Nas Trilhas da Tradução: TRADUÇÃO E AUTORIA v.2

July 18, 2017 | Autor: Maura Dourado | Categoria: Translation Studies, Translation, Traductologie, Tradução, Traducción e interpretación, Autoria
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Tradução e Autoria

TRADUÇÃO E AUTORIA COLEÇÃO – ‘NAS TRILHAS DA TRADUÇÃO’

VOL. II

Sumário

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2|Prefácio

Conselho Editorial Álvaro Faleiros (USP) Anasthasie Angoran (Univ. Félix Houphouët-Boigny) Carolina Paganine (UFF) Fabiele Stockmans De Nardi (UFPE) Fatiha Dechicha Parahyba (UFPE) Germana Henriques Pereira (UnB) Helena Topa Valentim (Universidade Nova de Lisboa) Ines Oseki Depre (Université d’Aix – en-Provence) José Hélder Pinheiro (UFCG) José Lambert (Katholieke Universiteit Leuven) Josilene Pinheiro-Mariz (UFCG) Luana Ferreira de Freitas (UFC) Marc Charron (Université d’Ottawa) Marcelo Paiva de Souza (UFPR) Marta Pragana Dantas (UFPB) Muguras Constantinescu (Univ. Stefan Cel Mare/Suceava) Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares (USP) Philippe Humblé (Vrije Universiteit Brussel) Roberto Mulinacci (Università di Bologna) Walter Carlos Costa (UFSC/UFC)

Sumário

Tradução e Autoria

TRADUÇÃO E AUTORIA

Marie Hélène Catherine Torres (UFSC) Maura Regina da Silva Dourado (UFPB) Sinara de Oliveira Branco (UFCG) Organizadoras

COLEÇÃO – ‘NAS TRILHAS DA TRADUÇÃO’

VOL. II

Ideia João Pessoa 2014 Sumário

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4|Prefácio Todos os direitos reservados às organizadoras. A responsabilidade sobre textos e imagens é do respectivo autor. Editoração/Capa Magno Nicolau Revisão Jose Temístocles Ferreira Júnior Este livro foi publicado com verba da CAPES. Projeto Dinter NF 2041/2009.

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Tradução e autoria / Marie Hélène Catherine Torres, Maura Regina da Silva Dourado, Sinara de Oliveira Branco (Orgs.). Vol. II. Col. Nas trilhas da tradução. - João Pessoa: Ideia, 2014. 221p. ISBN 978-85-7539-949-1 1. Tradução – autoria CDU 82.03

EDITORA www.ideiaeditora.com.br Impresso no Brasil – Feito o Depósito Legal

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A P R E S E N T A Ç Ã O ..................................................... 7 Marie-Hélène Catherine Torres Maura Regina da Silva Dourado Sinara de Oliveira Branco ENCANTOS NOTURNOS EM MANUEL BANDEIRA ... 13 Ana Cristina Cardoso TRADUÇÃO: DIALOGISMO EM CONCEPÇÕES PARAFRÁSTICAS .............................................................. 29 Araken G. Barbosa MATAR OU CRIAR O “AUTOR”: O TRADUTOR ENTRE BARTHES E BORGES .......................................... 43 Artur Almeida de Ataide AUTORES/TRADUTORES PORTUGUESES NO SUPLEMENTO ARTE-LITERATURA .............................. 69 Izabela Leal VERSÕES DE BRINQUEDO: UMA TRADUÇÃO BRASILEIRA DOS POEMAS DE JULIAN TUWIM PARA CRIANÇAS .......................................................................... 87 Marcelo Paiva de Souza A CIRCULAÇÃO DE OBRAS FRANCESAS NO BRASIL: REFLEXÕES ACERCA DE ALGUNS OBSTÁCULOS À TRADUÇÃO ...................................................................... 119 Marta Pragana Dantas Artur Fragoso de A. Perrusi Sumário

6 | Apresentação DESAFIOS DE TRADUZIR FREUD COMO AUTOR DE UMA NOVA DISCURSIVIDADE .................................... 129 Pedro Heliodoro Tavares KARL SCHÄFER E FRIEDRICH SCHLEIERMACHER: CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS SOBRE O TRADUZIR ........................................................................ 147 Tito Lívio Cruz Romão HAROLDO/GLISSANT E O DIABO DO TRADUZIR ... 175 Luciano Barbosa Justino OS PARATEXTOS EM ANTOLOGIAS BRASILEIRAS DE EDGAR ALLAN POE ................................................. 197 Francisco Francimar de Sousa Alves SOBRE OS AUTORES, ORGANIZADORAS E REVISOR ........................................................................... 213

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No ano de 2010, três universidades federais uniramse em torno de um Projeto de Doutorado Interinstitucional na área de Estudos da Tradução (DINTER/Edital 05/2009 da CAPES – Ação Novas Fronteiras) com o objetivo de estabelecer um polo de referência no ensino, pesquisa e formação de professores-pesquisadores em Tradução na Paraíba. Essas instituições e seus respectivos Programas de Pós-Graduação são: Universidade Federal de Santa Catarina (instituição promotora) - Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET), Universidade Federal da Paraíba (instituição receptora) - Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) e Universidade Federal de Campina Grande (instituição associada) - Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino (POSLE). O objetivo principal do DINTER é investir na qualificação de recursos humanos das universidades, bem como em sua estrutura, com ênfase na PósGraduação e na pesquisa, visando formar professorespesquisadores para o ensino, a pesquisa, a extensão e, também, fortalecer grupos de pesquisa na área de tradução tanto dentro da UFPB e da UFCG quanto através de parcerias com outras IES. Enquanto o primeiro volume intitulado Pesquisas em Tradução objetivou socializar algumas das pesquisas realizadas pelos professores-doutorandos integrantes do Projeto Dinter em Estudos da Tradução (UFSC-UFPB-UFCG), este segundo volume da Coleção Nas Trilhas da Tradução, intitulado Tradução e Autoria, é fruto do fortalecimento do diálogo e da parceria entre diferentes Grupos de Pesquisa e seus respectivos pesquisadores com as universidades integrantes do projeto Dinter em Estudos da Tradução. Sumário

8 | Apresentação Graças à iniciativa do Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino, da UAL-UFCG, instituição associada no Projeto Dinter em Estudos da Tradução, o I Colóquio de Tradução e Autoria reuniu pesquisadores e tradutores de várias instituições e grupos de pesquisa em Estudos da Tradução de universidades federais do Ceará, Pernambuco, Pará, Paraná e da Universidade de São Paulo. Vários desses palestrantes e conferencistas, cordialmente, contribuíram com suas pesquisas relacionadas à questão da autoria no processo tradutório para este segundo volume da coletânea Nas Trilhas da Tradução. Ana Cristina Cardoso abre as discussões com texto intitulado Encantos Noturnos em Manuel Bandeira, debruçando-se sobre os poemas “Chambre Vide” e “Noturno do Morro do Encanto”, que, embora escritos em francês e em português, respectivamente, versam sobre a temática da solidão noturna. Tema caro ao poeta, o grande pesar de uma noite solitária num quarto vazio é o sentimento vivido e revivido pelo eu lírico nesses dois poemas. A autora ainda compara três traduções para o português do poema “Chambre Vide” com o objetivo de analisar as diferentes escolhas tradutórias feitas por três tradutoras distintas. Ressaltando a paráfrase como elemento coadjuvante essencial de grande potencial criativo no processo tradutório, Araken Barbosa, no texto Tradução: dialogismo em concepções parafrásticas, apresenta elementos básicos do dialogismo em uma análise que confronta o entrelaçamento polifônico no discurso. O autor sinaliza para uma prática que implica a relação fluida e contínua de seus participantes em termos relacionados com a heteroglossia. Inclui a análise de tópicos como o universo cultural tomado em uma perspectiva semiótica constituída dialogicamente que nos leva a perceber o signo como um construto social. Em Matar ou criar o “autor”: o tradutor entre Barthes e Borges, Artur Almeida de Ataíde toma como ponto de parSumário

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tida a conhecida ideia da “morte” imposta ao “Autor” (Barthes) tão logo aberto um livro e iniciada a projeção do imaginário do leitor na cadeia de significantes sobre a página, como faz Pierre Menard (Borges). Ataíde analisa a tradução, para o português, de alguns aspectos formais do endecasillabo da Divina Commedia e o pretexto que escondem para novas e necessárias multiplicações da efígie de Dante em âmbito lusófono. Voltando-se para o suplemento literário do jornal Folha do Norte, que circulou em Belém do Pará de 1946 a 1951, Izabela Leal analisa, em seu texto intitulado Autores/ Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura, o lugar de escritores portugueses, tais como Camões, Alexandre Herculano, João Gaspar Simões e Fernando Pessoa, que comparecem em traduções e textos críticos publicados no suplemento de artes do jornal. Leal investiga o lugar desses escritores/tradutores, propondo uma reflexão que aborde diferentes pontos de vista com que os autores pensaram a identidade cultural portuguesa. Marcelo Paiva de Souza argumenta que na opinião unânime dos leitores – de todas as gerações, e não apenas poloneses – a poesia de Julian Tuwim (1894-1953) voltada para as crianças constitui uma das mais altas realizações do autor e da poesia do séc. XX, na Polônia e no mundo. Nessa linha, em Versões de Brinquedo: Uma Tradução Brasileira dos Poemas de Julian Tuwim para Crianças, Souza busca evidenciar, pelo prisma de um Tuwim traduzido, de uma tentativa de traslado – ainda em curso – de algumas das obras mencionadas para o português do Brasil, as diversas facetas da instância autoral de uma operação tradutória determinada. Marta Pragana Dantas e Artur Fragoso de Perrusi relatam, no texto intitulado A circulação de obras francesas no Brasil: reflexões acerca de alguns obstáculos à tradução, o resultado de entrevistas realizadas com editores e tradutores que atuam no campo das traduções de obras francesas no Brasil. As entrevistas revelam que obras de autoria francesa têm pouco público no Brasil e, portanto, não vendem bem. Ao Sumário

10 | A p r e s e n t a ç ã o longo do relato, os autores instigam o leitor a pensar sobre os obstáculos culturais enfrentados por essas traduções no país, num contexto marcado pela hegemonia da língua inglesa e pela liderança do mercado editorial de autoria angloamericana. Pedro Heliodoro Tavares aborda os desafios de traduzir Freud enquanto fundador de discursividade, nos termos de Foucault (1969). Tavares defende que a tradução de Freud não envolve tão somente o conhecimento das línguas de partida e de chegada, bem como de uma boa técnica de tradução. Para o autor do texto de Freud, traduzse também o substrato teórico que sustenta uma prática clínica amparada nas capacidades representacionais e transformadoras da palavra, visto que na estilística de Freud e nas suas opções de vocabulário, forma e conteúdo confluem. Para usar os vocábulos de Freud a respeito da formação dos sonhos, chiste, atos-falhos ou de outras construções do inconsciente, há que se levar em conta as Vorstellungen, representações ideativas, e as Darstellungen, representações figurativas, presentes e conjugadas em seus escritos. Tito Lívio Cruz Romão confronta as concepções de traduzir adotadas por Friedrich Schleiermacher e Karl Schäfer. Para tanto, retoma as trajetórias de ambos os teóricos da tradução. Friedrich Schleiermacher notabilizou-se, sobretudo, graças às suas traduções das obras de Platão em língua alemã. No âmbito dos Estudos da Tradução, celebrizou-se com seu ensaio Ueber die verschiedenen Methoden des Uebersezens [Sobre os diferentes métodos de traduzir], apresentado como conferência em 1813 e publicado em 1838, em que aponta “os dois únicos caminhos” a serem percorridos pelo “verdadeiro” tradutor: “ou o tradutor deixa o autor em paz e leva o leitor até ele; ou deixa em paz o leitor e leva o autor até ele”. Karl Schäfer, professor de liceu dedicado às línguas clássicas e principalmente à tradução de textos gregos, publicou, em 1839, um ensaio intitulado Ueber die Aufgabe des Uebersezens [Sobre a tarefa de traduzir], em que criticava o método de tradução proposto por Schleiermacher, toSumário

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mando como ponto de partida as ideias do próprio Schleiermacher e as traduções realizadas por Johann Heinrich Voß, célebre tradutor de obras homéricas em alemão. No texto Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir, Luciano Barbosa Justino articula três teorias da tradução: a "transluciferação" de Haroldo de Campos, a épica crioula de Edouard Glissant e a "tarefa-renúncia" do tradutor de Walter Benjamin. Em todos elas, traduzir nunca é renunciar à historicidade do tradutor, antes se estabelece na tensão entre o passado e o futuro do original, que só realiza sua plenitude (Benjamin) numa tradução que o concebe como diferença e opacidade, operação necessariamente diabólica (Haroldo) e crioula (Glissant), nas quais tradução é outro nome que se dá para o encontro com a alteridade. No capítulo Os paratextos em antologias brasileiras de Edgar Allan Poe, Francisco Francimar Alves reflete acerca de paratextos enquanto elementos informativos que se caracterizam como facilitadores da leitura, e que podem influenciar a recepção da obra na cultura de chegada. Para o autor, esses discursos de acompanhamento apresentam-se de forma diversificada nas coletâneas de contos de Edgar Allan Poe traduzidas para o português, levando ao leitor informações relevantes para além da informação básica de que Poe é o mestre do conto gótico ou do terror psicológico. À luz dos princípios teóricos de Gerárd Genette, Alves concentra-se nos elementos paratextuais na antologia de contos de Poe intitulada A carta roubada e outras histórias de crime & mistério, traduzida por William Lagos e publicada pela L&PM em 2003 [2006], observando de que forma o autor e sua obra são apresentados através desses discursos. Marie-Hélène Catherine Torres Maura Regina da Silva Dourado

Sinara de Oliveira Branco

(Organizadoras)

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Ana Cristina Cardoso Introdução Ao tomar conhecimento de que Manuel Bandeira havia feito poemas em francês, fiquei curiosa de conhecê-los. Como seria o fazer bandeiriano à lafrançaise? Tomada por esse desejo de descoberta, resolvi fazer uma análise desses escritos. Descobri, inicialmente, que embora em número reduzidíssimo, a “produção francesa” do poeta seguia seu estilo em língua portuguesa. Dentre os três poemas franceses, isto é, “Bonheurlyrique”, “Chansondespetitsesclaves” e “Chambre vide”, este último chamou-me a atenção sobremaneira. Seu tema central, a solidão noturna, dialogava fortemente com “Noturno do morro do Encanto”. Ficou, então, decidido que o estudo seria sobre “Chambre vide” e “Noturno do morro do Encanto”. Em seguida, realizada a análise dos dois poemas, uma segunda questão me veio à mente: como nem todos os leitores do estudo compreendem bem a língua francesa, por que não propor uma tradução do poema? Aceitei meu próprio desafio e fiz uma tradução sem caráter poético. “De posse” de uma tradução de Bandeira, me vem o desejo de saber: existem traduções poéticas desse poema? Após uma pesquisa na internet, foram encontradas duas traduções.

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Noturnos em Manuel Bandeira

Assim, diante do exposto acima, este artigo é composto de quatros etapas: 1ª. A solidão noturna – tema em comum dos dois poemas; 2ª. “Chambre vide”– estudo do poema; 3ª. “Noturno do morro do Encanto”– estudo do poema; 4ª. Quartos vazios – apresenta e analisa as três traduções em português de “Chambre vide”.

A solidão noturna Em “Chambre vide” e “Noturno do morro do Encanto”, Manuel Bandeira escreve com intensidade sobre a solidão, tema caro ao poeta. O grande pesar de uma noite solitária num quarto vazio é o sentimento vivido e revivido pelo eu lírico nesses dois poemas. O primeiro, escrito em Petrópolis em 1925, faz parte de Libertinagem, quarto livro de poemas de Bandeira, porém o primeiro considerado verdadeiramente moderno. Já o segundo, escrito 28 anos depois, também em Petrópolis, pertence a Opus 10, seu oitavo livro de poesia. Embora de épocas distantes, os dois reiteram a dor e a tristeza profunda do poeta nas longas noites solitárias. O tema da solidão noturna está explicitamente presente em outros poemas como “Na solidão das noites úmidas”, “Noite Morta” e “Noturno da Mosela”. Chambre vide Petit chat blanc et gris Reste encore dans la chambre La nuit est si noire dehors Et le silence pèse Ce soir je crains la nuit Petit chat frère du silence

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Reste encore Reste auprès de moi Petit chat blanc et gris Petit chat La nuit pèse Il n’y a pas de papillons de nuit Où sont donc ces bêtes? Les mouches dorment sur le fil de l’électricité Je suis trop seul vivant dans cette chambre Petit chat frère du silence Reste à mes côtés Car il faut que je sente la vie auprès de moi Et c’est toi qui fais que la chambre n’est pas vide Petit chat blanc et gris Reste dans la chambre Eveillé minutieux et lucide Petit chat blanc et gris Petit chat Petrópolis, 1925

“Chambre vide”, poema escrito em versos livres, assim como tantos outros poemas de Libertinagem, é composto por duas estrofes: a primeira com dez versos e a segunda com quatorze, é o primeiro dos três poemas escritos por Bandeira em francês. Este, junto com “Bonheurlyrique”, encontra-se em Libertinagem, quarta obra do poeta, já a “Chansondespetitsesclaves” pertence à Estrela da manhã, seu quinto livro. A propósito dos títulos das obras de Bandeira, gostaríamos de citar o título do seu livro de estreia, A cinza das horas. Em sua atividade como tradutor de língua francesa, Bandeira traduziu Mireille, de Fréderic Mistral. Isso certamente contribuiu para ampliação do seu domínio do idioma estrangeiro. As palavras, assim como os tempos e modos verbais, são escolhidas com cuidado e consciência. Quando Sumário

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Noturnos em Manuel Bandeira

Bandeira escolhe um verbo no indicativo em detrimento de um no subjuntivo não o faz por acaso, como podemos observar no nono verso da segunda estrofe de Chambre vide. A adoção do indicativo dá uma conotação bastante real à situação descrita: Et c’esttoiquifais que la chambre n’est pas vide. Se o autor tivesse usado o subjuntivo ne soitpas vide a descrição da situação de solidão não seria tão vívida, tão intensa. O emprego do indicativo aproxima o autor do leitor que passa, dessa maneira, a compartilhar da solidão do eu lírico. Com esse título, Chambre vide, o poeta nos faz pensar num lugar não habitado, desocupado, vazio, sem ninguém, sem nada. A ideia de solidão pelo título sugerida é, no entanto, quebrada logo nos primeiros versos: Petit chat blanc et gris / Reste encore dansla chambre. Na realidade, o eu lírico não está num quarto sozinho, mas acompanhado por um pequeno gato. Situação inesperada essa da companhia de um animal. A ideia de solidão que tinha sido sugerida pelo título e logo em seguida modificada com a presença do animal é, contudo, retomada com mais força quando o eu lírico implora a permanência deste: reste encore dansla chambre. Ele, o eu lírico, encontra-se tão só que até a companhia de um pequeno animal já lhe daria algum consolo. A presença do gato no poema reforça a melancolia da solidão. O uso do diminutivo gatinho transmite carinho, afeição. Embora triste, o eu lírico tem afeição pelo animal. A ideia da indiferença dos gatos em relação aos humanos é um pouco afastada no poema com o emprego do diminutivo. O cinza e branco do gatinho evoca tristeza. A cor cinza lembra o tempo consumado, as horas passadas. Nos três versos seguintes: La nuit est si noire dehors / Et le silence pèse / Ce soir je crains la nuit,temos a descrição da noite. A noite do poema não é uma noite qualquer, mas uma noite escura, silenciosa, construída linguisticamente por escolhas lexicais como nuit si noire, silencepèse, jecrains, onde a escuridão reina e amedronta. O silêncio é tão pesado que Sumário

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chega a atemorizar. Naquela noite, especificamente, o eu lírico teme a escuridão. Logo depois, o gatinho é chamado de irmão do silêncio. O animal, assim como o eu lírico, divide o mesmo ambiente tomado pela calma, sossego e sem ruídos. Os dois se irmanam no silêncio profundo daquele quarto. Embora não haja nenhuma interação entre o gatinho e o eu lírico, a simples presença do felino alivia o peso da noite. O uso do imperativo, implorando que o gato fique, reforça a ideia de solidão e paradoxalmente desconstrói a irmandade no silêncio. O pedido do eu lírico ao gato de que reste encore pode sugerir que o felino deve estar querendo sair e ele insiste em sua permanência. Para terminar a primeira estrofe, o eu lírico volta a implorar a presença do animal. Ao repetir o pedido, ele não somente pede para que o gato fique ainda mais, mas que fique perto dele - reste auprès de moi. Nos dois últimos versos, há a repetição da primeira frase do poema - petit chat blanc et gris e metade dela - petit chat. Ao chamar novamente o gatinho, o poeta expressa quase uma lamentação, que será repetida no final do poema. O pesar da noite inicia a segunda estrofe, paira no ar um mal-estar, um incômodo. Não há nada em movimento, o mundo está imóvel, calado, nem as mariposas, animais noturnos, estão presentes e até as moscas dormem sobre o fio elétrico. O eu lírico sente-se demasiadamente só dentro daquele quarto. No sexto verso da segunda estrofe, temos a repetição do sexto verso da primeira estrofe, no qual o eu lírico tornase irmão do gatinho no silêncio. O sétimo verso da segunda estrofe repete, embora de maneira diferente, a mesma ideia do sétimo verso da primeira estrofe, ou seja, o eu lírico implora ao animal para que fique ao seu lado: Petit chat frèredusilence / Reste à mês côtés.

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No oitavo verso, o eu lírico explica o porquê daquele pedido. Ele precisa da presença do gatinho junto a si, pois é necessário sentir a vida ao seu lado, e só ele, o gato, faz com que o quarto não esteja vazio. Continuando o poema, no décimo e no décimo primeiro versos, temos novamente o chamamento do gatinho, o pedido da sua permanência no quarto. No décimo segundo verso, há a atribuição de características curiosas a um animal. Ele está acordado, é minucioso e lúcido. Como poderíamos atestar a lucidez de um animal? Dizer que se esforça para não excluir nenhum detalhe no que faz? Tais escolhas lexicais humanizam o animal ao atribuir-lhe características e comportamentos humanos. Os dois últimos versos retomamo mesmo chamamento do eu lírico pelo gatinho. A repetição desses versos fecha o poema como um lamento. Noturno do morro do Encanto Este fundo de hotel é um fim de mundo! Aqui é o silêncio que tem voz. O encanto Que deu nome a este morro, põe no fundo De cada coisa o seu cativo canto. Ouço o tempo, segundo por segundo, Urdir a lenta eternidade. Enquanto Fátima ao pó de estrelas sitibundo Lança a misericórdia do seu manto. Teu nome é uma lembrança tão antiga, Que não tem som nem cor, e eu, miserando, Não sei mais como o ouvir, nem como o diga. Falta a morte chegar... Ela espia Neste instante talvez, mal suspeitando Que já morri quando o que eu fui morria. Petrópolis, 21-2-1953

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No conjunto da obra de Bandeira, encontramos um total de quatro noturnos: Noturno da Mosela, que está no livro O Ritmo Dissoluto, Noturno da parada de Amorime Noturno da rua da Lapaque fazem parte de Libertinagem e Noturno do morro do Encanto que está em Opus 10. O Noturno do morro do Encanto é um soneto composto por versos decassílabos que segue rimas regulares do tipo A B A B nos dois quartetos e do tipo C D C no primeiro terceto e E D E no segundo terceto. O título remete ao momento e ao lugar em que o poema acontece, descrevendo uma noite triste e melancólica. Esse mesmo tema é também o tema dos Noturnos, gênero musical de caráter melancólico e sonhador, de andamento vagaroso. Várias são as acepções para o vocábulo noturno em relação à música, segundo o Dicionário Houaiss, vejamos duas: 1a.: composição ou cântico para esta subseção das matinas; 2a.: composição vocal ou instrumental de cunho melancólico destinado às serenatas, em voga no século XVIII. O demonstrativo “este”, empregado pelo poeta no início do primeiro verso, é encontrado em outros poemas: Desesperança (Esta manhã...), Estrada (Esta estrada...) e Gesso (Esta minha estatuazinha...). Esse emprego do demonstrativo gera para o leitor não somente uma individualização, aproximação do tema a ser desenvolvido, mas também constrói um estilo próprio do fazer poético bandeiriano. No primeiro quarteto, é descrito o cenário onde o poema se desenvolve. O espaço é interno, tudo acontece num fundo de hotel. Não há, como se poderia imaginar, a presença de um ambiente externo apesar do título. O poema começa descrevendo de forma pungente o quarto de hotel no qual se encontra o eu lírico. Além de ser o fim do mundo, aquele ambiente é sem movimento, sem barulho e só o silêncio fala. O encanto que dá nome ao morro atravessa tudo que ali há e de maneira surreal a tudo atinge. Cada coisa em seu devido canto estaria de alguma forma encantada. Identificam-se claSumário

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ramente aliterações de “n”, “m”e “c” no último verso e assonâncias de “e” e “o”. O segundo quarteto é denso e tem como tema o tempo. O eu lírico conta os segundos do lento passar do tempo na eternidade. A estrofe continua com a imagem de Nossa Senhora de Fátima lançando seu manto sedento de misericórdia. Possui aliterações de “s” e assonâncias de “o”, “a” e das nasais “un” e “em”. “O passado como objeto de narração pertence à memória. O passado como tema do lírico é um tesouro de recordação”. (STAIGER, 1975, p. 55) Nessa terceira estrofe, encontramos justamente recordações do passado que já estão sendo apagadas pela passagem devastadora do tempo. O passar do tempo provoca o esquecimento do nome de alguém que parece ter sido importante para o eu lírico, porém as lembranças tanto auditivas quanto visuais já não existem mais, a lembrança “é tão antiga” que só restou o sentimento. Para terminar o soneto, Bandeira como em tantos outros poemas, “Testamento” e “A morte absoluta”, por exemplo, é tomado pelo tema da morte. Com tanto tempo vivido, só falta a morte chegar. Embora ela não tenha chegado, o eu lírico afirma, surpreendentemente, que já morreu. Em seguida, apresenta um final inesperado, afirmando que na realidade já morreu, pois já não é mais o mesmo, o tempo o teria matado.

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Quartos vazios a.QUARTO VAZIO1 Gatinho branco e cinzento Fica mais um pouco no quarto A noite está tão escura lá fora E o silêncio pesa Esta noite tenho medo do escuro Gatinho irmão do silêncio Fica mais um pouco Fica junto a mim Gatinho branco e cinzento Gatinho A noite pesa Não há borboletas da noite Por onde andarão esses animais? As moscas dormem em cima do fio de eletricidade Eu estou demasiado só vivo (ou vivendo?) neste quarto Gatinho irmão do silêncio Fica ao meu lado Porque eu preciso sentir a vida junto de mim E és tu que fazes com que o quarto não esteja vazio Gatinho branco e cinzento Fica no quarto Acordado minucioso e lúcido Gatinho branco e cinzento Gatinho

Tradução que se encontra no site Literatura e Gramática, organizado por Lu Cunha http://www.literatura.pro.br/ libertinagem.htm 1

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b.QUARTO VAZIO2 Gatinho branco e cinzento Fica ainda no quarto A noite está fria lá fora E o silêncio pesa Eu tenho medo da noite Gatinho irmão do silêncio Fica ainda Fica comigo Gatinho branco e cinzento Gatinho A noite pesa Não têm borboletas na noite Onde estão esses insetos agora? Os mosquitos dormem sobre o fio da eletricidade Eu estou me sentindo muito sozinho neste quarto Gatinho irmão do silêncio Fica ao meu lado Que é preciso que eu sinta vida perto de mim E é você que faz com que este quarto não esteja vazio Gatinho branco e cinzento Fica ainda no quarto Acordado minucioso e lúcido Gatinho branco e cinzento Gatinho

2Tradução

de Nina Rizzi que se encontra no site Revista Bula http://acervo.revistabula.com/posts/traducao/duas-traducoesineditas-de-manuel-bandeira.

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c. QUARTO VAZIO3 Gatinho branco e cinza Fique ainda dentro do quarto A noite é tão escura lá fora E o silêncio está pesado Esta noite tenho medo da escuridão Gatinho irmão do silêncio Fique ainda Fique perto de mim Gatinho branco e cinza Gatinho A noite está pesada Não há mariposas Onde estão esses bichos então? As moscas dormem sobre o fio elétrico Eu estou tão só vivendo neste quarto Gatinho irmão do silêncio Fique ao meu lado Pois preciso sentir a vida perto de mim E é você que torna este quarto “não vazio” Gatinho branco e cinza Fique dentro do quarto Acordado minucioso e lúcido Gatinho branco e cinza Gatinho

A análise das traduções apresentadas neste trabalho parte da ideia de tradução como trabalho criativo, como observa Paulo Henriques Britto no seu livro A tradução literária. Para ele, “Traduzir – principalmente traduzir um texto de valor literário – nada tem de mecânico: é um trabalho criativo” (2012, p. 18). Entendemos, no entanto, assim como Britto

3Tradução

nossa sem caráter poético.

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(2012, p. 33) que “tradução literária e criação literária não são a mesma coisa”. Como se pode notar, o título do poema é o mesmo nas três traduções. Porém, já no primeiro verso, a escolha do adjetivo indicando a cor não foi a mesma, o que era “cinza” virou “cinzento”. Curiosa essa diferença na escolha do adjetivo porque nesse caso o “cinza”, por ser uma palavra transparente nas duas línguas, me parecia ser a possibilidade mais provável correspondente em português do Brasil (em Portugal, a cor é chamada cinzento),até porque existe em francês a palavra grisâtre que poderia ser cinzento, grisalho, acinzentado. O sufixo ento, como afirma Rodrigues4, é “somado quase sempre a bases pejorativas”; ele “deriva palavras que designam indivíduos ou coisas que suscitam rejeição, ou indivíduos cujo comportamento é socialmente estigmatizado”. O verbo ficar difere quanto ao modo e a pessoa (tu e você) em quatro versos nas três traduções. No segundo e no sétimo versos da primeira estrofe – Fica mais um pouco no quarto/ Fica ainda no quarto / Fique ainda dentro do quarto/ Fica mais um pouco / Fica ainda / Fique ainda /– e no sétimo e no décimo primeiro versos da segunda estrofe –Fica ao meu lado / Fica ao meu lado / Fique ao meu lado / Fica no quarto / Fica ainda no quarto / Fique dentro do quarto. A escolha do subjuntivo “fique” passa, nesse trecho, a ideia de súplica, enquanto que o uso do imperativo “fica” torna o pedido uma ordem. Talvez a escolha de “você” em detrimento do “tu”, possa ser explicada pelo caráter não-poético da tradução feita por mim. Outra diferença na escolha verbal é a do verbo être no terceiro verso da primeira estrofe – La nuit est si noiredehors. A escolha tradutória nesse verso não foi fácil para mim, uma 4No

artigo O pejorativo na sufixação proposta descritivo-pedagógica para o português L2. In último acesso em 30.05.2013.

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vez que o verbo être pode ser tanto o verbo estar quanto o verbo ser em português. Após longa hesitação entre a ideia de a noite ser escura lá fora e a noite estar escura lá fora, optei pelo sentido permanente do verbo ser. Com essa escolha o verso traduzido passa para o leitor o caráter de escuridão permanente das noites. As noites são sempre escuras para o eu lírico. Já a escolha do verbo estar, opção de Lu Cunha e de Nina Rizzi, deixa o leitor consciente de que naquela noite especificamente está escuro, mas que talvez em outras não seja assim. Ainda nesse terceiro verso, é interessante comentar a escolha tradutória de Rizzi, ela troca a escuridão da noite pela frieza da noite. O silêncio pesa também foi uma possibilidade aventada na minha tradução e seria, com certeza, uma linguagem mais poética do que a escolha que fiz: o silêncio está pesado. No entanto, optei pela expressão mais corrente da língua. Nesse mesmo sentido, foi feita a escolha do primeiro verso da segunda estrofe: A noite pesa e A noite está pesada. É importante observar aqui a homogeneidade das escolhas tradutórias. As três traduções mantêm o mesmo estilo nas duas estrofes. As traduções existentes nos sites, Literatura e Gramática e Revista Bula é silêncio pesa logo, também é noite pesa. Como optei por silêncio está pesado, consequentemente, optei por noite (também) está pesada. Nas traduções de Lu Cunha e na minha própria, no quinto verso da primeira estrofe há manutenção do demonstrativo esta do poema fonte: Cesoirjecrainslanuit / Esta noite tenho medo do escuro / Esta noite tenho medo da escuridão. A diferença está no final do verso. Decidi fazer uso do substantivo escuro no aumentativo, ou seja, de escuridão porque, nesse caso, o aumentativo expressa mais intensidade do fenômeno. Cabe observar ainda que nas três traduções o verbo craindre não foi traduzido por temer, que seria uma ótima escolha, mas pela forma mais coloquial ter medo. Esta noite temo a escuridão seria provavelmente uma escolha mais poética do que a Sumário

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escolha que foi feita, Esta noite tenho medo da escuridão. Já na tradução de Nina Rizzi, não aparece o demonstrativo esta nem há acréscimo de substantivo para expressar a ideia de escuro/escuridão. Esta tradutora opta pela economia de palavras Eu tenho medo da noite legando ao leitor a associação entre noite e escuro, também existente na língua francesa. Mariposas ou borboletas noturnas? Uma vez que em português temos um vocábulo específico para borboletas de hábitos noturnos, depois de alguma dúvida, o escolhi tão simplesmente pela questão da “economia de palavras” e pela sua clareza. Meu objetivo era passar a mensagem e não repetir as escolhas vocabulares do texto fonte. Nesse mesmo sentido, optei porfio elétrico e não porfio de eletricidade, que é a tradução literal do poema fonte.Quanto a Lu Cunha, ela decide pela tradução literal, Il n’y a pas de papillons de nuit / Nãoháborboletas da noite. Escolhadistinta fez Nina Rizzi, a tradutora cria a imagem de borboletas na noite em detrimento de borboletas da noite. No terceiro e quarto versos da segundaestrofe, a tradutora Rizzi toma certa liberdade tradutória e traduz animal porinseto e moscaspor mosquitos. As outras duas tradutoras optam pela literariedade. A tradução existente no site Literatura e Gramática do quinto verso da segunda estrofe – Eu estou demasiado só vivo (ou vivendo?) neste quarto traz duas opções para o leitor através de dois tempos verbais, ou seja, – Eu estou demasiado só vivo neste quarto e – Eu estou demasiado só vivendo neste quarto. Nina Rizzi escolhe uma fórmula bem coloquial, Eu estou me sentindo muito sozinho neste quarto, aproximando dessa maneira o eu lírico do leitor. Porque, que e pois introduzem as três traduções do oitavo verso da segunda estrofe. No original, a escolha da conjunção car guiou a escolha do pois. Como o pourquoi francês não foi escolhido, achei por bem não empregá-lo em português. Lu Cunha escolhe uma construção verbal no presente Sumário

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Porque eu preciso sentir, enquanto que Nina Rizzi mantém a estrutura do poema fonte com o subjuntivo, Que é preciso que eu sinta. Para Paulo Henriques Britto (2012, p. 145) “Toda tradução é obrigada a alterar o original, mas idealmente essas alterações deverão ser discretas, de modo a não descaracterizar aspectos importantes do poema.” Nas três traduções aqui comentadas, pode-se afirmar que os aspectos importantes do poema não foram descaracterizados, inclusive no que diz respeito ao número de versos e à estrutura do poema. Há manutenção da forma do poema fonte nas três traduções. Considerações Finais Primeiramente este artigo se propôs a analisar dois poemas de Manuel Bandeira, “Chambre vide” e “Noturno do morro do Encanto”,assim como o tema da solidão noturna comum aos dois escritos. Pudemos observar que, neles, Bandeira usa da sua experiência da solidão profunda para alimentar sua poesia.Ambos são poemas noturnos e tanto num quanto no outro o eu lírico está só, dentro de um quarto. Como vimos, “Chambre vide” data de 1925.Nele, o eu lírico está no quarto com o gatinho branco e cinza (ou,como está nas outras traduções, branco e cinzento) e sofre com a noite pesada, onde nem os bichos noturnos, como as mariposas, existem. Há um pedido insistente por parte do eu lírico para que o animal permaneça ao seu lado; ele quer sentir a vida. Apesar de escrito 28 anos mais tarde, emNoturno do morro do Encanto, o poeta continua com o tema de solidão que o acompanha. Em seguida foi feita uma tradução, para o português, do poema “Chambre vide”. Esta tradução foi confrontada com outras duas traduções desse poema, encontrada no site Sumário

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Literatura e Gramática, organizado, segundo consta, por Lu Cunha e a outra de Nina Rizzi postada no site Bula Revista. Por fim, ao cotejar as três traduções e analisar as escolhas tradutórias ali efetuadas, pode-se afirmar que, embora subjetivas e, consequentemente, diferentes, as três traduções apresentam escolhas lexicais coerentes. Essas traduções em português do Brasil, fizeram vir a tona três Quartos vazios,ao mesmo tempo correspondentes e diferentes da Chambre vide de Manuel Bandeira.

REFERÊNCIAS ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. ___________________. O humilde cotidiano de Manuel Bandeira. In: Schwarz, Roberto. Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983. BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1974. BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. RODRIGUES, Bruno de Andrade. O pejorativo na sufixação proposta descritivo-pedagógica para o português L2. In http://www.filologia.org.br/xcnlf/4/11.htm acesso em 08.08.2011. STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Trad. Celeste A. Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

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Araken G. Barbosa Antes de dar início a essa exposição que aborda um tema bastante discutido no meio acadêmico que é o Dialogismo, gostaria de me posicionar e esclarecer que não pretendo me ater a questionamentos improdutivos sobre a legitimidade da obra de Bakhtin. Não desejo apoiar Bronckart e Bota que questionaram “Os Problemas da Obra de Dostoiévsky” onde conceitos-chave parecem ter sido apropriados indevidamente e Bakhtin é finalmente desmascarado. Assim a obra não seria mais bakhtiniana e passaria a ser volochnovniana. Essas considerações para mim não são de maior interesse, apenas acredito ser importante destacar a ideia do entrelaçamento polifônico do discurso. Apesar de tudo, também acredito que seria interessante discutirmos um pouco sobre a natureza do dialogismo. O que é? Do que trata? Mikhail Bakhtin o definiu como uma interação entre textos que ocorrem com a Polifonia. Escrito ou oral o texto não seria visto como algo isolado. Correlacionar-se-ia com outros discursos aproximados ou similares. Bakhtin também expressava a ideia de que os enunciados não seriam diferentes entre si. Uns conheceriam os outros e se refletiriam mutuamente. Para ele, cada enunciado seria pleno de ecos e ressonâncias de outros possíveis enunciados com os quais estaria ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva

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e deveria ser visto como uma resposta, uma réplica aos enunciados precedentes de um determinado campo. Essa resposta seria a réplica, a tensão ao ‘dito’, numa forma argumentativa de rejeição, confirmação, persuasão, complementação etc. Tomando como base esses enunciados precedentes, os subentenderia como conhecidos, familiares e de certa maneira os levaria em conta. Isso me fez refletir e me leva a considerar o fato de que: Toda comunicação implica um diálogo cujos enunciados refletem uma grande diversidade de pressupostos que reverberam entre si. É preciso entender que tanto na oralidade, quanto na escrita, nossos dizeres fazem referência a algo já mencionado por outrem. Dessa forma, fazemos alusão a um filme, a uma obra de arte, a um provérbio, a um pensamento célebre, a um poema, a um fato ocorrido, enfim, a muitas outras circunstâncias. Assim sendo, podemos constatar o que ocorre com os textos, pois mediante toda diversidade e entrelaçamento de ideias, elas se juntam, condensam-se e se materializam como enunciados de forma plena. A título de exemplo, basta analisarmos as palavras de João Cabral de Melo Neto, cujo poema “Tecendo a manhã” representa a metáfora da intertextualidade, exatamente quando ele nos revela: Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos.

É, sem dúvida, alguma nosso diálogo com um interlocutor, um leitor ou com uma audiência. É nossa prática verbal mediada por gêneros textuais ou tipos de discurso. Podem ser formais ou informais, simples ou complexos. Essa prática implica a relação entre os participantes que se dá em uma fluidez contínua, seja verbal, oral/escrita eivada de significados.

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Trata-se de respostas ao que foi dito anteriormente que encadeia outras produções, outros enunciados, outras respostas verbais por meio da língua. Esse pensamento também nos transporta para o conceito de Polifonia. O conceito de Polifonia (Ducrot) está diretamente ligado ao de heterogeneidade, já que os dois distinguem entre o ‘eu’ e o ‘outro’. Dentro da polifonia existe a noção de vozes enunciativasque podem estar representadas no discurso de outro enunciador. O locutor pode assim representar no seu próprio enunciado, posições diversas da sua. Podemos perceber como o sujeito não está, nem se estabelece sozinho no mundo, toda enunciação retoma outros dizeres, o eu sempre se constitui em relação ao não-eu. Em linguística, polifonia é, segundo Mikhail Bakhtin a presença de outros textos dentro de um texto, causada pela inserção do autor num contexto que já inclui previamente textos anteriores que lhe inspiram ou influenciam. Acredito que o tradutor tem a obrigação de identificar essa diversidade textual e investigá-la antes de processar seu texto de chegada. Apolifonia é um fenômeno também identificado por Authier-Révuz (2004), como heterogeneidade enunciativa, que pode ser mostrada (no caso de citações de outros autores em obras acadêmicas, por exemplo) ou constitutiva (como a influência de dramaturgos clássicos em Shakespeare, que não é mencionada diretamente, mas transparecida). O uso das aspas no texto escrito é entendido por Maingueneau (1997) como a demarcação daquilo que pertence a certa formação discursiva do eu, daquilo que é exterior a ela. As enunciações aspadas são “[...] sintagmas atribuídos a um outro espaço enunciativo e cuja responsabilidade o locutor não quer assumir” (MAINGUENEAU, 1997, p.90).

