\"Nascemos pelados e o resto é drag\": subversões de gênero a partir de RuPaul\'s Drag Race

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE COMUNICAÇÃO, TURISMO E ARTES DEPARTAMENTO DE JORNALISMO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

MARCO ANTÔNIO GALINDO DE OLIVEIRA

“NASCEMOS PELADOS E O RESTO É DRAG”: SUBVERSÕES DE GÊNERO A PARTIR DE RUPAUL’S DRAG RACE

JOÃO PESSOA 2016

MARCO ANTÔNIO GALINDO DE OLIVEIRA

“NASCEMOS PELADOS E O RESTO É DRAG”: SUBVERSÕES DE GÊNERO A PARTIR DE RUPAUL’S DRAG RACE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro de Comunicação, Turismo e Artes da Universidade Federal da Paraíba como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo Orientadora: Profª Dra. Margarete Almeida Nepomuceno

JOÃO PESSOA 2016

MARCO ANTÔNIO GALINDO DE OLIVEIRA

“NASCEMOS PELADOS E O RESTO É DRAG”: SUBVERSÕES DE GÊNERO A PARTIR DE RUPAUL’S DRAG RACE

O presente trabalho foi submetido à avaliação da banca examinadora, em cumprimento às exigências da disciplina Trabalho de Conclusão de Curso, como requisito parcial para a obtenção

do

Comunicação Jornalismo,

Grau Social

na

de –

Bacharel

em

Habilitação

em

Universidade

Paraíba.

Aprovado em: ______ de ___________________ de _________

Banca examinadora

____________________________________ Profª Dra. Margarete Almeida Nepomuceno Orientadora – UFPB

____________________________________ Professor Banca examinadora – UFPB

____________________________________ Professor Banca examinadora – UFPB

Federal

da

“Somos mais autênticos quanto mais nos parecemos com aquilo que sonhamos que somos”. (Agrado)

AGRADECIMENTOS

Acredito que seja nessa parte que a maioria das pessoas agradece ao seu deus de preferência, então agradeço a RuPaul, essa enorme e belíssima mulher negra de 1,93m de altura, que há cerca de um ano foi me ajudou a atravessar um momento bastante conflituoso da minha vida. Por me colocar em contato com a beleza que existe nos momentos mais efêmeros e por me ensinar que, antes de amar os outros, é preciso se amar. À minha orientadora, Margarete, que embora não me conhecesse, confiou na minha proposta e aceitou se montar comigo nessa jornada. Por ter me mostrado que a relação entre estudante e professor é muito mais horizontal e estreita do que parece. Por me fazer crer em uma política dos afetos nos mais diferentes níveis e, principalmente, por me fazer acreditar mais em mim mesmo. À minha família, pelo esforço na tentativa de compreender meus caminhos e minhas escolhas ao longo de todos esses anos de convivência e, especialmente, agora. Sobretudo, agradeço à Rosângela, exemplo de força e ternura, pelos sorrisos, pelo carinho e por me motivar sempre. A prova viva de que todos os clichês a respeito das mães são verdadeiros. Aos amigos e amigas que aguentaram meus lamentos durante esse processo tortuoso e incerto, porém estranhamente prazeroso. Por sempre estarem do meu lado, dispostos a ajudar com indicações de livros, conselhos ou mesmo uma dose de caipirinha. São tantos que prefiro não nomeá-los para não correr o risco de esquecer alguém, mas destaco as minhas queridas “marimbeiras”, esse grupo especial que sempre torna meu dia mais leve e me ajuda a segurar essa marimba que é a vida. Vocês sabem quem são. E, acima de tudo, a todas as pessoas estranhas e periféricas pelas quais sempre me atraí e me afeiçoei desde cedo. Por me tirarem da zona de conforto, por me fazerem questionar o mundo e meu lugar nele e por darem a cara a tapa diariamente para que ele se torne um lugar mais habitável e humano – não porque somos todos iguais, mas sim diferentes e isso é maravilhoso. Esse trabalho é minha singela homenagem a vocês.

