títulos que revolucionaram a experiência narrativa nos jogos, se apropriando de linguagens comuns a outros formatos midiáticos. Zork, produzido pela Infocom, foi lançado comercialmente em 1979 para PDP-10 (um computador pessoal pioneiro), e foi um dos primeiros representantes do gênero “ficção interativa” nos jogos de computador. Aqui, o jogador avançava na experiência através de uma aventura textual, inserindo comandos e recebendo o feedback na tela em formato de texto puro, sem nenhum suporte gráfico. Esse tipo de narrativa não foi uma novidade, pois já era popular no formato analógico dos livros-jogo: aventuras textuais divididas em trechos de texto, onde os jogadores/leitores eram apresentados a escolhas de qual caminho seguir conforme liam, avançando para diversos caminhos possíveis dependendo das decisões que tomavam.

Imagem 3.1.2 – Tela inicial de Zork (1979).

Imagem 3.1.3 – Capas de alguns livros-jogo lançados no Brasil.

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Em paralelo, jogos inspirados nos RPGs de tabuleiro, papel e caneta, como Dungeons & Dragons, também foram adaptados, produzidos e comercializados em formatos de jogos de PC, como Akalabeth: World of Doom (1980) e Wizardry (1981). RPGs analógicos são jogos que consistem em conjuntos de regras gerais que instrumentalizam seus participantes para que eles criem seu próprio jogo e, a partir disso, sua narrativa.

Imagem 3.1.4 – Primeiras edições dos livro de regras de Dungeons & Dragons.

A adaptação dos formatos de ficção interativa e RPG para o universo digital foram um ponto de partida para novos caminhos narrativos dos jogos eletrônicos, unificando narrativa e game mechanics. Neste sentido, tanto as ficções interativas quanto os RPGs sofreram a mesma transformação que tantos outros textos midiáticos a partir da computadorização viriam a passar, e seus elementos básicos tornaram-se dados processáveis e acessíveis através de HCI.

Imagem 3.1.5 e 3.1.6 – Imagens de Akalabeth: World of Doom (1980) e Wizardry (1981).

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Desde então, a história contada pelos autores dos jogos transformou-se num elemento crucial e determinante para o sucesso comercial e qualidade artística dos títulos. Segundo Bissel, o ímpeto criativo dos autores vai além da excelência técnica e da busca primordial pelo melhor e mais imersivo simulador, já que atualmente, “não mais satisfeitos em colocar músculos mais bem desenvolvidos em esqueletos digitais, os designers de jogos possuem um novo imperativo - fazer com que os jogadores sintam algo além da excitação (de se jogar).” (BISSEL, 2010, posição 957, Kindle Edition, 2010)(tradução nossa)11. Para se contar essa história da maneira mais sedutora possível, os desenvolvedores buscaram referências principalmente no universo do cinema, já que o suporte de imagens em movimento, sons e a narrativa que se constrói através dele pode ser equivalente nos dois formatos. Apesar dessas semelhanças e da inspiração que o universo cinematográfico deu aos autores de jogos, os dois formatos midiáticos, segundo Bissel, tomaram caminhos diferentes quando se analisa a maneira que progridem através da história: Em termos de storytelling, ele não poderiam ser mais diferentes. Filmes favorecem um tipo comprimido de storytelling e podem fazer isso porque existe alguém decidindo para onde aponta a câmera. Jogos, por outro lado, contém mais do que a maioria dos jogadores jamais irão ver, e a pessoa decidindo para onde apontar a câmera é, em muitos casos, você - e talvez você nunca veja a “melhor parte” (BISSEL, 2010, Posição 221, Kindle 12 Edition, 2010) (tradução nossa) .

O poder entregue ao jogador de desenvolver sua narrativa através das decisões que toma ao longo da narrativa é algo que difere os jogos eletrônicos, principalmente se comparado a outros objetos de entretenimento massivo. Como dito no primeiro capítulo, a interação em si não é exclusiva dos jogos, mas a obrigatoriedade da tomada de decisões e do movimento através de um ambiente virtual são determinantes para que a narrativa aconteça, já que a narração e a descrição não são os elementos que fazem com que a história progrida (MANOVICH, 2001, p. 247). 11

“No longer content with putting better muscles on digital skeletons, games designers have a new imperative – to make gamers feels something beyond excitement.” 12 “In terms of storytelling, they could not be more different. Films favor a compressed type of storytelling and are able to do this because they have someone deciding where to point the camera. Games, on the other hand, contain more than most gamers can even hope to see, and the person deciding where to point the camera is, in many cases, you – and you might never even see the “best part”.”