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Pela classificação de Authier-Révuz essa é uma forma de heterogeneidade enunciativa marcada e mostrada. Bakhtin usa o conceito depolifonia para definir a forma de um tipo de romance que se contrapõe ao romance monofônico. Os textos que serviram de base às suas reflexões acerca desta temática são os de Fiodor Dostoievski. Romance polifônico é aquele em que cada personagem funciona como um ser autônomo com visão de mundo, voz e posição própria no mundo. A Polifonia está relacionada com a Heteroglossia, que é a tradução de raznorecie que significa a diversidade social de tipos de linguagens. Essa diversidade é produzida por forças sociais tais como profissão, gêneros discursivos, tendências particulares e personalidades individuais (subjetivismo). Isso é um fato inalterável e inegável porque o homem é um ser social. E para não perdermos a linha de raciocínio, lembremos que o tradutor também materializa suas ideias através de ações interpretativas em uma contínua atribuição de sentidos ao texto de chegada. Esse processo contínuo de atribuição de sentidos, possivelmente possui uma estreita relação com o processo dialógico. Bakhtin (2004) criticou as ideias de Wilhelm Dilthey, porque constituíra um sistema em que o psiquismo teria primazia sobre o Universo da Cultura. Eu prefiro dizer que é a Consciência que tem essa primazia sobre os fenômenos naturais e psíquicos. Embora não esteja levando em conta a expressão de uma Consciência Coletiva. Existem, como sabemos, estudos freudianos sobre o Inconsciente Coletivo. Mas, esse não é nosso caso e não nos interessa particularmente nesse contexto. O universo da cultura é percebido por Dilthey como expressão e materialização de consciências individuais (sem considerar a dimensão social). Por isso, para ele, a compreensão das ações dos outros não passaria de um processo de empatia psicológica. Sumário

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Nós teríamos mesmo condições de compreender o universo alheio com nosso subjetivismo? Será que minha compreensão poderá vibrar no mesmo diapasão conceitual que o de meu(s) interlocutor(es)? Ora, Bakhtin pensava de forma totalmente contrária a Dilthey asseverando que o universo da cultura tem primazia sobre a consciência individual. Isso é uma perspectiva semiótica constituídadialogicamente já que o signo também é antes de tudo um construto social. Às vezes questiono a mim mesmo se esse construto social, esse universo cultural para ser compreendido necessitaria de algo como a ‘egossemelhança’. Nos remetendo novamente ao pensamento de Dilthey de empatia psicológica. Assumiria uma forma semelhante a um ‘fractal geométrico’ com proporções vastíssimas. Nesse caso, tal construto social se manifestaria com ‘autossimilaridade’ – semelhança exata ou aproximada a uma parte de mim mesmo. Meu discurso é estruturado muito mais sobre tópicos com os quais simpatizo do que com aqueles que me desagradam. Elaborando praticamente uma reenunciação parafrástica, diria que o universo da cultura, o que chamo de Megatexto Sociohistórico se compara a um fractal e suas partes menores seriam os indivíduos. Cada consciência individual ao encarar as tensões e desafios provocados pelo discurso ‘já dito’, ou aprova ou desaprova o mesmo. A egossemelhança seria identificada com algo similar à consciência do sujeito, enquanto indivíduo. Nesse caso existirá aprovação ou desaprovação da ideia manifestada através de discursos previamente enunciados. Para entendermos melhor, o signo no contexto histórico e dinâmico da comunicação vai se manifestando semioticamente, produzindo texto numa ação dialógica contínua –

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como réplica ao já dito e, possibilitando a previsão de significados do vir a ser de um infinito diálogo. Às vezes querendo replicar um discurso “x” para uma dada situação, nós elaboramos toda uma resposta da noite para o dia e na manhã seguinte ainda estamos regurgitando esse conteúdo baseado no já dito que que talvez não tenhamos gostado ou que tenhamos apreciado bastante. Só em dado momento essa resposta, esse novo discurso poderá ser enunciado, ou não. Em contrapartida, não podemos de forma alguma descartar a influência do idioleto (a consciência individual) que se opõe aos socioletos para firmar-se como geradora de significados e de compreensão. Eu relaciono essa ideia ao processo tradutório onde o tradutor como indivíduo também é gerador de significados e um agente de mudanças socioculturais manifestadas nos textos de chegada elaborados com certa intencionalidade. O famoso Iuri Lotman imaginava o conjunto de textos e línguas em interação recíproca, como um sistema, e o chamava "semiosfera". Uma das principais qualidades deste sistema seria sua capacidade de delimitação. A semiosfera estaria confinada a um espaço circundante, que poderia ser extra semiótico (onde não se produziriam processos de significação, como um espaço natural) ou hetero semiótico (que pertenceria a outro sistema semiótico, como, por exemplo, um texto musical frente a um texto pictórico). Tal como acontece no mundo geográfico, seria a noção de "fronteira" que reclamaria o conceito de "tradução". Onde não há fronteiras, não há necessidade de tradução: E por falar em fronteiras, em meu livro Tradução: Fronteiras do Sentido na Linguagem eu considero a relevância intercultural do parafrasear e seu potencial criativo no processo tradutório. Desde que a finalidade de toda comunicação é a compreensão de um texto por parte do receptor, a paráfrase pode entrar nesse contexto com seu potencial Sumário

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altamente criativo, esclarecedor e tradutor de mensagens textuais. Esse seu papel facilitador possibilita o acesso ao âmago das mensagens, imprescindível para a revelação de significados. Levando em consideração que a maior parte das traduções são na forma escrita, o texto como fenômeno cultural e transcultural nos remete para aquém e além das informações objetivas consubstanciando-se através das formas categoriais. Dessa maneira, possibilita-nos constantemente a participar de sua elaboração através de nossa percepção racional. Ao contrário do que realmente se pensa, compreender não é um ato solitário, passivo, é uma ação replicante, uma tomada de posição, uma reflexão constante diante de um determinado texto. O indivíduo vivencia atividades cognitivas em seu espaço-tempo interior (seu diálogo interno) que presume poder partilhar com uma audiência ou com leitores ideais. Isso fica bem claro que se trata de uma ação dialógica. Em minha tese de Doutorado intitulada: A Paráfrase como Proposta Linguístico-Pedagógica no Ensino de Línguas – UFPE, Recife. 2005, abordei dois tópicos relacionados ao processo tradutório – “Paráfrase, espaços mentais e fusão de conceitos” – onde foi discutido o processo cognitivo de produção de sentido. A paráfrase é analisada através de um de seus aspectos mais importantes que é a ‘intencionalidade’. Mais adiante discutiremos com um pouco mais de detalhes os espaços mentais e a fusão de conceitos. O segundo tópico foi A Paráfrase no Processo Tradutório – Onde argumentei que o processo tradutório não se limita à comunicação entre usuários de diferentes idiomas. Uma língua materna qualquer pode apresentar expressões desconhecidas ou de baixa frequência entre seus usuários

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motivando uma necessidade de reestruturação semântica para que sejam devidamente compreendidas. As variantes linguísticas e registros diferentes que podem levar seus usuários a representar suas ideias de formas diversificadas compelem-nos a usar a paráfrase como estratégia para a compreensão de enunciados polissêmicos, que pareçam incoerentes ou ininteligíveis. Em se falando de variantes, quero também mencionar um capítulo de outra obra minha, intitulado Ensino de Línguas e Diversidade Dialética, que consta do livro Tópicos de Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas, da Editora Libertas Recife 2010. Tal artigo trata basicamente da subpadronização da língua inglesa. Durante muito tempo, considerou-se o inglês não padronizado como uma cópia incorreta do padronizado. Os países falantes de língua inglesa começaram a preocuparse com esse assunto tendo em vista os terríveis problemas educacionais dos ‘guetos urbanos’. É verdade que o papel fundamental da escola é ensinar leitura e escrita da forma padronizada da língua, mas ninguém pode negar a diversidade dialética e frequentemente certos autores inserem em seus trabalhos textos com excertos que apresentam variações dialetais. Devemos contemplar essas variantes não como objetos isolados, mas como uma parte integral de uma estrutura sociolinguística mais ampla de uma dada língua. A polissemia, por exemplo, pode nos levar a um raciocínio mais elaborado a fim de que possamos identificar os termos no contexto em que se inserem. A fidelidade na tradução exige que a informação seja bastante explícita e precisa para se evitar a manifestação de incoerência tradutória. Os significados primários e secundários de uma palavra não causam muitos problemas na tradução, entretanto, as figuras de linguagem, elementos de natureza retóSumário

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rica, podem tornar o processo tradutório um pouco complicado. A metonímia com sua contiguidade semântica, suas relações associativas nas quais substituem-se alguns termos por outros, pode tanto quanto a sinédoque (do grego= entendimento simultâneo) constituir um desafio para uma tradução mais precisa. Na pars pro toto ou totum pro parte: Ex: Ficaram sem teto. (Sem a casa inteira) Adoro Danone: (marca pelo produto) Leio Vygotsky e ouço Chico Buarque (Autor pela obra)

Em se tratando do processo tradutório, seja em traduções textuais, interpretações em tempo simultâneo, ou no processo de ensino/aprendizado de línguas, inelutavelmente a intencionalidade estará liderando o processo cognitivo de ‘tradução mental’. Trata-se de uma das formas mais conhecidas de se produzir sentido. São constantes nesse processo as circunstâncias em que se lança mão de opções semânticas para as questões de transferência de sentido dos textos de partida para os textos de chegada. A meu ver, a produção de sentido relaciona-se com o pensamento de Fauconnier que trata de estruturas conceituais e linguagem. Aborda os processos de representação e deixanos entrever as possibilidades de se intervir na sociedade através da linguagem e da imaginação. Sua teoria nos esclarece que podemos atuar em interface com os outros num processo claramente dialógico negociando sentidos através de reestruturações semânticas. O espaço mental é uma das habilidades humanas de se construir o conhecimento. A cognição para Fauconnier origina-se na sociedade graças ao uso da linguagem. Ali é

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que se estabelecem, portanto, as “fusões de espaços mentais”. Ainda em minha tese acima citada, cunhei um termo que passei a chamar de núcleo conceitual cultural (NCC) relacionado aos espaços mentais. Mais adiante decidi alterálo e em um artigo recém publicado na obra organizada por Maria José Matos Luna e Vera Moura, sobre leitura e produção de texto, intitulado: A Retextualização e as metáforas na Criação de Significados onde apresentei um breve panorama sobre aspectos da Tradução Intralinguística e da Reformulação Textual, marcado por perspectivas que nos remetem às interações sociocomunicativas. Passei, então, a reformular o termo chamando-o Domínio Conceitual Nuclear (DCN) procurando descrever os valores de elementos que ajudam a classificar, interpretar, explicar e criar significados. E, nesse cenário de comunicação, vale a pena abordar alguns aspectos da comunicação humana através da interpretação intralinguística implicando a reformulação textual que direta ou indiretamente relaciona-se com as metáforas, cognição humana e memória (consciência). Tudo isso está possivelmente contido no processo tradutório. Para mim, a tradução se debruça sobre a significação e por isso deve trabalhar com a compreensão e não com a explicação como faz a maioria das ciências. A compreensão contempla o significado que de certa forma é o efeito de uma interação sociocultural e ao mesmo tempo linguística. Isso requer uma dimensão de pluralidade semântica. Ora, Significação e compreensão são partes fundamentais do processo cognitivo. A cognição, em termos mais simples, é o processo que passa o pensamento para chegar ao conhecimento ou compreensão de algo. Disciplinas relacionadas com a ciência da cognição e psicologia diversificam bastante o uso desse termo. Sumário

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Às vezes encontramos a expressão “processamento da informação”, outras vezes encontramos “funções psicológicas” etc. Assim, voltamos a um aspecto que não pode deixar de ser mencionado que é a interpretação intralinguística. O resultado desse processo é sem dúvida alguma a reenunciação parafrástica adequando-se ao contexto sociohistórico, seguindo padrões idiossincráticos cuja relatividade dependerá da ênfase dada por cada participante do processo dialógico. Smole (1999) sustenta a ideia de que a comunicação define a situação que dará sentido à troca de mensagens transcendendo a transmissão de ideias e fatos quando oferece novas formas de interpretar essas ideias, de pensar e relacionar as informações recebidas, de modo a construir novos significados. Dessa forma, concluímos que a utilização de reformulações parafrásticas em contextos diversificados não impede sua participação em um grande diálogo (cronotópico) com pontos de vista, enunciações diversificadas de sujeitos em tempo e espaço distintos. Nessas concepções parafrásticas existe uma dialética onde prevalece uma dinâmica de troca, de mudança muito mais que de síntese. Aí encaixa-se o passado, o “dito”, o presente, representado pela tensão gerada perante a heterogeneidade de ideias que se apresentam e o futuro, a antecipação de um possível diálogo com a alteridade. À medida que se faz a interpretação de um texto, um parágrafo ou simples frases, o leitor/tradutor poderá atribuir-lhes sentidos diversificados, orientado por sua própria capacidade de focalização para chegar até o núcleo de sua intenção comunicativa. Ao representarmos algo em um processo tradutório estamos invariavelmente cocriando, “agindo” e de certo modo sendo agentes modificadores responsáveis pela consSumário

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trução de um contexto sociohistórico. É nossa intencionalidade que molda nosso discurso. A língua é dinamismo, uma forma de ação e sua flexibilidade é uma propriedade inerente. Os enunciados são construções plásticas partilhadas na interação social. Desde que essa interação se manifesta através de textos, a primazia da compreensão nos incentiva a empregar enunciados que possuam alto grau de ressonância na significação. A compreensão nos ajuda a modelar o mundo. É uma compatibilização de modelos produzidos por nós mesmos com os modelos já instituídos ou convencionalizados. O tradutor é de certa maneira um coautor consciente/inconsciente daquilo que denominei Megatexto Sociohistórico. Minha convicção de que realmente a paráfrase é um elemento imprescindível no processo tradutório está relacionada ao fato de que, através de frases equivalentes, variantes de um mesmo padrão sintático-semântico contextualizado, consegue-se delinear com relativa nitidez o sentido de conceito cultural nuclear como uma unidade analítica de criação de significados inserida no ambiente comum da interação comunicativa. E, para concluir, desejo deixar uma sugestão – e um desafio aos tradutores e professores que se utilizam-se de atividades comunicativas em seus propósitos pedagógicos – que utilizem a paráfrase com mais frequência para que esse processo se manifeste com maior índice de criatividade em diferentes níveis de compreensão e produção linguística.

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REFERÊNCIAS AUTHIER-REVUZ, J. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. BAKHTIN, M. Dialogical imagination. 15ª ed. Austin: University of Texas Press, 2004. BARBOSA, A.G. A Paráfrase como Proposta Linguístico-Pedagógica no Ensino de Línguas. UFPE, Recife. 2005 ______. Tópicos de Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas. Editora Libertas Recife 2010. ______. Tradução – Fronteiras do Sentido na Linguagem Editora Livro Rápido – Elógica, 2013. FAUCONNIER, Gilles. Mental Spaces. Aspects of meaning construction in Natural Languages. Cambridge. Mass: MIT Press, 1994. MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas: 1997. SMOLE, Kátia C.S. – A matemática na Educação Infantil. In: Múltiplas inteligências na Prática Escolar. Cadernos da TV escola. MEC/Secret. Da Educação à Distância. 1999.

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Artur Almeida de Ataide

Funes tradutor: alguma teoria As conclusões da filologia acerca, por exemplo, de qual o sentido preciso desta ou daquela palavra em certo verso de Racine, conclusões essas baseadas numa análise científica, auxiliada por textos e dicionários da época, constituiriam apenas uma das muitas autoridades cedo desafiadas por Barthes; essas, no caso, já em “Crítica e verdade”, de 1966 (BARTHES, 2009 [1966], p. 185). Os protocolos científicos a que obedeceria um filólogo ao ler, sugere Barthes, não lhe garantiriam uma leitura mais verdadeira, conforme a convicção do próprio filólogo, mas, apenas, não mais que uma leitura adequada a certos protocolos, tomados por ele mesmo e por seus pares – este, sim, o dado inegável – como parâmetros objetivos, científicos, suficientes para empurrar sua leitura um degrau acima na escada epistemológica, resguardadas que estariam contra os excessos, as idiossincrasias, as ingerências do subjetivismo interpretativo. Aquilo que para o filólogo seria um pretenso maior acordo seu com o texto, com o texto real, seria por Barthes entendido como um acordo, meramente, do meio filológico consigo mesmo a respeito do texto: um consenso que, não sem alguma patrulha – da qual terá sido vítima o próprio Barthes –, deverá ser imposto como universal às novas gerações de leitores, desencorajadas a jogar livremente o jogo da efetiva Sumário

44 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges geração de sentidos.Tal universal, portanto, “é apenas um particular a mais: é um universal de proprietários” (BARTHES, 2009 [1966], p. 201). Dois anos mais tarde, em “A morte do autor” (BARTHES, 2004 [1968], p. 57), Barthes dirá o mesmo, mas em relação a outra convicção tácita: a de que a leitura que um escritor, no próprio ato de escrita, faça em tempo real das palavras que ele mesmo grafa no papel deva ser a mais autorizada, a verdadeira, servindo de parâmetro e rédea a futuros excessos interpretativos, e mesmo correspondendo, por fim, àquilo que o texto, antes de qualquer coisa, é. Também nesse caso pareceria falar-se, ainda que em outros termos, de um significado intrínseco ao texto, como de um corpo em repouso eterno a ser exumado, como de um corpo essencial a ser despido do que não lhe pertencesse, do que não lhe fosse originário. Assim como para Platão o conhecimento estaria dividido entre uma ciência verdadeira e o mero opinar inconsistente dos não filósofos – a “ἐπιστήμη [epistḗmē]”, de um lado, e a “πίστις [pístis]” ou “δόξα [dóxa]”, de outro –, igualmente cindida estaria a leitura, entre o que se pode conhecer do texto, para além das circunstâncias mudáveis, e o que se fantasia sobre ele. Seja desautorizar como último o juízo do filólogo, seja matar o “Autor”, as insubordinações de Barthes, meras imposturas inconsequentes à primeira vista, teriam raiz em outra manobra teórica, de alcance maior. Remontariam elas, antes de tudo, à licença irrestrita que concede ao que chamará mais tarde, em “Escrever a leitura” (BARTHES, 2004 [1970], p. 26), de “uma lógica do símbolo”, sempre em ação quando tocado qualquer texto por qualquer olhar leitor. Essa “lógica”, diz Barthes, associa ao texto material (a cada uma de suas frases) outras ideias, outras imagens, outras significações. “O texto, apenas o texto”, dizem-nos, mas, apenas o texto,

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isso não existe: há imediatamente nesta novela, neste romance, neste poema que estou lendo, um suplemento de sentido de que nem o dicionário nem a gramática podem dar conta (BARTHES, 2004 [1970], p. 28).

O advérbio “imediatamente”, grifado no original, viria garantir: texto algum jamais será visto sozinho, em si mesmo; não haverá um momento inicial objetivo que anteceda a projeção fantasiosa do leitor e do seu mundo sobre o texto; nada neste, de anterior à leitura, de anterior ao cruzamento imprevisível de imagens, experiências e códigos culturais da memória que lê, persistiria intocado enquanto aquela acontece. A presente leitura do trecho citado acima, por exemplo, não poderia querer-se nunca como repetição, como descrição neutra do mesmo que terá dito Barthes: há uma leitura de intermédio, uma nova produção de sentidos incancelável; e essa leitura – esta leitura –, por mais que aponte para o grifo de uma palavra “no original”, buscando um apoio objetivo para sua interpretação, com atenção às receitas vigentes para o estabelecimento de objetividades convincentes, terá posto “imediatamente” a perder, de modo irremediável, o próprio Barthes-“Autor”, tão logo iniciada. Em toda leitura, pois, não haveria volta, repetição; não haveria exumação possível de um mesmo, mas apenas soterramentos sucessivos do que quer que se imagine ser o originário num texto, sempre eclipsado pelo espaço diferencial que a própria leitura, “imediatamente”, inauguraria. Daí é que decorreria: o que seja tomado como um dado objetivo em relação a algum texto, ou como um mesmo que perdura, não o será por obra de uma causalidade universal a-histórica, intersubjetivamente infalível, como engrenagem nunca exposta à fantasia associativo-fabular dos sucessivos e diversos leitores; mas o será por obra de uma operação fabular posterior conjunta, mediada por critérios e códigos particulares, contingenciais, que porventura formem a memória de certos Sumário

46 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges leitores. Não havendo, pois, um pretenso objeto que, permanecendo puro, condicione ou possa legitimar uma dada leitura, de certos tipos de leitura é que seriam derivados certos tipos depretenso objeto, tornados sempre, por um passe de mágica, ou por um passe de teoria, anteriores a seu próprio berço, antes contingencial e instável como o de toda leitura. Não seriam, nesse sentido, tão irrestritamente universais, substratos objetivos e últimos originários do texto, por exemplo, os límpidos paralelismos de estrutura que teóricos eslavos da primeira metade do século XX, amparados pela linguística estrutural de Saussure e comovidos com a arte do futurismo, nos ensinaram a estabelecer, a exemplo do novelo de simetrias e assimetrias que Jakobson expõe passo a passo, com disciplina incansável, em “‘Les chats’ de Charles Baudelaire” (JAKOBSON, 2002 [1962]). Ater-se à estrutura, às pretensas intenções do “Autor”, ou ao que digam os filólogos, não será, portanto, na leitura segundo Barthes, remontar ao essencial, assim como vestir não será jamais remontar ao nu. Quem mata o “Autor”, pois, é a leitura, e sua “lógica do símbolo”. Mais de duas décadas antes de Barthes desenvolver seu pensamento sobre a leitura, Jorge Luis Borges publicava, em 1939, “Pierre Menard, autor del Quijote”, em que se conta de como certa cadeia de vocábulos, se lida à luz do que terão sido os anos de 1600 – segundo, por exemplo, o que dizem os historiadores –, corresponderá a uma obra conhecida, publicada por Miguel de Cervantes em 1604, mas, se lida à luz dos anos de 1900, corresponderá a outra obra:o Quijote de Pierre Menard. Antes que o modelo de leitura teorizado por Barthes matasse o “Autor”, Menard, ao que parece, já haveria matado Cervantes: como todos os seus leitores o matariam ao lê-lo, ainda que em pleno exercício de um amor incondicional pelo próprio Cevantes, a exemplo de Menard, a exemplo de Borges.

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Se, no prólogo ao seu Elogio de la sombra, de 1969, o mesmo Borges enumeraria, em meio às “astúcias” que o tempo lhe terá ensinado, “evitar os sinônimos, que têm a desvantagem de sugerir diferenças imaginárias”, o caso aqui seria outro. Se radicais diferentes, ou diferentes conformações prosódicas (um acento proparoxítono, uma alternância peculiar de vogais, uma aliteração que evoque um verso de Cruz e Souza ou Castro Alves etc), ou mesmo diferentes valores afetivos, sedimentados pelo uso familiar de um ou outro termo, podem mesmo, em confronto com o “montón de espejos rotos” da memória, dispersar em direções até opostas o imaginário deste ou daquele leitor, a despeito da sinonímia anunciada pelos dicionários, as “diferencias imaginarias” que tornam outra a obra de Menard frente à de Cervantes, por outro lado, dão-se no confronto com palavras que seriam as mesmas, lidas apenas sob outras condições. O desafio ao senso comum, em se conceber que se trate de duas obras diferentes,o Quijote de Cervantes e o Quijote de Menard, é tão desconcertante quanto submeter-se ao mundo estranho de Ireneo Funes, de “Funes el memorioso”, de 1942, conto também incluído em Ficciones. Funes, personagem “quase incapaz de ideias gerais, platônicas”, não compartilharia do que lhe terá parecido uma dispensável metafísica cotidiana: aquela que faz supor sob “o cão das três e catorze (visto de perfil)” e “o cão das três e quinze (visto de frente)” um mesmo cão essencial que perdura. Assim como para Funes, em seu mundo infinitamente “multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente preciso”, seriam dois os cães, que para nós são o mesmo e único em dois momentos diversos, dois serão os Quijotes, o de Cervantes e o de Menard, que para nós são o mesmo e único Quijote em duas leituras diferentes.O particularismo radical de cada ato de leitura, afirmado pela teoria de Barthes, e reafirmado por sua prática virtuosisticamente dispersiva da leitura do texto literário, seria um golpe premeSumário

48 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges ditado contra toda tendência, na tradição de recepção de cada obra, à formação de consensos essencializados, tornados objetos perduráveis – na mesma medida, toda essência terá sido esquecida por Funes, embora não por opção. Com o auxílio dessa aproximação entre Barthes e Borges, ou entre Barthes e Funes, talvez se possa finalmente resumir: não apenas dois, enfim, mas inúmeros, se assim se quiser, serão os Quijotes, tantos quantos serão seus leitores, gerando cada um, a cada vez que reparta nas mãos a massa de suas tantas páginas, a sua torrente pessoal de “diferencias imaginarias”, que enterram Cervantes à medida que, de algum modo, um modo inconfessado, o perpetuam. Mas isso, claro, sempre no mundo “multiforme, instantâneo e quase intoleravelmente preciso” de Roland Barthes. Sob semelhante regime ético de leitura, ler, querendose ou não, será sempre matar o “Autor”; será sempre, inescapavelmente, soterrar o originário – a despeito das ilusões de regresso ao objeto, qualquer que ele seja, infundidas por tal ou qual método científico. Proceder à leitura de um texto, forjar em seguida um segundo texto que,com base em não se sabe quais critérios, e mesmo escrito noutra língua, àquele primeiro se assemelhe, e, por fim, publicá-lo como seu duplo noutra cultura: por muito menos que isso, o filólogo e o estruturalista terão sido cassados. Que seria então do tradutor, sob esse mesmo regime ético, com um crime tão mais qualificado de pretensão à identidade com o originário? Como um texto que não terá como negar algum comércio, sempre, com alguma anterioridade, fantasma que ronda a sua recepção, a tradução pareceria precipitar-se, de fato, num ambiente hostil; sabe ela imiscuído, nas leituras que gera, e mesmo nos mais heterodoxos novelos de “diferencias imaginarias” que perpetrem seus leitores, o germe de uma difusa nostalgia platônica, memória incriminatória de um original admirado. É então que o tradutor, em defesa Sumário

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de si mesmo e do seu ofício, vem acrescer a já grande lista de paradoxos sob a guarda de Funes, e, no interior mesmo do espaço diferencial instaurado com a leitura, vem ele propor que, paralelamente às “diferencias imaginarias”, e talvez por algum amor à simetria, admita-se a blasfemia y lainfamia, nada inconsequentes, de uma identidad imaginaria: a possibilidade de uma identidade, entre tradução e traduzido, que se saberá articulada não sob o signo da objetividade, e alicerçada sobre os pretensos universais do texto traduzido, a serem exumados e repetidos por seu ato de tradução, mas sob o signo de uma memória contingencial, particular, situada, que, em seu lugar e em seu tempo, lê, sabendo que é soterramento a sua leitura. O tradutor, desse modo, entraria em choque com Funes, num primeiro momento, ao se ver propondo identidades com um original; com Funes, no entanto, reconciliar-seia de novo logo em seguida, ao dizer serem elas, todas elas, imaginárias, meros sonhos de uma leitura, leitura que funda, ela mesma, o original que traduz. Se a leitura, a leitura segundo Barthes, mata o “Autor” aniquilando sua presença, vendo-se egoística e orgiasticamente a sós o leitor e a página, numa geração anônima de outros e outros mundos, a tradução o mataria, ao “Autor”,ao afirmá-lo como indefinidamente múltiplo, num ato de confusa destruição e reafirmação de sua autoria, segundo a lombada dos livros testemunha, nas seções de literatura estrangeiradas livrarias, das bibliotecas. Em decorrência desse mesmo paradoxo autoral é que dirá Manuel Bandeira, sobre uma tradução de Onestaldo de Pennafort para as Festas galantes, de Verlaine: “‘Isto é Verlaine!’ e, ao mesmo tempo: ‘Isto é Onestaldo!’” (VERLAINE, 1983, [orelhas]).Também Augusto de Campos, introduzindo suas traduções de Dante, fala no “meu Dante” (CAMPOS, 2003, p. 184). O tradutor, que lê, mataria, sim, o “Autor”, mas o faria, quem diria, para criá-lo: nos termos, agora, de uma efígie desautorizada, que não subsistirá senão como soma incôngrua e móvel das Sumário

50 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges identidades imaginarias que se multiplicam, indefinidamente, a seu pretexto; objetos que se sabem, apenas, pretensos.

A forma eterna A expressão utilizada por Augusto de Campos – “meu Dante” – seria apenas um dos sinais de sua consciência sobre a condição situada, particular, de sua leitura da obra de Dante; sua tradução, aliás, não hesitaria entre a ousadia inventiva, de um lado, desde que poeticamente à altura do seu Dante, e a nem sempre poética “reverência acadêmica ao texto” (CAMPOS, 2003, p. 184), do outro. Essa atitude potencialmente subversora das objetividades filológicas, ou esse aparente reconhecimento – “meu Dante” – da plasticidade possível às identidades imaginarias estabelecidas pela tradução, ou mesmo de sua irremediável condição de alteridade, conviveriam, no entanto, com uma espécie de contrapeso: o de que tenham sido “respeitadosos lineamentos semânticos e o arcabouço formal do poema” (CAMPOS, 2003, p. 184). Jorge Wanderley, ao traduzir a primeira “cantica” da Divina comédia, o “Inferno”, não terá feito diferente quanto a esse aspecto, ao listar, entre os seus objetivos, o de“manter o esquema métrico e rimário” (WANDERLEY, 2004, p. 48) do original. Haroldo de Campos também os terá acompanhado, ao buscar “produzir um texto isomórfico em relação à matriz dantesca” (CAMPOS, 1998, p. 67). A questão que surge diante dessas passagens, tão triviais, não diz respeito às opções de seguir à risca ou não os esquemas métricos e rimários de um poema, ao traduzi-lo. O caso seria que, embora todas as instabilidades interpretativas pareçam tacitamente possíveis na história de um texto, esses esquemas métricos ou rimários, de um modo que Funes dificilmente aceitaria, parecem permanecer, também tacitamente, como cristal incorruptível de sob o texto, iguais a si Sumário

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mesmos. A forma, em meio ao soterramento generalizado da leitura, pareceria permanecer intacta: enquanto uma torrente de “diferencias imaginarias” tornará tudo outro, parecerá que algum órgão universal do olhar simplesmente colhe, como objetiva, a forma incólume do poema, como a vê o estruturalista ou como a vê o tradutor “isomórfico”. Será esse um olhar que atravessa, aparentemente sem sofrer refração, os mais diferentes tempos históricos. É esse o mesmo acordo tácito que, diga-se de passagem, compareceria no seguinte trecho de Bosi, por exemplo, de O ser e o tempo da poesia: as interpretações de um grande texto diferem muito de uma geração para outra. Por quê? Certamente, o processo da consciência histórica e crítica dos leitores não é tão estável como a forma do poema. A consciência percorre vetores: avança, retrocede, sobe, desce, ou gira por espirais conforme o momento do processo social que o leitor ou o seu grupo está vivendo. Já o tempo da forma é mais denso, compacto, resistente, mais palpável e acessível ao trabalho da análise; duro, dura milênios. Podem se refazer, hoje, os esquemas métricos da Ilíada. Mas o tempo histórico, produtor dos valores, saturado de conotações ideológicas e míticas, é mutante por natureza. Para reconstituí-lo vai algum esforço e muita empatia (BOSI, 2000, p. 145).

Trata-se, sim, do “meu Dante”, portanto; mas, quanto à forma, é Dante ele mesmo, ou assim se estará sempre pronto a aceitar. Sobre o caráter não tão sólido, no entanto, da materialidade linguística, ou sobre a suscetibilidade de sua solidez sob a memória vária que forme o leitor, Borges terá também uma fábula. A passagem provém de mais um dos contos de Ficciones, “La biblioteca de Babel”. Após haver considerado, seguramente, fruto de uma combinação aleatória a massa de Sumário

52 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges caracteres românicos – ou percebidos como românicos – que preenchia as páginas de um dos volumes da biblioteca, pôde surpreender o narrador que esse mesmo volume, em meio aos bibliotecários de uma sala distante, noutro dos muitos pavimentos de número talvez infinito do extenso complexo de torres, fosse lido fluentemente em voz alta, numa língua que ele não compreendia; o objeto que eles viam, ao lerem, para ele permanecia invisível; o volume que agora folheavam, era e não era o mesmo que ele havia folheado dias atrás; dois os leitores, duas as leituras e dois os cabedais de códigos culturais: dois os objetos. Talvez os falantes desse idioma estranho, acrescentaria Borges, ou de algum outro dos inumeráveis falados na biblioteca, pudessem ler outro livro inaudito na mesma sequência de caracteres que os ingleses aprenderam a reconhecer, por exemplo, como o Hamlet de Shakespeare. Da fábula ficcional de Borges não estará distante a fábula teórica de Barthes, que, em “Da obra ao texto”, falará sobre o significante não dever “ser imaginado como ‘a primeira parte do sentido’, seu vestíbulo material, mas, sim, ao contrário, como o seu depois” (BARTHES, 2004 [1971], p. 69). A operação de derivar, de manchas diminutas de tinta numa página, num átimo inescrutável, logo traços precisos, e logo letras de um alfabeto, e logo movimentos articulatórios, e logo palavras, que logo serão também ideias, pessoas, países, vivências ou coisas, não se daria em algum órgão mantido a salvo do aprendizado cultural, ou como processo apartado do constante metabolismo simbólico da memória. O corpo, que percebe, será sempre um corpo formado culturalmente, e por isso portador de um repertório memorial – formas, cores, ritmos, textos etc. – em contínuo processo de releitura, e em contínuo processo de transformação pela história; não seria um processo universal, em suma, o que daria conta da formação dos significantes sob um olhar, mas, já, um processo de leitura. A relativa imporSumário

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tância dessa ideia,mas não mais para a tarefa de identificar caracteres, e, sim, para a tarefa de ler e traduzir poesia, talvez se mostre com uma visita, ainda que curta, mais adiante, ao exemplo das traduções da obra de Dante. Mas se siga. Embora em “There are more things”, conto incluído no seu El libro de arena, Jorge Luis Borges, mais uma vez, também considere o assunto – “para ver una cosa hay que comprenderla”... –, o que segue desta vez são palavras de Rudolf Arnheim: a percepção não é uma assimilação mecânica dos dados retinianos, mas a criação de uma imagem estruturada. Perceber consiste em descobrir um padrão estrutural que se ajusta à configuração das formas e cores transmitidas a partir da retina (ARNHEIM, 2004 [1979], p. 314).

A forma, para Arnheim – os elementos relevantes de uma composição pictórica, por exemplo –, não seria colhida; seria sempre o resultado de um processo ativo de formação, em que tomaria parteum repertório memorial particular, um feixe de “padrões estruturais” alguma vez catalogados pelo olhar que vê. O resultado dessa concepção seria o de que Pessoas diferentes veem, de fato, coisas diferentes. [...] Não se trata apenas de uma diferença de “interpretação”, que faria a imagem percebida ser igual para todos os observadores. Equivale a perceber uma pintura diferente (ARNHEIM, 2004 [1979], p. 313).

Em outras palavras, não haverá um ver, “igual para todos os observadores”, anterior ao interpretar, sendo o próprio ver, “imediatamente”, já o interpretar. E valerá acrescentar que “a obra como tal, a percepção objetiva, nunca será vista por ninguém” (ARNHEIM, 2004 [1979], p. 333). O Sumário

54 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges elemento de instabilidade, o particularismo subjetivo, trazidos com a admissão de que os repertórios culturais incidam diretamente sobre o ato de percepção, é que tornaria possíveis episódios como o de Kandinsky, numa primeira apreciação do impressionismo: A história da arte nos oferece exemplos extraordinários de observadores competentes que eram incapazes de ver obras que, algumas gerações mais tarde, não ofereciam nenhuma dificuldade a uma pessoa mediana. Hoje achamos difícil acreditar que, ao visitar uma exposição dos impressionistas franceses em Moscou, na década de 1880, o jovem Kandinsky não tenha sido capaz de identificar o tema representado numa tela de Monet: “O catálogo me diz tratar-se de um monte de feno, mas não pude reconhecê-lo, o que achei constrangedor. Senti, também, que o pintor não tem o direito de pintar de forma tão irreconhecível” (ARNHEIM, 2004 [1979], p. 313).

No caso da poesia, ou, mais especificamente, da métrica, que aqui interessará, poder-se-ia dizer que os “padrões estruturais”, referidos por Arnheim em relação à percepção visual, seriam, antes de tudo, de outra natureza: corresponderão a uma memória sonora, e, não menos, a uma memória muscular, formada ao longo da leitura de uma série de obras. Concedendo-se licença ao trivial: um grafema como o m, por exemplo, não representará apenas uma entidade ideal, uma mera possibilidade combinatória, sem rosto ou corpo, que diferencia mala de fala. Além de como o estuda a fonologia, haverá o modo como o estuda a fonética: o m se vincularia indissociavelmente na memória de alguém a um som, e, mais do que isso, a um movimento dos lábios, dos pulmões que empurram o ar garganta acima, das cordas vocais que vibram e da língua que, moldando o som numa vogal, dá aos lábios o que falta à eclosão da sílaba: ma. Se Sumário

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assim se admite, sílabas lidas – ma, cor, sol, ti etc. – não culminarão apenas em sons, mas numa combinação precisa de sutis movimentos corporais, que envolverão pulmões, cordas vocais, língua, dentes e lábios, bem como a criação de inércias. Como amálgama sutil de sentido, música e dança, cada vocábulo constituiria, assim, uma articulação de sons, mas que também traria em si implícita uma coreografia dos órgãos da fala. Se, indo-se adiante, o verso corresponde a um encadeamento de vocábulos, o que estará em pauta agora é a execução, em cadeia, de diferentes movimentos de corpo. Um artista circense, a esse respeito, talvez pudesse confirmar: uma pirueta, sozinha, não será o mesmo que uma pirueta entre um salto mortal e uma reverência ao público; o caso é que cada movimento individual – uma pirueta, um salto – gerará o seu quinhão de inércia, energia a ser reabsorvida no movimento subsequente, em que uma nova injeção de energia, um novo impulso, entra no conjunto para ter suas sobras de novo absorvidas num terceiro movimento, e assim sucessivamente, integrando-se todos, como numa frase, num único grande movimento composto. Essa dinâmica não parecerá tão estranha a um leitor atento de poesia: as palavras, quando em sequência, transmitiriam umas às outras, sucessivamente, o impulso que sobra de sua própria articulação, impulso que a próxima palavra retrabalharia num novo ápice acentual, ou resolveria de algum modo harmônico, dando fim ao verso. Como na ginástica olímpica ou na patinação no gelo, se o impulso do movimento anterior for maior do que o movimento subsequente pode absorver, o verso cai; se for menor do que ele precisa para ser executado, ele perde em decisão e fluidez, torna-se hesitante e forçado, e os jurados reclamam. Quando a economia é perfeita, administrando-se a energia do início ao fim sem dissipações, crê-se ter em mãos um caso de exemplar equilíbrio de forças – forças ou musculares ou acentuais, o que aqui já não parecerá importar muito. Aos diferentes Sumário

56 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges modos como se podem distribuir, ao longo do grande movimento composto que seria um verso, os momentos de impulso, corresponderiam os diferentes “padrões estruturais” conhecidos, por exemplo, do decassílabo de língua portuguesa, ou do endecasillabo italiano,sendo alguns desses “padrões” privilegiados pela prática poética de uma época, e outros, não. Diferentes fórmulas para o equilíbrio sonorocoreográfico de um verso – eis os diferentes “padrões estruturais” – circulariam em diferentes épocas. Com algumas consequências. Assim como a formação de Kandinsky sob certo repertório visual lhe terá rendido certo modo de ver, que terá incidido sobre sua primeira recepção da obra de Monet, a formação de um leitor – ou tradutor – sob certo repertório métrico talvez lhe renda certos modos de ouvir e articular primários, que não deixarão de tomar parte em seus atos de leitura. E dificuldades daí advindas, como aquela enfrentada por Kandinsky, não deixarão de ocorrer. D’Arco Silvio Avalle, especulando sobre que tipo perdido de musicalidade pode ter sido a do Psalmus contra partem Donati, escrito no ano de 393 por Santo Agostinho, num contexto fonéticofonológico bastante diverso do que se experiencia hoje com as atuais línguas românicas, volta-se precisamente para o particularismo histórico indissociável do seu olhar – ou dos seus (e dos nossos) ouvidos: a sensibilidade musical não é um fato da natureza, mas um fenômeno cultural [...]. Aquilo que nos parece incompreensível (e que tendemos a atribuir a leis universais da articulação fônica), na verdade, pode ter tido um significado preciso em outros momentos históricos, em presença de outras e diversas sensibilidades musicais. Os nossos “valores” não são valores universais, mas valores de alguma forma “datados”, relativos, sobre os quais o ouvido se exercitou com a exclusão de outros “valores”, que não conse-

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guimos mais perceber senão com grande esforço e desconcerto, em virtude dos nossos mais inveterados hábitos prosódicos (AVALLE, 1979, p. 25-6, tradução nossa).

Também será de “inveterados hábitos prosódicos”, e de sua incidência sobre a percepção métrica, que falará Aldo Menichetti, mas, desta vez, em relação a um fenômeno diretamente relacionado com a poesia de Dante, qual seja: o fato de que a sensibilidade rítmica pode variar consideravelmente no tempo, fazendo com que, por exemplo, o andamento acentual de alguns versos do duecento e do trecento pareçam, a um ouvido habituado aos padrões petrarquistas, antes prosaico do que poético (MENICHETTI, 2004 [1984], p. 10, tradução nossa).

Os “padrões petrarquistas”, a que se refere Menichetti, fazem remontar a uma questão que, ao menos sob a miragem de certa identidad imaginaria aqui mesmo articulada e proposta, será de fundamental importância.Trata-se da reforma que se terá dado, à época do Renascimento, no repertório dos padrões de equilíbrio praticados no decassílabo, ou no endecasillabo, seu equivalente italiano. Certo tipo de decassílabo, de acentos – ou impulsos – principais sobre a 4ª, a 7ª e a 10ª sílabas métricas, “já minoritário embora não infrequente na poesia do Duecento e de Dante”, teria sofrido“uma forte redução de uso na poesia lírica a partir de Petrarca” (BELTRAMI, 2002, p.182, tradução nossa). A partir da Poetica (1529) de Trissino, os tratadistas terão começado mesmo a reputar “menos harmônicos, musicais, apreciáveis que os outros” (BELTRAMI, 2002, p.46) os versos acentuados na 4ª e na 7ª sílabas, em lugar de na 4ª e na 8ª, ou na 4ª e na 6ª. É o que terá feito Minturno, por exemplo, em sua Arte poetica, de 1563 (BELTRAMI, 2002, p.128). Spina, por seu Sumário

58 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges lado, também dá conta, na tradição ibérica, desse processo, isto é, “a substituição dos decassílabos de tradição ibérica ou de influência franco-provençal pelo metro italiano à moda petrarquista – que acentuava o verso nas sílabas pares” (SPINA, 2003, p.59). De tal modo ter-se-ão estabelecido os “padrões petrarquistas”, inclusive até a modernidade, que Camilo Pessanha, talvez o único a utilizar sistematicamente, na tradição de língua portuguesa pós-camoniana, o decassílabo com acento na 7ª, “por algum tempo parece ter acreditado mesmo que se tratava de uma solução sua, original” (FRANCHETTI, 2001, p.41), muito embora a leitura atenta de cantigas de D. Dinis e de Garcia de Guilhade, ou mesmo de alguns sonetos de Sá de Miranda – precisamente o introdutor das mudanças em Portugal –, lhe pudesse lembrar o contrário, como lhe acabou fazendo a leitura de Verlaine (FRANCHETTI, 2001, p.41). Embora a troca de um acento sobre a 8ª por um acento sobre a 7ª, em termos abstratamente matemáticos, possa parecer insignificante, a leitura de um exemplo talvez dê a dimensão do quanto acarretaria, essa mesma troca, em termos de movimento concreto do todo do verso. Seguem abaixo, com uma proposta de tradução (e algum desregramento gramatical), os três primeiros versos da composição LXXXVIII das Rime, segundo o texto fixado por Michele Barbi para a edição crítica de 1921 das Opere de Dante (ALIGHIERI, 2011). O eu lírico se dirige a sua donna para dizer-lhe, em tom de queixa, que apenas porque se vê tão nova e bela, tem ela orgulho e dureza – desdém – no coração: Perché ti vedi giovinetta e bella, tanto che svegli ne la mente Amore, pres’hai orgoglio e durezza nel core. (Rime, LXXXVIII

Porque menina e graciosa e bela, tanto que esperta em toda mente Amor, coração tens que em dureza é senhor. (tradução nossa)

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A leitura em voz alta talvez dê conta: os acentos sobre a 4ª, a 7ª e a 10ª sílabas, no terceiro verso, e não sobre a 4ª, a 8ª e a 10ª, como nos anteriores, emprestariam ao verso um movimento final perfeitamente ternário, que se estenderia da quarta à última sílaba como valsa constante – talvez um movimento maestoso, diria um músico –, gerando uma impressão de maior lentidão, em contraste com a alternância binária, e não trinária, que fecharia os outros dois – um allegretto, quem sabe. A Fig. 1 busca representar graficamente essa diferença, diga-se de novo, coreográfica:

Figura 1 – Distribuição de acentos métricos nos três primeiros versos de “Perché ti vedi giovinetta e bela”, de Dante (Rime, LXXXVIII)

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60 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges Esse mesmo padrão assumiria uma forma ainda mais marcada – em meio a sáficos e heroicos de um mesmo poema, como acima –, nos casos em que um quarto impulso, na primeira sílaba, viria torná-lo,do início ao fim,uma perfeita sequência ternária. É o padrão que vai aqui apelidado de metro-valsa, e do qual teria Dante, ao menos segundo alguns ouvidos, muitos belos exemplos. Seria o caso – escolhido a esmo – de quando se depara com certa “saggiadonna”, a sábia dama que praz aos olhos tanto que, no coração de quem a vê, nasce um desejo por aquilo que praz: “nasce undisio de la cosa piacente” (Rime, XVI), ou “nasce um desejo da coisa prazente”. Seriam também exemplos, escolhidos ao acaso, “esse meu verbo antipático e impuro”, da “Oficina Irritada”, de Drummond; “doce repouso de minha lembrança”, de Camões;“quando passònella mente um romore”, de Cavalcanti;“mais os que troban no tempo da flor”, de D. Dinis, entre tantos, como talvez o próprio “pres’ haiorgoglio e durezzanel core”, a depender da leitura (“tens coração que em dureza é senhor”, então, seria uma tradução possível). A Fig. 2 traz uma representação gráfica do padrão de distribuição de seus impulsos, ou acentos:

Figura 2 – Distribuição de acentosnum exemplo de metro-valsa (Rime,XVI)

Tais tipos de verso, enfim, de finalização ternária, é que os ouvidos pós-petrarquistas de Theodor Elwert, segunSumário

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do Menichetti, em complemento ao trecho de mais acima, terão rejeitado – como os olhos do jovem Kandinsky ao monte de feno de Monet: É sintomático (e inaceitável, porque remete a uma concepção imanentista do ritmo) que Elwert qualifique tais versos de “arrítmicos”, chegando a afirmar que “somente no curso dos séculos o ritmo veio a ser elemento intrínseco ao verso italiano. A lírica italiana antiga o ignora completamente” (MENICHETTI, 2004 [1984], p. 10, tradução nossa).