RESUMO Esta monografia, criada a partir do encontro entre a teoria queer e o reality show RuPaul’s Drag Race, procura compreender de que maneira o programa articula, através das performances drags e suas representações sociais, mudanças nos âmbitos de gênero e sexualidade. Assim, realiza-se inicialmente um arcabouço teórico seguindo três eixos principais: a construção da identidade na pós-modernidade, segundo as asserções feitas por especialistas no campo dos estudos culturais, entre eles Hall (2006) e Bauman (2005); gênero e performatividade sob a ótica queer proposta por Butler (2012) e Louro (2013); e cultura midiática pop de acordo com Kellner (2001). Após traçados esses parâmetros, empreende-se uma investigação acerca da estrutura de Drag Race e da maneira pela qual ele se traduz em um catalisador das mudanças propostas pela Geração Z. Por fim, analisase o perfil de quatro personagens drag que expressam, por meio de performances distintas entre si, maneiras de subverter e ressignificar o modelo binário de gênero. Dessa forma, busca-se a compreensão da drag queen enquanto agente de desestabilização do modelo heternormativo de sociedade, em um cenário de identidades fluidas permeadas pela onipresença da cultura midiática. Palavras-chave: Cultura da mídia; Drag; Gênero; Identidade; RuPaul’s Drag Race

ABSTRACT

This monograph, created from the encounter between the queer theory and the reality show RuPaul’s Drag Race, aims to understand how the program articulates, through drag performances and their social representations, shifts within the fields of gender and sexuality. Therefore, we firstly drew a theoretical outline following three main axes: the construction of post-modern identity, according to propositions made by experts on the scope of cultural studies, such as Hall (2006) and Bauman (2005); gender and performativity under the queer views proposed by Butler (2012) and Louro (2013); and pop media culture as reported by Kellner (2001). After delineated these parameters, we engage on an investigation about the structure of Drag Race and the way by which it translates itself in a catalyser of the changes offered by Generation Z. Lastly, we analyse the profile of four drag characters that express different methods of subversion and resignification of the gender-binary paradigm. Thus, we seek to comprehend drag queens as agents of destabilization of a society based on heteronormative parameters, in a scenario of fluid identities permeated by the omnipresence of media culture. Keywords: Drag; Gender; Identity; Media Culture; RuPaul’s Drag Race;

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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO: Começando a se montar............................................................................. 8 2 VIAJANTES PÓS-MODERNOS.......................................................................................... 11 2.1 “Tudo o que era estável e sólido se desmancha no ar”...................................................... 11 2.2 Vamos falar de gênero....................................................................................................... 13 2.3 Teoria queer: confrontando a heteronormatividade .......................................................... 14 2.4 Drag queens: corpos fabricados ........................................................................................ 16 2.5 Camp: “A mentira que fala a verdade” ............................................................................. 19 2.6 Drag e os palcos ................................................................................................................ 21 2.7 O cômico também é político ............................................................................................. 24 2.8 As rainhas do deserto cinematográfico ............................................................................. 26 3 DRAG RACE E UMA NOVA POLÍTICA DOS CORPOS................................................. 28 3.1 A primeira supermodelo drag do mundo........................................................................... 28 3.2 “Senhores, liguem seus motores, e que a melhor mulher vença!” .................................... 29 3.3 Construindo um legado ..................................................................................................... 31 3.4 O espetáculo de Drag Race na cultura da mídia ............................................................... 33 3.5 “De salto alto”: contestações a partir da Geração Z .......................................................... 34 3.6 “You Better Work!”: a drag enquanto celebridade pop ..................................................... 36 3.7 “Drag-se” você também: impacto do programa na cena drag brasileira ........................... 39 4 “GLAMUROSAS” E “MACHUDAS” SUBVERTENDO O GÊNERO ........................... 42 4.1 RuPaul Charles: a personificação do camp ....................................................................... 43 4.2 Courtney Act: feminina e não-conformista ....................................................................... 46 4.3 Milk: a mulher-barbada ..................................................................................................... 51 4.4 Acid Betty: drag queer ...................................................................................................... 56 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: Dublando por minha vida .................................................. 62 6 REFERÊNCIAS: “Ler é fundamental” ............................................................................... 65 6.1 Bibliográficas .................................................................................................................... 65 6.2 Audiovisuais ...................................................................................................................... 68