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Sendo assim, nos jogos são considerados dois tipos de narrativa que permeiam a experiência dos jogadores: a embutida e a emergente. A narrativa embutida é o roteiro determinado feito pelos autores, que se impõe a partir de artifícios criativos que encurralam os jogadores a seguir determinada história, formada normalmente por interrupções como cutscenes ou cinematics, onde o controle é simbolicamente tirado do jogador e os autores ratificam os rumos que a história deveria seguir. Já a narrativa emergente, também conhecida como ludonarrativa, são todas as decisões tomadas pelo jogadores enquanto o jogo é jogado, compreendendo como ele decide superar desafios, escolher caminhos, quais itens, golpes ou personagens usar, o que responder em determinados diálogos ou qualquer outra decisão tomada sobre as mais variadas possibilidades de escolha que são apresentadas ao jogador. A ludonarrativa só existe porque os jogos são desenvolvidos como um texto midiático narrativo que utiliza uma base de dados de possibilidades de interação, e cria uma interface para que os jogadores acessem esses dados mesmo que de forma subliminar/implícita (MANOVICH, 2001, p. 226). Os jogos (e alguns outros tipos de narrativa de novas mídias) exigem dos seus usuários um comportamento que emula algoritmos, pois exigem que os jogadores descubram sua lógica implícita enquanto avançam na narrativa. (MANOVICH, 2001, p. 225). A história em si é construída sobre possibilidades e fragmentos de texto, e a maneira em que o usuário reage e interage a esses fragmentos é o que constrói a hipernarrativa. O usuário da narrativa está cruzando uma base de dados, seguindo links entre registros estabelecidos pelo criador da base de dados. Uma narrativa interativa (que também pode ser chamada de hipernarrativa em uma analogia com o hipertexto) pode ser entendida como a soma de múltiplas trajetórias através de uma base de dados. Uma tradicional narrativa linear é uma entre tantas outras possíveis trajetórias, isso é, uma escolha particular feita dentro da hipernarrativa (MANOVICH, 2001, p. 227) (tradução 13 nossa) .

Os autores dessas hipernarrativas têm plena consciência de que seus jogos devem conseguir criar ambientes ricos e dinâmicos o suficiente para que, a partir do jogar, as narrativas pessoais de cada jogador sejam criadas. Richard Garriott, designer de um clássico jogo chamado Ultima, contrapõe o design de jogos com a

13

“A lot of then [fiction writers] develop their individual characters in detail, and they say what is their problem in the beginning, and what they are going to grow to learn in the end. That’s not the method I’ve used…I have the world. I have the message. And then the characters are there to support the world and the message.”

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ficção literária, explicitando a intenção desses criadores em construir estruturas relativamente livres: Muitos deles [escritores de ficção] desenvolvem seus personagens em detalhe, e eles dizem quais são os seus problemas de início, e o que eles irão crescer para aprender no final. Esse não é o método que eu usei... Eu tenho o mundo. Eu tenho a mensagem. E agora os personagens estão lá para sustentar o mundo e a mensagem (Richard Garriott citado em 14 MANOVICH, 2001, p. 248) (tradução nossa) .

Garriott e seu jogo Ultima Online, criado em 1997, foram pioneiros em transformar a ludonarrativa, até então experiências locais e pessoais, em experiências sociais massivas. Junto com o jogo Meridian 59, lançado em 1996, Ultima Online quebrou o paradigma da experiência pessoal imersiva, criando o gênero conhecido como massively multiplayer online game, os MMOS. Nesse novo gênero, cada narrativa pessoal se soma a uma grande narrativa, que toma forma conforme a comunidade de jogadores se relaciona. Desde então, os MMOs evoluíram junto com a infraestrutura de rede e com o aparato tecnológico pessoal dos jogadores, permitindo experiências ainda maiores e mais imersivas. Agora, como subproduto da ludonarrativa e da experiência pessoal de cada um dos jogadores, surgem as narrativas coletivas, que são as histórias criadas pela interação entre diversos jogadores entre si, e deles com o universo do jogo. Essa colcha de retalhos de experiências pessoais que formam vastos universos ficcionais é um dos grandes diferenciais das narrativas possíveis a partir dos jogos eletrônicos dentro da cibercultura.

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“A lot of then [fiction writers] develop their individual characters in detail, and they say what is their problem in the beginning, and what they are going to grow to learn in the end. That’s not the method I’ve used…I have the world. I have the message. And then the characters are there to support the world and the message.”

42

Imagem 3.1.7 – Cena em que jogadores e avatares se encontram em Ultima Online (1997).

Mesmo dentro desse cenário pulsante, o objetivo dos grandes produtores de jogos continua sendo majoritariamente mercadológico, o que limita experiências narrativas e formais de seus títulos. O objetivo desses produtos é fornecer experiências imersivas e encantadoras o suficiente para que os consumidores se sintam compelidos a gastar tempo e dinheiro dentro desses universos. Muitos jogos - que são, certamente, formatos de entretenimento corporativo criados por dúzias de pessoas com grandes expectativas de se fazer muito dinheiro - tem mais inteligência formal e estilística do que eles poderiam lidar e nem vestígio de inteligência temática, emocional ou moral (BISSEL, 15 2010, Posição 476, Kindle Edition, 2010) (Tradução nossa).