Considerados, frise-se, apenas os 1000 versos iniciais da Gerusalemmeliberata (1581), de Tasso; do Orlando Furioso (1516), de Ariosto; do Canzoniere (composto entre 1336 e 1374), de Petrarca; e da Divina Comédia (composta entre 1304 a 1320), de Dante, tais versos “arrítmicos” corresponderiam, respectivamente em cada obra, segundo Fasani, a 1,3%, 4,4%, 6,4% e 16,1% das amostras (FASANI, 1992, p. 14). A Comédia constituiria um “unicum” métrico, por ser dessas obras, e incluídas ainda as de Guittone e Giacomo da Lentini, aquela em que os três padrões considerados por Fasani se encontrariam em quantidades mais próximas de um equilíbrio (FASANI, 1992, p. 15). Na impossibilidade de se demorar em longas análises, segue abaixo, na Fig. 3, um quadro das variações métricas, verso a verso, de pelo menos um dos “Cantos” da Comédia: o “Canto V”, do “Inferno”:

Figura 3 – Variações métricas na Divina Comédia (Inf., Canto V)

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62 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges Os valores de “1” a “142”, dispostos no eixo horizontal, corresponderiam, um a um, aos 142 versos do “Canto”. Os valores de “0” a “4”, dispostos no eixo vertical, corresponderiam aos diferentes padrões acentuais: o valor “0”, por exemplo, foi atribuído para heroicos e sáficos (versos que têm entre os seus principais acentos um acento sobre a 6ª e/ou a 8ª sílaba); o valor “1”, para versos com acentos geminados (sobre a 6ª e a 7ª sílaba), de leitura ambígua; o valor “2”, para os versos de finalização ternária (acentos sobre a 4ª, a 7ª e a 10ª); e o valor “4”, para versos inteiramente ternários (metros-valsa). Desse modo, os metros-valsa, por exemplo, segundo o gráfico, totalizariam nove em todo o “Canto” – os nove picos mais altos –, cinco deles concentrando-se logo ao início. Nas Fig. 4, 5, 6 e 7, vê-se um gráfico análogo de pelo menos quatro traduções do mesmo “Canto V” para o português: as de Cristiano Martins (MARTINS, 2006 [1976]), Augusto de Campos (CAMPOS, 2003 [1986]), Vasco Graça Moura (GRAÇA MOURA, 2005 [1996]) e Jorge Wanderley (WANDERLEY, 2004), respectivamente. O valor “3” foi utilizado para versos com acento sobre a 9ª (um em Augusto de Campos, dois em Graça Moura, um em Wanderley), bem como para o verso idêntico, de acentos sobre a 3ª, a 5ª e a 8ª, que aparece como tradução do segundo verso do trecho nas versões tanto de Graça Moura quanto de Wanderley.

Figura 4 – Variações métricas na tradução de Cristiano Martins (Inf., Canto V)

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Figura5 – Variações métricas na tradução de Augusto de Campos (Inf., Canto V)

Figura6 – Variações métricas na tradução de Vasco Graça Moura (Inf., Canto V)

Figura7 – Variações métricas na tradução de Jorge Wanderley (Inf., Canto V)

O que os gráficos talvez deixem entrever de um modo prático: os versos de cadência final ternária das quatro traduções – metros-valsa completos ou não –, se somados, totalizariam 18, contra os 24 que movimentariam, segundo certos ouvidos, o texto italiano. Na maioria dos casos, acrescente-se, em que parecem surgir nas traduções os andamentos ternários, não corresponderiam eles a trechos ternários do original. Ao menos segundo um inescapável modo de ler, aqui em ato, modo alimentado por fábulas de Borges e dos historiadores da métrica, talvez seja lícito pensar, pois, que alguns “inveterados hábitos prosódicos”, agora reconhecidos, terão sido decisivos em tais traduções,

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64 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges abrindo-se um caminho, entre tantos possíveis ainda à sombra, para a constituição, em língua portuguesa, de novas identidades imaginárias para a obra de Dante, inclusive em termos ditos formais. A forma já não mais será eterna, igual a si mesma sempre, mas um cristal ambíguo que se crie a cada vez, como todo o resto do texto: assim como para Arnheim “ninguém jamais viu a percepção objetiva” (ARNHEIM, 2004 [1979], p. 331), e assim como para Funes são todas as coisas, ninguém jamais o terá nas mãos, a esse cristal, por completo. Mas o argumento para uma nova multiplicação de Dante – argumento que já o multiplica – não acabaria aqui, no desejo por um perfil sonoro-coreográfico, apenas, aparentemente mais medieval.

Coda: repertório métrico-gestual,“circulata melodia” e mais um Dante No exemplo de “Perché ti vedigiovinetta e bella”, a altura em que surgiria na composição a cadência ternária seriaa mesma em que surgiria a “durezza” de coração da “donna”. No poema “Iosonvenuto al punto de la rota” (Rime, C), fala o eu lírico da obstinação do seu amor: “la mente mia, ch’èpiù dura chepetra”, ou “a mente minha, mais dura que pedra”. Também depois de acordar de um sonho, no “Canto XIX” do “Purgatorio”, Dante encontra o anjo com asas de cisne que lhe indica a estreita passagem para o próximo nível do monte, “tradueparetidel duro macigno” (Purg., XIX, 48), ou “entre dois muros do duro rochedo”. A coreografia, associada de novo e de novo ao pétreo, formaria com ele apenas um exemplo, entre muitos,de certas figuras recorrentes, integrantes de um possível repertório métrico-gestual da obra de Dante, em que mudanças coreográficas pareceriam conferir relevo e expressividade a certos elementos, como a mão que acompanha a fala de alguém: da violência de um Sumário

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impacto físico, como um inesperado pungir de esporas, à suavidade ou ao “dolzore”do sorriso da “donna”;do enlevo indizível de contemplá-la, traduzido imaterialmente em influxos celestes, vozes de anjo ou ferimentos a luz, à dinâmica sobressaltada dos “spiriti”, que, carregando dos olhos ao coraçãoas imagens daquela,transformam-se ali em “sospiri” fugitivos, abandonando rapidamente o corpo, que desfalece. As cadências ternárias, sobretudo nesses contextos de transfiguração pelo amor – “ond’io mi cangio in figura d’altrui” (Rime, XI), ou “donde eu assumo a figura de um outro” –, teriam um papelfundamental; e essa cadência hipnótica, de quando “nasce um disio de la cosa piacente”, sempre infundindo “tanta dolcezza, che ‘l viso ne smore” (Rime, XXIV),ou infundindo tanta doçura que“angelo clama in divino intelletto” (Rime, XIV), cadência essa, ainda, que a língua ensaiariaàs vezes por si só – “come per se stessa mossa” (Vita nuova, §XIX) –, como ao iniciar da canção “Donnech’ aveteintelletto d’amore” (Rime, XIV), seria cadência que viriaa assumir tal papel pela pertinência de suas relações com ainda outros elementos, sugestivos, de sentido. O enrolar da cauda de Minos em torno das almas recém-chegadas ao inferno (início do “Canto V”); o ato de envolver uma corda em torno da cintura; o arco formado por um arco-íris; a forma circular de um caminho no inferno; o giro dos anjos ou de centelhas divinasem grande coroa;o giro cego da esfera da fortuna; o “amor angelico” volteando em torno de Maria e fazendo soar uma irresistível “circulata melodia” – “l’altaletiziachespiradel ventre” (Par. XXVIII, v. 104), ou “alta alegria que emana do ventre” –; a “girazione” dos céus e dos astros, fazendo avançar o tempo, ou favorecendo o nascimento do amor nos corações: talvez por seu caráter perfeitamente cíclico, de “rotach’igualmenteè mossa” (Par., XXXIII, 144), ouroda que se move por igual, é que o metrovalsatanto compareça em tais passagens.Um metro circular, cujas partes se repetem, e um metrosem faltas, “s’elli ha le Sumário

66 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges parti igualmente compiute” (Par., XXVIII, 69), que“partes já tem igualmente completas”. É comum lembrar-sea referência às estrelas que fecha o “Inferno”, o “Purgatorio” e o “Paradiso”, como elemento circular da estrutura do poema: três grandes ciclos que se consumam sob o grande ciclo do poema inteiro. Mas no interiorde cada um desses três ciclos, acrescente-se, 33 “Cantos” se iniciam e se concluem, como ciclos menores; no interior de cada “Canto”, vários tercetos se iniciam e se concluem, como ciclos ainda menores; em cada terceto, três ciclos de dez sílabas métricas se iniciam e se concluem; e, por fim, em alguns desses versos, três ciclos de três sílabas se iniciam e se concluem (permanecendo o último incompleto), num giro agora velocíssimo, se em comparação ao amplo giro das três “cantiche”. As relações dessa sobreposição de círculos em movimento com a estrutura divina dos céus, tão minuciosamente explicada por Beatriz nos “Cantos” do “Paradiso”, e mesmo com o Amor – “ego tamquamcentrumcirculi...” (Vita nuova, §XII) –, motor de tudo, faria pensar no rei eterno com as grandes rodas – “lo rege eterno com leruotemagne” (Purg., XIX, 62) –, que tanta ordem terá dado a “quanto na mente e no espaço volteia”, a“quanto per mente e per loco si gira” (Par., X, 4). Uma doutrina escondida sob certos versos? “Sotto‘l velame de li versistrani” (Inf., 63)? Tais considerações, resumidas ainda na Fig. 8 abaixo, nada vêm concluir: serão antes, e apenas,o início de mais um Dante.

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Figura 8–Proposta de leiturada estrutura circular da Comédia

REFERÊNCIAS ALIGHIERI, Dante. Le opere di Dante: testo critico 1921 della Società Dantesca Italiana. Florença: Le Lettere, 2011. ARNHEIM, Rudolf. Intuição e intelecto na arte. 2 ed. São Paulo, Martins Fontes, 2004. AVALLE, D’ Arco Silvio. Le origini della versificazione moderna. Torino: G. Giappichelli Editore, 1979. BELTRAMI, Pietro G. La metrica italiana. 4 ed. Bologna: il Mulino, 2002. CAMPOS, Augusto de. Invenção: de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcante. São Paulo: Arx, 2003. CAMPOS, Haroldo de. Pedra e luz na poesia de Dante. Rio de Janeiro: Imago, 1998. FASANI, Remo. La metrica della Divina commedia: e altri saggi di metrica italiana. Ravena: Longo Editore, 1992.

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68 | Matar ou Criar o “Autor”: o Tradutor entre Barthes e Borges FASANI, Remo. L’infinito endecasillabo e tre saggi danteschi. Ravena: Longo Editore, 2007. FRANCHETTI, Paulo. Nostalgia, exílio e melancolia: leituras de Camilo Pessanha. São Paulo: Edusp, 2001. GRAÇA MOURA, Vasco. (Trad.) A divina comédia. São Paulo: Landmark, 2005. JAKOBSON, Roman. “‘Les chats’ de Charles Baudelaire”. [1962]. In: Costa Lima, Luiz (org.). 2002. Teoria da literatura em suas fontes. vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 833 MARTINS, Cristiano. (Trad.) A divina comédia. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006. MENICHETTI, Aldo. “Problemi della metrica". In: ANTONELLI, Roberto. (org.) La costruzione del testo poetico: metrica e testo. Roma: Aracne, 2004. pp. 7-50 SPINA, Segismundo. Manual de versificação românica medieval. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. VERLAINE, Paul. Festas galantes. Tradução Onestaldo de Pennafort. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. 160 p. WANDERLEY, Jorge. (Trad.) A divina comédia: inferno. Rio de janeiro: Record, 2004.

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Izabela Leal

Introdução O suplemento literário do jornal Folha do Norte surgiu em 5 de maio de 1946, fundado e dirigido pelo escritor Haroldo Maranhão, e durou até 1951, reunindo uma geração de jovens escritores paraenses, como o próprio Haroldo Maranhão (1927-2004), Oliveira Bastos (1933-2006), Benedito Nunes (1929-2011), Max Martins (1926-2009), Mário Faustino (1930-1962), Ruy Barata (1920-1990) e Paulo Plínio Abreu (1921-1959). Batizado de “Arte-Literatura”, o suplemento permitiu a divulgação de poemas, capítulos de romances, traduções e trabalhos de crítica literária produzidos pelos autores locais e por colaboradores de outros estados1 e tinha como objetivo a difusão e circulação do que estava sendo produzido de novo na literatura brasileira e no exterior. É importante atentar para o espaço que a atividade de tradução ocupou no jornal, funcionando como fonte de informação e circulação de textos, fundamental para a ampliação de horizontes dos jovens autores e proporcionandolhes uma via de diálogo com os movimentos literários desenvolvidos nos grandes centros do país. Durante o período de Para maiores informações a respeito do suplemento ArteLiteratura, conferir as teses de Marinilce Coelho (2008) e Maria de Fátima do Nascimento (2012). 1

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70 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura circulação do suplemento foram traduzidos mais de 100 poemas, dos mais variados autores e línguas, entre elas francês, inglês, alemão e espanhol. Foram publicados também textos de alguns escritores que impulsionaram a reflexão teórica sobre tradução no Brasil, como Paulo Rónai e Sérgio Milliet. Este capítulo pretende investigar a presença de autores portugueses em algumas traduções/textos críticos que foram publicados no suplemento literário da Folha do Norte. Parte desse material é proveniente de escritores que desenvolviam a atividade de escrita durante o período de circulação do suplemento, como Maria da Saudade Cortesão2 (1913-2010), que traduziu o poema “The wanderer”, de W. H. Auden (1907-1973); João Gaspar Simões (1903-1987), que colaborou no suplemento com um texto ensaístico; e Paulo Quintela (1905-1987), que traduziu três poemas de Rainer Maria Rilke (1875-1926). Outra parte do material foi escolhida pela mão dos próprios editores, que decidiram incluir traduções de autores que a essa altura já estavam mortos, como é o caso de Alexandre Herculano (1810-1877), do qual constam uma tradução de Friedrich Hölderlin (1770-1843) e outra de Richard Wagner (1813-1883); e Fernando Pessoa (1888-1935), que comparece com uma tradução para o inglês de um soneto de Luís de Camões (1524-1580). Comentarei o poema “A pátria”, de Friedrich Hölderlin, traduzido por Alexandre Herculano; o texto ensaístico de João Gaspar Simões intitulado “O valor da descoberta em literatura”; e o soneto “Alma minha gentil que te partiste”, de Camões, traduzido por Pessoa. Procurarei avaliar em que medida essas traduções/textos ensaísticos dialogam com os trabalhos que Herculano, João Gaspar Simões e Pessoa desenvolveram enquanto autores, propondo uma reflexão que será atraPoeta e tradutora, filha de Jaime Cortesão. Veio para o Brasil acompanhando a família e casou-se com Murilo Mendes em 1947. 2

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vessada pelos diferentes pontos de vista com que esses autores pensaram a questão da identidade portuguesa.

Partida e retorno na cultura portuguesa A história do povo português é, como bem lembra Clara Rocha, indelevelmente marcada pelos movimentos de viagem e regresso: “repetidas vezes houve no nosso percurso colectivo momentos de viagem, de saída (os Descobrimentos, a guerra colonial, a emigração), contrabalançados por movimentos de regresso (por exemplo, as sucessivas fases da descolonização).” (ROCHA, 1985, p. 223). Se, por um lado, a partida e a aventura se configuram como imagens necessárias à cultura portuguesa, por outro, a perda da terra natal desencadeia o sentimento da saudade, do exílio, também característico do “espírito” português. Ainda segundo Clara Rocha, o século XX será marcado por duas linhas de força antagônicas, oscilando entre “a intenção de abrir ao público português novas perspectivas, ‘saltando’ as fronteiras nacionais em busca de literaturas alheias”, ou assumindo a “demanda duma identidade cultural literária e naciona[l]” (ROCHA, 1985, p. 224) Esse embate, segundo creio, irá atravessar as traduções/textos portugueses publicados no suplemento da Folha do Norte. Ainda que Clara Rocha se debruce sobre um momento histórico muito específico, as vanguardas do século XX, tal embate se apresenta desde muito cedo na história de Portugal, remetendo no mínimo ao século XIV, e sendo aquilo que António Sérgio identifica muito propriamente como uma tensão entre a política de fixação e a política de transporte (SÉRGIO, 1975, p.27). Nos séculos seguintes, e sobretudo após o século XVI, essa problemática se altera um pouco e o que está em questão não é mais a relação com o outro, o estrangeiro, mas ao contrário, uma espécie de ausênSumário

72 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura cia de relação, um alheamento profundo em relação ao outro que não deixa de repercutir num alheamento em relação ao próprio. É importante lembrar que o século XIX é caracterizado por Eduardo Lourenço (1999) como um momento de despertar, momento em que os intelectuais começam a se questionar a respeito dos rumos que o país havia tomado. Trata-se de uma época marcada por um profundo sentimento de insatisfação, gerado pela consciência de uma pátria decadente, estagnada, sem projeção no cenário cultural europeu. Para os autores românticos, o processo de decadência se encarnava no esquecimento das raízes populares e nacionais e no pouco caso com que eram tratados os monumentos que deveriam atestar a importância histórica da nação. Eduardo Lourenço comenta essa situação de isolamento, chegando a utilizar a metáfora da ilha para se referir à singular conjuntura portuguesa no século XIX: [...] dessa singularidade faz parte o estranhíssimo fenômeno, mais do que paradoxal, de ter sido durante séculos uma nação que viveu e se viveu simbolicamente como uma ilha, sendo ao mesmo tempo um povo que desde os séculos XV e XVI se instalara no papel de descobridor e colonizador, em terras de África, do Oriente e do Brasil. (LOURENÇO, 1999, p. 95)

É nesse contexto que Alexandre Herculano3 traduz o poema significativamente intitulado “A pátria” (“Die HeiUm dos expoentes do Romantismo em Portugal, junto com Almeida Garrett, é também o autor da monumental História de Portugal. Introdutor do romance histórico em Portugal, Herculano soube alinhar sua grande erudição como historiador e jornalista ao talento literário, produzindo obras que se tornaram célebres e constituíram o ponto de partida para a moderna prosa de ficção 3

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mat”), de Friedrich Hölderlin4. Embora pouco conhecido como tradutor, Herculano era conhecedor de várias línguas e traduziu do inglês, do francês, do alemão, do italiano e do latim (OLIVEIRA, 2008, p. 114). O interesse de Herculano pela atividade de tradução começou bem cedo; no Dicionário do Romantismo literário português, organizado por Helena Carvalhão Buescu, consta a informação de que o autor, por volta de 1828, já estudava alemão e se dedicava à tradução do Fantasma de Schiller (PEREIRA, 1997, p. 223).

Herculano e Hölderlin: a pátria em questão É curioso pensar que Herculano provavelmente conheceu e reconheceu a importância do autor alemão num período em que sua obra ainda não tinha obtido o devido reconhecimento nem mesmo por seus amigos e contemporâneos, como Schiller e Schelling, o que só veio a ocorrer um bom tempo depois da sua morte, em 1843. O poema “Die Heimat” foi publicado originalmente no livro Gedichte 1784-1800 (Poemas 1784-1800). A versão publicada no suplemento da Folha do Norte apresenta apenas duas estrofes, o que pode remeter em Portugal. Inspirando-se no romance histórico de Walter Scott, Herculano empreendeu um projeto de reforma da sociedade portuguesa do século XIX, buscando no passado, mais especificamente na Idade Média, os modelos pelos quais seria possível repensar o presente para a construção do futuro. 4 Não foi possível identificar a partir de que fonte as traduções de Hölderlin e Wagner foram publicadas. Maria Felipa Oliveira, na tese Alexandre Herculano e a tradução, apresenta um quadro bastante completo das traduções realizadas por Herculano, porém não há nenhuma menção aos dois poemas que foram publicados no suplemento. Em termos de língua alemã, estão listadas na tese traduções de August Bürger, Schiller e Klopstock. (OLIVEIRA, 2008, p. 75-77)

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74 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura à primeira versão do poema, de 1798, sendo que a versão mais conhecida é de 1800 e apresenta seis estrofes (GEBHARD; GEISLER; SCHRÖTTER, 2007, p. 16): Volve ao tranquilo rio, alegre, o marinheiro, Das ilhas onde fêz, distantes, a colheita; Quem me dera também voltar à minha aldeia; Mas que tenho eu colhido, além de mágoas? Sabeis, ó margens queridas onde me criei, Penas de amor sarar? ó se me désseis, vós, Bosques da minha infância, um dia, quando à pátria; (sic) Eu volte, esse repouso antigo, uma vez mais?

Herculano procurou fazer uma tradução que preservasse a estrutura geral do poema de Hölderlin. É curioso notar a oscilação semântica da palavra Heimat – que pode ter o sentido de pátria, terra natal ou até mesmo casa. Herculano traduziu o título “Die Heimat” por “A pátria”, quando poderíamos pensar, por exemplo, numa tradução como “Minha terra”. Já na primeira estrofe a mesma palavra é traduzida por aldeia, dando ao texto uma atmosfera tipicamente portuguesa. O poema apresenta uma tensão entre a partida e o retorno, evocando o exílio, um importante topos do Romantismo em particular, e da cultura portuguesa como um todo. A figura do marinheiro comparece metaforicamente no primeiro verso como aquele que deixa a terra natal e retorna feliz, trazendo os bens adquiridos no exterior. Em contrapartida, há a expressão de um “eu” para o qual o retorno parece incerto, apenas uma suposição. De todo modo, a ideia de pátria que Hölderlin elabora em seus poemas não tem qualquer caráter nacionalista ou de atribuição de identidade. Para Hölderlin a pátria não pode ser representada como a terra ou a língua, ou seja, algo que se expresse em termos de repreSumário

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sentação. Mesmo a descrição geográfica – rios, bosques, montanhas – só tem relevância no sentido poético; a pátria é um princípio criador. Há em Hölderlin um movimento de renovação da língua, sendo a terra natal um lugar de origem, lugar da língua natural, mas uma origem que desde o início já agencia forças contraditórias e nunca qualquer tipo de pureza ou univocidade. Segundo Berman, “esse movimento visa a reencontrar a Sprachlichkeit, a força falante da língua comum, força falante que vem de seu enraizamento pluridialetal.” (BERMAN, 2002, p. 286). O sentimento de exílio é, para Hölderlin, a experiência de um afastamento, a perda de orientação no sentido mais fundamental. Por isso o mergulho em direção à origem não é um gesto nostálgico, mas a produção de uma abertura, a invenção de um passado. É nesse sentido que a Grécia buscada e inventada por Hölderlin não é um país perdido no tempo, mas um futuro para a humanidade. Pois ele buscava na Grécia o “patos sagrado”, o “fogo do céu”, apontando para a “superação de uma modernidade saturada por sobriedade” (BERMAN, 2002, p. 289). Para Hölderlin o Ocidente estava sofrendo de uma doença, um “mortal prosaísmo”, para a qual o remédio só poderia ser encontrado numa cultura estrangeira carregada de exuberância e intemperança. Lembremos que essa preocupação repercutiu nos autores da primeira geração romântica de Portugal. Almeida Garrett denunciava o empobrecimento da sociedade, afundada no materialismo e no utilitarismo, o que ele chamava ironicamente de “tempos de prosa”5. É interessante notar que GarO tema do ‘século prosaico” é recorrente em Garrett. No capítulo XLII das Viagens na minha terra, Garrett elabora a oposição, já estabelecida anteriormente, entre prosa e poesia: "Nós, que somos a prosa vil da Nação, nós não entendemos a poesia do povo [...]. (GARRETT, 1976, p. 186)". O tema aparece também no prefácio à Lírica de João Mínimo. 5

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76 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura rett expressou uma preocupação com a busca de uma origem linguisticamente plural, como Hölderlin: O que é preciso é estudar as nossas primitivas fontes poéticas, os romances em verso e as legendas em prosa, as fábulas e crenças velhas, as costumeiras e as superstições antigas: lê-las no mau latim mosárabe, meio suevo meio godo, dos documentos obsoletos, no mau português dos forais [...]. (GARRETT, 1961, p. 66)

Herculano, por sua vez, observava atentamente a letargia da sociedade portuguesa, sempre confiante num desabrochar da literatura: Infelizmente em nossa pátria a literatura há já anos que adormeceu ao som dos gemidos da desgraça pública: mas agora ela deve despertar, e despertar no meio de uma transição de ideias. Esta situação é violenta, e muito mais para nós, que temos de passar de salto sobre um longo prazo de progressão intelectual para emparelharmos o nosso andamento com o do século. (HERCULANO, 1909, p. 24)

Hölderlin percebeu a necessidade do contato entre o próprio e o estrangeiro para evitar o empobrecimento cultural. Para Herculano, traduzir Hölderlin é uma forma de apostar nesse princípio regenerador tão necessário à sociedade portuguesa do século XIX. Ao traduzir inúmeros autores estrangeiros, Herculano mostrou-se atento às principais inquietações de sua época, não apenas àquelas que diziam respeito à sua pátria, como também as que podiam ser compartilhadas com outros espíritos sensíveis à mediocridade e ao pragmatismo que contaminou as nações europeias dos séculos XVIII e XIX.

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A sinceridade de uma arte viva Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida [...]. (José Régio)

João Gaspar Simões (1903-1987), primeiro biógrafo e editor da obra de Fernando Pessoa, foi um dos fundadores da revista Presença, que circulou em Portugal de 1927 a 1940 e caracterizou o Segundo Modernismo português. A revista tinha como objetivo divulgar as obras e as pesquisas estéticas dos autores que participavam do movimento, tais como Adolfo Casais Monteiro, José Régio e Branquinho da Fonseca, e teve grande repercussão em Portugal e no Brasil. O texto publicado na edição de 21 de dezembro de 1947 no suplemento da Folha do Norte intitula-se “O valor da ‘descoberta em literatura”. A considerar apenas o título, não parece provável que o artigo seja uma discussão sobre a tarefa de tradução, porém o autor constrói a sua argumentação a partir de considerações sobre a dimensão incomunicável da literatura, percorrendo as noções de traduzível/intraduzível, e desembocando inclusive no problema da tradução de poesia. O tema não deveria ser de pouco interesse para Gaspar Simões, que dedicou boa parte de seu tempo à atividade de tradução, tendo vertido para português, autores como Jean Cocteau, Dostoievski, Tolstói, D. H. Lawrence, Thomas Mann, Henry James, entre muitos outros autores. A ideia que organiza a argumentação central do ensaio é a de que a obra literária encontra o seu valor não naquilo que ela tem de comunicável, mas sim no que apresenta de trabalho formal, o que de todo modo não invalida a tradução: “o certo é que nos mais formalistas dos grandes escritores há qualquer coisa suscetível de ser conservada mesmo quando a sua forma original sofre o traumatismo violento da tradução”. (SIMÕES, 1947, p.1). Assim como o Sumário

78 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura título do artigo, o argumento inicial é enganador e a questão mais relevante a ser levantada não é exatamente a da possibilidade ou impossibilidade de traduzir, mas a da pouca quantidade de traduções de obras portuguesas no exterior, o que leva o autor a refletir acerca do “isolamento que pesa sobre a nossa literatura” (p. 2). Note-se a recorrência do problema do “isolamento” experimentado pelos escritores portugueses. O autor nota, com algum espanto, que as obras portuguesas mais traduzidas não fazem parte dos cânones portugueses – sendo Fernão Mendes Pinto o único que realmente goza de reputação literária –, e o que determina a sua divulgação é o fato de se debruçarem sobre as navegações, isto porque “a época dos nossos triunfos marítimos ainda hoje é dos poucos períodos da nossa história com repercussão universal”. (p. 2). É bem verdade que o fio condutor da argumentação de João Gaspar Simões é o livro editado pelo renomado lusófilo Charles David Ley e intitulado “Portuguese voyages 1498-1663”, lançado em 1947. Na visão de Gaspar Simões, a perenidade desses textos está assegurada por eles serem vivos e atuais, o que lhes confere um valor universal que não se encontra naquelas que são consideradas as grandes obras literárias portuguesas. O autor afirma também que elas representam um “avanço sobre a época traduzido no deslumbramento e na sinceridade com que os seus autores abriam os olhos para o novo mundo”. (p.2). Impossível não comentar que a sinceridade era um valor dos mais notáveis para a geração presencista. Para o autor, as navegações tiveram como correlato o desvelamento do mundo, colhido como obra para toda a humanidade, e que por isso mesmo elevou a literatura da época a um patamar vanguardista não mais atingido posteriormente, já que as obras literárias dos tempos vindouros nada mais eram senão tributos às literaturas estrangeiras. Tal problema só irá se agravar, e em 1977, ao publicar o livro Jose Régio e a Sumário

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história do movimento da ‘Presença’, Gaspar Simões se depara com uma crise total da literatura portuguesa, agora aprofundada pela ditadura salazarista: De facto, nas nossas letras era visível uma crise de independência dos valores intelectuais frente aos interesses de ordem moral, política e religiosa. Se é verdade que se não tratava ainda de servidão mental que se agravava de dia para dia nos países fascistas e totalitários, havia já muito da mesma abjecção na vida intelectual portuguesa. (SIMÕES, 1977, p. 167)

A discussão que o autor procura estabelecer não é nada estranha aos estudiosos da literatura portuguesa; talvez ela encerre de fato a grande preocupação de todo e qualquer intelectual português desde o Romantismo – como Herculano, por exemplo –, e que poderia ser enunciada da seguinte forma: que lugar ocupa a literatura e a cultura portuguesa no cenário europeu?6 Para Gaspar Simões, o diagnóstico da derrocada cultural portuguesa se dá em termos de perda da originalidade e do pioneirismo, traçando uma linha paralela entre os feitos e as letras, tópico importantíssimo n’Os Lusíadas, apesar de lido sob uma certa inversão de perspectiva. Para Camões, não bastava que existissem os feitos se não houvesse um escritor que estivesse à altura de cantá-los; para Gaspar Simões, a obra só é valiosa porque traz em si o germe do feito, que foi, por sua vez, inovador. Do século XVI em diante a sociedade portuguesa mergulha cada vez mais num oceano de estagnação e isolamento, basta atentar para as palavras já citadas de Gaspar Simões que sinalizam para o “isolamento que pesa sobre a nossa literatura” (p.1). Basta lembrar que Alexandre Herculano escreveu um texto intitulado: “Qual é o estado da nossa literatura? Qual é o trilho que ela hoje tem a seguir?” 6

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80 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura A questão é simples: a nação portuguesa do século XX nada tem a ver com aquela que viveu os descobrimentos, e esse problema se inscreve literariamente, culturalmente. Os feitos realizados pelos portugueses do Renascimento deram uma nova feição ao mundo, e a literatura, acompanhando essas realizações, assumiu uma posição vanguardista. Nos séculos posteriores a cultura portuguesa perdeu o caráter vanguardista, daí que a literatura tenha se tornado também uma espécie de “fruto tardio” de movimentos literários provenientes do exterior. Gaspar Simões assinala também a “minuciosidade e verdade que torna essas obras vivas” (p.2) e o fato de os textos possuírem valor universal. Para ele, esses textos representam, no sentido cultural, um avanço em relação à sua época, expressos na forma do deslumbramento e da sinceridade. E é essa mesma postura – conservadora no que diz respeito ao valor estético da sinceridade, já ultrapassado anos antes por Fernando Pessoa7 – que Gaspar Simões exibe para nortear seu posicionamento crítico: Daí, talvez, no fundo de toda a comoção estética não haver, verdadeiramente, outra raiz que não seja o estremecimento de nossa existência em contato com a realidade liberta de qualquer outra. O que explica que só as obras de homens sinceros, isto é, capazes de transmitir sinceramente o que neles há de essencialmente vivo – seja dado o poder de se repercutirem no que em nós de mais essencial também existe: a nossa presença humana. Ora é o poder de sinceridade que distingue os artistas dos outros homens. (Apud. ROCHA, 1985, p. 394)

Não posso deixar de mencionar aqui o ensaio de Eduardo Lourenço, “’Presença’ ou a contra-revolução do modernismo português?” (2003). 7

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Tudo indica que a literatura portuguesa, para Gaspar Simões, teria muita dificuldade de reencontrar um lugar ao sol. Se é necessário que as grandes obras estejam ancoradas em grandes façanhas, é a própria autonomia da arte que está aqui rasurada. Nesse sentido, o que pensar de um artista como Fernando Pessoa? Que grande façanha ele dá a ver? Um Super-Camões para Camões Não posso estar em parte alguma. A minha Pátria é onde não estou. (Fernando Pessoa)

Gaspar Simões acreditava que uma obra de arte “viva” era aquela que atestava a sinceridade com a qual foi escrita, levando o autor a apostar na dinâmica do reconhecimento, isto é, da expressão do próprio; já Pessoa – que décadas antes havia abandonado a crença na sinceridade artística e eleito o fingimento como princípio de criação poética – acreditará no processo pelo qual o escritor inventa a si mesmo, e não na revelação de qualquer tipo de autenticidade. Retorno à inquietação de Hölderlin no que dizia respeito à necessidade de um aprendizado do próprio. O autor suábio escreveu em uma carta a Böhlendorff de 1801: “O que é próprio deve ser aprendido tanto quanto o que é estrangeiro” (Apud. BERMAN, 2002, p. 288) Ou seja, o lugar do próprio não é algo dado, o próprio não existe – ou não deve existir –, sob a forma de uma identidade, ele é tão inventado quanto o estrangeiro. Por isso Hölderlin buscou recuperar na Grécia clássica as qualidades que não poderiam ter sido esquecidas em sua época. A cultura portuguesa, por sua vez, talvez padeça de um excesso de “identidade”, o que gera um enrijecimento difícil de contornar. Pessoa, porém, inverte completamente os polos da realidade e da irrealidade, impregnando a vida de um caráSumário

82 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura ter irreal, fictício, e concedendo à literatura a tarefa de atribuir realidade à vida. É nesse sentido que Bernardo Soares, heterônimo de Pessoa que responde pelo Livro do Desassossego, retoma num de seus fragmentos o tema da viagem a partir de uma perspectiva em tudo dessemelhante ao pensamento de Gaspar Simões8: Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar. (PESSOA, 1999, p. 156)

Numa visada tipicamente hölderliniana, Bernardo Soares escreve que “toda literatura consiste num esforço para tornar a vida real” (PESSOA, 1999, p. 140), apresentando a pátria não como um território político, lugar de uma identidade a ser preservada, mas como um domínio a partir do qual o próprio terá de ser inventado. Por isso a pátria é a língua materna, fora disso é uma pura abstração. Bernardo Soares afirma ainda: “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente”. (PESSOA, 1999, p. 255) A tradução de Pessoa para o inglês do mais conhecido soneto de Camões, “Alma minha gentil, que te partiste”9, A anacronia aqui é proposital. A modernidade da proposta pessoana não pode ser entendida pela via da linearidade temporal que normalmente denominamos de “história da literatura”. 9 O poema e outras referências de sua publicação encontram-se no seguinte livro: MONTEIRO, George. The presence of Camões: influ8

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incluída na Folha do Norte, foi curiosamente publicada pela primeira vez, segundo Claudia Fischer (2012/2013), por ninguém menos que Charles David Ley10, o autor do livro Portuguese Voyages citado por Gaspar Simões. David Ley colaborou nas revistas Seara Nova e Presença e publicou um livro em 1939 intitulado A Inglaterra e os escritores portugueses. O soneto, por sua vez, já apresenta um diálogo com Petrarca, autor do qual Camões retirou ao menos a primeira estrofe do poema11: O gentle spirit mine that didst depart So early of this life in discontent, With heavenly bliss thy rest be ever blest While I on earth play wakeful my sad part. If in the ethereal seat where now thou art A memory of this life thou do consent, Forget not that great love self-eloquent Whose purity mine eyes here showed thy heart. And, if thou see ought worthy of thy light In the great darkness that hath come on me From thine irreparable loss’ spite, Pray God, that made thy year so short to be, As soon to haste me to thy deathless sight As from my mortal sight he hasted thee.

Na tentativa de revigorar a pátria decadente, Pessoa não apelará aos sentimentos comuns de afetividade, ou ao ences in the literature of England, America and Southern Africa. Kentucky: The University press of Kentucky, 1996. 10 Charles David Ley também foi tradutor de Pessoa. 11 Quest’anima gentil, che si diparte,/Anzi tempo chiamata all’altra vita,/Se lassuso è, quant’ esser de’ gradita,/Terrà del ciel la più beata parte. (PETRARCA, 1867, p. 32)

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84 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura saudosismo, que caracterizou a revista A Águia, na qual inclusive iniciou a sua participação no meio literário português. Lembremos que esse início esteve ligado à sua vertente crítica, quando, ao avaliar o futuro da literatura portuguesa no famoso ensaio “A nova poesia portuguesa”, Pessoa profetiza o surgimento de um Super-Camões, que afinal de contas não é outro senão ele mesmo. O Super-Camões é aquele que pode desestagnar a sociedade portuguesa, não por uma simples retomada da autenticidade do espírito português, como imaginavam os saudosistas, mas num movimento que vai na contramão de qualquer ideal de espelhamento. É o que afirma Eduardo Lourenço quando declara que Pessoa não intencionava “resgatar o subconsciente nacional [...] de históricos e acidentais complexos de dependência mas de si mesmo, transfigurando a gesta particular de um pequeno-grandepovo em gesta da consciência universal.” (LOURENÇO, 1982, p. 115) Camões, como se sabe, é a figura tutelar sob a qual se organiza o imaginário português. Basta observar as palavras de Teixeira de Pascoaes na revista A Águia: “Camões é uma divindade portuguesa; a Divindade tutelar da nossa Pátria. Portugal tem vivido à sombra do épico imortal: é o único país cuja autonomia se tem firmado sobre o nome dum Poeta” (Apud: ROCHA, 1985, p. 273). Mas, para Pessoa, a referência a um Super-Camões nada significa em termos de “divindade tutelar”. O que está em questão é a tentativa de ultrapassar o domínio da identidade, de afrouxar as amarras da tradição e sair da mesmice para permitir que uma nova imagem surja intempestivamente. Pessoa viveu na África do Sul e falava inglês fluentemente, tendo escrito seus primeiros poemas nesse idioma. É impressionante como Pessoa consegue transpor para o inglês a musicalidade do poema, sem recorrer a alterações semânticas significativas. Se para o leitor de português há algo da ordem da estranheza, ela se deve ao fato de termos em Sumário

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nossa mãos um poema que praticamente sabemos de cor, mas que se apresenta agora com uma outra roupagem, numa sonoridade incomum. Nesse sentido, é possível imaginar que o contato com o inglês enuncie a necessidade de adquirir do outro, da língua estrangeira, aquilo que mais falta ao próprio, roubar dele o que ele tem de mais estranho, como sugere Berman (BERMAN, 2002, p. 298). Do mesmo modo, ao traduzir para o inglês o soneto mais conhecido de Camões, talvez Pessoa encene essa gesta do Super-Camões: a transformação do nacional em universal.

