Nas Ruínas de Tancredo, um Brasil mais Democrático mas Imperfeito

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NAS RUÍNAS DE TANCREDO, UM BRASIL MAIS DEMOCRÁTICO MAS IMPERFEITO
Carlos Frederico Pereira da Silva Gama


No mês em que se completam 30 anos da morte trágica de Tancredo Neves – primeiro civil eleito Presidente do Brasil após 21 anos de ditadura militar – seu legado é incerto.

As forças políticas que possibilitaram a vitória de Tancredo no Colégio Eleitoral da ditadura (sobre Paulo Maluf, do partido governista PDS, ex-Arena) estão em posições diametralmente opostas. O PMDB (último partido de Tancredo) ocupa a vice-Presidência da República, além das presidências da Câmara dos Deputados e Senado. O DEM (antigo PFL e Frente Liberal) pleiteia, na oposição, o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff (do PT – partido que se recusou a participar do Colégio Eleitoral e não legitimou a vitória de Tancredo). O DEM não é, entretanto, a mais representativa força política de oposição ao governo Rousseff, posto ocupado pelo PSDB, uma dissidência do PMDB, cujos integrantes mais ilustres estiveram juntamente com o Presidente eleito em 1985.


"Brasileiros, começamos hoje a viver a Nova República. Deixemos para trás tudo o que nos separa e trabalhemos sem descanso para recuperar os anos perdidos na ilusão e no confronto estéril"
A fragmentação um tanto confusa das forças políticas que forjaram a aliança vitoriosa de 1985 – a Nova República – se deve apenas em parte à perda de seu artífice. Morto Tancredo e empossado José Sarney (dissidente da Arena/PDS, líder da Frente Liberal/PFL e originalmente vice-Presidente), a Nova República – pensada como um compromisso de transição entre dissidentes do regime ditatorial e uma oposição consentida moderada – se tornou uma hegemonia de fato do PMDB. Impulsionado pela euforia do Plano Cruzado (que momentaneamente congelou a inflação e elevou o poder de renda da população) o PMDB obteve vitória esmagadora nas primeiras eleições pós-1985, elegendo quase todos os governos estaduais (com a exceção de Sergipe) e obtendo confortável maioria na Assembleia Constituinte encarregada de enterrar o entulho autoritário.

Junto a todos seus inegáveis avanços, a Constituinte cidadã foi construída sob uma curiosa premissa política: não o equilíbrio entre poderes independentes (Executivo, Legislativo e Judiciário) em competição, mas a sobreposição destes (cabendo em certas instâncias ao poder Executivo legislar, ao Legislativo julgar e ao Judiciário, executar decisões políticas), o que alimentava uma expectativa de íntima colaboração entre os 3 poderes. Essa arquitetura política peculiar – o "presidencialismo de coalizão" – não parecia problemática em 1988, quando o PMDB predominava em todas as frentes. Ulysses Guimarães, herói das Diretas-Já e Senhor Constituinte, era considerado franco favorito e virtual vencedor das eleições diretas marcadas para 1989 (as primeiras desde 1960).

O legado de Sarney frustrou as expectativas de uma nova vitória PMDBista. Inflação galopante de 3 dígitos, desvalorização da moeda nacional na ressaca de inúmeros planos econômicos frustrados e abundantes denúncias de corrupção deram menos de 5% dos votos no primeiro turno para Ulysses.

Nesse contexto em que o PSDB de Mário Covas defendia um "choque de capitalismo", o PFL do vice de Sarney (Aureliano Chaves) agonizava com menos de 2% dos votos e quando o oposicionista PT ainda se definia (antes da queda do Muro de Berlim) como um "partido socialista", a Nova República se desagregava a olhos vistos. Um azarão se tornaria o vencedor do primeiro pleito.

Em suas próprias circunstâncias, Fernando Collor de Mello simbolizava a fragmentação e confusão políticas pós-Tancredo. Ex-integrante da Arena, migrou para o PMDB em tempo para ser eleito governador de Alagoas em 1986. Notabilizando-se como crítico ferino do governo Sarney e dos "marajás" (funcionários públicos que recebiam supersalários), Collor demonstrou ter aspirações maiores do que aquelas que o PMDB lhe permitia. Rechaçadas tais aspirações, fundou o nanico PRN e obteve o apoio de outros dissidentes do PMDB, como Itamar Franco.

Investindo numa forte campanha midiática calcada num discurso anticorrupção, prometendo estabilizar e modernizar a economia após matar o dragão da inflação de Sarney com um só golpe, além de reduzir o tamanho do Estado, Collor se definiu como candidato anti-Sarney e foi vencedor de uma disputada eleição. No segundo turno Collor foi apoiado pelo PDS e PFL e Luiz Inácio Lula da Silva, pelo PT, PMDB e PSDB – o que implicava, virtualmente, um retorno ao cenário pré-1985. No seu quinto ano, uma corroída Nova República parecia prematuramente aposentada.

O vencido PMDB permaneceria na oposição. A disjunção entre o Executivo e o Legislativo (controlado por partidos oposicionistas, a despeito do crescimento eleitoral do PRN) tornaria o governo Collor breve. Também alvo de denúncias de corrupção e fracassando em seu intento de reativar a economia brasileira (que teve crescimento negativo em 2 dos 3 anos de governo) e debelar a inflação (a despeito do inédito confisco das poupanças), Collor renunciou para evitar a aprovação de um pedido de impeachment aberto no Congresso Nacional em 1992.