O escopo da venda em larga escala destes títulos faz com que propostas mais experimentais de narrativa não sejam levadas adiante, prendendo os autores a pesquisas mercadológicas e a desenvolverem histórias que tenham estruturas formais já testadas e comprovadas, minimizando riscos e aumentando a 15

“Many games - which are, to be sure, corporate entertainments created by dozens of people with strong expectations of making a lot of money - have more formal and stylistic intelligence than they know what to do with and not even trace amounts of thematic, emotional or moral intelligence”.

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possibilidade de sucesso. Apesar de popularização dos jogos e produtores independentes ter ganhando projeção a partir de início dos anos 2000 oferecendo uma alternativa criativa além da indústria, mesmo eles estão atrelados ao sucesso comercial de seus produtos. Todavia, enquanto esses jogos são objetos comerciais planejados, são simultaneamente fragmentos de texto midiático que podem ser remixados pela autoorganizada, energética e atuante comunidade de modders, uma vez que o potencial criativo que existe por trás desses títulos é enorme. A comunidade de jogadorescriadores, livres de amarras comerciais, escolhe dedicar seu tempo livre para criar novas histórias e novas experiências, transformando o universo dos jogos eletrônicos em um enorme ambiente de testes. Esses autores passam a contar histórias que são relevantes para eles mesmos e, muitas vezes, para outros grupos que estão latentes, não-revelados na rede. As narrativas insurgentes dos mods servem como gatilho para a formação de comunidades, que enxergam no compartilhamento de experiências narrativas comunitárias, uma forma relevante de socialização.

3.2) Narrativas comunitárias como representações culturais Dos grandes títulos comerciais, surgem comunidades e autores com intenções muito diferentes daquelas propostas pelos autores originais. Neste item serão analisados três exemplos de mods que subverteram a lógica dos jogos que estão baseados, utilizando parte de sua estrutura para transmitir outro tipo de mensagem e contar um novo tipo de história.

Exemplo 1 - DAY Z Em 2001, a desenvolvedora tcheca de jogos Bohemia Interactive produziu uma engine com o objetivo de emular os mais reais e complexos simuladores de combate da indústria, chamado de Real Virtuality, que vem se atualizando até hoje e permanece como grande referência dentro do gênero. Da terceira geração dessa engine, foi desenvolvido o ARMA II, quarto jogo do estúdio, lançado em 2009. O jogo em si não foi considerado um grande êxito comercial e seu tímido lançamento ficou 44

renegado a uma subcultura de jogadores, até que, em 2012, o desenvolvedor neozelandês Dean Hall criou o jogo DayZ, um mod de ARMA II que subverteu elementos essenciais da narrativa dos jogos eletrônicos e mobilizou, sem nenhum investimento midiático, mais de 1 milhão de pessoas. Dean “Rocket” Hall, como é conhecido, teve no tempo em que serviu o exército neozelandês sua maior inspiração para desenvolver DayZ. Depois de passar por algumas situações limite em seus treinamentos de sobrevivência, percebeu como nenhum tipo de simulação, fosse ela real ou digital, o tinha preparado emocionalmente para aquele tipo de experiência. A partir daí, concebeu a ideia de desenvolver um simulador que fosse capaz transmitir o que ele havia sentido. O projeto inicial, que chegou a ser apresentado para o exército neozelandês, era um jogo de sobrevivência militar padrão, onde o elemento humano substituiria a inteligência artificial e não existiria qualquer tipo de narrativa emoldurada formal. Ou seja, eram jogadores contra jogadores, sem nenhuma regra, código de conduta ou condição de vitória pré-estabelecido. Esse simulador não foi visto como uma ferramenta útil pelas forças armadas e foi deixado de lado. Mas Hall, fã incondicional das histórias de zumbis, entendeu que do universo de suas histórias de terror preferidas ele poderia fazer com que seu jogo tivesse um apelo mais popular e fosse o pano de fundo para que os jogadores tivessem um novo tipo de experiência narrativa. DayZ é um jogo que subverte a importância das narrativas porque coloca a ludonarrativa em primeiro plano e promove uma experiência diferente cada vez que um jogador cria um personagem. A narrativa embutida é simples: um mapa de 225km2, aberto, em uma nação do antigo bloco soviético, onde seus habitantes foram infectados por um vírus que os transformou em zumbis. O jogador personifica um dos sobreviventes junto a outros 64 jogadores que estão tentando se manter vivos dentro do mesmo cenário, e cabe inteiramente a eles decidirem como irão se portar diante dessa situação. A dinâmica do jogo se enriquece a partir do momento em que todos os personagens possuem apenas uma vida, ou seja, se o personagem morrer, é o fim daquela história que estava sendo construída. Para jogar novamente, é preciso começar do zero, sendo colocado randomicamente no mapa apenas com o equipamento básico de sobrevivência (mapa, lanterna e faca). O que o jogador irá encontrar nesse mapa a cada vez será completamente diferente de sua experiência passada. 45

A engine Real Virtuality também permitiu que fossem colocados elementos de gestão de personagem que tentam se aproximar de uma simulação real. Para sobreviver, é preciso encontrar comida e água, proteger-se do frio, realizar a manutenção de seu equipamento e assim por diante, que fazem de DayZ uma experiência ao mesmo tempo rica e frustrante. É a partir desses elementos que a ludonarrativa se enriquece. Para um jogador, conseguir um casaco ou um lata de feijões é a diferença entre a vida e a morte. Além dessas características únicas, a sociabilidade dentro do jogo não é regida por

nenhuma

estrutura

pré-determinada.