REFERÊNCIAS BERMAN, Antoine. A prova do estrangeiro: cultura e tradução na Alemanha romântica. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. São Paulo: EDUSC, 2002 CAMÕES, Luís Vaz. “Alma minha gentil que te partiste”. In: Suplemento Arte-literatura da Folha do Norte, Belém, 11 de dezembro de 1949 COELHO, Marinilce Oliveira. Memórias literárias de Belém do GrãoPará: o Grupo dos Novos (1946-1952). Universidade Estadual de Campinas/Instituto de Estudos da linguagem, São Paulo, 2003. (tese de doutorado) FISCHER, Claudia. “Auto-tradução e experimentação interlinguística na génese d’“O Marinheiro” de Fernando Pessoa”. In: Pessoa Plural, Revista de Estudos Pessoanos / A Journal of Fernando Pessoa Studies, Brown University, Utrecht University, Universidade de Los Andes. http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Stu dies/ejph/pessoaplural/Issue1/PDF/I1A01.pdf GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. Lisboa: Publicações Europa-América, 1976. ––––––. Doutrinas de estética literária. (Prefácio e notas de Agostinho da Silva). Lisboa: Gráfica Santelmo, 1961

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86 | Autores/Tradutores Portugueses no Suplemento Arte-Literatura GEBHARD, Gunther; GEISLER, Oliver; SCHRÖTTER, Steffen. Heimat: Konturen und Konjunkturen eines umstrittenen Konsepts. Bielefeld: Verlag, 2007 HERCULANO, Alexandre. “Poesia: Imitação – Bello – Unidade”. In: Opúsculos. Tomo IX. 3ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, 1909. HÖLDERLIN, Friedrich. “A pátria”. Tradução de Alexandre Herculano. In: Suplemento Arte-literatura da Folha do Norte, Belém, 27 nov. 1949. LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da saudade: seguido de Portugal como destino. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 ––––––. “‘Presença’ ou a contra-revolução do modernismo português?” In: Tempo e poesia. Lisboa: Gradiva, 2003, p. 131-154 ––––––. O labirinto da saudade: psicanálise mítica do destino português. Lisboa: D. Quixote, 1982 NASCIMENTO, Maria de Fátima do. Benedito Nunes e a moderna crítica literária brasileira (1946-1969). Universidade Estadual de Campinas/Instituto de Estudos da linguagem, São Paulo, 2012. (tese de doutorado). OLIVEIRA, Maria Felipa. Alexandre Herculano e a tradução. Universidade Aberta, Portugal, 2008. (Dissertação de Mestrado). PEREIRA, B. Capelo. “HERCULANO (DE CARVALHO E ARAÚJO), ALEXANDRE”. In: BUESCU, Helena Carvalhão (coord.). Dicionário do romantismo literário português. Lisboa: Caminho, 1997, pp. 221-230. PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. (organização de Richard Zenith). Lisboa: São Paulo: Companhia das Letras, 1999 PETRARCA, Francesco. Rime di Francesco Petrarca (com l’interpretazioni di Giacomo Leopardi). Firenze: Successori le monnier, 1867 ROCHA, Clara. Revistas literárias do século XX em Portugal. Lisboa: INCM, 1985 SÉRGIO, António. Breve interpretação da história de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, 1975 SIMÕES, João Gaspar. “O valor da ‘descoberta’ em literatura”. In: Suplemento Arte-literatura da Folha do Norte, Belém, 21 de dezembro de 1947 –––––. José Régio e a História do Movimento da ‘Presença’. Porto: Brasília editora, 1977

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Marcelo Paiva de Souza

“Denn, um es endlich auf einmal herauszusagen, der Mensch spielt nur, wo er in voller Bedeutung des Worts Mensch ist, und er ist nur da ganz Mensch, wo er spielt.” Friedrich Schiller (Über die ästhetische Erziehung des Menschen, 15. Brief)

Sem prejuízo da hipótese de que “fatos e dados” relativos à sua prática tradutória, “confidências sobre as suas motivações, seus métodos de trabalho, suas dificuldades e as soluções a que tem recorrido possam” ser de “algum interesse para os colegas do ofício e mesmo para o público em geral”, ainda assim Paulo Rónai pede desculpas aos leitores de A tradução vivida pelo “uso talvez excessivo do pronome de primeira pessoa” (RÓNAI, 1981, p. 157) nos capítulos finais da obra, “Saldos de balanço” e “A operação Balzac”, retomada rememorativo-reflexiva do longo, riquíssimo histó-rico das atividades do autor sob o signo da translatio. Diferentemente dele, e não apenas por questão de gosto ou vezo de estilo, não farei o mesmo aqui. Notas de assumido viés pessoal, ancoradas no peso específico da experiência de traduzir, poderiam não ser de interesse para qualquer profissional ou estudioso contemporâneo da área? Sumário

88 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas... A relevância de que porventura elas se revistam dependerá, claro, de múltiplos aspectos. No tocante às breves considerações que se seguem, importa ressaltar desde logo um ponto decisivo. A exemplo de Rónai1, gostaria de dizer algo sobre o que venho empreendendo em prol da divulgação de uma literatura estrangeira amplamente desconhecida no Brasil, quer por conta dos males de certo “isolamento linguístico”, quer em resultado da desatenção – até há pouco flagrante e generalizada – que a cercava entre nós. Refiro-me à literatura polonesa; tal como a húngara, quiçá menos exótica hoje em nossa paisagem letrada, não obstante o (muito) que falta para a esta integrar-se de modo satisfatório. No caso que trago à baila, ademais, trata-se de um escritor polonês cujo destino incluiu um significativo episódio brasileiro, tópico por si só digno de exame, mas ainda inexplorado pela pesquisa literária nacional2. Sequer enfocando por ora, então, a invulgar estatura artística de Julian Tuwim (1894-1953) – eis o nome em apreço – não deve restar dúvida de que seu perfil e sua obra constituem, a rigor, o eixo em torno do qual gravitamos. Antes que aceno ao eu atrás dos dêicticos, evite-se o mal-entendido, minha opção pela primeira pessoa tem por fito, isto sim, fazer sobressair o nexo entre um ato e seu sujeito: evidenciar, pelo prisma de um Tuwim vertido para o português do Brasil, rasgos de individualidade, facetas vincadamente autorais de Penso aqui não apenas no papel de divulgador das letras húngaras entre nós, como também nas virtudes louvadas por Aurélio Buarque de Holanda em “O brasileiro Paulo Rónai”, prefácio de A tradução vivida: o humanismo “de largas fronteiras”, a “inteligência [...] vigilante, sempre a observar, a descobrir e apontar caminhos”. Ver RÓNAI, 1981, p. 13. 2 Alberto Dines, admirável biógrafo de Stefan Zweig, registrou atiladamente a presença de Tuwim em meio ao grupo de exilados poloneses que encontram refúgio no Brasil no início da década de 1940. Ver DINES, 2012, p. 479 (nota nº 78) e 525. 1

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uma operação tradutória determinada. O problema vai ocupar-nos adiante, em distintos planos. Para bem de seu escrutínio, convirá que esteja disponível um mínimo de informação sobre Julian Tuwim, bem como sobre as circunstâncias que deram azo a que eu o traduzisse. Comecemos por este último assunto. Na sequência, uma vez expostas metas e motivações do meu projeto de tradução, sumaria-se a trajetória criativa de Tuwim e, por fim, submete-se a debate a forma como o traduzi. * * * Em celebração ao centenário da estreia literária do poeta3 e ao sexagésimo aniversário de sua morte, 2013 foi proclamado pelo Parlamento da Polônia o Ano Julian Tuwim. A decisão motivou diversas homenagens ao escritor, dentro e fora de seu país, e uma delas, de iniciativa de Agnieszka Drewno e da Babel Studio, empresa de Varsóvia dedicada à promoção da cultura polonesa no exterior, foi levada a termo no Brasil. O projeto abarcou uma série de itens: a realização de uma exposição sobre a vida e o legado criativo de Tuwim, com destaque para sua fuga até Portugal e de lá para solo brasileiro em 1940, fustigado rumo aos azares de exílio pelo flagelo da Segunda Guerra; a gravação de um CD com poemas do autor em versão em português interpretados pela atriz Tatiane Trovatti; a publicação de um livreto, tanto catálogo da exposição quanto encarte do CD, contendo, além dos versos registrados em áudio sob forma impressa, uma sucinta biografia do escritor, textos seus de caráter memorialístico e autobiográfico, palavras da irmã – a Com a publicação do poema “Prośba” (“Pedido”), no nº 6 do Kurier Warszawski, em 1913. Já antes disso, porém, haviam sido publicadas traduções tuwimianas de poesia russa para o polonês e de poesia polonesa para o esperanto. 3

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90 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas... também escritora Irena Tuwim – acerca dele, reprodução de fotos, cartas e outros documentos de arquivo, e um precioso estudo de Wojciech Ligęza, crítico literário e historiador da literatura polonesa, sobre o (des)encontro do poeta desterrado com as maravilhas da Terra Brasilis: “‘Dizem que é a mais bela cidade do mundo’: Julian Tuwim no Rio de Janeiro”.4 Fui convidado a tomar parte na empreitada no início de março de 2013. Manifestei-me disposto à colaboração e de pronto, em um e-mail que aliava as virtudes da simpatia e da objetividade, do entusiasmo e do bom senso, Agnieszka Drewno descreveu as linhas mestras do que tinha idealizado. Como o traslado dos poemas cumpria uma função capital em todo o plano e – para não variar – era bastante apertado o prazo com que se contava, a primeira questão em pauta urgia: que títulos traduzir? Deviam ser contemplados tanto os versos de Tuwim para adultos quanto para crianças. Com respeito àqueles, felizmente um pedaço do caminho estava andado. Havia obra alheia de mérito a repor em circulação, visando a novos públicos. Tal era o caso, por exemplo, do belo fragmento carioca de Kwiaty polskie (Flores polonesas) dedicado pelo autor a Olegário Mariano, de cujo auxílio Tuwim valeu-se O projeto contou com financiamento do Ministério da Cultura e do Patrimônio Nacional da República da Polônia, e com o apoio das seguintes instituições: em Varsóvia, o Arquivo de Registros Novos e o Museu de Literatura; em Brasília, a Embaixada polonesa e a Cátedra Cyprian Norwid do Instituto de Letras da UnB; em Curitiba, o Consulado Geral da República da Polônia e o Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da UFPR (nomeadamente, sua área de polonês). A idealização do catálogo, bem como a direção de arte e de produção do CD são de Agnieszka Drewno. O projeto gráfico é de Ryszard Kajzer. Excetuado o artigo de Wojciech Ligęza – cuja tradução assino –, os textos em prosa incluídos no livreto foram vertidos para o português por André de la Cruz. 4

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em Lisboa para obter o visto de entrada em território brasileiro. Em 24 de setembro de 1943 o poeta exilado escreve de Nova Iorque – deixara o Brasil rumo aos Estados Unidos em meados de 1941 – ao Sr. Ministro da Legação da República da Polônia no Rio de Janeiro, Tadeusz Skowroński, “com um grande pedido” (TUWIM, 2013, p. 485). Remete em anexo carta e versos de sua lavra, dirigidos a Olegário Mariano, solicitando que sejam traduzidos para o português e em seguida encaminhados a seu destinatário. Tuwim prevê o risco de que “escrúpulos literários” possam constituir um entrave ao favor que pede e assegura antecipadamente se dar por satisfeito com uma versão “simples e literal” do excerto poético enviado (p. 48). Tudo corre conforme desejou. 25 de outubro de 1943 Skowroński despacha adiante os escritos a ele confiados: “filos traduzir literalmente nesta Legação”, observa o Ministro em sua missiva a Mariano6. Com efeito, a tradução anônima providenciada para o poeta, político e diplomata brasileiro não prima pelo empenho de recriação criteriosa das peculiaridades do trabalho formal tuwimiano em Flores polonesas. Mas nem por isso o texto que se foi achar mais tarde sob a guarda do Arquivo de Registros Novos em Varsóvia carece de valor, do qual nos convencemos, aliás, já pela leitura da carta de Tuwim a seu confrade nos trópicos. Citem-se alguns parágrafos dessa comovida e comovente prosa epistolográfica: Não sei – se graças ao céu bendito do Rio ou se à grande distensão que senti ao pisar o solo livre do Brasil –, mas o fato é que a mais farta, mais ardente, a

Cito a carta na tradução de André de la Cruz. A carta de Skowroński, em português, é reproduzida no catálogo. Ver TUWIM, 2013, p. 15. 5 6

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92 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas... mais eloquente poesia jorrou de minha alma nesse Rio maravilhoso. Desta forma, a tua pátria tornou-se a mãe dum poema polonês, que escrevo desde três anos e não acabarei tão cedo. Amo pois o Brasil, não somente porque me deu um abrigo hospitaleiro e carinhoso, não somente porque não seria possível deixar de amá-lo, tão belo ele é – mas, antes de tudo, porque a obra que cerco de maior carinho teve seu berço em tua terra. Tais laços são inquebrantáveis. Chama-se o meu poema Flores polonesas. É ao mesmo tempo um romance e um poema, tanto lírico quanto épico. Conta atualmente oito mil versos – cinco mil deles foram escritos no período de seis meses no Rio e o resto durante os dois anos seguintes em Nova York. Mas, visto as lembranças do Brasil permanecerem sempre vivas em mim e voltarem teimosamente sob minha pena – escrevi ultimamente um fragmento sobre a tua cidade. Dedico-o a ti. Aceita essa modesta oferta dum poeta polonês que muito te estima e que te será sempre grato. (TUWIM, 2013, p. 517)

Desnecessário encarecer a importância desse testemunho. Alguns lamentarão, quem sabe, que tão pouco da exuberante invenção verbal, da mestria da linguagem poética com que Tuwim canta o Rio se faça perceptível no traslado “literal” do trecho de Flores polonesas enfim endereçado a Olegário Mariano. Contudo, cumpre ressaltar que esse modesto expediente tradutório é a engrenagem mesma que efetiva o contato entre o autor brasileiro e o polonês. Em sua constrangida discrição burocrática, a língua portuguesa dos versos de Kwiaty polskie traduzidos a mando de Tadeusz Skowroński empresta corpo textual ao gesto de gratidão de O fragmento é citado na tradução anônima providenciada por Tadeusz Skowroński. Os versos de Kwiaty polskie remetidos a Olegário Mariano acham-se reproduzidos em TUWIM, 2013, p. 26-27. 7

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Tuwim em nossa cultura, inscreve sua visão e suas saudades do Brasil em nossas letras. Mais que justificada, portanto, a ideia de garantir acesso a essa tradução no orbe lusófono tinha um quê de impositivo. Por razões documentais, igualmente, porém sobretudo por conta do cacife literário em jogo, impunha-se também à atenção uma outra obra, datada de fins da década de 1940, a qual todavia uma oportuna coincidência trouxe de novo a lume em livro editado pouco tempo atrás. E se as Flores ofertadas a Olegário Mariano brotaram no anonimato, o Tuwim brasileiro de que falamos agora vem em companhia de uma assinatura de máxima expressão nos círculos literários nacionais, a de Carlos Drummond de Andrade. O itabirano verteu seu colega nascido na longínqua Łódź por via indireta8, a partir do texto francês – “L’Enterrement” – que consta de Les cinq continents: anthologie mondiale de la poésie contemporaine, coletânea concebida e organizada por Ivan Goll, publicada em 1922. “O enterro” foi estampado originalmente no Correio da Manhã de 22 de fevereiro de 1948, precedido por uma nota introdutória de Drummond, em conjunto com outras duas peças líricas extraídas da antologia de Goll, “Dinamarca”, de Fredrik Nygård, e “Eu olho”, de Sigbjørn Obstfelder, sob o título geral de “Três poetas europeus”. Em 2011, entretanto, o leitor brasileiro teve o deleite de ver coligida, sob os irreprocháveis cuidados de Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães, a Poesia traduzida do autor de Claro enigma. Entre várias outras, o volume recolheu as versões mencionadas.9 Colho os dados seguintes nas notas apensas por Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães à coletânea da poesia traduzida de Drummond que ambos organizaram. Ver DRUMMOND, 2011, p. 414-415, 429-430. 9 A tradução brasileira de “Pogrzeb” – ladeada pela francesa que lhe serviu de base – consta em DRUMMOND, 2011, p. 362-363. 8

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94 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas... Para efeito do planejado tributo a Julian Tuwim, difícil imaginar circunstância mais benfazeja: no rol das traduções em português do grande poeta polonês, figuraria um dos maiores poetas de nossa língua. A par do traslado anônimo do fragmento de Kwiaty polskie e da versão drummondiana de “Pogrzeb”, a lista de títulos tuwimianos existentes em português incluía ainda “Wiersz” (“Poema”), breve composição lírica recriada por Aleksandar Jovanović, recolhida em excelente coletânea de 1996, com organização, estudo introdutório, notas e traduções de sua autoria, Céu vazio: 63 poetas eslavos (JOVANOVIĆ, 1996, p. 60). Não que fosse muito, quantitativamente, mas – como se afirmou antes – o material aproveitável no que tocava à produção poética de Tuwim para os adultos parecia logo de saída de óbvio relevo.10 Com relação a seus versos para crianças, o quadro era distinto. Também nesse âmbito, de fato, a iniciativa de Agnieszka Drewno poderia beneficiar-se de labor tradutório prévio já dado à prensa. No ano de 2012 publicou-se em Lisboa, vertida a quatro mãos por Gerardo Beltrán e José Carlos Dias, esmerada “Lokomotywa” portuguesa (TUWIM, 2012). Uma das mais célebres e mais consumadas realizações da verve infantil do autor polonês, o poema tinha lugar reservado no CD e no catálogo a produzir. No entanto, nada do Tuwim para crianças fora visitado até ali por tradutores Nas notas da edição, às p. 429-430, Massi e Guimarães também deram à estampa o original polonês. 10 Cuidou-se de enriquecê-lo, a seguir, com a colaboração de Henryk Siewierski, que traduziu os até então inéditos em português “Erotyk” (“Poema erótico”), “Wiersz” (“Poema”; trata-se do texto com incipit: “Natchnienie jak śmierć nadciąga”/”A inspiração vem feito morte”, não do “Poema” traduzido por Jovanović) e “Los” (“O destino”). Ver TUWIM, p. 30, 32 e 33. Contribuí para a seção dos poemas voltados para o leitor adulto com uma versão de “Trawa” (“Relva”). Ver p. 29.

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brasileiros – chamariz poderoso, que de imediato influiu na balança de minhas prioridades. Acresceu a tanto um fator muito pessoal, ainda que, decerto, longe de ser vivência exclusivamente minha. Como quase todo aprendiz da língua polonesa, quer nativo, quer estrangeiro, não tardei a deparar com os versos de Tuwim para as crianças. Excetuados os mais curtos e de feitura verbal menos opulenta, não os entendi por completo, nem fruí de maneira consciente de cada recurso de sua depurada arte, do alto, pletórico engenho poético neles investido: fui antes mero objeto de seu fascínio. Era tempo e ocasião, pois, de regressar a eles mais bem equipado, munido de um outro olhar, talvez capaz, com sorte, de lobrigar uma nesga de seus arcanos criativos e – sorte enorme – de invocar seus encantos no cadinho do português brasileiro contemporâneo. Uma terceira e última causa teve seu quinhão na escolha da criação poética que Tuwim votou à meninada como alvo primordial de meus esforços tradutórios. Relendo esses textos, e compulsando a vultosa fortuna crítica acumulada em torno à obra do autor, percebia um curioso descompasso. O elogio infalível, irrestrito e caloroso aos versos para crianças não era acompanhado, em medida correspondente, pelo trabalho de análise e de reflexão dos pesquisadores. Em ensaio recente, cujas premissas vieram corroborar minha percepção, Piotr Matywiecki, notável estudioso do opus tuwimiano, asseverou: Todos sabemos que Julian Tuwim escreveu poemas geniais para crianças. A criança sabe disso e sabe disso o adulto, não apenas quando lê esses poemas para uma criança – também quando os repete para si próprio. A poesia infantil de Tuwim desperta para a existência a criança no adulto – e permite que essa criança continue a existir. Até hoje, contudo, ninguém examinou essas obras com a necessária atenção, porque parecem evidentes em sua beleza sonora, em sua

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96 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas... diafaneidade semântica. E no entanto essa diafaneidade mesma é intrigante... (MATYWIECKI, 2013, p. 56; grifo meu)

Detalhe sintomático, o especialista desenvolve essas ponderações à guisa de um mea culpa. Matywiecki verifica haver omitido anos antes em seu Twarz Tuwima (A face de Tuwim; 2007) – alentada, meticulosa prospecção crítica da obra do autor de Flores polonesas – “um tema muito importante”: a personalidade e a poesia de Tuwim caracterizam-se “por um traço de singular infantilismo” (MATYWIECKI, 2013, p. 56). Nada tem isto a ver com um diagnóstico de comezinha, renitente imaturidade, adverte, avançando em seguida a tese de que tal infantilismo deve ser esquadrinhado, em suas tensões, dilaceramentos e paradoxos, tanto existenciais quanto artísticos, no contexto do “grande mito do poeta-criança” (p. 56). Abandonemos nesta altura o revelador arrazoado de Piotr Matywiecki. O que aí fica basta, creio, para sinalizar dois problemas de monta. Primeiro, tal ou qual retraimento, certa esquiva por parte da pesquisa especializada, quiçá negligência, em suma, perante os desafios analítico-interpretativos intrínsecos à poética tuwimiana voltada para o receptor mirim. Segundo, e averiguá-lo torna ainda mais crucial a questão precedente, um intrincado complexo de motivos, figurações e atributos ligados à infância, a perpassar a totalidade dos escritos do autor, suas feições mais próprias como artista da palavra. Adaptando a conhecida afirmativa de Schiller que evoquei em minha epígrafe aos termos da presente discussão, de maneira geral caberia argumentar que para Julian Tuwim o poeta é integralmente poeta apenas ali, onde ele joga e brinca, ali, onde ele é criança. Admitida a pertinência de tal linha de raciocínio, suas implicações para a tarefa de traduzir os versos tuwimianos para crianças parecem consideráveis. Antes de mais nada, a Sumário

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achega tradutória a esse domínio ganha nítido matiz reparador. Destrinçando a meada dos textos, percorrendo-os com morosidade e zelo, a fim de retextualizá-los, a lente crítica inerente à tradução tenta fazer-lhes alguma justiça. Pois se é correto, por um lado, que o processo de traslado das obras visa ao público de uma língua estrangeira, por outro ele também constitui, a seu modo, uma leitura dos originais: leitura exigente, produtiva, que pressupõe aquele necessário grau de atenção cuja falta Matywiecki indigita ao meditar sobre a poesia infantil de Tuwim e sua recepção entre os conhecedores do autor. Outra consequência a destacar, além disso, é a interessante possibilidade de uma mudança de perspectiva na apreciação do fazer poético tuwimiano. Como já se afirmou, não há controvérsia no que concerne à estima que merecem dos estudiosos proezas de invenção e de graça verbal do gênero da suprarreferida “Lokomotywa”. O enfoque usual, contudo, se bem que não isole os versos para o leitor infantil em um compartimento estanque, à parte da “obra adulta”, toma-os em regra como subsidiários em relação ao cerne da criação literária de Tuwim. Autora de dois livros fundamentais sobre o escritor, Jadwiga Sawicka (1975 e 1986), por exemplo, não hesita em recorrer à designação de obrasprimas diante dos poemas destinados às crianças: exploramse neles “as conquistas da oficina” tuwimiana de artesanato de linguagem (SAWICKA, 1986, p. 223), observa. Michał Głowiński, outro eminente especialista, ajuíza segundo a mesma craveira que os versos para a criançada não representam “de forma alguma fenômeno marginal na produção” de Tuwim:11 Não por acaso, me parece, a assertiva tem lugar em nota de pé de página do estudioso, abrindo a seção dedicada aos versos infantis na antologia da obra poética tuwimiana que organizou para a prestigiosa coleção Biblioteka Narodowa. Na longa, excelente “Intro11

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98 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas... Ao contrário, nesse âmbito o poeta criou obras-primas como “Lokomotywa” ou “Spóźniony słowik” (“O rouxinol atrasado”). Nos versos para crianças Tuwim explora suas experiências poéticas mais essenciais, daí, neles, entre outros aspectos, o papel dos jogos de palavras, de sonoridades etc. Tuwim elege motivos que podem falar à imaginação infantil, mas elabora-os de sorte a satisfazer os mais severos conhecedores de poesia (nesse sentido esses poeminhas infantis são obras para adultos).

Repare-se: tanto Głowiński quanto Sawicka compreendem o engenho de talhe mirim em função da práxis poética voltada para os interlocutores adultos, apontam naquele o aproveitamento desta, ombreiam aquele a esta. Acaso não reduziriam aquele a esta, de certo modo? A maioria absoluta dos poemas para crianças data dos anos 1930, período da trajetória tuwimiana tido por sua plena maturidade. A simples cronologia obriga portanto a inferir que o escritor se vale então do instrumental criativo que foi ajuntando e aprimorando em suas realizações anteriores. Isto posto, contudo, resta saber até que ponto se percebe – ou não – a especificidade dos versos para a infância na ótica que tende a identificá-los como instância de derivação, como uma espécie de pequeno veio efluente do mainstream da poesia de Tuwim. Mais ainda, resta indagar se o terreno exclusivo ao estro infantil e sua específica modalidade de “brincadeira com a palavra” (SAWICKA, 1986, p. 221) não facultam vislumbres inesperados de todo o restante da obra do autor. Em caso positivo, que teria a nos dizer sobre a(s) prolífica(s) pena(s) do adulto a limpidez bailarina e risonha da escrita poética por ele dedicada aos guris? dução” de Głowiński ao volume, os poemas para crianças não são discutidos. Ver GŁOWIŃSKI, 1986. A referida nota acha-se à p. 260 da antologia.

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Os questionamentos assim suscitados demandam investigação de fôlego – sem dúvida inoportuna aqui. Conquanto apenas sugerido, porém, o horizonte que descortinam deve dar ideia suficiente do derradeiro porquê da opção que fiz. Situado nas coordenadas críticas que esbocei, o conjunto dos poemas dirigidos ao leitor mirim passava a oferecer um atrativo suplementar. O corpo a corpo tradutório com esses textos também daria ensejo a incursionar pelos vastos confins à sua volta, em um instigante exercício de reflexão global sobre Tuwim. Comprimir em poucas linhas um mapa razoavelmente fidedigno da obra completa do escritor é intento temerário. Cumpre correr o risco, agora, na esperança de que se entremostre – contra retalhos do rico, acidentado pano de fundo biográfico – uma vista panorâmica da arte tuwimiana. Cientes de sua escala e variedade, alertas quanto aos pulsos e sismos históricos que nela vêm à tona, devastadoramente, às vezes, poderemos afinal nos concentrar em meu Tuwim para as crianças lusófonas. Quando o autor veio ao mundo, cercado pelo cinza fabril de Łódź, no seio de uma família pequeno-burguesa de judeus assimilados, o séc. XIX estertorava. A feia cidade da infância e de boa parte da juventude de Tuwim abrigava diversas nacionalidades: russos, alemães, judeus e poloneses. Estava subordinada, à época, ao poder político do tzar, o que assegurava à diminuta minoria dos primeiros preponderância e privilégios ostensivos, foco gerador de acirrados antagonismos na vida local. Somem-se ao quadro, outrossim, fermentos emancipatórios sionistas e a voga crescente de um renhido nacionalismo em meio à população polonesa, sob a contínua e violenta pressão dos implacáveis imperativos econômicos a ditar os ritmos de um moderno polo de indústria têxtil, e eis a complexa e conturbada atmosfera social em que se vai formando a têmpera do futuro escritor. Os manuscritos mais antigos da juvenília ainda hoje conservados remontam a 1911; ao que parece, os célebres Sumário

100 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas... cadernos com a produção do aprendiz de poesia vinham de antes. Até a estreia em livro, por conseguinte, com o tomo de versos Czyhanie na Boga (À espreita de Deus), em 1918, estende-se um intervalo decisivo, ao longo do qual Tuwim toma conhecimento de numerosas referências literárias e, pouco a pouco, firma posição em face delas. Entre as matrizes e tradições que deixam marca mais funda no autor nesse ínterim avulta a princípio a Młoda Polska (A Jovem Polônia), de cujo amálgama de tendências – simbolismo, esteticismo, decadentismo – um tanto remanesce na linguagem poética tuwimiana.12 Essa herança é recebida, a bem dizer, à revelia: teima em dar sinais de si na coletânea de estreia e nos três volumes que se sucedem, Sokrates tańczący (Sócrates dançante; 1920), Siódma jesień (O sétimo outono; 1922) e Wierszy tom czwarty (Poemas – quarto volume; 1923), não obstante o professo repúdio do jovem poeta de Łódź à Jovem Polônia. A órbita do simbolismo de língua francesa, pelo contrário, interessa-lhe muito, em especial um de seus numes tutelares, Jean Arthur Rimbaud, o mesmo se aplicando aos simbolistas russos (estes e aquele, aliás, vertidos por Tuwim para o polonês). Acmeístas e futuristas russos, o futurismo, de forma geral, Walt Whitman (também traduzido por Tuwim), expressionismo – o profuso colorido do mosaico que resulta das descobertas e entusiasmos do escritor durante sua iniciação não permite engano. A poesia tuwimiana terá dicção fundamentalmente sincrética. De resto, o grupo de que passará a fazer parte após sua ida para Varsóvia em 1916, o Skamander (Escamandro), tampouco primava por uma rigorosa unidade programática ou pela homogeneidade das poéticas subsumidas sob sua rubrica. O lema que une os escamandritas – além de Tuwim, Antoni Słonimski, Jan Lechoń, Kazimierz Wierzyński e Sobre as relações entre a obra de Tuwim e a tradição literária polonesa ver GŁOWIŃSKI, 1962. 12

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Jarosław Iwaszkiewicz – consiste antes em uma atitude básica comum, em um tipo assemelhado de resposta artística à conjuntura histórica assinalada pelo fim da Primeira Guerra e o renascer da Polônia independente em 1918. A poesia do grupo despede-se do fardo oitocentista dos deveres para com a causa nacional e celebra a liberdade reconquistada, rejeita o absenteísmo individualista e estetizante da Jovem Polônia e ergue um peã vitalista e sensualista à contemporaneidade, panteisticamente encarnada em seu epítome por excelência: o vertiginoso perpetuum mobile da vida citadina. A hora era propícia para tais propostas, cujo apelo e novidade caem no gosto de largas frações do público ledor. O raio de ação do Skamander vai-se ampliando, em paralelo com sua popularidade.13 Expande-se do núcleo inicial, a revista Pro arte et studio e o café literário Pod Picadorem, por meio de outros periódicos importantes, o mensário homônimo Skamander e o semanário Wiadomości Literackie. No caso de Tuwim, ademais, que desde os tempos de Łódź já dera início a uma bem-sucedida carreira no mundo dos cabarés, a notoriedade aumenta em virtude de sua intensa e talentosíssima atuação nessa esfera: esquetes, canções, textos satíricos, adaptações, a veia tuwimiana voltada para a cultura do entretenimento de fato faz dele, como quer Małgorzata Szpakowska, uma celebridade da época, cuja “fama ia [...] muito além do público literário costumeiro” (SZPAKOWSKA, 2012, p. 140). Słowa we krwi (Palavras em sangue), tomo de versos de 1926, inaugura a etapa de perfeito amadurecimento da poesia de Tuwim. Daqui até a eclosão da Segunda Guerra vêm a lume as suas mais altas realizações – além do volume referido, Rzecz czarnoleska (O tom de Czarnolas; 1929), Biblia cygańska i inne wiersze (A Bíblia cigana e outros poemas; 1933), Ver a indispensável “biografia coletiva” do grupo em STRADECKI, 1977. 13

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102 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas... Treść gorejąca (O cerne ardente; 1936), Bal w operze (O baile na ópera; 193614) e as coletâneas de poemas para crianças (193815). Não há ruptura marcada entre esta fase e a anterior; o virtuosismo formal atinge novos cumes, privado agora do ímpeto otimista e da aceitação voraz do presente, tingido de reflexão entre amarga e irônica; vicejam reminiscências infantis em poemas construídos com sábia parcimônia de recursos, ao passo que, em Bal w operze, a fúria da sátira transvaza num magma de linguagem em que as hipérboles de uma fulminante visão expressionista, crispando-se num apocalipse moderno, convulsionam ritmo e palavra sob suas arremetidas. No frenesi grotesco do cenário mostrado no poema, Tuwim logrou projetar não apenas a espiral de insensatez das elites de seu país, como também lampejos de prenúncio da desabrida barbárie, da catástrofe de proporções mundiais então iminente. Ressoam talvez n’O baile na ópera, de certo modo, notas de desabafo, uma espécie de revide simbólico. Pois a despeito da fama, ou em consequência dela, Tuwim era alvo de permanentes ataques. Judeus não assimilados censuravam-lhe com aspereza o desenraizamento, e a raivosa direita antissemita persegue-o com virulência cada vez maior na esteira do crescendo fascista que precede a Segunda Guerra. Dos destinos de Julian Tuwim durante o conflito já sabemos um pouco. Foge para a Romênia, depois para a França, desta escapa para Portugal e acaba na Brasil. Nesse meio-tempo, em circunstâncias ainda hoje não inteiramente esclarecidas, sua mãe é morta pelos nazistas na pequena cidade de Em 1936 Tuwim conclui o poema. Sua primeira publicação só se dará em 1946. 15 Estampam-se no mesmo ano quatro volumes, todos em Varsóvia, sob o selo editorial J. Przeworski: Lokomotywa, Rzepka, Ptasie radio; O panu Tralalińskim i inne wierszyki; Słoń Trąbalski e Zosia Samosia i inne wierszyki. 14

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Otwock.16 Nos Estados Unidos, pouso seguinte no exílio, o poeta rompe com os antigos camaradas do Skamander e aproxima-se da imigração comunista. Regressa à pátria em 1946, onde será acolhido com as deferências e sinecuras estatais de praxe – uma vez declarado o seu apoio ao regime imposto pela URSS. Flores polonesas sai em 1949; em 1950, o formidável Pegaz dęba (O Pégaso empinado): “panóptico poético” que reúne ensaios tuwimianos acerca das “mais singulares esquisitices e raridades” da arte do verso, verdadeiro tratado de “escola superior de montaria no Pégaso”, coleção de “anomalias, prodígios, equívocos e extravagâncias, monstra e curiosa, [...] e centenas de outros acepipes do Parnaso, colhidos em antigos e inacessíveis alfarrábios e inutilmente dados à estampa” pelo autor (TUWIM, 1986, p. 4). A República Popular da Polônia deve ter-lhe parecido bastante diferente da Polônia lembrada, de que sentiu doridas e ininterruptas saudades em seu desterro. Também por isso, quem sabe, seu espevitado Pégaso não fez jorrar nova Hipocrene com a benesse de mais versos. A morte veio de súbito, em 1953, durante estada de descanso na montanhosa Zakopane. Em Varsóvia, a baixeza das ameaças antissemitas embuçadas em telefonemas e cartas anônimas teria de achar outro destinatário. Michał Głowiński observou há alguns anos que “desde o momento da estreia” as obras tuwimianas “não passavam despercebidas” e que “muitos iam-se definindo em relação a elas” (GŁOWIŃSKI, 2007, p. 283). Em vida, Em 1944, menos de dois anos após o assassinato da mãe (ocorrido em 1942), Tuwim publica no periódico londrino Nowa Polska o vigoroso “My, Żydzi Polscy” (“Nós, judeus poloneses”), manifesto em que, não obstante a sóbria reafirmação de sua identidade polonesa, o poeta reivindica a condição de “judeu doloris causa”, compungidamente solidário para com o povo massacrado pelas hordas de Hitler. Ver TUWIM, 1984, 27-31. 16

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104 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas... prossegue o estudioso, Julian Tuwim gozou da reputação de uma sumidade poética. Não lhe faltaram, de um lado, admiradores exaltados e acríticos. De outro, todavia, Paradoxalmente, tanto as críticas que lhe dirigiam os adeptos de outras poéticas quanto os ataques dos racistas locais, que lhe recusavam a posição de um escritor polonês (não se deve equipará-los, é claro; as primeiras constituíam um componente normal da vida literária, os segundos, uma forma de agressão totalitária), de algum modo ratificavam sua importância. (GŁOWIŃSKI, 2007, p. 283)

A partir da morte do autor, porém, a situação muda17: já não se concede a ele “um posto tão insigne”, seu legado criativo não merece o “o mesmo interesse que a obra de outros grandes poetas ativos na primeira metade do séc. XX” (GŁOWIŃSKI, 2007, p. 283-284). Convicto quanto à excelência das realizações mais consumadas da poesia tuwimiana e ao papel de primeira ordem por ela representado na história da literatura polonesa, Głowiński ventila a hipótese de que o “tempo de purgatório” crítico que se infligiu a Tuwim está perto do fim18 e sugere algumas balizas para efeito de revisitação do escritor nos começos do séc. XXI. A princípio, são objeto de ressalva as categorias de “tradicionalista” e “vanguardista”: “Se alguém desejasse empregar a fórmula ‘inovador passadista’, daria vida a um oxímoro quiçá algo bizarro [...], mas não privado de sentido, As exceções a registrar são justamente os poemas para crianças e a obra tradutória, âmbitos nos quais Tuwim continua(rá) gozando de sólido apreço e de credenciais superlativas. 18 Estudos vindos a lume em seguida – como os do já mencionado MATYWIECKI (2007 e 2013) – parecem dar prova do acerto da conjectura de Głowiński. Mencione-se ainda OLCZYK (2010) e GRIMSTAD (2010). 17

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pois expressa bem” a peculiaridade do caso tuwimiano (GŁOWIŃSKI, 2007, p. 277). Os escamandritas não se autodefinem como vanguarda e, na arena literária de sua época, ocupam trincheiras de adversários dos grupos vanguardistas. Mais importante, seus versos contraem franco e polpudo débito junto à tradição. E em que pese isso, exibem um indiscutível viés de inovação. Tuwim, em particular, possui o mérito de haver elaborado uma nova concepção de linguagem poética, sem abandono do lastro da poesia do passado, nem menosprezo pelas ferramentas e modulações da língua do falatório cotidiano. Assim, rimas, modelos estróficos, padrões métricos, entre outros itens do arcabouço tradicional da arte do verso, não são postos fora, mas como que submetidos à prova da invenção. Zeloso de tais convenções, o trabalho de criação verbal lida experta e desenvoltamente com elas, rebusca-as – infringe-as, inclusive –, servindo-se dos achados espontâneos e das potências do discurso coloquial para dilatar o léxico, revigorar a sintaxe e multiplicar os ritmos do poema. Destaco esses elementos das considerações do analista porque me parecem fornecer parâmetros de bastante utilidade para o tradutor de Tuwim. A orientação que deles se deduz tem cunho genérico, evidentemente, e não pode levar longe sem a varredura pontual e exaustiva dos territórios de cada texto. Grosso modo, no entanto, demarca-se aí o norte poético que tomei em meu traslado. No ir e vir subsequente, entre arroubos eufóricos em face de um miúdo acerto e flagelos depressivos por força do que não se solucionava, mantive em mira todo o tempo os escritos tuwimianos sobre tradução19, bem como o magistral exemplo de sua Pegaz dęba traz dois textos sobre o assunto (“Traduttore – traditore” e “Czterowiersz na warsztacie”; ver TUWIM, 1986, p. 165-209), para não mencionar apontamentos e reflexões tradutológicas em prefácios a traduções e/ou dispersos em outros escritos do autor. 19

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106 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas... própria oficina tradutória. Na célebre Lutnia Puszkina (A lira de Púchkin), por exemplo, cuja introdução arremata com um punhado de penetrantes comentários sobre “o método e o resultado” (TUWIM, 1952, p. 12) de seu trabalho vertendo “o Apolo cita” (p. 5) para a língua polonesa, Tuwim deixa patente antes de qualquer outra coisa um ouvido absoluto para as propriedades rítmicas e melódicas do verso. Salientando a carência de rimas masculinas no polonês – abundantes no russo, pelo contrário – e a “consolidada muralha do acento das palavras polonesas” – ao passo que a acentuação russa é “cambiante e móvel” –, lamenta os incontáveis “danos” que causou aos característicos iambos de Púchkin e seu apurado rimário (TUWIM, 1952, p. 1220). A despeito das faltas e desdouros da lira do tradutor, contudo, cabe “sem falsa modéstia” a assertiva de que suas versões puchkinianas revelam “algumas [...] virtudes”. O critério de última instância aqui é dar conta da “totalidade” do original. A noção não deve ser entendida, recomenda Tuwim, literalmente apenas, “a totalidade do poema é sobretudo sua dominante poética: esta cumpre sentir, fixar e conquistar.” Não descuidemos da sutileza do argumento. A noção de totalidade não deve ser compreendida tão só literalmente. Ou seja, é preciso tomá-la em sentido literal e não literal ao mesmo tempo. Em sentido literal, porque a visada tradutória se debruça por definição sobre todos os componentes formais da obra que elege. Em sentido não literal também, no entanto, porque o roteiro do traslado há de se pautar pela dominante poética da obra, pela dinâmica de conjunto que, resultando da soma de suas partes, transcende-a, imprimindo-lhe de fato a fisionomia de um todo artisticamente organizado. Concordaria com a eventual objeção de que o preceito talvez crie mais dificuldades do que resolva. Em vez Todas as expressões citadas até o fim do parágrafo provêm da mesma página. 20

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de atacá-las uma a uma, proponho um atalho – pois já passa da hora de terminar. Reproduzo a seguir “Abecadło” (“O abecê”), “Ptasie plotki” (“O tititi das aves”), “O Panu Tralalińskim” (“Seu Tralaliński”), “Spóźniony słowik” (“O rouxinol atrasado”) e “Zosia Samosia” (“Neusinha Euzinha”), os cinco poemas tuwimianos para crianças que traduzi. Minha esperança é que sua leitura mesma explique e ateste o juízo que faço deles: constituem um esplêndido brinquedo verbal, nisto exatamente consistindo seu tônus criativo, sua dominante poética. Se não, vejamos. ABECADŁO

O ABECÊ

Abecadło z pieca spadło, O ziemię się hukło, Rozsypało się po kątach, Strasznie się potłukło:

O abecê caiu da estante, Levou um tombo tremendo, Foi letra pra todo canto, Estrepou-se que só vendo:

I - zgubiło kropeczkę, H - złamało kładeczkę, B - zbiło sobie brzuszki, A - zwichnęło nóżki, O - jak balon pękło, aż się P przelękło, L - do U wskoczyło, T - daszek zgubiło, R - prawą nogę złamało, S - się wyprostowało, W - stanęło do góry dnem i udaje, że jest M.

o I – ficou sem pinguinho, no H – já era o tracinho, o B – ‘spremeu as pancinhas, o A – luxou as perninhas, o O – feito um balão – pou! o P até se assustou, o T – está destelhado, o L – é um U deitado, o S – sem silhueta, o pobre R – perneta, o W – meio lelé: eu pareço o M, né?

PTASIE PLOTKI

O TITITI DAS AVES

Przyszła gąska do kaczuszki, Obgadały kurze nóżki.

A gansa e a marreca, vizinhas, Reprocham os pés das alinhas.

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108 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas... Do indyczki przyszła kurka, Obgadały kacze piórka.

A perua e a galinha, a sós, Criticam a pata sem dó.

Przyszła kaczka do perliczki, Obgadały dziób indyczki.

A galinha d’angola e a pata Desancam a perua chata.

Kaczka kaczce wykwakała, Co gęś o niej nagęgała.

Outra pata quaquá se esgoela, Essa gansa, ahn, gue guer dela?

Na to rzekła gęś, że kaczka Jest złodziejka i pijaczka.

A gansa na hora revida: Pata beberrona, bandida.

O indyczce zaś pantarka Powiedziała, że plotkarka.

Dona angola peita a perua: Sua linguaruda, urubua.

Teraz bójka wśród podwórka, Że aż lecą barwne piórka.

Que rebuliço no quintal! Tem pena voando geral...

O PANU TRALALIŃSKIM

SEU TRALALIŃSKI

W Śpiewowicach, pięknym mieście, Na ulicy Wesolińskiej Mieszka sobie słynny śpiewak, Pan Tralisław Tralaliński.

Mora um cantor de fama insólita, Tralisław Tralaliński, lá Na comarca de Cantigópolis, Centro, Avenida Felicińska.

Jego żona – Tralalona, Jego córka – Tralalurka, Jego synek – Tralalinek, Jego piesek – Tralalesek.

Sua patroa – Tralaloa, Sua filhota – Tralalota, O seu filhote – Tralalote, Seu lindo cão – o Tralalão.

No a kotek? Jest i kotek, Kotek zwie się Tralalotek, Oprócz tego jest papużka, Bardzo śmieszna Tralalużka.

Gatinho? Também tem gatinho, Ele se chama Tralalinho, E tem também a papagaia, Engraçadona, a Tralalaia.

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Co dzień rano, po śniadaniu, Zbiera się to zacne grono, By powtórzyć na cześć mistrza Jego piosnkę ulubioną.

Todo dia, após o café, A turma unida e bem alerta Ensaia, em honra ao caro mestre, Sua cantiga predileta.

Gdy podniesie pan Tralisław Swą pałeczkę – tralaleczkę, Wszyscy milkną, a po chwili Śpiewa cały chór piosneczkę:

Seu Tralisław, concentradíssimo, Ergue a batuta – tralaluta; Calam-se todos, e em uníssono Então eis que a canção se escuta.

“Trala trala trala trala Trala trala trala trala!” Tak to pana Tralisława Jego świetny chór wychwala.

“Tralala trala tralala Tralala tralala trala!” Vejam que coro do barulho, Enche seu Tralisław de orgulho.

Wyśpiewują, tralalują, A sam mistrz batutę ujął I sam w śpiewie się rozpala: “Trala trala tralalala!”

Cantam bem no tom, tralalom, E o mestre mesmo, alto e bom som, Na bela cantiga se embala: “Tralala tralala trala!”

I już z kuchni i z garażu Słychać pieśń o gospodarzu, Już śpiewają domownicy I przechodnie na ulicy:

Já na cozinha e na garagem A cantoria quer passagem, O canto não cessa um instante, Já se ouvem na rua os passantes:

Jego szofer – Tralalofer I kucharka – Tralalarka, Pokojówka – Tralalówka I gazeciarz – Tralaleciarz, I sklepikarz – Tralalikarz, I policjant – Tralalicjant, I adwokat – Tralalokat, I pan doktor – Tralaloktor, Nawet mała myszka,

O motorista – Tralalista, A cozinheira – Tralaleira, Uma empregada – Tralalada, Um jornaleiro – Tralaleiro, Um engraxate – Tralalate, O policial – Tralalal, Um advogado – Tralalado, O geriatra – Tralalatra, Até o pobre camundongo,

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110 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas... Szara Tralaliszka, Choć się boi kotka, Kotka Tralalotka, Siadła sobie w kątku, W ciemnym tralalątku I też piszczy cichuteńko: “Trala – trala – tralaleńko…”

O pequenino Tralalongo, Muito embora tema o gatinho, Aquele fofo Tralalinho, Sentou-se ali no seu cantito, Um apertado tralalito, E cantarola assim baixim: “Tralala – trala – tralalim...”

SPÓŹNIONY SŁOWIK

O ROUXINOL ATRASADO

Płacze pani Słowikowa w gniazdku na akacji, Bo pan Słowik przed dziewiątą miał być na kolacji, Tak się godzin wyznaczonych pilnie zawsze trzyma, A już jest po jedenastej – i Słowika nie ma!

A dona Rouxinol na acácia está aos prantos; Voltaria pro jantar às nove, se tanto, Seu Rouxinol, sempre ali na hora marcada, Mas lá se vão as onze e seu Rouxinol – nada!

Wszystko stygnie: zupka z muszek na wieczornej rosie, Sześć komarów nadziewanych w konwaliowym sosie, Motyl z rożna, przyprawiony gęstym cieniem z lasku, A na deser – tort z wietrzyka w księżycowym blasku.

Esfriou a sopa de orvalho vesperal, As moscas recheadas ao molho floral, A borboleta no espeto pra petiscar, A torta de vento com raio de luar.

Może mu się co zdarzyło? może go napadli? Szare piórka oskubali, srebry głosik skradli? To przez zazdrość! To skowronek z bandą skowroniątek! Piórka - głupstwo, bo odrosną, ale głos - majątek!

Terá havido algo? Talvez assaltantes? As peninhas, meu Deus, a voz de diamante?! Inveja! Foi a tal cotovia, decerto! As peninhas, vá lá, a voz – é um concerto!

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Nagle zjawia się pan Słowik, poświstuje, skacze... Gdzieś ty latał? Gdzieś ty fruwał? Przecież ja tu płaczę! A pan Słowik słodko ćwierka: "Wybacz, moje złoto, Ale wieczór taki piękny, że szedłem piechotą!"

ZOSIA SAMOSIA

“Sama! Sama! Sama!” Ważna mi dama! Wszystko sama lepiej wie, Wszystko sama robić chce, Dla niej szkoła, książka, mama Nic nie znaczą - wszystko sama! Zjadła wszystkie rozumy, Więc co jej po rozumie? Uczyć się nie chce - bo po co, Gdy sama wszystko umie? A jak zapytać Zosi:

– Osiem! - A kto był Kopernik? – Król! - A co nam Śląsk daje? – Sól!

De repente, seu Rouxinol: trina, saltita... Onde o senhor estava? Eu aqui aflita! E seu Rouxinol chilreia: “Perdão, docinho, Tão linda a noite, que voltei a pé pro ninho!”

NEUSINHA EUZINHA

Jest taka jedna Zosia, Nazwano ją Zosia-Samosia, Bo wszystko

- Ile jest dwa i dwa?

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Tem uma certa Neusinha Que chamam de NeusinhaEuzinha, Com ela é tudo “Eu! Eu! Eu!” Que prima donna, Deus meu! Tudo ela só já conhece, Tudo ela faz e acontece, A escola, o livro, a mamãe – balela Pura e simples, pois tudinho é ela! Não é uma sabe-tudo, De que serve então juízo, estudo? Aprender – não faz por onde, Na hora ela não responde? Mas pergunte a Neusinha na prova: - Quanto é quatro mais quatro? – Nove! Nove! - Dr. Oswaldo Cruz foi? – Presidente! - Sete de setembro é? – Tiradentes!

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112 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas... - A gdzie leży Kraków? – Nad Wartą! - A uczyć się warto? – Nie warto! Bo ja sama wszystko wiem I śniadanie sama zjem, I samochód sama zrobię, I z wszystkim poradzę sobie! Kto by się tam uczył, pytał, Dowiadywał sie i czytał, Kto by sobie głowę łamał, Kiedy mogę sama, sama! – Toś ty taka mądra dama? A kto głupi jest? – Ja sama!