A queda de Collor mostrou a tônica das relações políticas no Brasil contemporâneo. Apesar de controlar com frequência extraordinária as duas casas do Congresso, o PMDB jamais venceu uma eleição presidencial sob a Constituição de 1988. Executivo e Legislativo têm dificuldade para falar a mesma língua desde então: com frequência, travam diálogos de surdos. Os partidos vitoriosos nos pleitos presidenciais (PSDB e PT) se tornam virtuais reféns do Legislativo, ou buscam se desvencilhar legislando por conta própria, por sua conta e risco, o que alimenta a espiral de crise política. Impasses entre poderes são rotineiros.

A crise política vivida pelo segundo governo Dilma Rousseff é um episódio dentro do quadro mais amplo de corrosão e desmantelamento da moldura política da Nova República. Acossado pela própria base no Congresso – como o PMDB, que consegue aprovar medidas que o governo Rousseff não endossou (redução da maioridade penal, terceirização) – o governo recém-formado defende a necessidade de uma reforma política (mas se opõe à proposta de reforma feita pelo próprio PMDB).

PT e PMDB receberam simultaneamente mais de 54 milhões de votos no último pleito presidencial. O incômodo na relação entre os partidos e a insatisfação de muitos eleitores de ambos com a disputa são produtos típicos do presidencialismo de coalizão.

À medida que a reforma política se torna mote para o cabo de guerra entre governo e Congresso, os partidos brasileiros são cada vez mais contestados. Num país onde o voto é obrigatório, 30 milhões de brasileiros não compareceram às urnas em Outubro de 2014 e outros 7 milhões optaram por votos brancos ou nulos. Não surpreendentemente, os partidos brasileiros assistiram atônitos quando as ruas foram tomadas por milhões de brasileiros em 2013 – as maiores manifestações populares desde as Diretas-Já – cena que se repetiu, em menor escala, em 2015. Um dos slogans das jornadas de 2013 mantido em 2015 era precisamente manter as ruas "sem partidos".

A Nova República, no entanto, sobrevive, renovada de tempos em tempos por inflexões políticas que permitem criar amplas coalizões meta-partidárias. O impeachment de Collor proporcionou momento para um governo de coalizão nacional. Sob Itamar Franco (reintegrado ao PMDB), a cisão Executivo-Legislativo se desfez momentaneamente, ao passo que o governo reunia desde integrantes do PSDB (Fernando Henrique Cardoso) a dissidentes do PT (Luíza Erundina).

Contra todos os prognósticos, o breve governo Itamar estabilizou a economia, debelou a inflação e fez seu sucessor. Fernando Henrique e o PSDB herdariam a Presidência sob a égide do Plano Real. O PT – crítico ferrenho tanto do governo Itamar quanto do Plano Real – reconheceu seu erro e mudou de posição, mantendo os fundamentos econômicos do Real nos governos Lula e Rousseff.

As grandes transformações políticas que mudaram a vida de milhões de brasileiros pós-1988 – a estabilização da economia e justiça social via redistribuição de renda – foram conquistados às custas de grandes concessões em prol da governabilidade, tornando o PMDB fiador de governos tucanos e petistas (apoio condicionado e sujeito a revisões a cada crise, como as que abreviaram o fôlego político do segundo governo Fernando Henrique e que vêm minando o segundo mandato Rousseff).

A última tentativa de ampla aliança suprapartidária ocorreu no segundo turno de 2014. O candidato do PSDB Aécio Neves – neto de Tancredo – granjeou apoios que iam desde o PV de Eduardo Jorge (que se definia como "anticapitalista") ao libertarismo econômico do Pastor Everaldo (PSC), sem contar o apoio do PSB de Marina Silva – candidatura que havia se definido como alternativa à polarização PT/PSDB. O pluralismo dessa aliança não se traduziu em intensidade política. Como em 1989, a eclética aliança não triunfou nas urnas. Após as eleições, carente de uma agenda política clara, a aliança perdeu fôlego. O desgaste de Dilma e do PT trouxe novo ímpeto à oposição, com limites evidentes. Condenada por figuras como o ex-presidente Fernando Henrique, a mobilização pelo impeachment soa como recall eleitoral reprimido – e reitera a crise política da Nova República. O presidencialismo de coalizão continua a demandar inflexões políticas a cada ciclo de crises.

A jovem democracia brasileira deu mostras de vitalidade nos últimos 30 anos, que não se resumem ao impeachment. Diferentemente da Alemanha e França (que julgaram casos de corrupção em governos como os de Helmut Kohl e François Mitterand somente após o fim de seus mandatos) o Brasil está a julgar casos de corrupção no governo que acaba de se reeleger. Em parte isso se deve à proeminência política do Judiciário, projetado contra o pano de fundo de novo impasse entre Executivo e Legislativo. Esse reposicionamento dos poderes, longe de ser uma novidade capaz de resolver a crise política, é resultado de seu aprofundamento e sinaliza sua gravidade.

Tancredo morreu antes do jogo da Nova República começar. O Brasil pós-1985 se mostrou democrático, mas de forma problemática. O jogo começou sem prever a necessidade de uma transição. A crise política que vivemos é precisamente isso: a tentativa de realizar uma transição, superando visíveis fragilidades sistêmicas.


Professor de Relações Internacionais da PUC-Rio



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