Nos

demais

jogos

eletrônicos,

principalmente MMOs, existem estruturas sociais formais, como times, facções ou guildas que obrigam o jogador a escolher lados e entender as relações entre quem são seus aliados e inimigos e, a partir daí, tentar alcançar seus objetivos, como tomar uma base, roubar uma bandeira ou resgatar um aliado. DayZ não possui estruturas de controle. Todas as relações sociais ficam na mão dos jogadores para que escolham como tentarão sobreviver, se irão se aliar aos demais, atacar qualquer um que apareça para tentar obter seu equipamento ou se tentarão sobreviver sozinhos, esquivando-se dos outros jogadores. A sociabilidade formal acontece, principalmente, no metaverso do jogo, nos canais expandidos de interação, como fóruns e grupos de discussão.

Imagem 3.2.1 – Cena típica de DayZ: jogadores se reúnem para sobreviver durante a noite.

46

Apesar de parecer banal, essa liberdade concedida por Dean Hall a seus jogadores

nunca

tinha

sido

experimentada

antes.

Jogos

com

estruturas

consideradas “mundos abertos”, também conhecidos como sandbox, onde os jogadores podem transitar por áreas enormes, altamente interativas, não chegam a entregar essa liberdade plena, pois sempre são colocados artifícios de controle, em parte para mantê-los interessados na narrativa emoldurada, em parte para forçá-los a cumprir determinados objetivos e chegar ao final da história. Esses artifícios são utilizados para deixar a experiência mais satisfatória, e estão diretamente ligados ao quanto os jogadores irão se divertir dentro dos jogos, o que é um dado subjetivo, porém ligado ao quão bem sucedido aquele jogo será. Isso significa que a liberdade plena dentro do jogo não é interessante para os grandes produtores. A experiência em seus jogos precisa ser o mais estimulante e gratificante possível para que os jogadores continuem voltando, gastando seu tempo e dinheiro dentro de seu universo. Mesmo o teórico de jogos Tom Bissel não acreditava que esse tipo de liberdade faria sucesso: Algo que frequentemente me lembro sempre que estou jogando vídeo game é o quão contente eu fico em perceber essa presença autoritária flutuante. Apesar de gostar da liberdade dos jogos, eu também aprecio o evocador estalo do chicote da narrativa - buscar entretenimento é buscar esse chicote - e a mistura desses dois sentimentos é o que torna os jogos essa forma de entretenimento tão sedutora (BISSEL, 2010, posição 539, Kindle Edition, 16 2010) (tradução nossa).

Para Dean Hall, o objetivo de seu jogo era proporcionar sensações e experiências que não estivessem diretamente relacionadas ao super estimulante universo dos jogos, mas antes promovesse emoções mais profundas e intensas, sejam elas satisfatórias ou não. Baseado em uma engine já estabelecida, o desenvolvimento do jogo tentava propor um novo tipo de jogo e outra perspectiva narrativa e, apesar de não saber se sua experiência seria bem recebida, Hall decidiu colocar seu trabalho na rede. DayZ foi muito bem recebido pela comunidade “hardcore gamer”, e uma cultura periférica nasceu a partir dessa experiência. Para conseguir manter o jogo rodando, desenvolvedores do mundo inteiro ajudam Hall a garantir a estrutura de servidores. 16

“What often strikes me whenever I am playing a game is how glad I am of that hovering authorial presence. Although I enjoy the freedom of games, I also appreciate the remindful crack of the narrative whip – to seek entertainment is to seek that whip – and the mixture of the two is what makes games such a seductive, appealingly dyadic form of entertainment.”