- Come-se vatapá em? – Belém! - E estudar, não convém? – Nem vem! Eu sei tudo tintim por tintim E a sobremesa é toda pra mim, Faço euzinha até um avião, Comigo não tem perrengue não! Quem vai aprender, e perguntar, E ler, e descobrir, e errar, Queimar pestana e toutiço Sem que se precise disso! – Grande sabichona! E a boboca de quem se escreveu? – Eu, eu!

Muito tentado, confesso, a deitar a lupa sobre esses textos, saboreando cada ingrediente, esmiuçando cada surpresa e perícia infusas em sua luminosa arte, devo proibirme esse prazer. Pinço uma ou duas engrenagens de seu delicado maquinismo, a fim de ilustrar por meio delas a índole do trato tradutório incutido pela dominante poética que linhas atrás se apontou. Falei em brinquedo verbal; donde o corolário – versões brincadas. Conforme as referidas ponderações de Tuwim, a fórmula deve ser entendida de duas maneiras. Primeiro, sugere que a totalidade de cada versão – assim como a de cada original – compõe-se de uma série de brincadeiras de linguagem. Examinemos a esse respeito um fragmento de “Zosia Samosia”. A sabatina aventada no poema para pegar em flagrante a egocêntrica criaturinha surte efeito jocoso graças à combinação de vários artifícios verbais: a segura cadência das respostas, como que sublinhadas pelas rimas, faz reverberar ironicamente a fieira de cincadas com que a sabichona atina... A graça depende, Sumário

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porém, do conhecimento de um background polonês. Cabe supor que qualquer estrangeiro desconfiaria de algo diante do monossilábico “Rei!” (“Król!”) que retruca a “E quem foi Copérnico?” (“A kto to był Kopernik?”). No entanto, a exigência de saber geográfico em “E Cracóvia, onde fica?/ Às margens do Warta!” (“A gdzie Kraków leży?/ Nad Wartą!”) já acarretaria encrenca. Sabe-se lá que é às margens do Vístula que Cracóvia se situa?! A estratégia adotada, então, foi brincar como Tuwim – com meu leitor alvo, substituindo as referências originais por matéria brasileira, para que se reconfigurasse o trecho sem prejuízo de seu cristalino vetor cômico. Cada parte do todo, assim, era uma nova partida a jogar, uma outra brincadeira tuwimiana a requerer o devido equacionamento21. Viu-se todavia que a matemática do todo artístico não fecha com uma singela soma das partes. Cumpre pensá-lo igualmente como complexo estruturado à roda de certo fulcro de forças, como arranjo dinâmico dotado de um princípio ordenador. Nesse sentido, chamo os versos para crianças de Tuwim de poemas de brinquedo na medida em Faço neste ponto uma ressalva, antes que me veja acoimado de inclinações etnocêntricas e domesticadoras. No caso em tela, quer por conta da galhofeira “prova” discutida, quer por conta do título do poema – cujas propriedades formais só consegui reter à custa da troca do diminutivo Zosia (de Zofia) por Neusinha – não tive escrúpulos perante o abrasileiramento. Noutros lances, ao contrário, cismei que o divertido seria estrangeirizar. Vide, a título de ilustração, “O Panu Tralalińskim”. O nome da rua do caro mestre cantor, Felicińska (“feliz” + “ińska”), híbrido neológico bilíngue, corresponde a Wesołyńska: o adjetivo “wesoła” (“alegre”), acoplado a desinência característica de nomes próprios femininos poloneses. Para cotejo, leiam-se os quatro primeiros versos do poema em tradução italiana: “A Canterino, città graziosa,/ Viale Allegro Contentini,/ Vive un celebre cantante,/ Trallislao Trallallini” (TUWIM, 2010, sem nº de pág.; o grifo é meu). 21

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114 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas... que têm por móvel um espírito lúdico e folgazão, na medida em que sua arte tem por traço distintivo capital brincar inventivamente com seus receptores, e com a linguagem. Daí minhas tentativas de versões de brinquedo. Um segundo fragmento textual deve oferecer esclarecimento suficiente sobre a lógica do modus operandi tradutório de que lancei mão. Leiamos o excerto em italiano, na ótima tradução de Marco Vanchetti – trata-se da terceira estrofe de seu “Il signor Trallallini”: “E il gatto? C’è anche un gatto,/ Che si chiama Trallallatto,/ E poi c’è un papagallo,/ L’assai buffo Trallallallo” (TUWIM, 201022). Excetuado o fato de que Tuwim emprega diminutivos: “kotek”, não “kot”, “papużka”, não “papuga”, tudo em Vanchetti confere com o original. Na casa de seu Tralaliński tem um gatinho, e além disso um papagaiozinho muito engraçado (“[...] papużka/ Bardzo śmieszna”). Meus esboços iniciais iam na mesma direção do traslado italiano (a que só tive acesso, ressalto, após concluída minha tradução). O diminutivo de papagaio alongava em demasia o verso, portanto não podia contar com ele. Mas afinal a própria palavra polonesa veio em meu socorro. “Papużka” pertence ao gênero feminino, atento ao que arrisquei: “papagaia”. A desinência, em si mesmo engraçada, ainda recebia a seguir o apoio rímico de “Tralalaia”. E como o bicho era muito engraçado, decidi: “engraçadona”. Na brincadeira, me pareceu ter incrustado no lavor formal dos versos brasileiros o ânimo de folguedo poético que irradiava dos originais. A via que assim se me deparou merece talvez ser descrita, à guisa de escorço, ao menos, com um vocabulário teórico condizente. Remonto às proposições clássicas de Jiří Levý:

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Obra sem numeração de página.

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De um ponto de vista teleológico, a tradução é um processo de comunicação [...]. Do ponto de vista da situação de trabalho do tradutor, em qualquer momento de sua atividade (isto é, de um ponto de vista pragmático), a tradução é um processo de tomada de decisões: uma série composta de certo número de situações sucedendo-se umas às outras – de movi-mentos, como em um jogo –, situações que impõem ao tradutor a necessidade de efetuar uma escolha entre certo número de possibilidades (com bastante fre-quência passíveis de definição rigorosa). (LEVÝ, 2009, p. 72)

Qualquer ocorrência tradutória dada, argumenta o pesquisador tcheco, implicará o delineamento de um paradigma – “um conjunto de soluções potenciais” (LEVÝ, 2009, p. 73) –, no bojo do qual ato contínuo se há de efetuar uma escolha, segundo um rol específico de critérios – Levý designa-os “instruções seletivas” (p.74). A singularidade da situação a que aludi parece ganhar contornos bem nítidos nessas molduras conceituais. O paradigma inicialmente definido em função do passo em que nos detivemos proviame do necessário para uma decisão motivada (por critérios de adequação de sentido, de registro e de metro): papagaio, pequeno papagaio, papagaiozinho, periquito etc. A dominante poética da obra, contudo, obrigou a uma insuspeita ampliação desse paradigma. Era preciso que ele contivesse alternativas mais afins ao tônus de travessura criativa que, a meu sentir, organiza esteticamente a linguagem dos versos tuwimianos para crianças e notabiliza-os. Decorreu dessa guinada um aumento substancial dos obstáculos a inçar o já tortuoso caminho do traslado. Faço votos de que terá valido a pena, mas, afinal, a questão é de incumbência de quem lê. Em respaldo da diretriz que prevaleceu, alinhavo apenas – concluindo – mais um apontamento. Na metáfora título d’O Pégaso empinado, Jadwiga

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116 | Versões de Briquedo: uma Tradução Brasileira dos Poemas... Sawicka divisou a cifra de “um fazer poético dificultado”23, de um trabalho de criação que se compraz com os percalços. A pesquisadora reconhece em Tuwim o poeta doctus, dotado de erudita consciência de seu ofício, da dilatada problemática a ele concernente. Não menos do que as vanguardas que lhe eram contemporâneas, Julian Tuwim mobiliza esse sofisticado saber técnico em diversos experimentos de linguagem; à diferença delas, todavia – em tácita polêmica com elas, quem sabe, e com a severa disciplina de suas cartilhas –, experimenta como poeta ludens, como quem reclama para si, apesar de todos os pesares, a traquinagem e o disparate, a fantasia avoada da criança e do louco. E é coisa sabida: brincadeira boa dá vontade no outro de brincar. Né? REFERÊNCIAS ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia traduzida; org. Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães. São Paulo: Cosac Naify, 2011. DINES, Alberto. Morte no paraíso: a tragédia de Stefan Zweig; 4ª ed. amp. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. GŁOWIŃSKI, Michał. Tuwim po latach. In: ___. Monolog wewnętrzny Telimeny i inne szkice. Kraków: Wydawnictwo Literackie, 2007, p. 276-284. ___. Wstęp. In: TUWIM, Julian. Wiersze wybrane; wydanie IV rozszerzone; oprac. Michał Głowiński. Wrocław: Zakład Narodowy im. Ossolińskich, 1986, p. III-LXVIII. ___. Poetyka Tuwima a polska tradycja literacka. Warszawa: PIW, 1962. GRIMSTAD, Knut Andreas. Polsko-żydowskie gry kabaretowe, czyli próba akulturacji Juliana Tuwima. In: NYCZ, Ryszard;

A pesquisadora emprega a expressão em “Poetyka sformułowana w Panopticum”, texto introdutório que redigiu para a reimpressão de Pegaz dęba aqui já referida. Ver TUWIM, 1986, p. V. 23

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MIODUNKA, Władysław; KUNZ, Tomasz (red.). Polonistyka bez granic. Kraków: Universitas, 2010, p. 515-525. Tom I. JOVANOVIĆ, Aleksandar (org., estudo introd., notas biog. e trad.). Céu vazio: 63 poetas eslavos. São Paulo: Hucitec, 1996. LEVÝ, Jiří. Przekład jako proces podejmowania decyzji. In: BUKOWSKI, Piotr; HEYDEL, Magda (red.). Współczesne teorie przekładu. Antologia. Kraków: Znak, 2009, p. 72-85. MATYWIECKI, Piotr. Poeta-dziecko. In: ___. Myśli do słów: szkice o poezji. Wrocław: Biuro Literackie, 2013, p. 56-68. ___. Twarz Tuwima. Warszawa: W.A.B., 2007. OLCZYK, Jacek. Julian Tuwim – teoretyk poezji. In: NYCZ, Ryszard; MIODUNKA, Władysław; KUNZ, Tomasz (red.). Polonistyka bez granic. Kraków: Universitas, 2010, p. 405-416. Tom I. RÓNAI, Paulo. A tradução vivida; 2ª ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. SAWICKA, Jadwiga. Julian Tuwim. Warszawa: Wiedza Powszechna, 1986. ___. “Filozofia słowa” Juliana Tuwima. Wrocław: PAN/IBL/Ossolineum, 1975. STRADECKI, Janusz. W kręgu Skamandra. Warszawa: PIW, 1977. SZPAKOWSKA, Małgorzata. Wiadomości Literackie prawie dla wszystkich. Warszawa: W.A.B., 2012. TUWIM, Julian. Wiersze zebrane; oprac. Alina Kowalczykowa. Warszawa: Czytelnik, 1971. Tom II. ___. Tutti per tutti. Poesie per bambini; trad. Marco Vanchetti, progetto grafico Gosia Urbaska, Monika Hanulak, Gosia Gurowska, Marta Ignerska, Ania Niemierko, Agnieszka Kucharska-Zajkowska, Justyna Wróblewska. Roma: Orecchio Acerbo, 2010. ___. A locomotiva; trad. Gerardo Beltrán e José Carlos Dias, ilustrações Paulo Galindo. Lisboa: Qual Albatroz, 2012. ___. My, Żydzi Polscy.../We, Polish Jews...; ed. Chone Shmeruk. Jerusalem: The Magnes Press; The Hebrew University, 1984. ___. Pegaz dęba; reprint and introduction by Jadwiga Sawicka. München: Otto Sagner, 1986. ___. (wyb. i przek.). Lutnia Puszkina; wydanie IV, uzupełnione. Warszawa: Czytelnik, 1952. Tuwim (Catálogo/CD). Varsóvia: Babel Studio, 2013.

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Marta Pragana Dantas Artur Fragoso de A. Perrusi

O espaço internacional de circulação das obras, no seio do qual a tradução desempenha um papel preponderante, é regido por assimetrias, relações de dominação e coerções de ordem econômica, política e cultural. Esses fatores interferem com maior ou menor intensidade, dependendo sobretudo – mas não exclusivamente – das línguasculturas envolvidas, bem como do contexto sócio-histórico em que se dão tais trocas culturais. Pode-se afirmar que as razões que dificultam a tradução de determinadas obras numa cultura, ou seja, os obstáculos à circulação das obras, situam-se para além de critérios inerentes à avaliação da obra em si. Eles podem ser de ordem econômica, política ou cultural. No âmbito deste artigo, daremos ênfase à dimensão cultural, tomando como estudo de caso a circulação das obras francesas no Brasil. Este estudo foi realizado no âmbito de um projeto mais amplo sobre a circulação, por meio da tradução, de obras francesas em diferentes áreas linguísticas: Inglaterra, Estados Unidos, Holanda e Brasil1. No Brasil, foram reali1.

A pesquisa foi realizada sob a coordenação da socióloga Gisèle Sapiro (Centre européen de sociologie et de science politique / CNRS /

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120 | A Circulação de Obras Francesas no Brasil... zadas, entre fevereiro e novembro de 2010, 27 entrevistas com atores intervindo no campo das traduções do francês, mais precisamente atores sediados no Rio de Janeiro e em São Paulo: 15 editores (sendo dois universitários) e onze tradutores com diferentes perfis, além de um intermediário ligado ao governo francês (Embaixada da França no Brasil). Entre as mudanças que vêm ocorrendo nas últimas décadas no que diz respeito à circulação mundial de obras, a mais marcante delas talvez seja o aumento substancial das traduções do inglês, que passaram de 45% a 59% entre 1980 e 1990, segundo dados do Index translationum. Como se sabe, esse aumento não se fez acompanhar de um crescimento proporcional no sentido inverso, ou seja, de traduções de outras línguas para o inglês, revelando, entre outras coisas, o baixo prestígio da prática tradutória num país como os Estados Unidos, para citar a nação de onde mais se traduz do inglês. A tradução representa entre 3% e 4% da produção editorial estadunidense, proporção que vem caindo desde a década de 1970, contrariando a tendência verificada nos demais países, conforme aponta Gisèle Sapiro (2012). Ainda nesse mesmo país, a baixa valorização da tradução se reflete também em outras práticas editorias: por exemplo, na estratégia de omitir o nome do tradutor da capa do livro, privilégio reservado somente aos tradutores de renome, que agregam capital simbólico à obra (SAPIRO, 2012, p. 70). Num país emergente como o Brasil, a tradução ocupa um lugar relevante no sistema cultural, enquanto via de acesso à circulação internacional de ideias. Acompanhando a tendência verificada em outros países, as traduções da língua inglesa representam aqui mais da metade dos títulos traduzidos, seguidas pelo francês e pelo espanhol, línguas cujas traduções ficam em torno de 10% dos títulos traduEHESS – Paris), a parte brasileira tendo ficado sob a responsabilidade dos autores deste artigo.

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zidos. Nesse contexto de hegemonia linguística do inglês, a reflexão sobre os obstáculos à tradução de obras francesas se inscreve num quadro de “reclassificação” (ou revalorização negativa) dessa cultura no cenário nacional (DANTAS; PERRUSI, 2012). Esse processo, evidentemente, não se restringe ao contexto brasileiro, estando vinculado à situação internacional de perda de influência da França e supremacia estadunidense, iniciado no segundo quartel do século passado.

Obstáculos culturais Especificamente no Brasil, a hegemonia da língua inglesa sucede a trezentos anos de influência da cultura francesa, conforme salienta Lia Wyler em Línguas poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil (2003). Historicamente, pode-se afirmar que essa mudança da referência cultural francesa – ocorrida, em grande parte, paralelamente à colonização portuguesa – para a anglo-americana é um tanto recente, os traços daquela cultura sendo ainda relativamente fortes em alguns segmentos da cultura das elites dominantes do país. Esta influência penetrou diferentes setores do tecido social, inclusive o mundo acadêmico. O elo entre a universidade brasileira e o pensamento francês, em particular no domínio das ciências humanas e sociais, é bastante estreito ainda hoje. Não é, portanto, por acaso que, na origem de várias editoras importantes, tais como Forense Universitária, Jorge Zahar Editor, Cosac Naify, Companhia das Letras, editora universitária Unesp e Edições Loyola, a Europa – e a França em particular – constitua uma referência em matéria editorial, cultural e de tradução. De fato, as editoras, empresas de origem familiar, foram em grande parte fundadas por pessoas possuidoras de Sumário

122 | A Circulação de Obras Francesas no Brasil... uma cultura de formação europeia. Há cinquenta anos, era sinal de distinção demonstrar gosto pela leitura em francês, alemão e italiano, e as elites culturais de São Paulo e do Rio de Janeiro formavam-se na França. O livro gozava de certo prestígio no seio da elite brasileira, e fundar uma editora significava, em larga medida, ter uma visão cosmopolita. O avô de um dos editores entrevistados, por exemplo, cuja editora, à época da entrevista, acabara de ser incorporada a um grupo editorial, foi embaixador do Brasil na França. O editor menciona a importância deste país na formação intelectual da antiga capital do Brasil, sublinhando a influência francesa na origem da empresa familiar. Afirma ele: Os antigos donos, um deles é a minha tia, tiveram formação clássica, estudaram na França quando tinham 15, 16 anos. Acho que ela foi pra Suíça ou pra França, eu não sei. E se foi pra Suíça deve ter ido pra algum lugar que falasse francês. Eles têm uma ligação muito grande com a França, de admiração. Até hoje, todo ano eles vão pra lá. (Entrevista com M, editor).

Atualmente, a situação mudou bastante, ao ponto de esta relação privilegiada com a França e a Europa quase não mais existir nas editoras e nas novas gerações. Alguns editores e tradutores não encontram, na literatura francesa contemporânea, nenhuma obra digna de ser traduzida e publicada. É o que evoca esta editora de uma empresa de porte médio, recentemente incorporada a um grande grupo editorial do Rio de Janeiro, para quem a “novidade” literária não se encontra mais na França nem no mundo ocidental: Eu acho que a literatura da França mesmo deu uma parada. Não há novidade, a meu ver, ultimamente. Eu vejo que as novidades estão vindo de países chamados exóticos. As literaturas que estão fazendo mais

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sucesso hoje em dia são dos indianos, dos afegãos, essa gente que a gente não conhecia muito até agora e que agora está aparecendo. Os chineses... Agora a gente tem lançado muito os chineses. (Entrevista com H, editora).

Ou ainda esta tradutora ligada a uma prestigiosa casa editorial de São Paulo: Eu ouvi gente dizendo que os franceses ultimamente têm escrito coisas que não são... Não tem nada de grande valor, quer dizer, não é “grande valor”, de grande interesse, não tem nada de muito universal, que eles estão olhando para o próprio umbigo. Sei lá, sei lá... não sei, não sei. Isso é fato... (Entrevista com Q, tradutora).

Semelhante argumento comporta a ideia de um esgotamento, ao menos conjuntural, da literatura francesa contemporânea, sentimento que parece compartilhado também por outra editora de uma importante casa editorial generalista: A literatura francesa contemporânea tá meio chata em geral! E isso é uma coisa que você não fica com muita vontade... Não tem muito assim... A americana é mais interessante... Não é? A americana não, a de língua inglesa, que pode ser inglesa... tem vários... (Entrevista com C, editora).

Esta ideia de esgotamento deve ser também associada à concorrência de outras literaturas, com ao aumento do número de traduções disponíveis no mercado editorial brasileiro – fato este que não deixa de ter relação com o recente desenvolvimento de cursos de formação de tradutores e a institucionalização do exercício da profissão. Sumário

124 | A Circulação de Obras Francesas no Brasil... Outro aspecto a salientar diz respeito à ideia difundida de que o livro francês em geral não vende, sobretudo a ficção contemporânea. No circuito de grande produção, as obras francesas seriam de difícil comercialização por terem um teor pretensamente mais reflexivo ou, simplesmente, porque o público brasileiro estaria mais habituado à produção anglo-americana, associada ao consumo de satisfação imediata incarnado no modelo da indústria de entretenimento. É o que emerge deste comentário da editora de um importante grupo editorial do Rio de Janeiro: A nossa impressão é que o leitor brasileiro não acredita na literatura de entretenimento francesa e menos ainda acredita na autoajuda, psicologia... francesa. Um livro de autoajuda francês não vende, só vende se for americano. (Entrevista com J, editora).

A cultura francesa está associada à imagem de sofisticação, ao consumo de artigos de luxo como vinhos, perfumes e moda. No contexto editorial, isto se traduziria na alta literatura ou produção de circulação restrita – aqui sinônimo seja dos autores clássicos, seja de uma produção contemporânea de difícil consumo, acessível apenas aos “iniciados”. Para esses editores, a produção francesa (ou mesmo a tipicamente europeia) não interessaria o leitor brasileiro, cujas categorias de gosto estariam atualmente mais afinadas, de uma forma geral, com o que vem do espaço angloamericano. Por trás desse argumento, percebe-se uma visão do público como grupo homogêneo, cujas categorias de percepção e gosto são tratadas em bloco. É possível lançar a hipótese de um mimetismo em relação ao sistema editorial estadunidense, cujo comportamento é similar, conforme aponta o estudo já mencionado de Gisèle Sapiro sobre o mercado editorial dos Estados Unidos (2012, p. 66). Como o Sumário

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desenvolvimento do setor de marketing e gestão empresarial brasileiro segue de perto o modelo estadunidense, inclusive na área editorial, não seria de estranhar que nossos editores tenham incorporado atitudes e disposições profissionais típicas de outra realidade, que passam dessa forma a moldar as práticas nacionais. Seria ainda o caso de se indagar até que ponto os editores se apoiam numa explicação justificadora de seu desinteresse pela cultura francesa (e, nesse sentido, também europeia), alinhando-se à pressão do mercado e da indústria de entretenimento estadunidense. Nessa linha de raciocínio, não haveria exatamente um desinteresse do leitor brasileiro pela cultura francesa, e sim um direcionamento da produção, por parte de atores do mercado editorial nacional, para a cultura anglófona. Nesse sentido, é oportuno lembrar a política de tradução maciça implementada no Brasil pelo governo estadunidense na década de 1960 e que, estendendo-se por mais de 25 anos (de 1960 a 1987 aproximadamente), foi responsável pela publicação em média de 1 título por dia, segundo Lia Wyler (2003). Ou seja, durante ¼ de século o governo dos Estados Unidos, por meio do Book Program, aclamado pela maioria dos editores nacionais, selecionou e subsidiou grande parte das obras estadunidenses que deveriam ser publicadas no Brasil, financiando tanto a tradução quanto a produção. As diferenças culturais entre Brasil e França também emergiram como elementos que podem dificultar a circulação de obras, sobretudo no que diz respeito à literatura infantil. Por um lado, a criança francesa seria mais precocemente formada para a leitura do que a brasileira. Assim, o editor precisa levar em conta essa defasagem na hora de lançar a obra no Brasil, redirecionando-a para crianças, em média, dois anos mais velhas. Por outro lado, além desse cuidado com a faixa etária, o editor brasileiro precisa ficar atento ao tratamento, considerado cru ou muito direto, dado Sumário

126 | A Circulação de Obras Francesas no Brasil... a determinados temas, a exemplo do divórcio e do homossexualismo, nos livros infantis franceses. Assim, para esta editora de livros infantis de uma importante casa editorial: Não é o tema, mas é o tratamento duro. Duro, eu digo, a verdade nua e crua assim. Porque na França tem o debate aberto, é uma impressão que eu tenho. Então é bem assim, a verdade nua e crua, não tem muito lirismo, não tem muita fantasia. Então eu acho que é isso que, talvez, não bate muito, não é muito o jeito daqui. Aqui as pessoas vão bem pelas beiradas pra chegar, tem sempre alguma imagem que alude e tal... (Entrevista com D, editora).

Conclusão Após este breve relato de alguns obstáculos culturais à circulação de obras francesas no Brasil, caberia indagar até que ponto as dificuldades enfrentadas por essas traduções não seriam de ordem mais ampla, comuns às outras línguasculturas, num contexto marcado pela hegemonia avassaladora do inglês. Afinal, à exceção da língua inglesa, as traduções do francês, do espanhol, do italiano e do alemão coabitam o mercado editorial brasileiro de forma mais ou menos equilibrada ou, pelo menos, não tão assimétricas quanto as traduções do inglês. A hegemonia do inglês seria também a hegemonia da cultura anglo-americana e de seus valores, inclusive de mercado. Nesse sentido, a aproximação do modelo de gestão das editoras brasileiras em relação às estadunidenses, por maior que seja a distância que separa esses dois mercados editoriais, não deve causar espanto. Contudo, numa cultura aberta ao estrangeiro como a brasileira, onde, para usar um lugar comum, quase tudo o que vem de fora é valorizado, soa paradoxal os editores Sumário

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evocarem que as obras francesas não vendem, que não há espaço para elas. Até que ponto estamos diante de uma falsa questão, de mais um “mito” do mercado editorial, dessa vez importado da realidade editorial estadunidense, esta sim tida como fechada à cultura do outro e hostil à tradução? Desenvolver esta hipótese exigiria trazer para a discussão a lógica econômica como princípio norteador por excelência do mercado editorial na era da globalização – mas isso já seria uma outra conversa...

REFERÊNCIAS DANTAS, Marta Pragana; PERRUSI, Artur Fragoso de A. Le reclassement d'une tradition: la traduction du français dans le marché éditorial brésilien. In: SAPIRO, Gisèle (Org.) Traduire La littérature et les sciences humaines. Conditions et obstacles. Paris, DEPS, 2012, p. 163-198. SAPIRO, Gisèle. Revaloriser la traduction dans um environnement hostile: le marché éditorial aux États-Unis. In: SAPIRO, Gisèle (Org.) Traduire La littérature et les sciences humaines. Conditions et obstacles. Paris, DEPS, 2012, p. 69-70. WYLER, Lia. Línguas poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

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Pedro Heliodoro Tavares

Michel Foucault, em seu texto de 1967 publicado em Cahiers de Royamont, intitulado Nietzsche, Freud, Marx, alia o criador da Psicanálise, justamente, aos dois autores com os quais mais se ocupou ao longo de sua obra. A tríade seria composta por se tratarem de pensadores que apresentam diferentes “técnicas de interpretação”. Seriam fundadores de outra relação da linguagem com suas representações, “fundaram novamente a possibilidade de uma hermenêutica” (FOUCAULT, 1967 p.42). Constituiriam espécies de espelhos que nos rodeiam e nos possibilitam fazer-nos enxergar, para além do narcisismo puro, também nossas falhas e nossas feridas narcísicas. “Eles não deram um sentido novo a coisas que não tinham sentido. Na realidade, eles mudaram a natureza do signo e modificaram a maneira pela qual o signo em geral podia ser interpretado.” (Idem, p.42). A interpretação é, de fato, tema central no pensamento freudiano. Não à toa, a sua obra fundamental se chama a Interpretação dos Sonhos, em alemão, Die Traumdeutung. Mas se pensássemos nessa nova hermenêutica como outra que desvela um sentido unívoco e verdadeiro por trás das brumas encobridoras do discurso manifesto, estaremos muito distantes das proposições psicanalíticas. Como já colocamos em outra ocasião (TAVARES, 2011), a Deutung, a interpretação, freudiana, em sua língua de expressão é etimologicamente ligada ao vocábulo que dá Sumário

130 | Desafios de Traduzir Freud como Autor... nome a essa mesma língua: Deutsch. Mais do que significar os teutos ou os germânicos, o termo refere-se ao que é do povo, sendo, por extensão, a designação da língua vernácula, comum, vulgar, e compreensível ao popular. Em relação ao latim, a outrora língua culta e consagrada da Roma dos Papas, thiudisco (deutsch) chegou a significar o que era pagão (GOLDSCHMIDT, 1988), em oposição à língua da Bíblia Sacra, da Vulgata latina na versão do patrono dos tradutores, São Jerônimo. Curioso que a língua em questão tenha justamente a sua fundação relacionada à outra tradução dos textos sagrados do cristianismo. Trata-se da Bíblia de Lutero, que chamou de Verdeutschung a sua fundamental empresa de tradução. Verdeutschung, com o uso do prefixo ver-, que serve de forma semelhante ao grego meta- ou ao de origem latina trans-, dá conta de uma travessia transformadora, nesse caso, do suposto inacessível ao suposto acessível. Retornando aos parentescos etimológicos, o verbo deuten está também ligado ao adjetivo deutlich, (compreensível, inteligível, claro). Não à toa, portanto, nesse livro fundamental de Freud, vemos a clara analogia entre a interpretação analítica e a tarefa tradutória no seguinte trecho: Pensamentos do sonho e o conteúdo do sonho nos são dados como duas apresentações do mesmo conteúdo em duas línguas diferentes, ou melhor, o conteúdo do sonho aparece como uma transposição dos pensamentos de sonho em um outro modo de expressão cujos caracteres e leis sintáticas podemos conhecer através da comparação do original com a tradução. (Traumgedanken und Trauminhalt liegen vor uns wie zwei Darstellungen desselben Inhaltes in zwei verschiedenen Sprachen, oder besser gesagt, der Trauminhalt erscheint uns als eine Übertragung der Traumgedanken in eine andere Ausdrucksweise, deren Zeichen und Fügungsgesetze wir durch die

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Vergleichung von Original und Übersetzung kennen lernen können) (FREUD, 1900 p. 283 grifo meu).

Na nossa língua portuguesa, entretanto, temos no vocábulo interpretação justamente uma ambiguidade referente à hermenêutica e à tradução. Interpretar dá conta de deuten, mas também de dolmetschen, verbo alemão, de origem turca, utilizado para caracterizar principalmente a tradução oral. Finalmente, interpretar é a ação de quem dá uma configuração artística ou cênica para o que foi escrito ou pensado por outrem, o que em alemão se traduziria por darstellen, como no caso da interpretação que um ator dá a um papel. Em se tratando de Freud e do seu livro fundamental, lembremos aqui justamente que, ao levar em consideração as travessias e traduções entre os conteúdos latentes e manifestos de uma construção do inconsciente, devemos ter em conta não somente as condensações (Verdichtungen) e deslocamentos (Verschiebungen), mas também a “consideração à figurabilidade” (Darstellbarkeit), relativa ao darstellen, portanto. Eis um ponto fundamental para pensarmos a tradução da obra de um autor tão complexo como é o caso de Freud. Com a noção de consideração à figurabilidade, associando os desvios da Verschiebung, e as faculdades poéticas (dichterisch) da Verdichtung,1 à figuração, mostra-se um grande desafio às traduções entre o inconsciente e o consciente e, por extensão, do saber formulado em língua alemã por Freud, que procurou com tal descoberta associar estilo e epistemologia, forma e conteúdo, estética e razão. Este é, aliás, o tema central da tese de Walter Schönau (2006) sobre os elementos estéticos da prosa freudiana, segundo ele, sempre trabalhando em favor das suas formuPensamos aqui na clara remissão de Verdichtung (condensação) à Dichtung (arte poética) e aos Dichter (escritores ficcionais). 1

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132 | Desafios de Traduzir Freud como Autor... lações científicas. Já outros estudiosos, tais como Walter Muschg (2009), pensam ser menos simples a distinção entre meio e fim ao tratar das qualidades estéticas e argumentativas da escrita freudiana. Patrick Mahony, talvez por ocupar uma posição dupla ou intermediária entre a Psicanálise e as Letras, caracteriza a escrita freudiana em seu Freud as a Writer (Freud como escritor) como uma espécie de cabeça de Jano: A prosa de Freud não apenas dramatiza e reflete, ela tem também valor racional e reflexivo. Mais do que qualquer outro analista, a prosa de Freud é bilateral, como o rosto de Jano, anfíbia, equilibrando entre mostrar e fazer, entre desempenho e descrição, refletindo e dando testemunho, processo primário e secundário, afeto e racionalidade, impulso e análise. Ela paira entre o consciente e o inconsciente é uma prosa limítrofe, por isso autenticamente “psicanalítica”. Janela e espelho juntos constituem a imagem apropriada para caracterizar sua prosa especulativa. (MAHONY 1989, p. 59)

Retornando a Michel Foucault, em O que é um Autor? ele apresenta Sigmund Freud, novamente com Karl Marx, como um pensador ou escritor que cumpre uma função muito específica e diferenciada em relação à grande maioria dos demais: ambos seriam, em suas palavras, autores “fundadores de discursividade”. Esses autores têm em particular o fato de que eles não são somente autores de suas obras, de seus livros. Eles produziram alguma coisa a mais: a possibilidade e a regra de formação de outros textos. Nesse sentido, eles são bastante diferentes, por exemplo, de um autor de romances que, no fundo, é sempre o autor de seu próprio texto. Freud não é simplesmente o autor da Traumdeutung ou de O chiste: (...) eles estabeleceram

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uma possibilidade infinita de discursos. (...) eles não tornaram apenas possível um certo número de analogias, eles tornaram possível (e tanto quanto) um certo número de diferenças. Abriram espaço para outra coisa diferente deles e que, no entanto, pertence ao que eles fundaram (FOUCAULT, 1969 p. 280).

Quer dizer, a noção de autoria aqui não se limita aos textos, mas estende-se ao discurso. Eis um ponto fundamental para pensarmos a migração de seu vocabulário do campo exclusivamente médico-cientificista para o de um novo saber clínico por ele criado tendo a Literatura, a Antropologia, a Filosofia, a Historia das Religiões, entre outros aliados para a sua constituição. Tendo usado para a formação de seu saber terminologias de origens mais diversas: mitologia (narcisismo, complexo de Édipo), Sociologia (pulsão gregária), Antropologia (totem, tabu, horda), Medicina (afecção, etiologia), entre outros, tais conceitos sofrem em seu uso por Freud um processo de anassemia, noção introduzida por Nicholas Abraham (apud DERRIDA, 2000 p. 109) para demonstrar os novos sentidos de que um vocábulo comum se reveste ao ser introduzido na teoria psicanalítica. Nesse sentido, aliás, Foucault nos adverte sobre o quanto a descoberta ou o resgate de um novo texto de um autor como Freud tem um peso completamente distinto para a sua compreensão do que no caso de outros autores, não-fundadores de discursividade. Não há nenhuma probabilidade de que a descoberta de um texto desconhecido de Newton ou de Cantor modifique a cosmologia clássica ou a teoria dos conjuntos. (...) Em compensação, o reexame dos textos de Freud modifica a própria psicanálise. (...) a reedição de um texto como o Projeto de Freud corre sempre o risco de modificar não o conhecimento histórico da

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134 | Desafios de Traduzir Freud como Autor... Psicanálise, mas seu campo teórico (FOUCAULT, 1969 p. 285).

Coordenando, no momento, um novo projeto de traduções da obra de Freud, a coleção Orbas Incompletas de Sigmund Freud (Ed. Autêntica), percebemos justamente algo desta ordem no processo de tradução de um texto de Freud até o momento inédito no Brasil, seu primeiro livro: Sobre a Concepção das Afasias – Um Estudo Crítico de 1891. Trata-se de um livro sui generis, que permanece no Brasil e em grande parte do mundo como uma espécie de texto “apócrifo” (TAVARES in FREUD, 2013 p. 7), visto que não figura nas mais conhecidas compilações de suas obras ditas completas. Escrito ainda pelo Freud neurologista, é um livro anterior à fundação da Psicanálise, mas certamente um livro que prepara o seu terreno. Trata-se, logo, de um texto de rupturas, por um lado, mas de inícios, por outro, e também por esse motivo foi o escolhido para abrir a coleção ao lado de outro importante escrito de Freud: seu derradeiro Compêndio de Psicanálise [Abriss der Psychoanalyse] de 19392. Com o primeiro e o último trabalhos de Sigmund Freud, não somente apresentamos “o alfa e o ômega” de seu pensamento, como apontamos também para as origens e transformações de seu vocabulário teórico fundamental. Oriundo das problemáticas neurológicas, gradativamente ele vai se revestindo de novos sentidos, à medida que a atenção às estruturas físico-biológicas – nas quais se supunha poder “localizar” a linguagem – dão lugar às abstrações estruturais que fazem da própria linguagem o substrato para a compreensão do psiquismo. Se Sobre a concepção das afasias nos aporta a noção de um “aparelho” de linguagem através do conceito apresentado na palavra composta Sprachapparat, o último livro de Freud, que condensa o 2

Volume em fase de preparação.

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essencial de sua obra e vocabulário teórico, tem como título do capítulo de abertura: O Aparelho Psíquico [Der Psychische Apparat], por vezes também referido pela composição Seelenapparat, ou aparelho anímico. Quanto a tais relações entre o vocabulário inaugural de Sobre a Concepção das Afasias e o derradeiro, do Compêndio, percebe-se no primeiro texto a origem neurológica do conceito de associação [assoziieren], inicialmente relacionado às comunicações nervosas, mas posteriormente utilizado para nomear o método clínico da livre associação de ideias através da fala. Está ali também a transferência [Übertragung] dos impulsos nervosos, posteriormente ressignificada para tratar da relação substitutiva do analisante perante o analista. Da mesma forma, estão ali presentes o estímulo [Reiz], e suas excitações [Erregungen], como perturbações fisiológicas posteriormente relacionadas às pulsões [Triebe] e suas moções [Regungen]. Vemos ali igualmente de modo inaugural a representação de palavra e representação de objeto [Wortvorstellungen e Objektvorstellung]; a via [Bahn] nervosa e o respectivo verbo trilhar/facilitar [bahnen], “abrindo o caminho” para o conceito posterior de trilhamento ou facilitação [Bahnung]. Talvez o exemplo mais instrutivo de “migração dos conceitos” se refira ao verbo besetzen e seu respectivo substantivo derivado Besetzung. No Estudo vemos a tradução por ocupar e ocupação, para o que é tão evidente na morfologia da palavra alemã relacionada ao verbo setzen [sentar/ assentar]. Freud descreve inicialmente como “a ocupação de um território livre” o processo neurológico da aquisição linguística. Curiosamente, porém, este termo foi introduzido no Brasil através do neologismo catexia a partir de cathexis da edição inglesa, sendo posteriormente difundida a opção por investimento, possível interpretação do conceito pelo viés econômico de leitura.