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1 INTRODUÇÃO: Começando a se montar Há um ano atrás eu não imaginava que o meu Trabalho de Conclusão de Curso, resultado final de seis longos anos estudando Comunicação Social, seria protagonizado por drag queens, seres com os quais eu possuía alguma afinidade mas não tinha qualquer conhecimento aprofundado. A maior parte das referências que eu dispunha na época vinham dos comentários de amigos acerca do reality show estadunidense RuPaul’s Drag Race, a respeito do qual eu retinha algumas restrições: sabia que se tratava de um programa que reproduzia conceitos problemáticos sobre gênero, raça e padrões de beleza, que criava narrativas por vezes sensacionalistas porque eram mais comercializáveis. E, como todo militante de internet pós2013, problematizador e inquieto, não conseguia ver nada além dos aspectos negativos. Dei o braço a torcer quando decidi embarcar na última tendência das ficções líquidas pósmodernas: assistir séries online. Assim, após me emocionar com os dramas de Sense8 e sofrer com os plot twists de Game of Thrones, vi que era hora de me informar a respeito do assunto de nove em cada dez mesas de bar: Tyra Sanchez merecia mais a coroa do que Raven? Por que a Willam foi expulsa? O que é uma peruca com lace? E quem é essa Alaska Thunderfuck de quem todos falam? Decidi começar pela terceira temporada pois, de acordo com um amigo, as duas primeiras não eram tão interessantes – o que depois verifiquei ser inverídico. A primeira impressão logo serviu para derrubar um dos meus preconceitos em relação à Drag Race: o de que as garotas brancas e magras dominavam completamente o show. Afinal, lá estava eu, encantado com a figura de Raja, uma supermodelo de ascendência indonésia que questionava, através de um senso de moda e estética bastante apurado, os locais convencionais de uma drag queen. E, quando na temporada seguinte eu me deparei com Sharon Needles, a bruxa gótica de Pittsburgh, que conquistou uma legião de fãs graças à sua originalidade e seu humor ácido, eu sabia que estava diante de algo novo e grande. Devorar todos os capítulos e me tornar um fã da série foi uma questão de tempo. O interesse em pesquisar a respeito de RuPaul’s Drag Race não partiu exclusivamente do meu fascínio pelo programa. Além de ser um tema alinhado aos estudos queer e de gênero com os quais já tenho afinidade há algum tempo, é uma proposta diferente que de certa forma estremece os parâmetros científicos de uma academia, a meu ver, saturada de temas convencionais. É imprescindível que a universidade reflita os anseios da sociedade por mais igualdade de gênero e menos ódio às minorias, questões que eu espero colocar em debate a partir deste trabalho.

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Visando traçar os aportes teóricos necessários às mudanças supracitadas, esta monografia analisa de que maneira as performances drag apresentadas pelo reality show RuPaul’s Drag Race se configuram em vetores capazes de desestabilizar o binário homem-mulher. Em um primeiro momento, ocorre uma investigação acerca do cenário no qual o programa se insere, ou seja, um tecido social composto por indivíduos cujas identidades se configuram como fragmentadas e efêmeras (HALL, 2006). Neste contexto, verifica-se o surgimento da Geração Z, marco que representa um novo entendimento a respeito das relações do homem com o gênero e a sexualidade. Esse é o gancho necessário para o avanço da pesquisa a um segundo ponto, onde se discute o conceito de gênero através de um aparato histórico que o situa em diferentes instantes, desde o seu primeiro uso nos movimentos feministas dos anos 1960 (PISCITELLI, 2009) até o advento da teoria queer (BUTLER, 2012), que trouxe proposições essenciais para o desenvolvimento deste trabalho, entre elas a de performance de gênero. Entender a associação sexo-gênero-sexualidade como sendo arbitrada por dispositivos culturais de poder é o primeiro passo para compreender a existência de pessoas que fogem a esse modelo. E um dos sujeitos mais emblemáticos nesse sentido é a drag queen que, de forma geral, realiza uma paródia do que é ser mulher, baseada nos atributos da artificialidade e do exagero próprios da estética camp (SONTAG, 1987), como forma de mostrar a construtividade intrínseca ao gênero. Assim, desenvolve-se posteriormente uma exposição acerca da trajetória das drags ao longo da história, desde o seu surgimento nos palcos da Grécia Antiga, passando pelo teatro shakespeariano e o new queer cinema dos anos 1980, até hoje, época no qual são representadas de forma mais expressiva pelo programa RuPaul’s Drag Race. A partir de noções levantadas por Kellner (2001) em relação à cultura da mídia e como ela contribui para a formação identitária na pós-modernidade, busca-se compreender o reality, enquanto parte integrante desse complexo midiático, não só como agente transformador da cena drag, mas da sociedade como um todo. Por fim, foram selecionadas quatro personagens drags cujas performances fossem representativas da diversidade presente no programa. A fim de estuda-las, realizou-se uma análise de conteúdo qualitativa do programa. De acordo com Bauer e Gaskell (2010, p. 192): “A AC (análise de conteúdo) nos permite reconstruir indicadores e cosmovisões, valores, atitudes, opiniões, preconceitos e estereótipos e compará-los entre comunidades. Em outras palavras, a AC é pesquisa de opinião pública com outros meios”. Estudei todos os episódios de RuPaul’s Drag Race e Untucked exibidos em 2014 e 2016 (45 no total), porém, segundo um recorte que privilegia os pontos principais de cada