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Em paralelo, os jogadores criam comunidades, fóruns e locais especiais para discutir e enriquecer a experiência do jogo. DayZ é um mod bastante complexo e ousado para ser feito somente por um game designer. Apesar de Dean Hall ser considerado um excelente programador, ele mesmo admite que o produto final está aquém do que os jogadores estão acostumados. Ele entende que a qualidade de sua obra está em outro lugar, como afirmou em uma entrevista para o site EuroGamer sobre a razão de as pessoas realmente se importarem com o DayZ: “elas verão além de glitches (pequenas falhas) gráficos e problemas de interface para conseguir entrar no jogo, que vai além de um conjunto de mecânicas, mas é sim um conjunto de sentimentos”. Essa ideia foi forte o suficiente para mobilizar um grande grupo de apoiadores e jogadores ao redor do mundo. Para fazer parte da experiência, os jogadores precisavam possuir o jogo original ARMA II e, quando DayZ foi lançado e descoberto pela comunidade gamer, foi responsável pela venda de mais de 300.000 unidades de ARMA II, reavivando um jogo que havia sido lançado em 2009 e tinha alcançado números medíocres de venda. Em agosto de 2012, Dean Hall foi oficialmente contratado pela Bohemia Interactive para desenvolver um jogo oficial DayZ Standalone, que vai transformar DayZ em um jogo independente e não mais um mod. O fenômeno DayZ só atingiu seu alcance por ter sido concebido em uma sociedade estruturada em rede, idealizado por um autor que encontrou pessoas interessadas no que ele queria transmitir, e sobreviveu graças a comunidade disposta a experimentar novos formatos. Exemplo 2 - GTA Torcidas Grand Theft Auto: San Andreas é o quinto jogo da franquia GTA, produzido pela escocesa Rockstar North e publicado pela conhecida distribuidora de blockbusters Rockstar Games. Desde de GTA III, lançado em 2001, os títulos da série GTA são sinônimo de grandes cenários abertos e, apesar da enorme liberdade entregue aos jogadores dentro do ambiente virtual, excelência em seus roteiros. A Rockstar investe muito na qualidade dos roteiristas contratados que produzem a narrativa emoldurada da série, tendo essa característica como um dos seus grandes diferenciais competitivos. 48

A série vem sempre acompanhada de polêmicas, já que foi uma das primeiras a enxergar no cenário dos jogos eletrônicos como uma demanda latente de jogadores adultos que desejavam ter acesso a títulos com temáticas mais maduras. De acordo com o Guinness World Records Gamer's Edition de 2008 e 2009, essa é a mais controversa série de vídeo games da história, com mais de 4 mil artigos publicados sobre ela, incluindo acusações de glamorização da violência, corrupção de jogadores e conexões com crimes cometidos na vida real. Lançado em 2004 para Playstation 2, GTA: San Andreas foi o jogo mais vendido do ano e alcançou a impressionante marca de 27,5 milhões de cópias vendidas no mundo. Em 2005, o título ganhou sua versão para PC, que também foi um grande sucesso comercial. Um ano depois disso, uma comunidade de modders autodenominada San Andreas - Multiplayer Team desenvolveu uma versão do jogo que havia sido exaustivamente pedida pela comunidade de jogadores, mas tida como inviável pelos desenvolvedores da Rockstar: uma versão online, multiplayer, massiva. Para a Rockstar, um título complexo que já entregava uma significativa liberdade narrativa para os jogadores em modo de um jogador como este era, não iria entregar uma experiência imersiva satisfatória em uma versão multiplayer massiva. Então foram os modders os responsáveis por criar a versão massiva multiplayer que, apesar de apresentar falhas, glitches e ambientes vulneráveis a ataques de hackers e cheaters, criou uma experiência que supriu a demanda da comunidade, chamada Multi Theft Auto. Dessa versão modificada, surgiram mods dos mods, de onde emergem diversas experiências narrativas bastante interessantes. Uma das modificações mais significativas e regionalizadas fruto deste movimento é o GTA Torcidas, uma versão que altera elementos da cidade fictícia de San Andreas para abrigar as maiores torcidas organizadas de clubes de futebol do Brasil. Criado em 2009, a autoria de GTA Torcidas é difícil de ser estabelecida, já que uma grande rede de modders se diz co-criadora dessa modificação, ao mesmo tempo que ninguém se declara autor principal. GTA Torcidas permite que os jogadores entrem no universo de suas torcidas organizadas preferidas,

com elementos bastante fiéis como

réplicas das

vestimentas, sedes, ônibus e até mesmo os bairros onde estão inseridas essas torcidas. O principal modo de jogo é a disputa entre gangues rivais, que se

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encontram em grandes grupos em territórios abertos para que seus avatares briguem até que sobre apenas uma torcida restante. Esse é um mod é bastante popular, mas traz em si muita polêmica e desagrada diversos grupos, sendo alvo de inúmeras críticas. Essa comunidade de jogadorescriadores, para regionalizar seu conteúdo e levar para o universo digital a sua realidade, entrou em conflito com as principais comunidades formais que representavam suas paixões: o projeto foi rechaçado pela Rockstar, criadora de GTA: San Andreas, e também pelos dirigentes das torcidas organizadas. A Rockstar não autorizou ou facilitou o acesso para os elementos de seu jogo para que fosse criada a versão multiplayer, assim como os líderes das torcidas organizadas também não permitem o uso de suas marcas que não seja através de produtos oficiais que gerem renda para a torcida.

Imagem 3.2.2 – Jogadores de GTA Torcidas membros da U.P.C. (União Punho Cruzado, grupo que agrega diversas torcidas organizadas) se preparam para enfrentar seus adversários.