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136 | Desafios de Traduzir Freud como Autor... Pois bem, Freud dedicou sua careira intelectual e sua obra escrita à construção de um campo do saber, de uma Ciência, como ele se referia à Psicanálise, e parece de elevada importância a renovação de uma discussão a respeito da sua terminologia, de seu vocabulário especializado, no momento atual, quando a partir de 2010 suas obras entraram para o domínio público e finalmente temos a oportunidade de ver surgir as primeiras versões diretas3 de seus escritos para a língua portuguesa.4 Ao mesmo tempo, sabemos que a discussão em torno do vocabulário freudiano envolve aspectos muito mais complexos do que a mera identificação de um conjunto de termos técnicos. Ao lermos um texto deste autor nos confrontamos, para muito além de um pensée pensée, das típicas exposições objetivas e inequívocas do pensamento científico, com um pensée pensante de um mestre da escrita, da crítica, da reflexão. Os escritos de Freud refletem uma experiência de um saber em formação e em constante revisão, a partir do qual nem sempre é simples um posicionamento sobre quais vocábulos devem ser elevados à categoria de conceito. Valendo-se sempre de sua grande erudição e de ensinamentos obtidos das mais diversas áreas do conhecimento, em seu trabalho Über die Psychotherapie (Sobre a psicoterapia) (1905) Freud se faz valer das observações de outro gênio eclético, Leonardo da Vinci, para estabelecer um símile entre o trabalho analítico e a escultura, sua grande As duas compilações disponíveis da obra de Freud em língua portuguesa ao longo do século vinte foram elaboradas de modo indireto partir do francês (Editora Delta) e do inglês (Editora Imago). 4 Partes do que segue foi previamente apresentado em meu artigo TAVARES, Pedro Heliodoro M. B. O vocabulário metapsicológico de Sigmund Freud: da língua alemã às suas traduções. Pandaemonium germanicum. [online]. 2012, vol.15, n.20, pp. 01-21. ISSN 19828837. 3

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paixão de colecionador. Na escultura, diferentemente da pintura, que opera per via di porre, ajuntando as cores à tela vazia, o trabalho se daria per via di levare, retirando-se do bloco bruto todos os excessos, para que fique somente a forma essencial almejada. Nesse sentido, tanto na sua técnica quanto nas suas proposições teóricas, Freud buscava algo além de acrescentar mais e mais conceitos, regras e axiomas, promovendo um acúmulo de fórmulas e termos. Assim como o trabalho de análise visava à remoção dos excessos, livrando o analisante dos sentidos e sofrimentos excedentes e inconscientemente autoimpostos, seus escritos – via de regra amparados numa estilística apurada que unia beleza e razão – estavam mais comprometidos em desvencilhar o leitor de concepções e conceitos equivocados, do que um apresentar novos conceitos a serem incorporados e admitidos. Raramente um escrito do criador da psicanálise pode ser lido como um mero texto técnico-descritivo, o que até hoje faz com que seus leitores se aproximem de sua obra também pela via da Literatura, da Ensaística ou da Crítica Cultural. Walter Muschg, em seu histórico ensaio Freud als Schriftsteller (Freud como escritor) declara que o escritor Freud não poderia ser separado do cientista (1930, p. 303) e neste sentido faz coro com a impressão de outros grandes nomes da literatura e da cultura de expressão alemãs. Thomas Mann teria afirmado em seu ensaio Freud und die Zukunft (Freud e o Futuro): “Freud escreve de modo geral em uma prosa de forte cunho ilustrativo, é um artista do pensamento tal qual Schopenhauer e, como ele, um escritor europeu.”5 (1955 p. 499). Einstein, em carta a Freud, declara: “Admiro especialmente sua produção, como a todos os seus “Freud schreibt überhaupt in eine höchst anschauliche Prosa, er ist ein Künstler des Gedankens wie Schopenhauer und wie er ein europäischer Schriftsteller“. 5

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138 | Desafios de Traduzir Freud como Autor... escritos, do ponto de vista literário. Não conheço nenhum contemporâneo nosso que apresentou seus objetos de investigação com tanta maestria na língua alemã”.6 (apud SCHÖNAU 2006 p. 265). Hermann Hesse, por fim, teria escrito em resenha à Neue Rundschau: “Sua obra desperta convicção também fora do seu milieu devido às suas elevadas qualidades tanto humanas quanto literárias. (...) O Freud pesquisador esmerado, lógico da clareza, criou um instrumento privilegiado em uma linguagem altamente intelectualizada, mas também de um agudo esplendor, de exata definição, bem como de lúdica capacidade combatida e satírica”.7 (idem) Quer dizer, através de sua refinada prosa, Freud supera em muito o objetivismo formal dos cientistas ou filósofos com suas articulações terminológicas, o que também não implica dizer que o autor estaria descomprometido com um rigor intelectual e que deveria ser relegado simplesmente ao plano da Beletrística. Se muitos justificam a aproximação de Freud da literatura, e com isso quase que um decorrente afastamento do científico, por ele ter sido o agraciado com o Prêmio Goethe em 1930, valeria lembrar que, mais do que um prêmio “literário”, este era destinado aos grandes nomes da cultura que, tal qual Goethe, desenvolviam um pensamento movidos por uma curiosidade que

„Ganz besonders bewundere ich Ihre Leistung, wie alle Ihre Schriften, vom schriftstellerischen Standpunkt aus. Ich kenne keinen Zeitgenossen, der in deutscher Sprache seine Gegenstände so meisterhaft dargestellt hat”. 7 “Sein Werk überzeugt auch außerhalb der Gilde durch ganz hohe menschliche wie literarische Qualitäten. (…) Der sorgfältige Forscher und klare Logiker Freud hat sich ein vorzügliches Instrument in seiner ganz intellektualistischen, aber prachtvoll scharfen, genau definierenden, gelegentlich auch kampf- und spottlustigen Sprache geschaffen“. 6

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atravessava às fronteiras entre literatura, ciência, política, filosofia, etc. O Prêmio Goethe, ao contrário do que muitos pensam, não é literário. Embora a maioria dos agraciados com essa distinção tenham sido escritores e poetas, o prêmio já foi concedido ao arquiteto Walter Gropius (1961), ao cineasta sueco Ingmar Bergman (1976) e à dançarina e coreógrafa Pina Bausch (2008), entre outros. (BRACCO 2011, p. 253)

Como esclarece Walter Plänkers, o prêmio é destinado a "reconhecidas personalidades, cujas realizações criadoras são dignas de honrar a memória de Goethe" (PLÄNKERS 1993, p. 169 apud BRACCO 2011, p. 253). Se o primeiro a ganhar o prêmio foi um poeta, Stefan George, o segundo foi um médico que também se ocupou com a Música e a Filosofia; a saber, Albert Schweitzer. Entre a Medicina de sua formação e prática profissional, e a prosa que lhe rendeu o reconhecimento até mesmo dos maiores escritores contemporâneos seus, é comum se comentar que Freud jamais teria recebido o Prêmio Nobel por ter sido “demasiado médico” para receber o de Literatura e “demasiado literário” para receber o de Medicina. Freud foi agraciado na quarta edição do Prêmio Goethe, segundo Alfons Paquet, membro do Kuratorium responsável, muito mais em decorrência de sua “afinidade espiritual” com o talentoso, ousado e influente Goethe do que unicamente por seus méritos como escritor: “A homenagem que lhe é destinada, vale tanto ao intelectual, quanto ao escritor e ao combatente, que em nossos tempos abalados por cáusticas questões, afirma-se como referência de uma das faces mais vivas do espírito/ser (Wesen)

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140 | Desafios de Traduzir Freud como Autor... goetheano”.8 (in FREUD 1930, p. 546). Talvez aí a identificação com o pensamento do inquieto, combativo, polêmico Freud mais lembre uma personagem de Goethe, seu Fausto, do que o próprio intelectual que dá nome a premiação. Goethe, autor do drama sobre o doutor pactário, foi o “autor literário” mais citado por Freud em seus símiles teóricos, mas era também o grande investigador da natureza (geologia, botânica, teoria das cores) contribuindo com tais características para se tornar, juntamente o também tão genial como polivalente Leonardo, um modelo intelectual ao nosso autor desde os tempos de juventude. A bem da verdade, são os três, Goethe, Leonardo e Freud espíritos fáusticos que não se conformam aos limites acadêmicos, estilísticos, desta ou daquela área específica do saber ou do fazer. Não à toa utilizei como epígrafe ao livro Versões de Freud – Breve panorama crítico das traduções de sua obra um dos mais famosos versos do Fausto de Goethe: “Du gleichst dem Geist den du begreifst, nicht mir”, sem apresentar uma tradução. O verso perde muito em qualquer tradução e não somente em sua beleza sonora e de aliterações. Se numa tradução mais direta teríamos: “Igualas o espírito que apreendes, não a mim”, não seriam essas para os dois verbos e para o único substantivo aí presentes soluções tão simples na passagem de uma língua à outra. Pedimos aqui licença para certa digressão no tocante aos elementos desta frase, que nos serão úteis em nossas questões sobre o vocabulário freudiano. Comecemos pelo complexo caso do substantivo Geist, vocábulo tão comum para o falante nativo da língua alemã, e “Die Ihnen zugedachte Ehrung gilt im gleichen Masse dem Gelehrten wie dem Schriftsteller und dem Kämpfer, der in unserer, von brennenden Fragen bewegten Zeit dasteht als ein Hinweis auf eine der lebendigsten Seiten des Goetheschen Wesens”. 8

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ironicamente tão fugidio para aquele que busque traduzi-lo. Na passagem do drama em que aparece a frase, Fausto se vê desiludido por não poder absorver, igualar-se em poder, conhecimento ou gozo ao que é de ordem sobre-humana, como o caso do “gênio” ou “espírito” evocado. Para além da Literatura e da Ciência, no mito de Fausto a alegoria do pacto com o demônio / renegação de Deus, implica também um contato com o metafísico. Geist é afinal o termo que aparece no “conceito” cristão de Espírito Santo (Άγιος Πνεύματος - heiliger Geist). Etimologicamente próximo do ghost inglês, o vocábulo remete também às assombrações, ao desconhecido e unheimlich a ser temido e evitado, como no caso do nunca traduzido Poltergeist. Alladin, das Mil e uma noites, encontra também em sua lâmpada maravilhosa o Geist (Gênio), ente maravilhoso que pode conceder-lhe a realização de seus desejos. Mas também na tão racional Filosofia o mais célebre tratado de Hegel versa sobre o Geist, sendo traduzido o título Phänomenologie des Geistes, hora como Fenomenologia do Espírito, hora como Fenomenologia da Mente. Por fim, no âmbito científico, temos a famosa divisão proposta por Dilthey entre as Naturwissenschaften (Ciências Naturais) e Geisteswissenschaften (Ciência Humanas/Ciências do Geist). Com este exemplo de um termo tão comum da língua alemã, podemos ter ideia de algumas das dificuldades que se impõem a um tradutor de Freud visando “apreender-lhe o espírito/gênio”. Como ocorre com muitos outros intelectuais germanófonos – caso do mencionado Hegel – Freud se utilizava geralmente de termos de uso cotidiano da língua numa trama teórica muito particular. No caso freudiano algo semelhante se daria em relação aos seus usos do também fronteiriço (Religião, Filosofia, misticismo) vocábulo Seele. Praticamente equivalendo ao uso do vocábulo de origem grega Psyche (Ψυχή), numa tradução direta de Seele teríamos a palavra alma, palavra que no português está tão comproSumário

142 | Desafios de Traduzir Freud como Autor... metida com o discurso místico-religioso. Dificilmente Seele poderia equivaler no contexto científico ao parente etimológico soul na língua de Shakespeare. Mesmo assim, sabemos o quanto foi criticada a opção por mind (mente), na Standard Edition inglesa, sendo inclusive defendida a opção por soul na polêmica levantada por Bruno Bettelheim (1983). Retornaremos mais adiante aos conceitos-substantivos, mas voltando à citação do Fausto, temos ali dois verbos – gleichen e begreifen – que aparecem de forma reiterada em suas variantes nesta obra máxima da cultura germanófona tão influente nas elaborações teóricas de Freud. Se é que números significariam algo em tal contexto, há somente no Faust – Erster Teil setenta e nove ocorrências de palavras com o étimo gleich e vinte e cinco com greif ou grif. No Zweiter Teil chegam a cem as ocorrências para variantes de gleich e quarenta e oito para greif/grif (GOETHE, 1996). Quer dizer, mais do que uma mera citação, a frase reproduz algo de essencial do drama e da personagem hibrística em questão numa dicotomia que nos parece fundamental ao espírito epistemifílico de Freud. Se a frase citada vem no início da Primeira Parte, lembremos que no segundo Fausto, aparece o paradigmático episódio do Grifo (Greif) na Noite de Walpurgis clássica, que com suas garras nada apreende/agarra (greift) que lhe traga satisfação; passagem que nos remete à melancolia do velho Fausto no início do drama. Igualmente paradigmática seria a conclusão do drama, quando nos versos finais aparece também um derivado de gleich, a saber, Gleichnis (parábola, símile, metáfora). Alles Vergängliche / Ist nur ein Gleichnis; / Das Unzulängliche, / Hier wird`s Ereignis; / Das Unbeschreibliche, / Hier ist`s getan; / Das Ewig-Weibliche / Zieht uns hinan.

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(Todo o transitório / Não passa de um símile / O inacessível / Aqui se torna fato / O indescritível / Aqui é elaborado / O eterno-feminino / Atrai-nos para si)

Patrick Mahony, como vimos, trata desta dupla natureza da escrita freudiana – espécie de cabeça de Jano – entre as capacidades estético-representacionais do gleichen e racionais-argumentativas do begreifen, ainda que para isso se utilize em sua bela análise as noções verbais do mostrar e do fazer. Mas um ponto fundamental no tocante ao verso extraído do Fausto e o tema deste trabalho diz respeito à relação que se coloca entre o verbo begreifen (entender, apreender) e seu substantivo mais diretamente aparentado: Begriff, ou seja, conceito. Quer dizer, o vocábulo conceito (termo técnico) na língua de Freud denota uma busca de “agarrar” determinada noção (Vorstellung). Se levantamos a questão do estilo e vimos o quanto a sua obra é perpassada por Gleichnisse (símiles, parábolas, comparações) tão minuciosamente analisados na tese de Schönau (2006), certamente há também em seus escritos a preocupação com a elaboração de conceitos, ou Grundbegriffe (conceitos fundamentais) como os teria chamado. Se na tradução do trecho supracitado procuramos recuperar o semântico, maltratando tanto as outras facetas da poesia é porque na própria tradução algo deste “inalcançável” (das Unzulängliche), “indescritível” (das Unbeschreibliche) se manifesta na busca pelos “símiles” (Gleichnisse). Freud com suas ideias e sua tradução em palavras foi fáustico ao tentar confluir o gleichen (igualar/assemelhar) e o begreifen (apreender/compreender). Walter Jens usou como título a um importante trabalho seu sobre a escrita de Freud Ein jüdischer Faust (Um Fausto Judeu), tamanha a influência da personagem goetheana sobre o psicanalista e sua criação. A elaboração da imagem biográfica de Freud tão diretamente relacionada à do herói pactário foi direta ou Sumário

144 | Desafios de Traduzir Freud como Autor... indiretamente analisada por vários autores conforme demonstrado em outra publicação nossa (TAVARES, 2008). Entendemos que a tradução de Freud – autor tão multifacetado – deve, portanto ser encarada de forma complexa. Sua tradução não envolve tão somente o conhecimento das duas línguas e de uma boa técnica de tradução. Do texto de Freud, traduz-se também o substrato teórico que sustenta uma prática clínica amparada nas capacidades representacionais e transformadoras da palavra. A questão é que na estilística de Freud e nas suas opções de vocabulário, como vimos ao início, forma e conteúdo confluem. Para usar os vocábulos de Freud a respeito da formação dos sonhos, chiste, atos-falhos ou de outras construções do inconsciente, há que se levar em conta as Vorstellungen, representações ideativas, e as Darstellungen, representações figurativas, presentes e conjugadas em seus escritos. É fundamental, portanto, proceder à “escuta do texto” para que alguém possa desse autor se tornar “intérprete”. Freud, afinal, usou palavras muito comuns e cotidianas, tais como Lust (desejo, prazer, vontade), Drang (ímpeto, pressão, ânsia) ou Angst (medo, angústia, ansiedade), dandonos a impressão de tanta facilidade de leitura e, consequentemente, de tradução. Entretanto, ele soube de tais palavras explorar ao extremo suas polissemias, chegando às anassemias. Logo, uma tradução que levasse em consideração somente a superfície do discurso perderia muito do Spiel (jogo / brincadeira / representação cênica) com os vocábulos envolvidos nos seus construtos. Na cena inconsciente, assim como na escrita de Freud, a consideração à figurabilidade é um requisito essencial ao tradutor em sua montagem-tradução, com as palavras de que pode dispor na língua de chegada. Nesse sentido, lembremos que Übertragung, a “transferência” que Freud utilizou para falar do envolvimento afetivo por substituição na clínica, funciona como excelente sinônimo de tradução Sumário

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(Übersetzung) em sua língua, o que nos convida a pensar a importância do “envolvimento” de um tradutor com o teor do que ele transfere de um autor-fonte a determinado leitoralvo.

REFERÊNCIAS BETTELHEIM, Bruno. Freud and man’s soul. Nova Iorque: Knopf, 1983. BRACCO, Mariangela Oliveira Kamnitzer. Freud e o Prêmio Goethe. J. psicanal. [online]. 2011, vol.44, n.81, pp. 253-258. DERRIDA, Jacques. Eu – A psicanálise – Introdução à tradução – A casca e o ovo (de Nicolas Abraham). Trad. de Maria José Coracini. in Alfa – Revista de Linguística. Volume Especial: Tradução Desconstrução e Pós-Modernidade. São Paulo: Editora da UNESP, 2000, No. 44, pp. 189-195. FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. in Ditos & Escritos II – Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Trad. Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1967/2000. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? in Ditos & Escritos III – Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Trad. Inês Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1969/2001. FREUD, Sigmund. Gesammelte Werke - Chronologisch geordnet. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1999. FREUD, Sigmund. Sobre a concepção das afasias – Um estudo crítico. Trad. Emiliano de Brito Rossi. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. GOETHE, Johann Wolfgang. Faust I und II. Colônia: Könnemann, 1996. GOLDSCHMIDT, Georges-Arthur. Quand Freud voit la mer - Freud et la langue allemande 1. Paris : Buchet-Chastel, 1988. JENS, Walter. Ein jüdischer Faust. Portal do jornal Die Zeit. Disponível em : http://www.zeit.de/1961/08/ein-juedischerfaust. Acesso em 02/02/2011. MAHONY, Patrick. Freud as a Writer. Nova Iorque: Yale University Press, 1987.

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146 | Desafios de Traduzir Freud como Autor... MANN, Thomas. Freud und die Zukunft in Adel des Geistes. Frankfurt am Main: Fischer 1955. MUSCHG, Walter. Freud als Schriftsteller. In Die Zerstörung der deutschen Literatur. Berna: Diogenes. 2009. SCHÖNAU, Walter. Sigmund Freuds Prosa - Literarische Elemente seines Stils. Giessen: Psychosozial-Verlag, 2006. TAVARES, Pedro Heliodoro. O mito de Fausto na construção da imagem biográfica de Freud. Acheronta – Revista de Psicoanlálisis y Cultura [online]. 2008, vol.25. TAVARES, Pedro Heliodoro. Versões de Freud – Breve panorama crítico das traduções de sua obra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.

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Tito Lívio Cruz Romão

Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (Breslau, 21.11.1768; Berlim, 12.02.1834) estudou Teologia Evangélica em Halle. Antes de se formar, foi preceptor, até o ano de 1793, na casa de uma família de boa estirpe na cidade de Schlobitten, Prússia Ocidental, e professor em um orfanato de Berlim, até terminar seus estudos superiores e ordenar-se. Em 1794, assumiu funções eclesiásticas em Landsberg/ Warthe. Escreveu várias obras de cunho filosófico e teológico, além de ter-se consagrado como tradutor das obras platônicas. Tornou-se célebre o seu ensaio “Ueber die verschiedenen Methoden des Uebersezens”1 [Sobre os diferentes métodos de traduzir], apresentado em forma de conferência na Academia Real de Ciências em Berlim no dia 24 de junho de 1813 e publicado em suas obras completas em 1838 pelo editor G. Reimer. No referido ensaio2, Friedrich Schleiermacher faz seus primeiros questionamentos sobre a necessidade que o Os excertos citados a partir de obras alemãs escritas em alemão serão mantidos na ortografia da edição original. Na versão em português, os nomes próprios serão escritos na versão original e apresentados, na tradução, na atual ortografia alemã (p.ex.: Voss / Voß). 2 No tocante às informações aqui apresentadas sobre o ensaio de Friedrich Schleiermacher, o autor deste artigo toma por base, na 1

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148 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher... ser humano amiúde tem de comunicar algo apresentado por outrem num discurso. Nesta situação, alguém poderá servir de intermediador, sem todavia utilizar as mesmas palavras do enunciador, pois a estas imprimirá uma menor ou uma menor força, dependendo de como as perceba. Destaca ainda que isso também ocorre com os nossos próprios discursos, que, depois de certo tempo, precisam ser recontados, devendo ser “retraduzidos” dentro de uma língua ou dialeto. Schleiermacher aponta que tal fato costuma ocorrer nos mais diversos campos do conhecimento humano: ciências, comércio, diplomacia etc. Aborda igualmente a dificuldade maior que se nos apresenta, ao termos de traduzir ideias de uma língua estrangeira para a nossa respectiva língua vernacular. Neste campo, distingue duas tarefas básicas: a do intérprete, que atua no campo dos negócios, e a do “verdadeiro tradutor”, que atua basicamente no campo da ciência e da arte. Revela que “traduzir produções científicas e artísticas de boca a boca”, sem a forma escrita, como pode ocorrer no campo dos negócios com intérpretes, seria desnecessário e até parece impossível. Chega a ressaltar a importância da escrita para os negócios, embora afirme que a oralidade é própria do métier dos negócios. Na sua distinção entre o trabalho do intérprete e o do tradutor, a qual deve ser entendida à luz da sua época, também indica que a tarefa de quem traduz relatos de jornais ou de viagens muito mais se inseriria no campo de trabalho de um intérprete. Em contrapartida, reconhece a importância e a gravidade de temas discutidos em negociações jurídicas, que, por seu cunho científico, demandam a atuação de um tradutor. Schleiermacher aborda, ainda, a problemática das línguas que não têm, entre si, um forte grau de parentesco e que, por maioria das vezes, a antologia bilíngue Clássicos da Tradução, Vol. 1, Alemão-Português, organizada por HEIDERMANN (2001), em que o referido ensaio foi traduzido por Margarete vonMühlenPoll.

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isso, não contam sequer com relações morfológicas e gramaticais coincidentes, e ainda menos no que tange à semântica e ao léxico. Tal situação agrava-se, afirmava o ensaísta, quando o tradutor vê-se diante de produções nos campos das artes e das ciências, onde domina, sobremaneira, o pensamento. Além disso, na tradução de textos literários e científicos, não se tem, em geral, a ajuda de um intérprete in loco. Para Schleiermacher, é relevante e decisivo ser dominado pela língua que se fala, já que se é, pois, um produto desta. Corroborando sua ideia, diz: Uma pessoa não poderia pensar com total certeza nada que estivesse fora dos limites dessa língua; a configuração de seus conceitos, a forma e os limites de sua combinabilidade lhe são apresentados através da língua na qual nasceu e foi educada, inteligência e fantasia são delimitadas através dela. (SCHLEIERMACHER, 2001, p. 37)3

Não esquece, todavia, de ressalvar que toda pessoa pensa de forma intelectualmente livre e também acaba formando, reformando e transformando a língua por meio de suas idiossincrasias. Dentro dessa linha de raciocínio, admite que “todo discurso livre e mais elevado” será marcado por dois fatores: a) pelo espírito da língua de cujos elementos o discurso é formado; e b) pela alma do enunciador. Sem um entendimento dessa interação, o discurso não seria, portanto, compreendido. Após reconhecer o grau de dificuldade de comunicação nessa esfera do discurso dentro de uma mesma língua, Er kann nichts mit völliger Bestimmtheit denken, was außerhalb der Grenzen derselben läge; die Gestalt seiner Begriffe, die Art und die Grenzen ihrer Verknüpfbarkeit ist ihm vorgezeichnet durch die Sprache, in der er geboren und erzogen ist, Verstand und Fantasie sind durch sie gebunden. 3

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150 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher... Schleiermacher volta-se para a problemática do discurso a ser intermediado entre duas línguas distintas. Ressalta com veemência a necessidade de os leitores, para entenderem o autor lido, captarem o modo particular de pensar e sentir de cada autor. Diante da tarefa de mediação entre autor e leitor com experiências distintas, Schleiermacher esclarece que, antes de se falar em tradução, é preciso registrar que há duas outras formas de mediação, de comunicação, por assim dizer, entre dois mundos linguísticos distintos. Por um lado, haveria a paráfrase e, por outro, a imitação. Schleiermacher esclarece o papel da paráfrase desta forma: O parafraseador lida com os elementos de ambas as línguas como se fossem sinais matemáticos que se deixam levar aos mesmos valores por adição e subtração, e nem o espírito da língua traduzida, nem o da língua original conseguem aparecer nesse procedimento. (SCHLEIERMACHER, 2001, p. 41)4.

A imitação, por sua vez, é o ato de quem, por não poder ou não querer dominar a “irracionalidade das línguas”, não veria outra solução a não ser apresentar “um todo composto de elementos visivelmente diferentes dos do original, que, contudo, aproximasse o seu efeito daquele, tanto quanto as diferenças de material ainda lhe permitissem” (SCHLEIERMACHER, 2001, p. 41). Por fim, Schleiermacher apresenta quem seria o verdadeiro tradutor, aquele profissional “que realmente pretende levar ao encontro essas duas pessoas tão separadas, seu autor e seu leitor, e conduzir o último a uma compreDer Paraphrast verfährt mit den Elementen beider Sprachen, als ob sie mathematische Zeichen wären, die sich durch Vermehrung und Verminderung auf gleichen Werth zurükkführen ließen, und weder der verwandelten Sprache noch der Ursprache Geist kann in diesem verfahren erscheinen. 4

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ensão e uma apreciação tão correta e completa quanto possível e proporcionar-lhe a mesma apreciação que a do primeiro, sem tirá-lo de sua língua materna” (SCHLEIERMACHER, 2001, p. 43). Abrindo suas explicações, logo aponta “os dois únicos caminhos” a serem percorridos por esse profissional: ou o tradutor deixa o autor em paz e leva o leitor até ele; ou deixa em paz o leitor e leva o autor até ele. Essas duas vias, segundo o ensaísta, implicariam, naturalmente, metodologias distintas, a saber: No primeiro caso, a saber, o tradutor está empenhado em substituir, através de seu trabalho, a compreensão da sua língua de origem, que falta ao leitor. Ele tenta transmitir aos leitores a mesma imagem, a mesma impressão que ele próprio teve através do conhecimento da língua de origem da obra, de como ela é, e tenta, pois, levá-los à posição dela, na verdade estranha para eles. Mas se, por exemplo, a tradução quer deixar seu autor romano discursar como ele teria discursado e escrito em alemão para alemães, então ela não leva o autor apenas até a posição do tradutor, pois também para este o autor não discursa em alemão, mas em romano, muito mais ela o empurra diretamente para dentro do mundo dos leitores alemães e o torna igual a eles, e este é o outro caso. (SCHLEIERMACHER, 2001, p. 43s.)5 Im ersten Falle nämlich ist der Uebersezer bemüht, durch seine Arbeit dem Leser das Verstehen der Ursprache, das ihm fehlt, zu ersezen. Das nämliche Bild, den nämlichen Eindrukk, welchen er selbst durch die Kenntniß der Ursprache von dem Werke, wie es ist, gewonnen, sucht er den Lesern mitzutheilen, und sie also an seine ihnen eigentlich fremde Stelle hinzubewegen. Wenn aber die Uebersezung ihren römischen Autor zum Beispiel reden lassen will wie er als Deutscher zu Deutschen würde geredet und geschrieben haben: so bewegt sie den Autor nicht etwa nur eben so bis an die Stelle des Uebersezers, denn auch dem redet er nicht 5

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152 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher... Segundo Schleiermacher, no primeiro caso haveria uma tradução que, a seu modo, atingiria o grau da perfeição, imaginando-se que, na situação descrita por ele, em que o tradutor alemão assumisse a função do escritor, seria como se, na verdade, o próprio autor romano soubesse alemão como o tradutor sabia romano e naquela língua houvesse escrito. No outro caso, mostrar-se-ia o autor como ele teria escrito originalmente em alemão, mas como alemão. Diante desse dilema, lembra ainda a existência de um terceiro método: Ambos os partidos separados (sic)6 precisam ou se encontrar em algum ponto intermediário, e esse sempre será o tradutor, ou um tem de se dispor completamente ao outro, e aqui somente aquela forma entra no campo da tradução; a outra entraria se, no nosso caso, os leitores alemães tivessem domínio total da língua romana ou, antes ainda, se esta se apoderasse completamente deles e até a transformação. (SCHLEIERMACHER, 2001, p. 45)7

deutsch, sondern römisch, vielmehr rükkt sie ihn unmittelbar in die Welt der deutschen Leser hinein, und verwandelt ihn in ihres gleichen; und dies eben ist der andere Fall. 6 O autor deste artigo optaria por “ambas as partes”. 7 Die beiden getrennten Partheien müssen entweder an einem mittleren Punkt zusammentreffen, und das wird immer der des Uebersezens sein, oder die eine muß sich ganz zur andern verfügen, und hiervon fällt nur die eine Art in das Gebiet der Uebersezung, die andere würde eintreten, wenn in unserm Fall die deutschen Leser sich ganz der römischen Sprache, oder vielmehr diese sich ihrer ganz und bis zur Umwandlung bemächtigte.

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Karl Schäfer e seu ensaio Ueber die Aufgabe des Uebersezens Johann Albrecht Karl Schäfer nasceu em Ansbach, uma pequena cidade do atual Estado alemão da Baviera, em 22 de maio de 18008 e faleceu no dia 30 de setembro de 1862. Assim como muitos outros eruditos alemães de sua época, Karl Schäfer ressaltava as bases que os autores clássicos greco-romanos emprestaram à cultura alemã. Em seu ensaio Ueber die Aufgabe des Uebersezens [Sobre a tarefa de traduzir]9, Schäfer critica de forma direta o modelo de tradução proposto por Friedrich Schleiermacher, tomando como ponto de partida, além do próprio Schleiermacher, o tradutor Johann A primeira notícia que o autor deste artigo teve sobre Karl Schäfer e seu ensaio Ueber die Aufgabe des Uebersezens foi em através do livro Theorie der Übersetzung antiker Literatur in Deutschland seit 1800. Transformationen der Antike (KITZBICHLER; LUBITZ; MINDT, 2009). Entretanto, as organizadoras do livro afirmam, numa nota de rodapé, que não havia sido possível encontrar as datas de nascimento e morte de Karl Schäfer. Além disso, agradecem as gentis informações que lhes foram repassadas pelo administrador do Arquivo Fridericianumde Erlangen. Durante sua pesquisa de doutorado, o autor deste artigo teve acesso a um necrológio de Karl Schäfer, com farta biografia, publicado no Jahresberichtvon der KöniglichenAnstaltzu Erlangen (Relatório Anual do Liceu Real de Erlangen) em 7 de agosto de 1863 (SOERGEL, 1863), ou seja, quase um ano após a morte de Schäfer. Obteve também um necrológio publicado no ano de 1864, nos NeueJahrbücherfürPhilologieundPädagogik (Novos Anuários de Filologia e Pedagogia), editados por Hermann Masius (MASIUS, 1864) em Leipzig, além de uma resenha sobre o ensaio Ueber die AufgabedesUebersezens, publicado nos NeueJahrbücherfürPhilologieundPädagogik (JAHN, J. C.; KLOTZ, R; SEEBODE, G., 1841). 9 O ensaio, publicado em 1839, foi traduzido para o português pelo autor deste artigo, mas a tradução ainda não foi publicada. 8

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154 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher... Heinrich Voß. Schäfer defendia uma posição claramente oposta ao método de tradução de Schleiermacher. A seguir, algumas citações extraídas do ensaio de Schäfer permitirão que se vislumbre uma nesga de suas ideias: “Como deve fazer o tradutor”, pergunta ele [Schleiermacher], “para transplantar também em seus leitores justamente essa sensação de estar perante conteúdos estrangeiros?” “A exigência indispensável do traduzir”, responde ele, “é uma postura da língua que não apenas não é cotidiana, mas que também sempre deixa pressentir que ela não se desenvolveu tão inteiramente livre, que ela, muito mais, curvou-se em direção a uma semelhança estrangeira.” Portanto, em resumo, uma tradução não deveria ser totalmente alemã, mas apenas meioalemã, e o próprio tradutor somente deveria ter conduzido o leitor a uma meia compreensão do autor, deveria estar no meio entre o iniciante e o mestre, ou seja, ser um engabelador; e a tradução, no final das contas, não deveria valer sequer como um fim em si mesmo, mas tão-somente servir como um recurso auxiliar para compreender o autor e assumir o lugar de um comentário permanente. 10 (SCHÄFER, 1838, p.6s.)

Wie soll, fragt er, der Uebersezer es machen, um eben dieses Gefühl, dass sie Ausländisches vor sich haben, auch auf seine Leser fortzupflanzen? Das unerlässliche Erforderniss des Uebersezens, antwortet er, ist eine Haltung der Sprache, die nicht nur nicht alltäglich ist, sondern die auch stets ahnen lässt, dass sie nicht ganz frei gewachsen, vielmehr zu einer fremden Aehnlichkeit hinübergebogen ist.“ Also, um es kurz zu sagen, eine Uebersezung soll nicht ganz, sondern nur halb deutsch sein, und der Uebersezer selbst soll es nur zu einem halben Verstehen des Autors gebracht haben, soll zwischen Anfänger und Meister in der Mitte stehen, das heisst ein Stümper sein, und die Uebersetzung soll endlich nicht einmal als Zwekk für sich gelten, sondern nur als 10

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Karl Schäfer era, pois, partidário da ideia de que uma tradução deveria ser, antes de tudo, deutsch [alemã] e atender aos critérios de uma formulação naturalmente vernacular, evitando deste modo as influências estrangeiras de ordem semântica, lexical, idiomática etc. Em oposição aos termos deutsch/Deutsch, faz uso, em seu texto, de termos diametralmente opostos a este, para definir aquilo que, em tradução, feriria o vernáculo alemão idealizado por ele: o substantivo Undeutschheit [caráter não-alemão da língua], o substantivo Undeutsch [o não-alemão], o adjetivo undeutsch [nãoalemão] e o advérbio undeutsch [de forma não alemã]. Para Schäfer, a língua alemã dispunha e podia fazer emprego de meios suficientes – de natureza semântica, lexical, estilística, gramatical etc. –, sem necessitar, nas palavras de Schleiermacher, “curvar-se a uma estranha semelhança”11 (SCHLEIERMACHER, 2011, p. 37). As críticas tecidas por Schäfer dirigiam-se igualmente ao tradutor Voß, uma vez que este, a título de exemplo, transportava para a língua alemã uma métrica grega, recorrendo a uma espécie de leito de Procusto12: por um lado, o afamado tradutor das obras Aushilfsmittel zum Verstehen des Autors dienen, und die Stelle eines fortlaufenden Kommentars vertreten. 11 Cita-se aqui a tradução de Mauri Furlan (SCHLEIERMACHER, 2011). 12 Sobre o mito do leito de Procusto, conta GRAVES (2008, p. 389s.): “Quando chegou a Coridalo, na Ática, Teseu matou Polipômeno, pai de Sínis, apelidado de Procusto, que vivia às margens da estrada e tinha duas camas em casa, uma pequena e outra grande. Ao hospedar os viajantes que por ali passavam, ele colocava os homens baixos na cama grande e os torturava estirando-os até que se ajustassem ao tamanho do leito; e os homens altos ele colocava na cama pequena, cortando-lhes a parte das pernas que não coubesse na cama. Há quem afirme que ele tinha uma só cama, portanto estirava ou amputava seus hóspedes para que nela se encaixassem. De qualquer modo, Teseu fê-lo sentir na pele o sofrimento infligido

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156 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher... homéricas13 para o alemão recorria a construções e a palavras gregas que resolvia adotar no léxico alemão e, por outro, utilizava vocabulário alemão equivalente aos termos gregos, forjando-os, contudo, dentro de uma matriz de versos gregos em grande parte não aplicáveis à língua alemã, dadas as diferentes estruturas de versificação existentes em ambas as línguas. Em seu empenho de querer salvaguardar o idioma alemão, uma língua que, àquela época, ainda não se encontrava totalmente consolidada, Karl Schäferagudiza suas reprimendas a Schleiermachere a Voß: Como já foi observado anteriormente, Voß, desde longa data, já exercitava na prática o que Schleiermacher executa de forma sistemática, embora aquele fique para trás em relação às exigências deste, pois lhe falta o insinuar, o entrar nos mais diferentes aos outros.” De uma forma ou de outra, a figura pode ser aqui empregada para mostrar o grande desagrado sentido por Karl Schäfer ao ver que a língua alemã precisava ser moldada a partir de outras línguas, perdendo parte de sua natureza original. 13 Ainda no presente, as traduções feitas por Johann Heinrich Voß são publicadas na Alemanha. Na orelha da edição da Ilíada [Ilias] (HOMER, 2010), publicada pela editora Anaconda, pode-se ler, dentre outras informações, esta: “SingedenZorn, o Göttin, desPeleiadenAchilleus”, solautet die ersteZeiledesEpos in der berühmtenHexameter-Übersetzungvon Johann Heinrich Voß” [“Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles a ira tenaz” (trad. de Odorico Mendes, 1874), esta é a primeira linha da epopeia na célebre tradução de Johann Heinrich Voß em hexâmetros]. Também em 2010, a mesma editora Anaconda republicou a Odisseiade Homero. Na página reservada aos créditos, lê-se: “Die Übersetzung von Johann Heinrich VoßerschienunterdemTitelHomersOdysseeerstmals 1781 aufKostendesVerfassersimSelbstverlag in Hamburg” [A tradução de Johann Heinrich Voß foi publicada sob o título de Odisseia de Homero, pela primeira vez em 1871, às expensas do autor da tradução em edição de sua própria responsabilidade].

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elementos, em suma, aquele caráter proteiforme que Schleiermacher exige. Mas aquele greciza e latiniza a língua materna da mesma maneira que este, estando, assim, na mesma categoria que ele, embora tenham chegado à mesma prática a partir de diferentes posições. Na verdade, Schleiermacher acredita ser preciso expressar-se à moda estrangeira para ser fiel, e Voß acredita ser fiel, se traduzir literalmente; mas como não consegue fazê-lo sem falar à moda estrangeira, sua linguagem é, portanto, tão não-alemã quanto a de Schleiermacher, e vice-versa. Não obstante, a fidelidade que o método de tradução de Voß exige para si põe-se a nu, curiosamente, através do fato de ele haver traduzido todo e qualquer autor da mesma maneira, naquela linguagem que ele havia criado, de uma vez por todas, naquele período em que formara originalmente seu ponto de vista.14(SCHÄFER, 1838, p. 11)

Voss hatte, wie bereits bemerkt, längst praktisch geübt, was Schleiermacher systematisch ausführt, ob er gleich hinter den Anforderungen desselben zurükkbleibt, weil ihm das Anschmiegen, das Eingehen in die verschiedensten Elemente, mit Einem Worte, das Proteusartige fehlt, was Schleiermacher fordert. Aber er gräzisirt und latinisirt die Muttersprache wie jener, und steht insofern in gleicher Kategorie mit ihm, wenn sie gleich von verschiedenen Stand punkten aus zur nämlichen Praxis gelangt sind. Denn Schleiermacher glaubt fremd sprechen zu müssen, um treu zu sein, und Voss glaubt treu zu sein, wenn er wörtlich übersezt; da er aber diess nicht thun kann, ohne fremd zu sprechen, so ist seine Sprache so undeutsch, wie die Schleiermacherʼs und umgewendet. Die Treue aber, welche die Uebersezungsmethode Vossens für sich in Anspruch nimmt, zeigt sich sonderbarer Weise dadurch, dass er jeglichen Schriftsteller in gleicher Weise übersezt hat, in diejenige Sprache, welche er sich ein für allemal in jener Periode geschaffen hatte, wo er sich seinen Standpunkt originell gestaltete. 14

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158 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher... A Karl Schäfer, irritava profundamente o modo de traduzir em que não se buscavam as formas próprias, aquelas já forjadas e existentes na língua alemã. Quem assim agia, renunciava, segundo ele, a uma série de “palavras alemãs, construções alemãs, locuções alemãs (...), sistemas de conceitos e de seus símbolos”, preferindo recorrer, de forma arbitrária, a soluções cheias de invencionices e arbitrariedades. Ao abordar esse ponto crítico, Schäfer chega a afirmar, em seu ensaio, que “colocam-se os elementos uns ao lado dos outros desordenadamente: numa permuta mecânica, coloca-se símbolo após símbolo e crê-se seriamente ser possível criar, mediante esse amálgama de palavras e construções, uma nova língua”. Na opinião de Karl Schäfer, a língua alemã não precisava “curvar-se em direção a uma semelhança alheia”. Destacava que, enquanto Schleiermacher acreditava precisar expressar-se à moda estrangeira para ser fiel,Voß acreditava ser fiel, se traduzisse literalmente. Como Voß não lograva traduzir literalmente “sem falar à moda estrangeira”, sua linguagem acabava por ser “tão não-alemã quanto a de Schleiermacher, e vice-versa”. Em diversas passagens, Schäfer usa, em seu ensaio, diferentes palavras e imagens para trazer à baila a necessidade de se respeitar também a língua-cultura de chegada. Uma das imagens que ele utiliza é a da casca que envolve um fruto. Segundo ele, não se pode separar o ser humano de sua língua como o fruto de suacasca, já que ambos coexistem em uma relação orgânicofuncional, não sendo a casca do fruto “uma roupa que se despe a alguém para nele vestir outra” (SCHÄFER, 1838, p. 22). Na visão de Schäfer, o tradutor alemão de Schleiermacher veste-se como o romano ou como o grego, de acordo com a necessidade. Tudo não passaria, portanto, de uma farsa, de uma encenação: o tradutor vestia-se, apresentava-se em seu disfarce e dava início à sua comédia.

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Para Karl Schäfer, um dos lemas principais era “traduzir do Belo para o Belo”. Ou seja: a tradução não deveria ser escrita em alemão ostentando um sabor da língua original. Seguindo o exemplo de Ludwig Seeger15, Schäferexigia que a tradução fosse, antes de tudo, alemã, como deixa patente em seu ensaio Ueber die Aufgabedes Uebersezens [Sobre a tarefa de traduzir]: “o caráter da nossa língua, enquanto forma de nossa maneira popular de pensar e sentir, ali precisa apresentar-se, conforme sua singularidade, com suas características puras e nítidas”16 (SCHÄFER, 1838, p. 17). Ainda segundo ele, cada um dos elementos da tradução, nomeadamente, “a ordem das palavras nas frases, a construção dos períodos, a combinação de orações, o uso dos modos, bem como a formação de palavras, a elocução, a escolha das metáforas e imagens –, em resumo, tudo e cada um dos elementos” (SCHÄFER, 1838, p. 17s.), somente pode ser extraído da própria língua alemã. Embora concorde com que um tradutor de poesia deva ser, de certo modo, um poeta, observa, porém, que não seria viável esperar que viesse a surgir um Ésquilo alemão para se poder traduzir o conjunto de obras do eminente poeta e dramaturgo grego: Mas com isso não está dito que se exigiriam um talento e um gênio igualmente grandes, e que nós primeiramente teríamos de esperar um Ésquilo alemão, a fim de obtermos uma cópia alemã do original. Não se trata disto, o tradutor não tem de ser igual, apenas Ver o prefácio de Ludwig Seeger “Epistel an einen Freund als Vorwort” [Epístola a um amigo à guisa de prefácio], SEEGER, 1845, p. 7: “Wir müssen, das ist jetzt die Aufgabe, vor allen Dingen deutsch und poetisch ubersetzen” [Precisamos, esta agora é a tarefa, sobretudo traduzir em alemão e poeticamente]. 16 (...) der Charakter unsrer Sprache, als der Form unsres volksthümlichen Denkens und Empfindens, muss sich darin nach seiner Eigenthümlichkeit rein und klar ausgeprägt darstellen. 15

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160 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher... precisa ser capaz de absorver em si seu escritor, equiparar-se de certa maneira a este. A capacidade de entrar no espírito do protótipo, de pôr-se na sua pele e identificar-se com ele, é inteiramente bastante para representar a originalidade.17(SCHÄFER, 1838, p. 20s.)

Se, por um lado, criticava veementemente Johann Heinrich Voß, Karl Schäfernutria, por outro, grande admiração por um contemporâneo seu, o também tradutor Johann Gustav Droysen (1808-1884). Este deixou alguns prefácios, em que evidencia, dentre outras coisas, a necessidade de se recorrer a algum paratexto editorial – em geral, prefácios – para facilitar a compreensão dos leitores que quisessem se aventurar pelo mundo das comédias de Aristófanes, muito ricas em conteúdo político, social e cultural. Neste sentido, afirmava: O plano original desta tradução, como figura no prefácio da primeira parte, prometia também, além das peças que ficaram preservadas, os fragmentos e uma biografia do escritor. (...) No início do meu trabalho, ainda não conseguia visualizar a dimensão que assumiriam as introduções a cada uma das peças e com que frequência elas forneceriam detalhes sobre as condicionantes pessoais do escritor. Há poucas informações biográficas sobre Aristófanes, e esse pouco que há é em parte incerto, em parte sem importância; Damit ist jedoch nicht gesagt, dass ein gleich grosses Talent und Genie erfordert werde, und dass wir erst einen deutschen Aeschylus erwarten müssten, um ein deutsches Abbild des Originals zu gewinnen. Nicht diess, nicht gleich an Kraft, nur fähig, seinen Schriftsteller in sich aufzunehmen, ihm gleichsam ebenbürtig muss der Uebersezer sein. Das Vermögen, in den Geist des Urbilds einzugehen, sich in ihn einzuempfinden und einzufühlen, reicht vollkommen hin, um die Originalität darzustellen. 17

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em geral são incapazes de assegurar um retrato nítido do autor, do seu modo de ver as coisas, do seu caráter poético e político, das suas relações com seu tempo e seus contemporâneos, em suma, aquilo que empresta a uma biografia um interesse maior do que o da erudição. (DROYSEN, 1838, p. V)18

Vê-se, aí, a preocupação do tradutor em buscar elementos sobre o autor cujas obras traduz, no afã de prestar informações aos leitores, de modo que estes possam ter uma imagem mais completa sobre a pessoa do escritor, sua época, seus contemporâneos, suas idiossincrasias, ideologias etc. Dispondo destes dados e exibindo-os ao público leitor, o tradutor dispõe de uma margem mais amplapara dotar seu produto final – a tradução – de maior fluência na língua da tradução, já que os leitores foram antes alimentados com bastantes informações que lhes puderam servirde base. Para Schleiermacher, esse tipo de preocupação parecia passar despercebido. No trecho a seguir, fica clara a posição de Karl Schäfer acerca da transplantação de elementos estrangeiros e estranhos ao vernáculo, procedimento que ele rechaça de Der ursprüngliche Plan dieser Uebersezung, wie er in der Vorrede des ersten Theils angeben (sic!) worden, versprach außer den erhaltenen Stücken noch die Fragmente und eine Biografie des Dichters. (...) Beim Beginn der Arbeit konnte ich nicht übersehen, welche Ausdehnung die Einleitungen zu den einzelnen Stücken gewinnen und wie oft auf die persönlichen Verhältnisse des Dichters eingehen würden. Es giebt wenige biographische Nachrichten über Aristophanes, und dieß Wenige ist zum Theil unbedeutend, überall nicht von der Art, ein deutliches Bild des Dichters, seiner Anschauungsweise, seines poetischen und politischen Charakters, seines Verhältnisses zu seiner Zeit und seinen Zeitgenossen, kurz das, was einer Biographie ein höheres Interesse als das der Gelersamkeit giebt, zu gewähren. 18

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162 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher... maneira manifesta, beirando, por vezes, o purismo exacerbado ou quase o nacionalismo: De que meios o nosso tradutor precisa fazer uso, como precisa proceder, resulta, por si só, do que foi afirmado até aqui. Ele não tem permissão para criar, nem por iniciativa própria nem por macaqueação, nem em prosa nem em poesia. Ele não tem permissão para querer inocular de modo direto o conteúdo estrangeiro; inversamente, deverá escolher o correspondente a partir do já existente, e o seu maior mérito mostrar-se-á no tato e na habilidade de extrair, com a mão boa, o análogo a partir da esfera da vida do povo ou da literatura existente.19(SCHÄFER, 1838, p. 21)

Karl Schäfer censura energicamente a posição assumida pelo tradutor schleiermacheriano, que, segundo ele, se fantasiava de uma nacionalidade tal, para então dar início a uma comédia, a uma cena macaqueada, a uma fantochada: Sem dúvida, não se pode separar o ser humano de sua língua como o fruto de sua casca, e ela não é uma roupa que se despe a alguém para vesti-lo em seguida com outra roupa. Mas será que o tradutor de Schleiermacher trata essa verdade de modo mais digno que nós? Ele se veste como o romano ou como o grego se vestia, apresenta-se, em seguida, nesse disfarce e começa a sua comédia! – Se o pensamento cria sua forma, do modo como a alma se cerca – de certo modo

Welcher Mittel sich unser Uebersezer zu bedienen, wie er zu verfahren hat, ergiebt sich aus dem bisher Gesagten von selbst. Er darf nicht selbst machen, weder auf seine eigne Faust noch durch Nachäffung, weder in Prosa noch in Poesie. Er darf nichts Fremdes unmittelbar einimpfen wollen, sondern er muss unter dem bereits Vorhandenem Litteratur mit glükklicher Hand das Analoge herauszugreifen. 19

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por si só – do corpo que lhe convém, então ele certamente também poderá fazer mais uma vez, em alemão, o que já fez uma vez em grego. Portanto, trata-se apenas de o tradutor ter afinidade de ideias e ser dedicado o bastante para repensar o pensamento já pensado uma vez, ou seja, registrá-lo em si e deixálo reproduzir-se com o espírito livre (da mesma maneira como ocorre com a mulher e o embrião). Não exigimos nenhuma fantochada, mas sim um ressurgimento num espírito homogêneo e num elemento homogêneo.20 (SCHÄFER, 1838, p. 22s.)