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personagem, foquei a pesquisa em dez capítulos, listados na seção que trata das referências audiovisuais. Além disso, foram considerados nessa pesquisa outras ferramentas discursivas, como entrevistas, matérias e videoclipes. A partir dos argumentos expostos previamente, minha proposta de trabalho justifica-se através da necessidade de discutir a sociedade pós-moderna contemporânea como detentora de identidades fragmentadas – estando a sexualidade e o gênero compreendidos nesta construção– formadas, dentre outros fatores, por elementos da cultura de mídia. Sendo o reality show RuPaul’s Drag Race um componente dessa cultura, faz-se relevante a análise da maneira pela qual o programa e suas participantes instigam o imaginário coletivo e provocam questionamentos que vão de encontro à estrutura heteronormativa de gênero.

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2 VIAJANTES PÓS-MODERNOS 2.1 “Tudo o que era estável e sólido se desmancha no ar” A emblemática frase, proferida por Marx (2006, p. 29), denunciava como a modernidade, advinda da revolução burguesa, abalava as relações de produção e consequentemente as relações sociais. Ela se configurava, portanto, em um momento de ruptura com as sociedades tradicionais, assentadas em parâmetros rígidos e fixos – daí a metáfora com a solidez. Com a emergência da pós-modernidade1, ou modernidade líquida, tais mudanças alcançariam uma velocidade ainda maior, abrangendo outros aspectos, como a identidade humana. O teórico dos estudos culturais Stuart Hall (2006, p. 7) fala em uma “crise da identidade”, ocasião onde se verifica um “processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social”. Para demonstrar que a noção de uma centralidade identitária se encontrava em xeque, Hall compõe uma historicidade dos tipos de identidade e de como eles se modificaram. Segundo o autor, existem três concepções diferentes, a primeira delas tratando do sujeito do Iluminismo, um indivíduo “centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia” (HALL, 2006, p. 10-11). Posteriormente, como reflexo da “crescente complexidade do mundo moderno” (HALL, 2006, p. 11), surge a noção do sujeito sociológico. De acordo com essa visão: [...] A identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem”. (HALL, 2006, p. 11).

O terceiro e último tipo de sujeito é o pós-moderno, vivenciado na contemporaneidade e considerado como detentor de uma identidade em constante transformação, influenciado pelos sistemas culturais vigentes, e dissociado de um interior consistente (HALL, 2006, p. 12-13). As ideias de Hall encontram eco nas posições defendidas pela historiadora cultural Tamsin Spargo (2006, p. 46-47), segundo a qual, na pós-modernidade: 1

Adota-se aqui o conceito de pós-modernidade traçado por Hall (2006), que diz respeito ao momento contemporâneo onde a identidade dos sujeitos é fragmentada e efêmera. Pode-se equiparar também ao conceito de modernidade líquida desenvolvido por Bauman (2005).

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[...] O indivíduo não é visto como um sujeito autônomo cartesiano (“Penso, logo existo”), de posse de uma identidade inata ou essencial que existe independentemente da linguagem. O que comumente ou casualmente pensamos ser o “self” é considerado como uma ficção socialmente construída (ainda que séria), como um produto da linguagem e de discursos específicos relacionados a compartimentos do saber.