Esses modders acabaram realizando atos desviantes perante a própria comunidade que estão emulando nessa modificação, mas mantém suas versões no 50

ar pela popularidade que esse jogo alcançou entre os seus pares e entre a comunidade que compartilha os mesmos valores e gostos. Esse tipo de comunidade de modificadores, sem qualquer suporte oficial e de certa forma perseguido, existe pela sua alta capacidade de descentralização e eficiência em entregar aquilo que a comunidade exige, subvertendo qualquer lógica distributiva corporativa. O que está por trás desse raciocínio são as comunidades de fãs que permitem transformam em local objetos culturais mais rapidamente e eficientemente do que as distribuidoras/produtoras, sejam da indústria cinematográfica, fonográfica ou de jogos. Isso cria um cenário de livremercado absoluto, onde a demanda por produtos passa por cima da capacidade produtiva e distributiva (JENKINS; FORD; GREEN, 2013, p. 274).

No caso de GTA Torcidas, a demanda também ultrapassa qualquer questão ética e moral, já que nenhum profissional de Relações Públicas ou Marketing olha criticamente para este produto considerando qual será a influência desse objeto midiático na vida desses jogadores. Esse é um mod que serve como exemplo de quanto a necessidade de localização de conteúdo é importante para as comunidades, mas também o quão brutos podem ser os produtos dessa nova organização social. Neste caso, os modificadores se baseiam em uma atividade que conhecem da vida real e a aplicam sobre o universo digital. Tanto a ludonarrativa quanto a narrativa emoldurada são descontruídas e recolocadas em outro lugar, gerando um novo tipo de experiência. Exemplo 3 - Twitch Plays Pokémon Twitch Plays Pokémon é um experimento social de 2014 proposto por um programador australiano anônimo, que une os jogos das séries Pokémon com a plataforma de livestreaming de vídeos chamada Twitch. Esse experimento é um sistema integrado em que um emulador do jogo Pokemón Red, lançado em 1996 para Gameboy, foi jogado em tempo real por usuários da plataforma de vídeos, onde os jogadores-espectadores inseriam comandos na caixa de diálogo do vídeo que eram executados automaticamente dentro do jogo. Algumas limitações técnicas, como o tempo de resposta entre um comando de ação dado no campo de chat e a efetivação do comando no jogo (que demorava alguns segundos – fenômeno conhecido como lag), impossibilitava os jogadores de terem uma experiência fluída, parecida com a que teriam se estivessem jogando o 51

jogo em sua plataforma original. O chamariz dessa experiência, entretanto, não era a excelência em conseguir jogar um jogo como o original propunha, em que apenas um jogador tomaria as decisões mais corretas para chegar ao fim da narrativa, mas sim apostar se a própria comunidade teria capacidade de chegar ao final da narrativa dentro dessa nova caótica proposta.

Imagem 3.2.3 – Interface de Twitch Plays Pokemon.

Muito diferente do que havia imaginado seu idealizador, ao longo de 2014 Twitch Plays: Pokémon Red alcançou 36 milhões de visualizações, com picos de audiência de 120 mil pessoas simultâneas e estimativas de que 658 mil pessoas participaram ativamente do experimento. Essa nova proposta interativa, aplicada sobre a narrativa emoldurada e sobre a ludonarrativa, segundo o autor da programação, faria sentido apenas se um pequeno grupo jogadores-espectadores estivessem envolvidos no projeto. Assim, no meio do experimento, o autor não acreditava que seria possível seguir adiante por causa da enorme comunidade que se formara em torno do título. Eu acho que algumas áreas abertas [do jogo] são praticamente impossíveis de se passar com tantos participantes, ele exige que o jogador vá do ponto

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A para o ponto B com um certo número de etapas e não dá muita margem para erros. Mesmo quando jogado por um jogador só, essa parte pode ser 17 desafiadora sem um mapa e movimento cautelosos.

Twitch Plays Pokemon virou o jogo social mais importantes dentro do universo dos games naquele momento, e muitos jogadores entraram no projeto para entender e fazer parte desse novo movimento. Com tanta gente interessada e com acesso irrestrito a qualquer um que quisesse participar, parte dos jogadores se voltaram a desmantelar a experiência propositalmente, dedicando seus esforços a fazer com que a história não progredisse. Para enfrentar esses usuários, a comunidade criou subterfúgios de autogestão para provar que conseguiriam alcançar o final do jogo. Foram criados infográficos, scripts e outros mecanismos e linguagens para ajudar a organizar e mostrar caminhos viáveis para a conclusão. Na tentativa de mitigar a atitude daqueles que estavam tentando emperrar o andamento coletivo do jogo, o autor desenvolveu um sistema que chamou de Democrático, onde todos os comandos dados nos últimos 30 segundos seriam somados e contados, e aquele mais bem posicionado seria a ação dada no emulador. Para surpresa do autor, parte da comunidade que defendia a progressão da história, também defendia a liberdade disponibilizada da dinâmica original proposta em seu experimento, que passou a ser chamado de Anárquico. A partir disso, duas facções surgiram dentro do universo de Twitch Plays, os Democráticos e os Anarquistas, e com eles foram surgindo seus líderes, símbolos e estética.