Para muitos autores e estudiosos daquela época, principalmente da metade do século XIX, assumir uma posição nacionalista era um fato quase natural, levando-se em consideração a forte presença francesa na Europa a partir da Revolução Francesa de 1789. Este fato causou uma série de desordens e conflitos no Império Habsburgo. No ano de Allerdings kann man den Menschen von seiner Sprache nicht, wie die Frucht von der Schale, lostrennen, und sie ist kein Kleid, das man einem auszieht, um ihm ein andres dafür anzuziehen. Handelt denn aber Schleiermacherʼs Uebersezer dieser Wahrheit würdiger als wir? Er kleidet sich, wie der Römer oder Grieche gekleidet war, präsentirt sich dann in dieser Vermummung und beginnt seine Komödie! – Wenn der Gedanke sich seine Form schafft, wie die Seele sich gleichsam selbstthätig mit dem ihr gebührenden Körper umgiebt, so kann er doch wohl das Nämliche noch einmal, im Deutschen, thun, was er bereits einmal, im Griechischen, gethan hat. Es handelt sich also nur darum, dass der Uebersezer geistesverwandt, und dass er hingebend genug sei, um den schon einmal gedachten Gedanken nachzudenken d.h. in sich aufzunehmen und in freiem Geiste (gleich wie das Weib beim Embryo) sich reproduziren zu lassen. Nicht eine Mummerei, sondern ein nochmaliges Entstehen in einem homogenen Geiste und homogenen Elemente wird von uns gefordert. 20

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164 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher... 1791, a Prússia e a Áustria estabelecem um entendimento para se colocarem contra a Revolução Francesa. A França declara guerra à Áustria, e ocorre a primeira Guerra de Coligação contra a França revolucionária, que se estendeu até 1797 (FREUND, 1979, p. 434). Entre 1799 e 1802, acontece uma segunda Guerra de Coligação contra a França. Os principados da Baviera, Württemberg e Saxônia, além de outros Estados alemães, formam a Liga Renana [Rheinbund] (FREUND, 1979, p. 434), tornando-se satélites da França de Napoleão. Até Napoleão ser vencido em 1815 na Batalha de Wellington, os Estados alemães veem-se sob fortes ameaças, pois estavam a perder terras e poder para os franceses. Para os literatos, escritores, pesquisadores, professores etc., preservar a língua e a literatura de expressão alemã era uma questão primordial. Não é à toa que, entre os coetâneos de Karl Schäfer que fizeram traduções e/ou versaram sobre o ato de traduzir, alguns expressam seu nacionalismo de forma bastante clara ou até mesmo exacerbada. Enquanto Friedrich Schleiermacher é um nome consagrado no campo dos Estudos da Tradução, Karl Schäfer praticamente não é notado pela maioria dos estudiosos atuais. Poucos autores citam-no e, quando o fazem, é normal que seja no contexto do ensaio Ueber die AufgabedesUebersezens. Mas esse fenômeno não ocorria de tal modo à época de Schäfer. Um contemporâneo seu, August Boeckh, ao fazer considerações sobre questões de hermenêutica em sua extensa e muito bem elaborada “EncyklopädieundMethodologie der PhilologischenWissenschaften” [Enciclopédia e Metodologia das Ciências Filológicas], faz as seguintes considerações: A Hermenêutica inteira somente tem por fito a compreensão dos monumentos; mas, para o fomento do estudo em conjunto, é importante que a compreensão seja representada de maneira adequada. A repre-

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sentação ocorre de dois modos, através da tradução e do comentário. Analisaremos primeiramente o valor da tradução. O ideal de uma tradução é que ela represente o original; isso seria perfeitamente o caso, se ela provocasse em nós, com nosso conhecimento das circunstâncias históricas, a mesma impressão que o texto original, no público original. De uma forma ou de outra, as condicionantes históricas da obra precisam, portanto, ser dadas através de uma explicação de outra natureza, caso a própria tradução precise ser realizada visando a exercer o efeito intencionado da forma mais perfeita possível. Sobre isto, existem duas posições antagônicas. Alguns afirmam que se deveria manter, o máximo possível, o estilo nacional da obra; outros exigem que o elemento nacional deva ser eliminado o máximo possível. A primeira opinião é defendida por Schleiermacher, Sobre os diferentes métodos de traduzir. Ensaios Acad. de 1813 (Obras sobre Filosofia 2. Vol.), a outra, por Carl Schäfer, Sobre as tarefas (sic!) de traduzir. Erlangen 1839. 4. Ambos os métodos de traduzir têm suas vantagens e falhas. 21 (BOECKH, 1877, p. 158) Die gesamte Hermeneutik hat nur das Verständniss der Denkmäler zum Zweck; für die Förderung des gemeinsamen Studiums ist es aber von Wichtigkeit, dass dies Verständniss in der geeigneten Weise dargelegt werde. Die Darlegung geschieht in doppelter Art, durch Uebersetzen und Commentiren. Wir untersuchen zuerst den Werth des Uebersetzens. Das Ideal einer Uebersetzung ist, dass sie das Original vertrete; dies würde in vollkommenem Maasse der Fall sein, wenn sie auf uns bei Kenntnis der historischen Verhältnisse denselben Eindruck machte wie das Original auf das ursprüngliche Publicum. Die historischen Voraussetzungen des Werkes müssen also auf jeden Fall durch anderweitige Erklärung gegeben werden, wenn die Uebersetzung selbst eingerichtet werden muss, um die beabsichtigte Wirkung möglichst vollkommen auszuüben. Hierüber stehen sich zwei Ansichten gegenüber. Einige behaupten, man müsse den 21

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166 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher... Neste trecho em que trata especificamente de hermenêutica, August Boeckh, ao analisar a função da tradução como via de acesso à compreensão de textos, de certa forma expõe - ou pelo menos dá a entender - que naqueles idos de 1877, quando tanto Schleiermacher quanto Schäfer22 já haviam morrido, estes antagonistas, embora tivessem opiniões verdadeiramente díspares sobre o traduzir, acabavam desfrutando de igual mérito ao serem citados por um importante erudito do século XIX como os nomes que resumiam as duas tendências metodológicas da tradução. Um dado interessante que se sobressai das palavras de Boeckh é que, ao falar sobre a problemática das condicionantes históricas da obra, estas talvez devessem ser dadas através de uma explicação de outra natureza; deixava antever, aí, a necessidade de se recorrer a algum tipo de paratexto editorial para uma melhor compreensão da obra. O célebre filólogo alemão prossegue sua análise, apresentando os pontos positivos e negativos das duas posições defendidas pelos dois teóricos da tradução: Aqueles que não traduzem o elemento nacional também não têm condições de exprimir por completo o elemento individual, já que ambos estão imbricados. Faz-se então mister, necessariamente, deixar em primeiro plano sua própria individualidade na tradução, nationalen Stil des Werkes möglichst beibehalten; andere verlangen, das Nationale solle möglichst abgestreift werden. Die erstere Ansicht vertritt Schleiermacher, Ueber die verschiedenen Methoden edes Uebersetzens. Akad. Abh. Von 1813 (Werke zur Philosophie 2. Bd.), die andere Carl Schäfer, Ueber die Aufgaben (sic!) des Uebersetzers. Erlangen 1839. 4. Beide Methoden des Uebersetzens haben ihre Vorzüge und Mängel. 22 No que pese o texto bem cuidado de Boeckh, ele comete um pequeno engano no título do ensaio de Schäfer, ao grafar o termo Aufgabe [tarefa] com um “n” final, ou seja, no plural [tarefas].

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como o faz Wieland. Além disso, eles verterão infielmente muitos detalhes, porque o significado gramatical, como já vimos, também depende de fatores nacionais. A tradução representará, portanto, em geral, o conteúdo, a forma interna e os meios de combinação da obra, ao passo que, em contrapartida, as sutilezas da organização do texto e a respectiva forma externa obliteram-se. Mas, no âmbito desses limites, ela provoca uma compreensão como se fosse uma obra na língua materna, já que o caráter nacional é apagado o máximo possível. Por outro lado, no caso do método oposto, exercer-se-á uma violência contra a própria língua materna, com o intuito de reproduzir o caráter nacional da língua estrangeira; e como as duas línguas, claro, não são coincidentes, uma reprodução do original é, todavia, impossível. Não obstante, devese preferir este método, porque ele exprime mais daquilo que o tradutor tiver compreendido. Assim, ele procurará renunciar, da melhor maneira possível, à sua própria individualidade: não terá como meta originalidade nenhuma, coisa que, na tradução, é um erro, e assim logrará reproduzir razoavelmente também as sutilezas das formas de combinação e as da forma externa. É óbvio que a fidelidade no detalhe facilmente trará prejuízos à impressão que se terá do todo.23(BOECKH, 1877, p. 158) Diejenigen, welche das Nationale nicht übertragen, sind auch nicht im Stande das Individuelle völlig zum Ausdruck zu bringen, weil beides verwachsen ist. Es wird dann notwendig ihre eigene Individualität in der Uebersetzung hervortreten, wie dies bei Wieland der Fall ist. Ferner werden sie vieles Eizelne untreu wiedergeben, weil ja auch der grammatische Wortsinn, wie wir gesehen haben, national bedingt ist. Die Uebersetzung wird also den Inhalt und die innere Form und Combinationsweise des Werkes im Grossen und Ganzen darstellen, dagegen die Feinheiten der Gliederung und die entsprechende äußere Form verwischen. Innerhalb dieser Grenzen aber bewirkt sie, weil der fremde 23

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168 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher... De acordo com suas palavras no trecho acima, fica patente que Boeckh toma partido pela tendência seguida por Schleiermacher de preservar os elementos nacionais da língua-cultura estrangeira, defendendo inclusive o fato de tal método ser seguido por aqueles tradutores que não querem deixar sua marca individual na obra. Aos tradutores que perfilam com Schäfer, sobraria a pecha de quererem imprimir sua individualidade na tradução. Isto aconteceria porque, à força de eliminar, o máximo possível, o caráter nacional do original, o tradutor à la Schäfer provocaria, no original, uma perda de seus aspectos externos (divisão de parágrafos, métrica etc.), mas, ao mesmo tempo, faria o leitor ter a impressão de que estaria lendo uma obra escrita em sua própria língua. Observem-se ainda estas palavras de Boeckh: A poesia homérica, p. ex., é toda natureza, totalmente desprovida de artificialismos; mas toda tradução tem algo de artificial, porque, mediante o recalcamento da própria individualidade, é inscrita numa alma estrangeira. Na melhor das hipóteses, ela é igual a um parque inglês simulacro da natureza; mas, não raro, a tradução mergulha em afetação inflexível como ocorre Nationalcharakter möglichst abgestreift ist, ein Verständnis wie ein Werl in der Muttersprache. Bei der entgegengesetzten Methode wird man dagegen der eigenen Sprache Gewalt anthun, um den nationalen Charakter der fremden nachzubilden, und da sich die Sprachen doch auch grammatischen nicht decken, ist eine treue Wiedergabe des Originals dennoch unmöglich. Trotzdem ist diese Methode vorzuziehen, weil sie von dem, was der Uebersetzer verstanden hat, mehr zum Ausdruck bringt. Er wird sich so seiner eigenen Individualität bestmöglich zu entäussern suchen: er wird keine Originalität erstreben, die bei der Uebersetzung ein Fehler ist, und so wird es ihm gelingen, auch die Feinheiten der Combinationsweise und der äusseren Form einigermassen nachzubilden. Freilich wird die mögliche Treue im Einzelnen wieder leicht den Eindruck des Ganzen beeinträchtigen.

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com a versão homérica de Voß, que é mal-ajambrada e áspera, e ainda pior é sua tradução de Aristófanes. O que menos se deixa traduzir são as peculiaridades do ritmo e do timbre, uma vez que as línguas modernas possuem uma lei rítmica diferente da existente nas línguas clássicas, e os tortuosos metros gregos, com suas frequentes sequências de várias vogais breves e longas, muitas vezes não são nem representáveis24. (BOECKH, 1877, p. 159 )

Ao apontar as imperfeições das traduções de Johann Heinrich Voß, August Boeckh mostra que, pelo menos neste aspecto, discorda de Schleiermacher. Desta forma comungaria, pelo menos quanto à homerização da língua alemã realizada por Voß, com as ideias de Schäfer, o que representaria, no mínimo, um contra-senso, já que, como se viu nos trechos anteriores, Boeckh advoga abertamente pelo método de tradução de Schleiermacher, que, por seu turno, coincidia com a prática tradutória de Voß.

Die Homerische Poesie z.B. ist ganz Natur, durchaus ungekünstelt; jede Übersetzung hat aber etwas Gekünsteltes, weil sie mit Unterdrückung der eigenen Individualität in eine fremde Seele hineingeschrieben ist. Sie gleicht im günstigsten Fall einem die Natur nachbildenden englischen Park; oft aber verfällt sie in steife Künstelei wie die Vossische Übersetzung des Homer, die stelzbeinig und rauh ist, und in noch schlimmer Weise seine Uebersetzung des Aristophanes. Am wenigsten lassen sich die Eigenthümlichkeiten des Rhytmus und des Klanges übertragen, da die neueren Sprachen ein anderes rhythmisches Gesetz als die alten haben und die verschlungenen griechischen Metra mit häufiger Aufeinanderfolge mehrerer Kürzen und Längen oft gar nicht darstellbar sind. 24

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170 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher... Conclusão Se Schleiermacher, em seu famoso artigo “Sobre os diferentes métodos da tradução”, discorre de forma cética sobre o conceito de Nachbildung [imitação/reprodução], Schäfer prefere afirmar que “em parte, toda tradução, inclusive a de Voß e Schleiermacher, é reprodução”. Sustenta sua tese, afirmando ainda que uma substituição “geral” de uma série de coisas novas, de modo que uma obra seja totalmente arrancada do seu ambiente e incorporado ao nosso, é “reprodução”, mas também é, em parte, “tradução”. Um dos principais pontos de divergências entre os dois pensadores consiste em Schäfer acreditar no poder de decisão do tradutor guiado por sua própria personalidade. Para tanto, ressaltava que “a personalidade do tradutor precisa estabelecer uma relação exata com o seu original”, afinal de contas, seria preciso ser poeta para poder traduzir ou reproduzir um poeta. No mesmo momento, tratava de deixar claro que obviamente não se devia esperar que primeiramente viesse a surgir um Ésquilo alemão, para poder-se desfrutar das obras do célebre tragediógrafo grego em língua alemã. Schäfer exalta que se deve enfrentar, sim, o medo da colisão que poderá surgir entre a personalidade do autor e a do tradutor. Conclui que este, mediante seus atos e suas palavras, será um guia para que o leitor conheça os contextos originais lidos em sua própria língua materna, sem grandes estranhamentos. Para Schäfer, um grande expoente da prática da tradução que seguia esta mesma linha era Johann Gustav Droysen. No sentido de sua opção pelo método tradutório à la Droysen, fica patente a crítica ferrenha que Schäfer tece contraVoß, por este reproduzir diferentes autores com uma mesma dicção, com uma mesma e única personalidade, numa linguagem e num estilo ásperos e repetitivos. Já Droysen defende, nos prefácios às suas traduções Sumário

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aristofânicas, um reconhecimento de aspectos ligados à vida do autor, ao estilo próprio de cada autor, ao tempo histórico do autor, mas também à necessidade de se considerar, sobretudo no caso da tradução de comédias, o momento histórico em que o texto antigo será apresentado ao público. Pelas alusões que faz a Johann Gustav Droysen em seu ensaio, pode-se concluir que Karl Schäfer realmente refletia sobre os aspectos linguísticos internos e externos da tradução, dando sobeja atenção a questões pragmáticas, como costumava ocorrer nos trabalhos de Droysen. Em sua opinião, este tencionava produzir – e, segundo acreditava o ensaísta, lograva fazê-lo – uma tradução que não apenas era erudita e elegante, mas também poesia, tendo ainda o condão de apresentar um poeta clássico “realmente viçoso e remoçado”, no espírito intelectual da língua alemã da época. Schäfer advogava, aí, pela produção de uma tradução erudita, mas ajustada ao momento histórico da língua-meta e da cultura-meta no instante da produção e publicação do texto traduzido. Nas entrelinhas do texto de Schäfer, é possível ler que Voß encaminhava os textos greco-latinos, em sua roupagem totalmente original, para o rumo da língua alemã; e esta, por possuir outro corpo, não se adaptava àquela roupagem que nem sempre lhe servia ou se lhe ajustava. Se, a respeito dessa transplantação de modelos greco-romanos (estilísticos, gramaticais, métricos etc.) feita por Voß para a língua-cultura alemã, Schäferemitia duras reprimendas, admitia, como num prenúncio de antropofagia linguístico-cultural, que Droysen lograva fazer uma boa digestão dos clássicos e apresentá-los aos leitores alemães em bom vernáculo. Para ambos, o interesse maior girava em torno “de traduzir do Belo para o Belo”. Por conter uma série de aspectos contrários às ideias de Friedrich Schleiermacher, o ensaio de Schäfer é de grande relevância para os Estudos da Tradução no seu atual estado Sumário

172 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher... da arte, pois permite entrever sobretudo que, à época de sua publicação, o notável artigo de Schleiermacher não encontrou, como se poderia supor, apenas franca aceitação. A partir de leituras paralelas de outros teóricos da tradução do mesmo século XIX, em sua maioria bastante ou totalmente desconhecidos no Brasil, é possível construir novas teias argumentativas, novos critérios e parâmetros, possibilitando, assim, uma discussão mais rica de pormenores em torno do trabalho de Friedrich Schleiermacher. Apesar de o título do ensaio de Schäfer conter palavras muito facilmente utilizáveis em denominações de livros, capítulos de livros e ensaios (Ueber die Aufgabe ... / Sobre a tarefa ...), é pertinente lembrar que o título do afamado ensaio de Walter Benjamin (Die Aufgabe des Übersetzers [A tarefa do tradutor]), publicado em 1923, soa como um eco do título do ensaio de Karl Schäfer (Ueber die Aufgabe des Uebersezens [Sobre a tarefa de traduzir]). Ademais, ambos os autores também utilizam, em seus respectivos textos, a metáfora do “fruto” e da “casca do fruto”.25 Poder-se-ia também simplesmente afirmar que esta talvez fosse uma metáfora recorrente. Cumpre também enfatizar que, além da metáfora do fruto e da casca do fruto, ainda surge certa semelhança na metáfora do “manto real”, no texto de Benjamin, e “da roupa”, no texto de Schäfer. Não obstante, não se pode assegurar que Walter Benjamin tenha tido acesso ao texto de Karl Schäfer e muito menos reproduzido algumas de suas ideias. O ensaio de Schäfer não turva, em geral, as grandes ideias desenvolvidas por Schleiermacher, mas lançam algumas indagações que precisam ser relativizadas entre os ensaios dos dois autores. Uma delas é a questão da importância do vernáculo, da língua de chegada, o alemão: Schäfer SCHLEIERMACHER, 2001, p. 201, tradução de Susana Kampff Lages. 25

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não quer aceitar simplesmente a existência de dois caminhos para o ato de traduzir. Tanto o ensaio de Schleiermacher quanto o de Schäfer, frise-se bem, consagram-se à tradução literária e notadamente à tradução poética. Nesta perspectiva, o lema maior de Karl Schäfer era: do Belo para o Belo. Estranha-se, principalmente, que o texto de Schäfer tenha caído em esquecimento, até mesmo na Alemanha, durante mais de um século e meio. Seu ressurgimento certamente ainda representará um grande contributo para os Estudos da Tradução, justamente por se opor ao mais consagrado teórico da tradução do século XIX: Friedrich Schleiermacher.

REFERÊNCIAS BOECKH, A. Encyklopädie und Methodologie der Philologischen Wissenschaften. Leipzig: Teubner, 1877. DROYSEN, G. Des Aristophanes Werke. Dritter Theil. 1. Die Wolken. 2. Lysistrate. 3. Thesmophoriazusen. 4. Die Ecclesiazusen. 5. Die Frösche. Berlim: Verlag von Veit und Comp., 1838. FREUND, M. Deutsche Geschichte. Von den Anfängen bis zur Gegenwart. Munique: Bertelsmann Verlag, 1979. HOMER. Ilias. Trad. de Johann Heinrich Voß. Colônia: Anaconda Verlag, 2010. HOMER. Odisseia. Trad. de Johann Heinrich Voß. Colônia: Anaconda Verlag, 2010. JAHN, J. C.; KLOTZ, R; SEEBODE, G. Neue Jahrbücher für Philologie und Pädagogik. Leipzig: Druck und Verlag von G.B. Teubner, 1841. KITZBICHLER, J.; LUBITZ, K.; MINDT, N. Theorie der Übersetzung antiker Literatur in Deutschland seit 1800. Transformationen der Antike. Berlim / Nova Iorque: Walter de Gruyter, 2009. MASIUS, Hermann. Neue Jahrbücher für Philologie und Pädagogik. Leipzig: Verlag von G. B. Teubner, 1864.

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174 | Karl Schäfer e Friedrich Schleiermacher... SCHÄFER, K. Ueber die Aufgabe des Uebersezens. Erlangen: Jung’sche Universitäts-Buch-Drukkerei, 1839. SCHLEIERMACHER, F. Über die verschiedenen Methoden des Übersetzens/Sobre os Diferentes Métodos de Tradução, trad. de Margarete von Mühlen Poll, in HEIDERMANN, W. Clássicos da teoria tradução. Antologia bilíngue, alemão-português. Vl. 1 (1ª edição). Florianópolis: UFSC, 2001. SCHLEIERMACHER, F. Über die verschiedenen Methoden des Übersetzens/Dos diferentes Métodos de Tradução, trad. de Mauri Furlan, in Scientia Traductionis, n.9, Florianópolis, p. 3-70, 2011. SEEGER, L. Aristophanes. Erster Band. 1. Die Acharner. 2. Die Frösche. 3. Die Ritter. 4. Die Wolken. Frankfurt am Main: Literarische Anstalt (J. Rütten), 1845. SOERGEL, J. Jahresbericht von der Königlichen Studienanstalt zu Erlangen. Erlangen: Druck der Universitäts- Buchdruckerei von Junge & Sohn, 1863.

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Luciano Barbosa Justino

Em face de um tempo em que todas as sociedades sob o signo todo abrangente e globalizador do ocidente estão inseridas numa dinâmica cultural e tecnológica, que tende a uniformizar todas as técnicas, todos os gêneros e todas as memórias, individuais e coletivas, os estudos de tradução e de traduzibilidade se tornaram fundamentais para se compreender as dinâmicas centrípetas e centrífugas daquilo que Fredric Jameson chamou de “lógica cultural do capitalismo tardio”. Para se pensar o caso brasileiro, o “entrelugar” do Brasil numa era de pós-tudo e vale tudo, duas premissas parecem-me fundamentais: 1. A atualidade no Brasil pós-Lula das questões levantadas por Oswald de Andrade nos vários textos que escreveu sobre a antropofagia. Interessa o tratamento político e cultural que a proposta oswaldiana deu às relações de alteridade, instigantes para se pensar em que medida a globalização, e sua inerente traduzibilidade imperialista, está associada à hibridação das artes e das linguagens. 2. Esta traduzibilidade imperialista é atravessada por meios e modos de produção, material e imaterial, que elaboram sentidos no limite intraduzíveis nos termos de uma economia global, mas que nem por isso deixam de se inserir, ativamente, nesta mesma globalização e em suas muitas “ferramentas”, produtos, servi-

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176 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir ços e semioses. É exatamente do caráter oximórico da relação entre o global e o não global, relação irredutível e inegociável, que brota a força política de uma traduzibilidade do intraduzível.

Penso que as duas premissas acima podem ser iluminadas pela teoria da tradução e a prática tradutória dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos. Por hipótese, eles criaram uma teoria da tradução e da intersemiose que funcionam como leitura e atualização crítica do projeto antropofágico de Oswald de Andrade, cuja culminância se dá nas Intraduções1 de Augusto, na “transluciferação mefistofáustica” e no “Sequestro do Barroco” de Haroldo2. Quero articulá-los ao conceito de crioulização em Edouard Glissant, de modo a podermos imaginar uma filosofia da tradução e dos contatos interculturais latinoamericanos. Nas palavras de Glissant: As intraduções estão disseminadas em quase todos os livros de Augusto de Campos, tanto de poemas quanto de tradução propriamente dita, a saber: Viva vaia: poesia (1949-1979). Ateliê Editorial, 2001.; Despoesia. São Paulo: Perspectiva, 1994.; Não poemas. São Paulo: Perspectiva, 2001. Dos muitos livros de tradução, vale conferir sob este aspecto: Verso, reverso, controverso. São Paulo: Perspectiva, 1998. E A margem da margem. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 2 De Haroldo de Campos, Sequestro do barroco na Formação da literatura brasileira. São Paulo: Iluminuras, 2010. Sobre tradução e teoria da tradução, Deus e o diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 2005.;Pedra e luz na poesia de Dante. 1998.;A poética do traduzir. In: A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977.; A tradução como criação e como crítica. São Paulo: Perspectiva, 1996. Dos vários trabalhos que fizeram em colaboração, Revisão de Sousândrade. São Paulo: Perspectiva, 2001.; Panaroma de Finnegans Wake. São Paulo: Perspectiva, 1996. Com Décio Pignatari, Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 1996. e com Boris Schneidermann, Maiakóvski. São Perspectiva, 1998. 1

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O mundo se criouliza. Isto é: as culturas do mundo colocadas em contato umas com as outras de maneira fulminante e absolutamente consciente transformamse, permutando entre si, através de choques irremissíveis, de guerras impiedosas, mas também através de avanços de consciência e esperança que nos permitem dizer – sem ser utópicos e mesmo sendo-o – que as humanidades de hoje estão abandonando dificilmente algo em que se obstinaram há muito tempo – a crença de que a identidade de um ser só é válida e reconhecível se for exclusiva, diferente da identidade de todos os outros seres possíveis (GLISSANT, 2005, p. 18).

E: A crioulização exige que os elementos heterogêneos colocados em relação “se intervalorizem”, ou seja, que não haja degradação ou diminuição do ser nesse contato e nessa mistura, seja internamente, isto é, de dentro para fora, seja externamente, de fora para dentro. E por que a crioulização e não a mestiçagem? Porque a crioulização é imprevisível, ao passo que poderíamos calcular os efeitos de uma mestiçagem. A crioulização é a mestiçagem acrescida de uma maisvalia que é a imprevisibilidade (GLISSANT, 2005, p. 22).

Para tanto é preciso compreender tradução como uma prática que envolve contatos culturais não hierarquizantes, “não identitários”, no sentido de que identidade como substância apriorística, e concepções de línguas como entidades compósitas inseridas em contextos de multiplicidade e deslocamento, tanto no tempo, quanto nos espaços.

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178 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir Walter Benjamin e a tarefa do tradutor Um dos marcos teóricos para a teoria e a prática tradutória contemporânea é “A tarefa-renúncia do tradutor” (2008), na tradução de Suzana Kampff Lages, prefácio que Walter Benjamin escreveu para a sua tradução de alguns poemas de “Quadros parisienses” de Charles Baudelaire. Como é sabido, os textos reunidos em “Um lírico no auge do capitalismo” (1995) apontam no poeta de As flores do mal as formas de experiência da modernidade em todas as suas tensões. De certo modo, é ela que sedimenta os 3 problemas mais persistentes no projeto filosófico do autor: a linguagem, a arte, a história. É a experiência da modernidade “aparecida” em Baudelaire que dá estruturalidade ao projeto benjaminiano de leitura crítica desta mesma modernidade. É estimulante percorrer o modo como uma experiência poética (poética?) lança as bases de uma das mais importantes interpretações, políticas, da modernidade e após. O autor é entre nós bastante conhecido por contribuições de grande originalidade e relevância em diversas disciplinas acadêmicas, como suas Teses sobre o conceito de história (1994) e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1994), textos importantes para qualquer debate em torno da relação história, historicismo e opressão e sobre as chamadas “novas tecnologias”. A tarefa-renúncia do tradutor abre, contudo, a possibilidade de questionamentos não só sobre a tradução interlingual, mas sobre a pertinência política das origens, das ruínas e da “salvação” das memórias, individuais e coletivas, além do debate em torno do pós-colonialismo. A tarefa do tradutor é um texto sobre a experiência da outridade, para usar a palavra de Octávio Paz. O prefácio à tradução de Baudelaire deste modo está integrado às grandes questões do pensamento necessariamente inter de Walter Benjamin. Jeanne Marie Gagnebin, Sumário

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uma das mais importantes pesquisadoras da obra de Walter Benjamin no Brasil, afirma que Esta teoria da tradução e da traduzibilidade assume em Benjamin os traços de uma filosofia da história e de uma teoria da salvação. Porém, não se pode tratar de uma teodiceia que quisesse justificar o caminhar da história pela presença de um sentido transcendente, supra-histórico. Temos aqui muito mais a figura paradoxal de uma esperança teológica que só pode se cumprir na sua resolução totalmente profana: a língua da humanidade redimida não significa uma volta à língua, única e sagrada, de um paraíso perdido, mas, pelo contrário, a exposição integral da multiplicidade das línguas humanas históricas e imperfeitas. A compreensão universal entre as línguas só poderá nascer do desdobramento radical desta diversidade (1994, p. 34).

Benjamin afirma que “a traduzibilidade é, em essência, inerente a certas obras” (2008, p. 67) porque as obras têm uma potência em maturação que só pode ser expressa pelas suas traduções. O significado que se exprime na tradução é a salvação da obra porque é a tradução que o ilumina. Implica dizer, ela nunca encontra o seu tradutor ideal porque nem o autor o pôde exprimir como totalidade acabada. O significado “oculto” que ela exprime é infinito em todas as direções e incompleto em todos os momentos, por isto ele só se realiza na tradução, brota de sua traduzibilidade. Um tal significado só pode ser pensado como assignificante porque ele carrega um “instante inesquecível”, “mesmo que todos os homens o tivessem esquecido” (2008, p. 67). Em todas as línguas, existe um incomunicado que não se reduz à comunicação ou ao sentido, só a tradução o pode apresentar, sem alcançá-lo de todo. A recusa benjaminiana Sumário

180 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir da comunicação e da relação superficial texto/leitor é uma recusa à primazia da “subjetividade dos póstumos” e uma crítica à tradução como repetição anacrônica da história. É aqui que a tarefa do tradutor tem muito a dizer ao debate sobre o pós-colonialismo. A tradução não tem que significar para o original e, no limite, nada pode dizer a ele. Sua relação com ele é “tanto mais íntima” quanto menos significar para ele. É este movimento destrutivo, luciferino, para a frente, o anjo de Klee, que não permite paralisar o processo de traduzibilidade e a operação de tradução numa temporalidade linear à revelia dos homens e do trabalho das multidões, aprisionado por um passado ideal “resgatável” pela tradução. A tradução coloca o original num “tempo carregado de agoras”, muitos deles não contemporâneos3. O tradutor é uma espécie de anjo profano cuja tarefa é necessariamente trabalhar num médium amontoado de ruínas e de destruição. A famosa passagem das Teses sobre o conceito de história, em imagens que Baudelaire teria aprovado: Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (1994, p. 226).

Cf. O conceito de não contemporâneo, “resídios não integrados de uma outra economia e uma outra cultura”, é de Martin Barbero e German Rey em Os exercícios do ver. São Paulo: SENAC, 2001. 3

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A salvação do original não está numa “teodiceia”, numa transcendência que a tudo abarca e explica, nem o próprio capitalismo, mas na sua inserção na multiplicidade das línguas, nem sagradas nem perdidas, imperfeitas, históricas e infinitas. Em uma palavra, no mundo da vida. Na tarefa-renúncia do tradutor, ele afirma que “a vida do original alcança, de uma maneira constantemente renovada, seu mais tardio e vasto desdobramento” nas gerações posteriores. São as gerações posteriores que dão sobrevida ao original, pois é nelas que a traduzibilidade é uma essência natural ou "de vida" da obra (2008, p. 69). E a vida só pode ser reconhecida naquilo que possui história. “É somente quando se reconhece vida a tudo aquilo que possui história e que não constitui apenas um cenário para ela, que o conceito de vida encontra sua legitimação” (2008, p. 68). A história é a “vida mais vasta” e é na tradução, radicalmente histórica, que a vasta vida do original se manifesta como sobrevida. Em seus últimos escritos, Michel Foucault (2008) passou a usar o termo ‘biopolítica’ para designar as relações entre o mundo dos saberes e os modos de vida, especificamente à maneira como os “homens infames” e marginalizados de toda ordem resistem às imposições do biopoder disciplinar. Creio que o conceito de sobrevida do original de Walter Benjamin antecipa esta questão na medida em que ele pressupõe uma relação indissociável entre salvação e destruição: “na continuação de sua vida (que não mereceria tal nome se não se constituísse em transformação e renovação de tudo aquilo que vive), o original se modifica”, pois “existe uma maturação póstuma das palavras” (2008, p. 70). A tradução revela a vida produtiva das línguas e quero crer que ser esta produtividade o ponto de contato que expressa “o mais íntimo relacionamento das línguas entre si” (p. 69). Ela não é capaz de revelar ou restituir tal relacioSumário

182 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir namento, mas só ela é capaz de apresentá-lo e atualizá-lo, tocá-lo fugazmente, numa língua estrangeira. É o abalo da “língua paterna” pela língua estrangeira, do original pela tradução, que é capaz de redimir e liberar a língua do cativeiro e a dotá-la de sobrevida no devir das línguas. Ela nunca pode ser reduzida a identidades de ascendência (2008, p. 71). Suzana Kampff Lages (2002) afirma que, presa a um passado ideal, a tradução encontra um tradutor melancólico dependente de um outro fantasmático, eleito narcisicamente, numa espécie avessa de narcisismo em que a dificuldade de superação da perda do outro implica um desapego de si mesmo, um ego frágil, indissociado do objeto perdido. Num plano político, que outro nome dar a isso senão colonialismo? O melancólico é prisioneiro de um passado ideal. Ele é excludente porque seu narcisismo não observa os devires e a produtividade do passado, sua sobrevida. Daí ser a tradução e a traduzibilidade a crítica de uma forma falsa ou enganosa de experiência (DUTTMANN, 1997), o colonialismo. É aqui que a tarefa de tradutor de Walter Benjamin faz eco com o projeto dos irmãos Campos e sua atualização da proposta oswaldeana da antropofagia e com a crioulização das culturas de Glissant enquanto projeto de leitura crítica, e destrutiva, das tradições homogeneizadoras, linguísticas e culturais, brasileiras e latino-americanas. A teoria da tradução de Augusto e de Haroldo de Campos transforma a melancolia em luto, para continuarmos na terminologia freudiana, o objeto está para sempre perdido. As intraduções de Augusto de Campos e a tese de uma literatura que já nasce adulta, proposta por Haroldo de Campos no Sequestro...não aceitam nenhuma relação servil, de dependência, de “identidade de ascendência”, como quer

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Antonio Candido na Formação da literatura brasileira, segundo a crítica do próprio Haroldo. Os Campos via Oswald compreendem o devirmultiplicidade das línguas e das culturas, em todas as direções e em vastos tempos, inclusive para fora e além da linguagem e da língua. De certa forma, a culminância linguística da teoria benjaminiana da tradução reflete um habitus modernista do autor e a hegemonia cultural do livro e da escrita no modernismo. Mas esta “historicidade” do pensamento de Benjamin contudo nos permite articular sua concepção do devir das línguas a abordagens menos linguageiras da linguagem, até porque a língua pura, cuja tradução, e só a tradução, pode alcançar no máximo um “naco de nuvem”, necessariamente está cheia de outras signagens e de indícios, pois, conforme diz o próprio Walter Benjamin, alguns conceitos significam melhor quando não são referidos a priori exclusivamente ao ser humano, no sentido ocidental de sua “humanidade” (2008, p. 67 e 70).

Da “transluciferação” antropofágica Em A tradução como criação e como crítica (2002), um dos primeiros textos que escreveu sobre o assunto, Haroldo de Campos entende, a partir do pensamento de Albercht Fabri e Max Bense, que a poesia e a prosa literárias, assim como toda arte, são intraduzíveis, em virtude da relação indissociável no objeto estético entre forma e conteúdo. O autor comenta a diferença estabelecida por Bense entre informação documentária, informação semântica e informação estética; a primeira e a segunda são traduzíveis, pois a informação documentária remete a algo observável, é de natureza empírica; a informação semântica consiste numa assertiva a respeito da primeira, se é verdadeira ou falsa, por Sumário

184 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir exemplo. Em ambos os casos, a informação pode ser veiculada com diferentes maneiras de “codificação”. A informação estética é intraduzível pela unidade ou isomorfia forma/ conteúdo. Induzido por Bense, Haroldo discorre sobre os conceitos de informação não estética, documentária e/ou semântica, e entende ser possível, nestes dois casos, uma relação dissociável entre fundo e forma, diferentes formas, mesmos fundos, enquanto que a informação estética é uma “sentença absoluta”. Contudo, crer num tal princípio significa pressupor a possibilidade de conteúdos autônomos, que pairam além e acima de sua contingência histórica, as palavras funcionando como o futuro de uma verdade que a precede. Sob este aspecto, os pressupostos de Haroldo são metafísicos. A relação indissociável entre forma e fundo não é uma condição exclusiva da arte e da literatura, mas de todo discurso, pois o sentido não prescinde de sua efetivação em palavras. À medida em que aprofunda seu sentido da tradução, que culmina no prefácio da tradução de Goethe, Haroldo se desvencilha de seus pressupostos metafísicos ao demonstrar que a fragilidade da sentença absoluta da informação estética pode sim ser traduzida através de uma “transcriação”, que inscreve na língua do Um uma inalienável diferença, “uma vivência interior do mundo e da técnica do traduzido”. Posteriormente, Robert Stam (2008, p. 339), pensando na relação literatura/cinema,falou de uma “transécriture dialógica”. Haroldo compreende a tradução enquanto recriação como uma espécie de equivalência na/da diferença. Aqui, o autor demonstra o potencial criativo e inovador de seu pensamento ao não buscar, na tradução dos textos criativos da poesia e da prosa literárias, acrescento literatura/ cinema/Hq/TV, uma falsa equivalência do mesmo. Ele afirma: Sumário

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Tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma porém recíproca. Quanto inçado de dificuldades este texto, mais recriação, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação. Numa tradução desta natureza, não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual,enfim de tudo aquilo que forma, segundo Charles Morris, a iconicidade do signo estético, entendido por signo icônico aquele “que é de certa forma similar àquilo que ele denota”). O significado, o parâmetro semântico, será apenas e tãosomente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora. Está-se pois no avesso da tradução literal (CAMPOS, 2002, p. 35).

Haroldo propõe uma espécie de simetria dissimétrica, que não é nem similar nem equivalente, pois as línguas e linguagens envolvidas são “estranhas” uma a outra e apontam para a multiplicidade que as constitui. Não obstante ainda postular a idéia modernista de uma “fragílima beleza aparentemente intangível”, a consciência da diversidade e do estranhamento linguístico já traz à teoria da tradução do poeta concretista uma atualidade inegável. Se Haroldo não abre mão do conceito modernista de uma relação “não arbitrária”, intrínseca na literatura, da forma e do conteúdo, do significante e do significado, em termos saussureanos, sobretudo na poesia e na prosa de invenção, seu pensamento não se reduz a isso. A teoria da tradução de Haroldo, e por extensão do projeto concretista, abre-se para uma postura que problematiza a relação hierárquica entre o texto original e o texto traduzido, o que dá um sentido político claro a sua teoria da tradução. É nestes termos que Augusto pensa suas Intraduções:

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186 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir A minha maneira de amá-los é traduzi-los. ou deglutilos, segundo a lei antropofágica de Oswald de Andrade: só me interessa o que não é meu. Tradução para mim é persona. Quase heterônimo. Entrar na pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor por dor, som por som, cor por cor. Por isso nunca me propus traduzir tudo. Só aquilo que sinto. Ou que minto que sinto, como diria ainda uma vez, pessoa em sua persona (1988, p. 10).

Se nos primeiros textos a concepção concretista da relação signo/sentido em poesia e prosa de invenção possui uma natureza até certo ponto ontológica, essencializante, talvez como gesto inerente a toda estratégia de vanguarda, posteriormente sua teoria da tarefa do tradutor é antilogocêntrica, anti-essencialista e pós-colonial. A tradução é a vivência da persona, é um contato com a alteridade. Esta postura atinge seu momento mais radical e de maior densidade crítica em Deus e o diabo no Fausto de Goethe (2005). Nos vários ensaios que abrem e fecham a tradução das duas cenas finais da segunda parte do poema goetheano, “escritura mefistofélica” e de “transluciferação mefistofáustica”: O desideratum de toda tradução que se recusa a servir submissamente a um conteúdo, que se recusa à tirania de um Logos pré-ordenado, é romper a clausura metafísica da presença (como diria Derrida): uma empresa satânica (CAMPOS, 2005, p.180).

No capítulo dedicado a Haroldo de Campos de seu Tradução e melancolia (2002), Susana Kampff Lages percebeu o diálogo de Haroldo de Campos com a teoria da tradução de Walter Benjamin e sua “desleitura” dessa mesma teoria. O anjo da história de Benjamin deve ressuscitar a língua pura para a qual toda linguagem conflui em sua Sumário

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aspiração messiânica de ressuscitar os mortos (BENJAMIN, 1995), na teoria concretista da tradução “o caráter luciferino estaria em sua dessacralização do texto original e à reinserção da atividade do tradutor num âmbito humano de relações, trazendo-o para aquém da grande saudade” (LAGES, 2002, p. 191). Assim, o texto original está em dívida com a tradução, não há mais resgate possível, a empresa satânica implica numa leitura política da tradição em que o tradutor não se prende a uma falsa reapropriação, atualização ou equivalência para deixar intacto o sentido do mesmo e reforçar, em terra alheia, a superioridade de “original”. O passado só está vivo enquanto diferença crítica, a tradução é uma ação política sobre a origem que implica seleção e escolha, intervenção não hierarquizante e sem culpa ou castigo: Os móveis primeiros do tradutor, que seja também poeta ou prosador, são a configuração de uma tradição ativa (daí não ser indiferente a escolha do texto a traduzir, mas sempre extremamente reveladora), um exercício de intelecção e, através dele, uma operação de crítica ao vivo. Que disso tudo nasça uma pedagogia, não morta e obsoleta, em pose de contrição e defunção, mas fecunda e estimulante, em ação, é uma de suas mais importantes conseqüências (CAMPOS, 2002, p. 44).

Isto posto, os dois textos mais importantes de Haroldo sobre uma teoria da tradução confluem para seu não menos importante Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira (2002), no qual a teoria da tradução encontra-se com a crítica da cultura brasileira em sua relação com as tradições europeias hegemônicas. Neste texto seminal, Haroldo formula uma crítica da tradição que é também uma teoria da tradução a partir de Sumário

188 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir uma releitura da antropofagia oswaldiana em termos muito próximo do que depois escreverá no Deus e o diabo no Fausto de Goethe: Ela não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma transculturação; melhor ainda, uma “transvaloração”: uma visão crítica da história como função negativa (no sentido de Nietzsche), capaz tanto de apropriação como de expropriação, desierarquização, descontrução. Todo passado que nos é “outro” merece ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado. Com esta especificação elucidativa: o canibal era um “polemista” (do grego pólemos= luta, combate), mas também um “antologista”: só devorava os inimigos que considerava bravos, para deles tirar proteína e tutano para o robustecimento e a renovação de suas próprias forças naturais (CAMPOS, 2002, p. 234).

A antropofagia, ou aquilo que Haroldo chama de “razão antropofágica”, serve como rompimento com uma relação submissa e hierarquizadora e de crítica ao etnocentrismo, de uma teoria da tradução e prática tradutória como procura da similaridade e da equivalência; de uma visão da cultura que tem como referência última a renúncia de sua especificidade e diferença. A transluciferação assume seu caráter político. Foi neste sentido que ele pensou numa heterogênese da literatura brasileira a partir da leitura que fez da Formação da literatura brasileira de Antonio Candido. No Sequestro do barroco, ele faz perguntas do tipo: Que movimentos de sentido ela, a história oficial da literatura brasileira, clausula? Que modos de vida segrega? Que alteridades nela foram usurpadas? Para demonstrar sua heterogênese, Haroldo analisou o caso Gregório de Mattos e do Barroco. Não contra Antonio Candido, já que sua obra não pode ser reduzida à Formação..., Sumário

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a favor de outros movimentos de significação, nas palavras do próprio Haroldo, “dos percursos oblíquos e das derivações descontínuas”. A importância da trajetória intelectual de Antonio Candido, a meu ver, não sai diminuída na polêmica aberta pelo Sequestro... Antes sua estatura só se amplia, pois Haroldo reconhece, no ato mesmo de dedicar a ele anos de pesquisa, sua grandeza e sua centralidade, apontando em seu próprio livro o quanto Candido submeteu seus pressupostos a uma revisão constante. Haroldo nos sugere voltar a “estranhar” o grande mestre, torná-lo o excêntrico que vem contribuir, que vem nos dar uma outra vereda, muitas vezes à revelia dele mesmo. Haroldo critica as 2 séries metafísicas (e metafóricas) do método de Antonio Candido: 1) a “animista-ontológica” e 2) a “evolutivo-biológica”. A crítica atinge o ideal metafísico, forte em Candido, de “entificação do nacional” atrelado a um outro, o “espírito do ocidente”. O modelo historicista-teleológico, sem meias palavras, etnocêntrico, da Formação... pressupõe continuidade e crescimento controlado, “converte o interesse particular do Romantismo nacionalista em verdade historiográfica geral”, reitera como princípio um “passado comum”, que no limite nada mais é a história oficial dos colonizadores. O Barroco e os rizomas do boca do inferno não cabem nesta história. Ele nunca foi autor, nunca foi um sujeito, nunca falou sua/nossa “própria língua”, nunca foi a “encarnação literária do espírito nacional”. Gregório e o barroco são babélicos, não linguageiros, logo, não fazem “ordem” ou “progresso”. Eles não cabem na temporalidade linear e na derivação autoritária da origem colonialista: Nossa literatura, articulando-se com o Barroco, não teve infância (in-fans, o que não fala). Não teve origem “simples”. Nunca foi in-forme. Já “nasceu” adul-

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190 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir ta, formada, no plano dos valores estéticos, falando o código mais elaborado da época. Nele, no movimento de seus “signos em rotação”, inscreve-se desde logo, singularizando-se como “diferença”. O “movimento da diferença” (Derrida) produz-se desde sempre: não depende da “encarnação” datada de um LOGOS auroral, que decida da questão da origem como um sol num sistema heliocêntrico. Assim também a maturidade formal (e crítica) da contribuição gregoriana para a nossa literatura não fica na dependência do ciclo sazonal cronologicamente proposto pela Formação (CAMPOS, 2011, p. 67, grifos do autor).