Imagem 3.2.4 – Emblemas dos Anarquistas e dos Democratas. 17

"I think the Safari Zone is likely impossible with this many participants, it requires the player get from point A to point B under a certain number of steps and it doesn't leave much margin for error, even when played by one individual player it can be challenging without a map and careful movement." In: http://www.joystiq.com/2014/02/20/twitch-plays-pokemon-but-can-twitch-beat-pokemon, acesso em: 16 de junho de 2014.

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Esse é um dos exemplos de narrativas orgânicas que surgiram a partir dessa experiência social. Além disso, foram criadas inúmeras entidades ficcionais religiosas, memes, guildas, partidos políticos e outros tipos de coletivos da história que estava sendo construída sobre essa experiência O experimento demorou 16 dias para ser concluído e, logo na sequência, seu autor já começou uma experiência parecida, com outro título da série Pokémon. Para ele, a conclusão do projeto e a popularidade que atingiu foram surpreendentes. Eu não pensava que seria tão popular, eu pensei que iria ganhar um pequeno grupo de espectadores dedicados e alguns outros entrariam para assistir brevemente antes de passar para a próxima atividade. É 18 impressionante o quão popular se tornou.

O caso Twitch Plays Pokemón estressa o conceito de remixabilidade proposto por Manovich e vai além do universo dos jogos eletrônicos. Segundo o vicepresidente de Marketing do Twitch, Matthew DiPietro esse é: Mais um exemplo de como os vídeo games tornaram-se uma plataforma de entretenimento e criatividade que vai muito além das intenções originais de criador de cada título. Juntando vídeo game, vídeo ao vivo e uma 19 experiência participatória, o broadcaster criou híbrido de entretenimento.

Esse híbrido e toda a comunidade que surgiu à sua volta retiraram do poder tanto os criadores originais do jogo quanto o criador da modificação. Isso ilustra que, a partir do momento que um texto midiático alcança a rede, ele passa a pertencer à própria rede, e não mais aos seus autores.

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"I didn't think it was going to be this popular, I thought it would gain only a small group of dedicated viewers and many others would check it out briefly before moving on to other things. It's overwhelming how popular it has become.” In: http://www.joystiq.com/2014/02/20/twitch-plays-pokemon-but-cantwitch-beat-pokemon, acesso em: 16 de junho de 2014. 19 In: http://www.gamespot.com/articles/over-60k-people-watching-twitch-play-pokemon-update/11006417762/, acesso em: 16 de junho de 2014.

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Considerações finais Os jogos eletrônicos são um exemplo das chamadas novas mídias, mídias essas elementos moduladores da cibercultura. Os mods são uma caótica subcultura dessa nova mídia, que a desloca para espaços onde a experimentação e a auto regulamentação são as principais diretrizes criativas. Neles, tudo pode ser testado e qualquer um tem potencial para desenvolver versões populares e duradouras, que venham a servir como inspiração e protótipo para as experiências seguintes. No processo de absorção de objetos midiáticos, qualquer texto está sujeito a sair das mãos de seus criadores e cair no vórtice de uma comunidade disposta a experimentar sobre ele. O que surge disso são narrativas sobre narrativas, onde bases de dados são reorganizadas em interfaces que as traduzem em um outro tipo de texto, interpretado pelos usuários de uma maneira completamente diferente da original. Através dos exemplos mostrados no capítulo 3, foi possível perceber uma antinomia entre o que é produzido comercialmente e muitos dos mods criados sobre esses produtos. Sem entregar prêmios bem definidos, criar passagens de níveis ou trabalhar a evolução de personagens, a interação dos jogadores com esse universo transfigurado deixa qualquer tipo de recompensa ou punição muito mais subjetivos. Assim, a progressão na narrativa acontece ao mesmo tempo em que ela se forma organicamente, através de conexões entre jogadores e da sua relação com o texto midiático. A pungência destes objetos ciberculturais remixados está em sua capacidade de gerar novas sensações que antes não apareciam no universo dos jogos eletrônicos, e vai além dos processos prazerosos paulatinos por eles propostos. Nesse aspecto, mesmo sendo diretamente ligados ao entreter-se, aproximam-se muito mais das narrativas artísticas do que mercadológicas,

fornecendo subliminarmente novos

mecanismos para a interpretação da realidade. Produtos comerciais midiáticos massivos, em sua grande maioria norteamericanos ou europeus, são produzidos para atender consumidores em mercados maduros de consumo de entretenimento. O Brasil e a América Latina não são vistos como um mercado promissor para os produtores de jogos e hardware, e grande parte do ecossistema formal dos jogos eletrônicos fica relegado a ilegalidade, entre 55

o contrabando e a pirataria. Esses canais informais servem como eficiente fonte não-oficial para que grande parte da população de jogadores dessas regiões acessem os títulos que desejam. Nestes cenários considerados periféricos, os produtos são re-significados e adaptados para atender demandas locais. Conteúdo midiático transnacional às vezes chega pela porta da frente, distribuído por interesses comerciais (grandes e pequenos) buscando expandir mercado. Outras vezes, ele chega pela porta dos fundos, moldado pelos esforços de piratas buscando lucrar de objetos produzido por outros, por imigrantes tentando manter contato com a cultura que deixaram pra trás, e pela audiência buscando expandir o seu acesso pela diversidade cultural do mundo. Em todos os casos, práticas participatórias de cultura estão transformando o fluxo de mídia transnacional, mesmo que o acesso e a participação entre essas audiências mantenha-se desigual (JENKINS; 20 FORD; GREEN, 2013, p. 274) (tradução nossa).

A própria rede se auto-organiza para suprir uma demanda não-atendida, servindo como canal de livre troca de produtos e informação. Os atos desviantes que permitem o acesso irrestrito a objetos de entretenimento, e consequentemente culturais e inclusivos, fazem parte de um movimento de escambo não autorizado entre essas diferentes cadeias de valor. Eles preenchem espaços que são criados e mantidos pela desigualdade de acesso, permitindo que populações marginalizadas também façam parte da conversa global contemporânea, mesmo que através do seu próprio dialeto (JENKINS; FORD; GREEN, 2013, p. 265). Os modders são habitantes de guetos da cibercultura, repletos de atividades desviantes e que contestam, ocasionalmente, estruturas hierárquicas de poder. Esses grupos são na maioria das vezes restritos, restritivos e, como dito nos capítulos anteriores, efervescentes representações de zonas marginais no ecossistema midiático. Zonas marginais essas que também podem ser consideradas “zonas de contato”: “Zonas de contato”, espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se confrontam e lidam umas com as outras que podem ser culturalmente geradoras, resultando em uma diversidade de diferentes narrativas e imagens como trabalhos parciais através das conexões que tem um como o

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“Transnational media content sometimes comes through the front door, distributed by commercial interests (large and small) seeking to expand markets. Other times, it comes through the back door, shaped by the efforts of pirates seeking to profit from media produced by others, by immigrants seeking to maintain contact with cultures they have left behind, and by audiences seeking to expand their access to the world’s cultural diversity. In every case, participatory cultural practices are transforming transnational media flows, even if access and participation among those audiences remains uneven.”

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outro. (PRATT apud JENKINS; FORD; GREEN, 2013, p. 263) (tradução 21 nossa).

Além de diferentes concepções de valor, as obras remixadas também são resultado do encontro da cultura dos criadores com a cultura de quem os modifica. Essas complexas e múltiplas aglutinações de repertórios, significados e visões de mundo permitem que esses produtos apresentem significados implícitos de choques culturais e novos fluxos de troca. Novos itinerários culturais e novas pontes se formam através deles. O consumo e a criação desses objetos, ao mesmo tempo em que servem para que a comunidade em torno deles se retroalimente e reforce seus laços internos, pode também fazer com que grupos ganhem visibilidade, muitas vezes retirando indivíduos de uma situação de invisibilidade social para tornarem-se, junto com seus pares, foco de exposição. Essa exposição pode até empoderar aqueles que estão tentando escapar do isolamento cultural para entrar em uma conversa transnacional. Essa concepção de repertórios diferentes, interagindo através das mesmas obras e com alcance e apelo global, é um dos indicativos do embricamento de culturas presente na cultura de mods e serve como norte para entendermos o quão diferentes podem ser os resultados dessa nova organização cultural e midiática. São culturas completamente diferentes, com códigos culturais, intenções e histórias diversas, convergindo para textos midiáticos de entretenimento de grande alcance. Esses textos “impuros”, frutos do intermixing de cultura, são: Veículos ideológicos poderosos, com a tradição e características de uma nação ou região particular. Eles podem disponibilizar uma grande visibilidade cultural para suas culturas originárias e se tornarem forças da diversidade os nos países que alcançarem (JENKINS; FORD; GREEN, 22 2013, p. 270) (tradução nossa).

Mais uma vez evocando Huizinga, a sociedade reveste-se de formas suprabiológicas, e uma das formas que ela pode ser vista e analisada é através de metáforas a partir dos jogos que se jogam. Essa atividade e esses conjuntos de regras auto-impostas que seus membros decidem utilizar para interagir com seus pares são uma valiosa representação de como a sociedade exprime sua 21

“The arts of the contact zone, social spaces where disparate cultures meet, clash, and grapple with each other may be culturally generative, resulting in a diversity of different narratives and images as parties work through their connections with each other.” 22 “Though these texts are “impure,” they nevertheless remain powerful vehicles of ideologies, traditions, and styles characteristic of a particular nation or region.”

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interpretação da vida e do mundo (HUIZINGA, 2012, p. 53). Voltar o olhar para essas atividades pode ser um rico caminho para tentar entender pulsões mais profundas que regem seus laços sociais.

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