Nossa origem não tem “nenhum caráter”. A meu ver, a Revisão de Sousândrade, escrito em parceria com seu irmão/poeta/tradutor Augusto de Campos, ele também digno de todas as “vivas” – o poeta que colocou as questões mais instigantes para a cultura brasileira, com exagero mesmo -, é a metonímia de uma tal trajetória, que não só reconfigura todo nosso passado “nacional” quanto transforma em expressões de pouca monta, com exagero de novo, a grandeza da ruptura de um Charles Baudelaire, tal qual Walter Benjamin instituiu como mestre/poeta do auge do capitalismo. Tocando a ferida de nossos enclausuramentos.

Da nova épica crioula A razão antropofágica tal como formulada por Haroldo tem fortes traços de contato com o conceito de crioulização, “equivalência de valor” e turbulência de sistemas que são colocados em presença uns dos outros, de Édouard Glissant: A linguagem do tradutor age como a crioulização e como a Relação no mundo, ou seja, essa linguagem

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produz imprevisível. Arte do imaginário, nesse sentido, a tradução é uma verdadeira operação de crioulização, doravante uma prática nova e inevitável da preciosa mestiçagem cultural. Arte do cruzamento das mestiçagens que aspiram à totalidade-mundo, arte da vertigem e da salutar errância, a tradução inscreve-se, dessa maneira, e cada vez mais, na multiplicidade de nosso mundo. Arte da fuga de uma língua a outra, sem que, no entanto, a primeira se apague, e sem que a segunda renuncie a apresentar-se (GLISSANT, 2005, p. 56).

Partindo do conceito de rizoma de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), Glissant difere o que chama de culturas atávicas e culturas compósitas. A cultura atávica parte de uma gênese única e uma filiação que funda – se apropria – de um território. Ela mata tudo a sua volta, só é capaz de ver sob as lentes do mesmo, “uma comunidade que reafirma sua confiança em si mesma” (GLISSANT, 2005, p. 94), fundada numa epopeia que a legitima e a pressupõe como origem de todas as coisas e lugar do sagrado e da divindade. Baseada no conceito de verdade e na previsibilidade, a ciência dominante é uma das faces institucionais das comunidades atávicas cujo fim último é paralisar o constante vir a ser das coisas em seu movimento em direção à horizontalidade. O pensamento do rizoma, próprio das culturas compósitas, impuras, barrocas, na palavra de Glissant, vai ao encontro de outras raízes, compreende o outro como inferência, pois nelas o mito fundador não funciona, senão através de um empréstimo. Nas culturas compósitas, prevalece o resíduo, “um não-sistema de pensamento, que não seja nem dominador, nem sistemático, mas intuitivo, frágil e ambíguo” (GLISSANT, 2005, p.29). O que resulta daí é “a dimensão mutante e perdurável de toda mudança e de toda troca” (GLISSANT, 2005, Sumário

192 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir p. 30) e uma crítica àquilo que o autor chama de “ciência do ser”. A ciência do ser é uma ciência vertical, progressiva, ela sustenta e dá legitimidade à defesa do território e da gênese, daí a relação indissociável na modernidade entre ciência e disciplinaridade, cabendo-se inclusive explorar o duplo sentido que a palavra disciplinar possui em português, tanto como campo autônomo e excludente quanto princípio moralizador. A poética da relação, que não é uma poética do neutro, mas do encontro, pressupõe uma ciência do “sendo”: “a ciência que duvida, que reduz suas certezas e afirma que circulamos pesquisando na extensão, ou seja, que não nos movimentaremos mais na linearidade” (GLISSANT, 2005, p. 90). O sendo se diferencia do ser porque, ao contrário deste, se dirige pro “caos-mundo”, as convivências e os choques da totalidade-mundo contemporânea. Se o tempo linear implica na valorização da idéia de origem sob a qual nasce toda forma de etnocentrismo, a totalidade-mundo tem no caos sua metáfora de base por viver numa multiplicidade de tempo imediato, sincrônico, aquilo que Jesús Martin-Barbero e Germán Rey, pensando nas culturas latino-americanas, chamaram de “não-contemporaneidade do simultâneo”, de “resíduos não-integrados de outra economia” (2001, p. 27). O não contemporâneo pressupõe o encontro entre muitas formas de vida e de pensamento, inclusive, mas não sobretudo, a de seus invasores coloniais. A totalidade-mundo das comunidades compósitas vive num tempo horizontal, constelar, inclusivo, para o qual toda “língua crioula”, sem origem e sem original: E o que é uma língua crioula? É uma língua compósita, nascida do contato entre elementos lingüísticos absolutamente heterogêneos uns aos outros. Uma

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língua crioula não é portanto nem o resultado dessa extraordinária operação que os poetas jamaicanos praticam voluntariamente e de maneira decidida na língua inglesa, nem um pidgin, nem um dialeto. É algo novo, de que tomamos consciência, mas algo que não podemos dizer tratar-se de uma operação original, porque quando estudamos as origens de toda e qualquer língua, inclusive a língua francesa, percebemos que quase toda língua nas suas origens é uma língua crioula (GLISSANT, 2005, p. 25-26).

Por não podemos cair num vale-tudo dos contatos, cujo nivelamento e indiferenciaçãoé a manutenção da ordem capitalística a que estamos submetidos e contra a sua estandartização lutamos, a diferença entre crioulização e mestiçagem de Glissant nos dá instigantes pistas. A crioulização pressupõe a imprevisibilidade do caos-mundo e de formas de encontro aquém de toda estereotipia. Ela exige que as culturas em relação “se intervalorizem”, sem degradação ou diminuição. Esse encontro, inserido na totalidade-mundo e no caos-mundo, não pode prever o que daí advirá nem estancar suas conseqüências. A crioulização, para o autor, nasce do direito à opacidade e é sua consequência, ao passo que a mestiçagem é previsível, geralmente pensada pelos grupos dominantes. A mestiçagem hierarquiza os encontros ou diminui seus efeitos anti-sistêmicos, como a ideologia do branqueamento a que foram submetidas gerações e gerações de negros no Brasil. A mestiçagem tem sempre o pé na casa-grande, a crioulização não esquece o navio negreiro e a senzala. Para dar conta da crioulização inerente ao caosmundo e à poética da relação, Glissant pensa em uma nova dimensão para a literatura: 1) redefinindo sua relação com o lugar e com a comunidade ao relacioná-la com a totalidade mundo; e 2) fundando uma nova forma épica que não se confunde com as grandes epopeias fundadoras. Sumário

194 | Haroldo/Glissant e o Diabo do Traduzir A nova épica de que fala Glissant não quer fundar uma comunidade atávica, excludente e narcísica, que reafirma sua confiança em si mesma e só em si mesma. Ela possui uma fala multilíngue, seu imaginário, compósito e residual, precisará de todas as línguas do mundo para dar conta do que a constitui, a surpresa do sendo. A nova épica, mefistofáustica, deambólica, de HaroldoGlissant, constitui uma espiral para as línguas, e os humanos por vir. Ela é o futuro do passado num pretérito imperfeito e num amanhã potencialmente rico, tarefa renúncia do tradutor num contexto multidinário.

REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. A tarefa-renúncia do tradutor. Belo Horizonte: UFMG, 2008, 102 p. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire:um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1995, 271 p. BENJAMIN, Walter. Magia, técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994, 268 p. CAMPOS, Augusto de. À margem da margem. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. CAMPOS, Augusto de. Verso, reverso, controverso. São Paulo: Perspectiva, 1988 p. CAMPOS, Haroldo de. A escritura mefistofélica. In: Deus e o diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 2005. CAMPOS, Haroldo de. O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira. São Paulo: Iluminuras, 2011. CAMPOS, Haroldo de. A tradução como criação e como crítica. In: Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2002. CAMPOS, Haroldo de. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. In: Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2002. CASANOVA, Pascale. A república mundial das letras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

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Francisco Francimar de Sousa Alves Introdução Certos paratextos, como por exemplo, ilustrações, notas de rodapé, dados sobre o autor, resumos de quarta página, são geralmente encontrados em coletâneas de contos de Edgar Allan Poe traduzidas para o português, elementos informativos que se caracterizam por serem facilitadores da leitura e que podem influenciar a recepção da obra na cultura de chegada. Como esses discursos de acompanhamento se apresentam de forma diversificada nessas coletâneas, levando ao leitor informações relevantes, vale apontar e evidenciar suas funções. Assim, este capítulo analisa elementos paratextuais na antologia de contos de Poe intitulada A carta roubada e outras histórias de crime & mistério, traduzida por William Lagos e publicada pela L&PM em 2003 [2006]1, observando de que forma o autor e sua obra são apresentados através desses discursos. A análise é fundamentada nos princípios teóricos de Gérard Genette que, em livro intitulado Paratextos Editoriais (2009), do original Seuils (1987), discute acerca de paratextos.

A data entre colchetes se refere a reedição/reimpressão que utilizei para este trabalho, sendo o ano de 2003, portanto, a data da primeira edição. 1

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198 | Os Paratextos em Antologias Brasileiras de Edgar Allan Poe Poe: o Mestre da Ficção Gótica O contista, poeta, ensaísta e crítico literário Edgar Allan Poe (1809-1849) teve um percurso de vida conturbado, desregrado e aventureiro, “uma vida corrida, atribulada e cheia de contínuos acontecimentos extraordinários, derivados do seu gênio criativo e temperamental” (ARAÚJO, 2002, p. 17), mas apesar de seus desacertos, deixou um legado de grandes obras como poemas românticos, histórias de horror e mistério, sátiras, contos policiais e ensaios críticos-filosóficos. Como um artífice na construção de narrativas e composição de poemas, Poe se tornou um dos maiores representantes do romantismo norte-americano do século XIX, sendo hoje considerado um dos mais importantes escritores da literatura mundial, e ainda um dos precursores da literatura de ficção científica e fantástica modernas, o que leva alguns estudiosos acreditarem que sua obra deu início a verdadeira literatura norte-americana, “a primeira emergência artística da consciência moderna”2. Como afirma Kiefer (2009, pp. 11-12), “Poe, nos tempos modernos, deve ser considerado o primeiro escritor a refletir com rigor e método sobre a arte da contística”. Vale salientar que Baudelaire foi o responsável pela divulgação da obra de Poe em nível mundial, pois foi a partir da publicação do primeiro volume de traduções de treze contos com o título de Histoires Extraordinaires (1856), dos originais de Poe Tales of the Grotesque and Arabesque (25 contos), escritos entre 1832 e 1845, que o escritor estadunidense teve sua obra disseminada no cenário literário ocidental (França, Europa, América Latina). Logo, “foi através da tradução de Baudelaire que o mundo literário ocidental tomou conhecimento da novidade e do valor da mensagem do autor norte-americano” (MENDES, 2001, p. 53). 2

Santaella, 1987, p. 147.

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A fama de Poe como o mestre da literatura gótica em países europeus e hispano-americanos se repete no Brasil através do impressionante número de traduções de seus contos. A importância e a influência literária de Poe são, indubitavelmente, indicadores do interesse de pesquisadores, editoras, produtores de cinema e do público leitor. Hoje podemos encontrar um elevado número de publicações de traduções e adaptações de sua vasta obra ficcional. No que diz respeito à importância do escritor norteamericano e a disseminação de sua obra no mercado editorial brasileiro, Daghlian afirma: O reconhecimento e a disseminação da obra de Poe no Brasil podem ser avaliados quando levamos em consideração as traduções de sua poesia, ficção e crítica, bem como a quantidade de livros, artigos, teses acadêmicas e trabalhos científicos apresentados em eventos que têm como foco sua vida e obra. (DAGHLIAN, 1999, p. 132).3

Genette e o Conceito de Paratexto Em 1987, Gérard Genette, crítico literário francês e teórico da literatura, publica Seuils, relevante obra para a pesquisa em paratextos editoriais. Em 2009, 22 anos após a publicação francesa, a Ateliê Editorial, com sede em Cotia-SP publica, dentro da série Artes do livro 7, a tradução brasileira de Álvaro Faleiros, Paratextos Editoriais, uma importante The recognition and dissemination of Poe’s work in Brazil can be fairly assessed by considering the translations of his poetry, fiction, and criticism into Portuguese as well as by the number of books, articles, academic theses, and papers presented at scholarly meetings dealing with his life and work. 3

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200 | Os Paratextos em Antologias Brasileiras de Edgar Allan Poe referência na área. Na contracapa, Genette (2009) afirma ser o livro “um estímulo a examinar mais de perto aquilo que, às escondidas e com tanta frequência, regula nossas leituras” – o paratexto. Com um elenco de treze capítulos e 372 páginas, o livro apresenta uma introdução de um pouco mais de onze páginas em que Genette define paratexto como “aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais geral ao público” (p. 9). Genette ainda afirma que o paratexto é “mais do que um limite ou uma fronteira estanque”, um “limiar” que oferece ao leitor a possibilidade de entrar no texto ou de retroceder (pp. 9-10). O autor expande sua definição ao chamar a atenção para a quase impossibilidade de um texto literário se apresentar desacompanhado de elementos paratextuais: Esse texto raramente se apresenta em estado nu, sem o reforço e o acompanhamento de certo número de produções, verbais ou não, como um nome de autor, um título, um prefácio, ilustrações, que nunca sabemos se devemos ou não considerar parte dele, mas que em todo caso o cercam e o prolongam, exatamente para apresentá-lo, no sentido habitual do verbo, mas também em seu sentido mais forte: para torná-lo presente, para garantir sua presença no mundo, sua “recepção” e seu consumo, sob a forma, pelo menos hoje, de um livro. (GENETTE, 2009, p. 9).

Segundo Genette, não existe e nunca existiu um texto sem paratexto, mas, em contrapartida, há paratextos sem textos, como é o caso de muitas obras “desaparecidas ou abortadas” que conhecemos apenas o título, por exemplo, “numerosas epopeias pós-homéricas ou tragédias gregas clássicas”, títulos isolados que temos um pouco mais com que sonhar do que em muitas obras disponíveis e legíveis em seu todo (p. 11). O autor ainda atenta para a diferença Sumário

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entre duas categorias de paratexto: o peritexto e o epitexto. A primeira consiste numa “mensagem materializada” e tem necessariamente um lugar que pode ser “em torno do texto, no espaço do mesmo volume, como o título e o prefácio, e, às vezes, inserido nos interstícios do texto, como os títulos de capítulo ou certas notas” (p. 12). A segunda, discutida nos dois últimos capítulos do livro, também se concentra em torno do texto, porém a certa distância, e diz respeito a “todas as mensagens que se situam, pelo menos na origem, na parte externa do livro”, geralmente através de conversas, entrevistas etc., ou por meio de uma comunicação privada, como é o caso de correspondências e diários íntimos (p. 12). Os paratextos consistem, portanto, de elementos informativos e de relevante importância na construção de uma obra e caracterizam-se por serem facilitadores da leitura, ajudando a explicá-la. Logo, esses elementos mediadores entre o texto e o leitor podem ser bastante variados. OS PARATEXTOS EM A CARTA ROUBADA E OUTRAS HISTÓRIAS DE CRIME & MISTÉRIO A coletânea em análise tem por título A carta roubada e outras histórias de crime & mistério, publicada pela L&PM em 2003, em tradução de William Lagos. A obra, que faz parte da coleção de bolso L&PM Pocket, contém 208 páginas, e narra dez contos: “A carta roubada”, “Metzengerstein”, “Berenice”, “Ligéia”, “A queda da Casa de Usher”, “William Wilson”, “O retrato ovalado”, “A máscara da Morte Rubra”, “O barril de amontillado” e “O poço e o pêndulo”. Como informa o próprio título, bem como a imagem de capa, que exibe uma pessoa caída ao chão, o livro relata histórias de temática relacionada a assassinatos e acontecimentos inexplicáveis.

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O título, como sabemos, é o nome atribuído ao livro e “serve para nomeá-lo, [...] designá-lo com tanta precisão quanto possível e sem riscos demasiados de confusão” (GENETTE, 2009, p. 76). As três funções do título estabelecidas por Charles Grivel: designação, indicação do conteúdo e sedução, segundo Genette, “não estão todas necessariamente presentes ao mesmo tempo”, mas apenas a primeira delas é obrigatória, “as outras duas são facultativas e suplementares, porque a primeira pode ser cumprida por um título de significado mudo, em nada ‘indicativo de conteúdo’” (p. 73). Poderíamos assim dizer que A carta roubada e outras histórias de crime & mistério contempla as três funções, pois, ao mesmo tempo que identifica a obra, indica claramente o seu conteúdo, de forma a seduzir o público com narrativas que tem o crime e o mistério como temáticas principais.

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Em geral, as antologias brasileiras de contos de Poe trazem imagem de capa. Grosso modo, a capa é o rosto do livro, a porta de entrada de uma obra. É ela “que destaca o livro nas vitrines e nos mostruários” e tem por objetivo “atrair a atenção de um possível leitor e ela pode ser mais ou menos apelativa ou mais ou menos discreta, dependendo do público que a edição tem em vista” (CRUZ, 2007, p. 59). Acredito que, normalmente, uma obra traz uma imagem indicativa ao que ela propõe. Em algumas coletâneas traduzidas de Poe, o elemento imagético às vezes revela sobriedade, outras vezes se torna apelativo. Como afirma Cruz, “A necessidade de fisgar o leitor traz muitas vezes para a capa um elemento ilustrativo relativo à obra veiculada” (p. 60). No caso da antologia em discussão, a imagem de uma pessoa caída ao chão se compatibiliza com o título e ambos refletem a(s) temática(s) dos textos narrados. A quarta capa ou contracapa, a exemplo da capa, é também um lugar estratégico em que o editor pode dispor para apresentar a obra ou trazer informações sobre o autor, mas ainda poderá usá-la para fins comerciais, como propagar o nome da editora, da coleção ou mesmo da edição. Assim, os textos de quarta capa podem ser considerados como “um recurso propagandístico, que procura divulgar as qualidades de uma obra com vistas a um determinado público” (HORTA, 2002, p. 63). Segundo Genette, a quarta capa é “um lugar bastante apropriado e estrategicamente bastante eficaz para uma espécie de breve prefácio, de leitura” (p. 104). Esse breve prefácio, denominado de pressrelease ou release “trata-se de um texto curto (geralmente de meia a uma página) que descreve, à maneira de resumo ou de qualquer outro meio, e de modo normalmente elogioso, a obra a que se refere” (p. 97). A coletânea não apresenta prefácio ou qualquer informação introdutória, porém a quarta capa traz o sugesSumário

204 | Os Paratextos em Antologias Brasileiras de Edgar Allan Poe tivo título, em destaque vermelho, “Os melhores contos do mestre do mistério e do suspense”, informação que eleva o autor e tenta atrair o leitor com a indicação de que se trata dos contos mais lidos. Abaixo vem um release dividido em dois parágrafos. O primeiro apresenta o enredo da metade dos contos narrados na coletânea: “A queda da casa de Usher”,“William Wilson”, “O barril de Amontillado”, “O poço e o pêndulo” e “A carta roubada”. Contudo, o comentário sobre o primeiro conto, está mais voltado à interpretação, pois esclarece que é “a história de um estranho casal de irmãos cuja corrupção moral e psíquica é refletida na falência física da mansão gótica onde moram”. O segundo parágrafo traz um resumo elogioso sobre o autor como o grande “mestre da narrativa curta, sensibilidade privilegiada e perturbada, precursor do romance policial, exímio explorador das profundezas psicológicas do homem e um dos maiores escritores da literatura mundial”. Em seguida, há a indicação, em caixa alta, de que os contos narrados têm “texto integral”, o que deixa claro não se tratar de uma adaptação, mas sim de uma tradução em si. A quarta capa também fornece duas informações de caráter comercial: a primeira, que a L&PM Pocket é “A maior coleção de livros de bolso do Brasil”; a segunda, que o leitor pode procurar “nas últimas páginas do livro os lançamentos da Coleção L&PM Pocket”, o que vem divulgar a coleção de bolso da editora.

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Segundo Genette, o selo de coleção é uma “duplicação do selo editorial, que indica imediatamente ao potencial leitor que tipo ou que gênero de obra tem a sua frente” (p. 26). Portanto, é interessante para a editora divulgar uma coleção de autores de fama nacional ou internacional, como é o caso de Poe, considerando que isso poderá conquistar um maior número de leitores. Do ponto de vista da editora, “a coleção é uma forma de organização e classificação de catálogo, com vistas a um mercado” (CRUZ, 2007, p. 52), e esse mercado de leitores só pode ser conquistado através do prestígio do escritor e da credibilidade da editora que legitimam o selo da coleção. Como afirma Cruz, “Um autor famoso contribui com a sua fama pessoal para a construção da fama da editora. A editora em ambos os casos é qualificada de acordo com o prestígio dos autores e títulos de seu catálogo” (p. 45), e Poe, através da coleção L&PM Pocket, é apresentado como um dos mais renomados escritores da literatura mundial, mestre do mistério e do suspense. Através dessas informações, podemos perceber que a editora não está apenas veiculando as qualidades de um grande escritor e sua obra, mas, por outro modo, está divulgando a edição e a coleção como um todo, o que vem ser, Sumário

206 | Os Paratextos em Antologias Brasileiras de Edgar Allan Poe portanto, uma estratégia comercial. Ainda, junto ao nome da coleção, aparece a informação de que a edição traz “texto integral”, ou seja, de que o texto de Poe é uma tradução em si, e não uma adaptação, sendo assim uma informação útil para o leitor mais esclarecido, visto que, há editoras que publicam adaptações para o público infanto-juvenil, por exemplo, a Ediouro, que editou 18 contos de Poe traduzidos e adaptados por Clarice Lispector em Histórias extraordinárias. A segunda página da coletânea promove a divulgação de outras obras traduzidas de Poe na coleção L&PM Pocket (Assassinatos na rua Morgue e O relato de Arthur Gordon Pym). As últimas páginas da obra apresentam uma cronologia acerca da vida e obra de Poe. Outro elemento paratextual de grande importância, principalmente no que se refere a obras traduzidas, é a nota de pé de página, pois é através dela que a publicação se torna mais rica em termos de conteúdo e ajuda o leitor a interpretar o texto. Esse elemento também demonstra não somente o vasto nível de conhecimento do autor, mas igualmente do tradutor, que teve a preocupação de aprofundar sua pesquisa, enriquecer seu trabalho e levar ao público um texto informativo e não apenas traduzido. Conforme Genette, “Uma nota é um enunciado de tamanho variável (basta uma palavra) relativo a um segmento mais ou menos determinado de um texto, e disposto seja em frente seja como referência a esse segmento”, e que só vieram aparecer no século XVIII (p. 282). Em notas se encontram “definições ou explicações de termos usados no texto, às vezes a indicação de um sentido específico ou figurado”. As notas também podem conter “Traduções de citações produzidas no texto em língua original ou o inverso. Referências de citações, indicações de fontes” (p. 286), entre outras informações que se tornarem necessárias. Jorge Pinho, Sumário

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ao comentar sobre as notas de tradução, sejam elas iniciais, de rodapé ou finais, observa: [...] a opção pelas notas de tradução [...] constitui um suporte ao trabalho desenvolvido pelo tradutor, servindo de justificação ou complementando o texto traduzido. Em alguns casos as notas servem principalmente para o leitor, mas poderão servir como referência do tradutor a elementos fundamentais na contextualização e afirmação de conhecimento sobre o assunto traduzido. [As notas de rodapé] servem a propósitos mais imediatos e funcionais de prestação de informação aos leitores. Aliás, as notas surgem sempre como um elemento de concessão ao leitor e à eventual necessidade de este perceber melhor o que se encontra na obra (PINHO, 2009, p. 123).

Ao longo da obra, William Lagos enobrece sua tradução ao trazer para o pé de página 54 notas que esclarecem sobre os diversos aspectos da narrativa de Poe, não apenas linguísticos, mas também históricos, culturais, filosóficos, mitológicos além de outros, riqueza de detalhes que se encontra nas entrelinhas do texto poeano. No conto “O retrato ovalado”, por exemplo, ao se referir aos “Montes Apeninos”, Lagos informa que se trata de uma “cadeia montanhosa que corta a Itália, da Ligúria à Calábria, e se prolonga até a Sicília” (POE, 2006, p. 146), o que vem explicitar algo relacionado ao campo geográfico na narrativa. No conto “A máscara da Morte Rubra”, o tradutor traz para o seu texto o teatro do século XIX e leva ao seu leitor Hernani, polêmica peça do novelista, poeta e dramaturgo francês Victor Hugo:

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208 | Os Paratextos em Antologias Brasileiras de Edgar Allan Poe Drama de Victor Hugo. Sua primeira apresentação foi no Théâtre-Français, a 25 de fevereiro de 1830, ocasionando uma verdadeira batalha nas galerias entre os partidários do classicismo e os do romantismo. Com o título italianizado de Ernani, transformou-se em ópera, com libreto de Piave e música de Verdi, estreada em 1844. (POE, 2006, p. 156)

O tradutor também intertextualiza o aspecto histórico-bíblico, no conto “A máscara da Morte Rubra”, ao se referir à passagem: “[...] o vulto em questão excedia o próprio Herodes em extravagância e malignidade e tinha ultrapassado até mesmo os limites do decoro indefinido do Príncipe” (p. 158): “Referência a Herodes I, o Grande, 73-04 a.C., rei da Judéia (como preposto dos romanos) de 40 a 04 a.C., famoso por seu luxo e sua extravagância, aliados a assomos de crueldade, dentre os quais o mais conhecido é a bíblica Matança dos Inocentes”. Vale salientar que o editor apresenta apenas duas notas: uma para a locução vis inertiae, traduzida por “força da inércia” (p. 30); outra, para a palavra ennui, traduzida por “aborrecimento, tédio” (p. 31), ambas no conto “A carta roubada”. Em geral, os contos de Poe são introduzidos por uma epígrafe. Segundo Genette (2009, p. 131), a epígrafe é “uma citação colocada em exergo”, na borda da obra, “em destaque, geralmente no início de obra ou de parte de obra”. É através do romance gótico que a epígrafe é introduzida na prosa narrativa com The Misteries of Udolpho (1794) [de Ann Radcliffe] (p. 133), e o seu lugar mais comum é o mais próximo do texto (p.135). Esse elemento também demonstra o elevado grau de conhecimento de Poe. Dos dez contos que compõem a antologia, sete trazem epígrafes, que também são cuidadosamente traduzidas por William Lagos em notas de rodapé. Em duas epígrafes, a Sumário

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exemplo das notas de rodapé, percebemos a preocupação do tradutor em prestar informações mais precisas, e não apenas traduzir. A epígrafe que abre “O poço e o pêndulo” é um quarteto cuja origem é informada por Poe em seu texto e traduzida por Lagos como um “Quarteto composto para os portões de um mercado a ser construído no local em que se erguera o Clube dos Jacobinos, em Paris” (POE, 2006, p. 172). Lagos, portanto, explicita em nota sobre uma questão histórico-política, o extremismo dos Jacobinos (século XVIII), e que anuncia a temática principal do conto – a Inquisição: Os Jacobinos (que herdaram o nome dos frades dominicanos) formaram o partido político mais extremado durante a Revolução Francesa. Robespierre, St.Just e Mirabeau, alguns de seus membros, levaram seus adversários girondinos (chefiados por Danton) ao cadafalso durante o Terror. Foram, por sua vez, executados após o Thermidor, e seu clube foi arrasado em 1794. (POE, 2006, p. 172)

Conclusão Através da análise de elementos paratextuais em A carta roubada e outras histórias de crime & mistério, podemos perceber que Poe é apresentado não apenas como mestre da narrativa fantástica e inovador do conto policial, mas, sobretudo, como um gênio em diversas áreas do saber: história, literatura, política, religião etc. e conhecedor de outras línguas (a obra ficcional de Poe é repleta de palavras e expressões em francês e latim), o que pode ser comprovado por meio das notas de rodapé traduzidas por Lagos ao fornecer tão rico conteúdo, tanto de línguas como de conhecimentos Sumário

210 | Os Paratextos em Antologias Brasileiras de Edgar Allan Poe gerais. Portanto, devemos considerar que, sem elas, o leitor não conheceria o outro lado fantástico de Poe – a genialidade cultural. É importante observar que nem sempre os tradutores e/ou editores prestam ao leitor informações tão valiosas acerca da obra de Poe e se limitam apenas a dizer o óbvio – que Poe é o mestre do conto gótico, do terror psicológico etc.. Logo, o leitor sente alguma dificuldade para interpretar as narrativas e passa a consumir muito mais tempo para completar sua leitura, porque o tradutor não suplementou sua tradução com dados imprescindíveis à compreensão do texto ou às vezes são insuficientes. Vale salientar que Poe foi o primeiro escritor a discutir com ênfase sobre os princípios que norteiam a criação da ficção curta como um verdadeiro trabalho de arte, através da análise crítica de “Twice-Told Tales”, do seu contemporâneo Nathaniel Hawthorne.

REFERÊNCIAS ARAÚJO, Ricardo. Edgar Allan Poe: um homem em sua sombra. Cotia/SP: Ateliê Editorial, 2002. CRUZ, Celso. Metamorfoses de Kafka. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007. DAGHLIAN, Carlos. Poe in Brazil. In: VINES, Lois Davis. Poe Abroad. Iowa: University of Iowa Press, 1999. GENETTE, Gerard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. HORTA, Patrícia. O potencial de recepção de Jorge Amado na Alemanha. Dissertação (Mestrado em Letras). Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, FFLCH-USP, São Paulo, 2002.

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KIEFER, Charles. A poética de Edgar Allan Poe. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 44, nº 2, p. 11-15, abr./jun. 2009. MENDES, Oscar. Influência de Poe no estrangeiro. In: POE, Edgar Allan. Ficção completa, Poesia e Ensaios. Org. e trad. Oscar Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001, p. 53-56. PINHO, Jorge Manuel Costa Almeida e. Mãos à obra... da tradução. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 2, n0 XXIV, p. 115128, 2009. Disponível em: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/tradução POE, Edgar Allan. A carta roubada e outras histórias de crime & mistério. Tradução de William Lagos. Porto Alegre: L&PM, 2006. SANTAELLA, Lúcia. “Estudo crítico: Edgar Allan Poe (O que em mim sonhou o que está pensando)”. In: Os melhores contos de Edgar Allan Poe. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Círculo do Livro, 1987. p. 139-189.

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Ana Cristina Cardoso - Professora de língua francesa e de teorias da tradução no Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal da Paraíba. Graduada em Direito e em Letras-Francês pela UFPB e mestre em Letras pela mesma universidade, com a dissertação “Les Serments de Strasbourg”: importância histórica e filológica na consolidação do francês.É doutoranda do Projeto Dinter em Estudos da Tradução UFSC/UFPB/UFCG, no qual desenvolve uma pesquisa sobre história e análise de traduções brasileiras de fábulas La Fontaine. Andreia Guerini – Possui pós-doutorado pela Università degli Studi di Padova (2010) e doutorado em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (2001). É professora Associado 2 do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária, Teoria, crítica e história da Tradução, Literatura Italiana, Literatura Traduzida, Literatura Comparada. Desde 1999, vem se dedicando ao estudo da obra do escritor italiano Giacomo Leopardi, especialmente os ensaios do Zibaldone di Pensieri. Desde 2010, coordena o Grupo de Pesquisa do CNPq de Estudos Leopardianos, com a participação de professores brasileiros e estrangeiros. Desde 2002, é editora-chefe da revista Cadernos de Tradução (Qualis A1)

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e a partir de 2011 da revista online Appunti Leopardiani, editada em parceria com pesquisadoras italianas. Coordena vários acordos internacionais com a Itália e outros países. Atua, desde 2011, como professora visitante do programa de Doutorado em Letteratura, Storia della lingua e Filologia italiana da Università per Stranieri di Siena/Itália. Participou do projeto e do grupo de pesquisadores do PROCADCAPES entre a Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG e a Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC (2009-2012) e do DINTER-CAPES entre a Pós-Graduação em Estudos de Tradução da UFSC e a Universidade Federal da Paraíba (2010-2014). Fez parte da Diretoria da Associação Brasileira de Pesquisadores em Tradução (ABRAPT), gestão 2011-2013 e da Diretoria da Associação Nacional de PósGraduação em Letras e Linguística (ANPOLL), gestão 20122014. Atualmente, é coordenadora da Pós-Graduação em Estudos da Tradução (2013-2016), participa como representante da área de Literatura no Conselho Consultivo da ANPOLL (2014-2018) e coordena o GT de Estudos da Tradução da ANPOLL (2014-2016). Araken G. Barbosa - Graduado em Letras pela Universidade Católica de Pernambuco (1970), Mestrado (1989) e Doutorado (2005) em Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Pernambuco. Atuando principalmente nos seguintes campos: Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas e Tradução, Estudos em Compreensão e Produção Inter linguística, Análise do Discurso e Fonologia da Língua Inglesa. Publicações recentes: Haicais em Inglês – Escrevendo com restrições, A Jornada Cósmica dos Xamãs, Tópicos de Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas e Tradução: Fronteiras do Sentido na Linguagem. Sumário

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Artur Almeida de Ataíde - Graduado em Letras pela UFPE (2005), mestre em Teoria da Literatura (2008) pelo PPGL/UFPE, com trabalho sobre a poesia de Mário Faustino, e doutor em Teoria da Literatura (2013), também pelo PPGL/UFPE, com tese sobre a importância das relações entre forma, corpo e história para o acercamento crítico, teórico e tradutório da poesia, com base numa leitura da obra de Dante e de suas traduções. Tem publicações em meios acadêmicos e jornalísticos: traduções de poesia e artigos ou ensaios sobre poesia, tradução, crítica literária, teoria da tradução e teoria da literatura. Artur Perrusi - Com formação médico-psiquiatra, é mestre e doutor em sociologia (UFPE e UFPB, respectivamente). É professor efetivo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Faz parte do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE e é colaborador do Programa de PósGraduação em Sociologia da UFPB. Atua na área de Sociologia, com ênfase em três eixos: Sociologia da Saúde, Sociologia Política e Teoria Social. Francisco Francimar de Sousa Alves - Doutor em Estudos da Tradução (UFSC) pelo Projeto Dinter em Estudos da Tradução (CAPES). É professor da área de Língua Inglesa na Universidade Federal de Campina Grande/UFCG, Campus de Cajazeiras, onde ingressou em julho/2002. Izabela Leal - Doutora em Letras pela UFRJ e professora de literatura portuguesa da Universidade Federal do Pará e do Programa de Pós-Graduação em Letras (UFPA). Organizou o livro Tradução literária, a vertigem do próximo (com Ana Alencar e Caio Meira, 2011) e No horizonte do Sumário

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provisório: ensaios sobre tradução (com Walter Costa e Mayara Ribeiro Guimarães, 2014). Coordenou o projeto de pesquisa “Poetas em tradução no jornal Folha do Norte” que teve apoio do CNPq. Publicou ensaios em várias revistas e periódicos da área de literatura e tradução. José Temístocles Ferreira Neto - É graduado em Letras, pela Universidade Federal da Paraíba, onde desenvolveu sua pesquisa de mestrado em Linguística, com ênfase em Aquisição da Linguagem e Linguística da Enunciação. Possui doutorado também em Linguística, atuando principalmente em temas relacionados à Linguística da Enunciação, à Aquisição da Linguagem, distúrbios de linguagem e ensino de língua. Foi revisor dos Referenciais Curriculares da Educação do Estado da Paraíba. Foi professor substituto no Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da UFPB no período de 2010 a 2013 e lecionou, principalmente, as disciplinas de Semântica, Teorias da Linguística e Estágio Supervisionado no ensino de língua. Atualmente é professor adjunto I da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Luciano Justino - Doutor pelo Programa de Pós Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Pernambuco (2005), com tese intitulada "Poiesis de campos: poesia e poética em Augusto de Campos". Tem experiência na área de Letras, pesquisando poesia e prosa contemporâneas, com ênfase na interface literatura/intermidialidade. Atualmente, é coordenador adjunto do Programa de Pós-graduação em Literatura e Interculturalidade da UEPB, líder do Grupo de Pesquisa "Interações Narrativas e Socialização" e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, com o projeto "Literatura de multidão: a potência dos Sumário

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pobres na literatura brasileira contemporânea". É autor do livro "Literatura de multidão e intermidialidade: ensaios sobre ler escrever o presente". Marcelo Paiva de Souza - Bacharel em Letras (1993) e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília (1996), doutor em Ciência da Literatura pela Uniwersytet Jagielloński, de Cracóvia, Polônia (2000). Atua principalmente nas seguintes áreas: teoria da literatura, história da literatura e do teatro brasileiros, história da literatura e do teatro poloneses, literatura comparada e estudos da tradução. É professor do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná, e tradutor. Marie-Hélène Catherine Torres – É Professora Associada da Universidade Federal de Santa Catarina onde atua na graduação em Letras Estrangeiras e no Programa de PósGraduação em Estudos da Tradução. Possui Pós-Doutorado pela Universidade de Minas Gerais (2011), Doutorado em Estudos em Tradução - Katholieke Universiteit Leuven (2001), Mestrado em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (1995) e Licenciatura Dupla PortuguesFrancês pela Universidade Federal de Santa Catarina (1992). Foi coordenadora da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC de 2003 a 2007 e coordenadora da Especialização em Formação de Professores de Tradução Literária de 2008 a 2009. Foi coordenadora do Doutorado Interinstitucional (DINTER) da PGET/UFSC com a UFPB e a UFCG de 2010 a 2014. Foi vice-coordenadora do GT de Tradução da ANPOLL em 2012-2014 e membro da DIretoria da ABRAPT da gestão 2011-2013. Tem experiência na área de Letras, com Sumário

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ênfase em Literatura e em Tradução, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura nacional e literatura traduzida, teoria e história da tradução, literatura de língua francesa traduzida no Brasil e estudos em tradução. Publicou recentemente entre outros Variations sur l´étranger dans les lettres: cent ans de traductions françaises des lettres brésiliennes (2004, pela Artois Presses Université), Literatura Traduzida/Literatura Nacional (em co-autoria, pela 7Letras em 2008), o Dicionário de Tradutores Literários do Brasil (em co-autoria online), Literatura e tradução : textos selecionados de José Lambert (em co-autoria, pela 7Letras em 2011), Traduzir o Brasil Literário: paratexto e discurso de acompanhamento, vol 1 (2011), Tradução dos Clássicos (em coautoria, Copiart, 2013), Traduzir o Brasil Literário : Historia e crítica, vol.2 (2014). Traduziu A tradução e a letra ou o albergue do longinquo de Antoine Berman (1a ed. em 2007 e 2a ed. em 2013). Como pesquisadora desenvolve um projeto sobre as escritoras francesas tradutoras do século 18 com verba do CNPq (edital universal 2013-2016). Marta Pragana Dantas - Doutora em Literatura Francesa (Paris III – Sorbonne Nouvelle) e Mestre em Teoria da Literatura (PPGL/UFPE), é professora efetiva da Universidade Federal da Paraíba. Faz parte da linha de pesquisa Tradução e Cultura do Programa de Pós-Graduação em Letras (UFPB), tendo recentemente organizado o livro Tradução e transferências culturais (com Luciana C. Deplagne e Wibke A. Xavier, 2012) e publicado o capítulo “Le reclassement d’une tradition: la traduction du français dans le marché éditorial brésilien” (com Artur Perrusi) na coletânea Traduire la littérature et les sciences humaines. Conditions et obstacles (organizada por Gisèle Sapiro, 2012). Sumário

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Maura Regina da Silva Dourado - Professora da Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa. Possui Mestrado (1991) e Doutorado (1999) em Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina. Realizou estágio pósdoutoral na Universidade de Estocolmo (2005-2007), período em que trabalhou com a transposição dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Estrangeira (1998) e dos Referencias Curriculares para o ensino médio de línguas estrangeiras do estado da Paraíba (2006) para uma série didática, posteriormente adotada pela SEC-PB. É Coordenadora Operacional do Dinter em Estudos da Tradução em parceria com a UFSC e a UFCG (2009-2014) e Coordenadora do subprojeto Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) Letras-Inglês (2014-2018). Realiza pesquisas sobre o processo de ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras em contexto escolar no ensino básico, currículo e formação de professores, avaliação e elaboração de materiais didáticos sensíveis a diferentes estilos de aprendizagem, neurociência e educação, abordagens críticas de ensino de línguas e letramento escolar. Traduz textos da esfera da espiritualidade. Pedro Heliodoro Tavares - Professor da Área de Alemão - Língua, Literatura e Tradução da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Doutor em Psicanálise e Psicopatologia pela École Doctorale Recherches en Psychanalyse da Université Paris VII (Paris-França) (20052008), bem como Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (2003-2007). Realizou PósDoutorado junto à Pós-Graduação em Estudos da Tradução UFSC (2010-2011) investigando as traduções da obra de Sigmund Freud. Coordena com Gilson Iannini a coleção Sumário

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"Obras Incompletas de Sigmund Freud" (Ed. Autêntica), edição da qual é também o coordenador de tradução e revisor técnico. Autor dos livros "Versões de Freud" (7Letras, 2011), "Fausto e a Psicanálise" (Annablume, 2012), "Freud & Schnitzler" (Annablume, 2007) e coorganizador de "Tradução e Psicanálise" (7Letras, 2013). Tem considerável experiência como psicanalista e professor de Psicologia. Sinara de Oliveira Branco – É Professor Adjunto da Universidade Federal de Campina Grande, onde atua no Curso de Graduação de Licenciatura em Letras-Inglês e no Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino (POSLE) da Unidade Acadêmica de Letras. Possui Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Inglês, com pesquisa na área de Tradução, da Universidade Federal de Santa Catarina (2007), Mestrado em Linguística (2002), também pelo Programa de Pós-Graduação em Inglês da UFSC, com pesquisa na área de Tradução, e Licenciatura em Letras-Inglês pela Universidade Federal da Paraíba Campus II (1993), atual Universidade Federal de Campina Grande. É Coordenadora da Pós-Graduação em Linguagem e Ensino (POSLE) da UFCG de 2012 a 2014. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Linguística e em Tradução, atuando principalmente nos seguintes temas: Tradução e Cultura, Tradução Intersemiótica e Cinema, Abordagem Funcionalista da Tradução, Ensino de Tradução. É Conselheira da Secretaria dos Órgãos Deliberativos Superiores (SODS) como representante do Centro de Humanidades. É Coordenadora do LabInfo pelo POSLE. É líder do Grupo de Pesquisa Estudos da Tradução: Teoria, Prática e Formação do Tradutor, do DGP do CNPq. Publica artigos em periódicos Qualis A e B, tendo recentemente organizado e publicado um capítulo no livro Sumário

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Pesquisas em Tradução (2014), uma parceria entre UFSC, UFPB e UFCG. Como pesquisadora, desenvolve um projeto sobre legendagem e tradução intersemiótica em filmes adaptados de clássicos da literatura. É tradutora de artigos científicos no par linguístico inglês-português e português-inglês. Tito Lívio Cruz Romão - Doutorado em Estudos da Tradução (UFSC), Mestrado em Tradução (Universität Mainz), Especialização em Interpretação Simultânea e Consecutiva (Universität Heidelberg) e Graduação em Letras (francês, inglês e português/UECE). Coordenador de Assuntos Internacionais da UFC, Tradutor Público e Intérprete Comercial de Alemão (JUCEC). Professor de alemão do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFC. Tradutor de diversos livros, capítulos de livros e artigos do alemão, francês e inglês.

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