Se a subjetividade individual, tida como aspecto uno do ser humano, é na verdade fragmentada e instável, de que forma ela se compõe? Hall (2006, p. 13) procura compreender essa constituição a partir da proliferação, na contemporaneidade, de sistemas de significação e representação cultural que geram “uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente”. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman enxerga esse cenário como resultado de uma reconfiguração do sentimento de identidade, que segundo ele deixou de ter a “solidez de uma rocha” para se tornar um atributo negociável e revogável (BAUMAN, 2005, p. 17). Ele prossegue afirmando que a identidade, ao invés de ser descoberta, é adquirida através de um processo de construção a partir do zero (BAUMAN, 2005, p. 21) e que, para os indivíduos pósmodernos, “‘estar fixo’ – ser ‘identificado’ de modo inflexível e sem alternativa - é algo cada vez mais malvisto” (BAUMAN, 2005, p. 35). É nesse ambiente que surge a chamada Geração Z – de “zapear”, ou seja, usar simultaneamente diferentes aparelhos eletrônicos. Também denominada pós-millenium ou touch, esse grupo de indivíduos, segundo Freire Filho e Lemos (2008, p. 17), já nasceu na era digital e não consegue compreender uma realidade sem esses utensílios. Além disso, é frequentemente difundida a noção de que eles possuem uma “expertise quase natural para a informática” (FREIRE FILHO & LEMOS, 2008, p. 18). No entanto, para além do campo da tecnologia, a Geração Z também é conhecida pelos questionamentos referentes aos processos de subjetivação e as vivências múltiplas da identidade, como também da dicotomia entre homem e mulher, abrindo possibilidades para uma série de outras identidades de gênero (ALLEGRETTI, 2016). Consequentemente, os limites convencionais da heterossexualidade também são ameaçados. Dados de um levantamento da agência de publicidade J. Walter Thompson mostram que 76% dos jovens brasileiros não dão importância à orientação sexual dos outros e 82% concordam que as pessoas devem explorar mais a própria sexualidade. A J. Walter Thompson ouviu 1500 pessoas entre 12 e 19 anos no Brasil, nos Estados Unidos e na Inglaterra. Outra pesquisa, coordenada pela psicóloga Luciana Mutti, em Porto Alegre, revelou que 20% dos adolescentes entrevistados já haviam tido relações com pessoas de ambos

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os sexos. A pesquisa foi feita com 400 jovens de 13 a 18 anos na capital gaúcha. (ALLEGRETTI, 2016).

Desta forma, compreende-se que a Geração Z está contida em um momento histórico único, demarcado pela multiplicidade de sistemas midiáticos, que influenciam esses indivíduos diretamente em seu processo de formação identitária, especialmente no que diz respeito à ressignificação de suas identidades de gênero e da sexualidade. Entretanto, para entender de que modo essas transformações ocorrem, faz-se necessário, preliminarmente, uma análise do conceito de gênero.

2.2 Vamos falar de gênero Durante boa parte da história da humanidade e de forma hegemônica, porém não absoluta, os conceitos de gênero, sexo e sexualidade eram vistos integradamente como um aspecto uno do ser humano, ou seja, advindo da ordem da natureza e portanto, inquestionáveis. Dessa forma, uma pessoa nascida com pênis possuía um corpo considerado masculino, ao qual seria atribuído um gênero masculino e um desejo heterossexual – ou seja, por indivíduos do sexo/gênero feminino. A filósofa Judith Butler (2012, p. 216) denominou essa ordem compulsória de matriz heterossexual – ou heteronormatividade –, uma ferramenta de “inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos, gêneros e desejos são naturalizados”. Para os corpos serem coerentes e fazerem sentido (masculino expressa macho, feminino expressa fêmea) é necessário haver um sexo estável, expresso por um gênero estável, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade. (BUTLER, 2012, p. 216).

A naturalização dos corpos é considerada a pedra fundamental da opressão sistemática sofrida por mulheres, o machismo. Segundo Piscitelli (2009, p. 127), determinadas linhas de pensamento nas ciências sociais cultivavam a ideia da distinção entre masculino e feminino como “princípio universal de diferenciação e classificação”. Essa diferença sexual atribuía traços inatos a homens e mulheres, que são usados como justificativa para a discriminação promovida pelo machismo. Quando as distribuições desiguais de poder entre homens e mulheres são vistas como resultado das diferenças, tidas como naturais, que se atribuem a uns e outras, essas desigualdades também são “naturalizadas”. (PISCITELLI, 2009, p. 119).

Com a primeira onda do movimento feminista, entre os séculos 19 e 20, e a mobilização por direitos iguais entre os sexos, a matriz heterossexual seria posta em cheque. Na década de

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1930, a antropóloga americana Margaret Mead defenderia, através de uma pesquisa2 feita com tribos da Nova Guiné, a tese de que as noções de masculino e feminino são culturalmente construídas, ao invés de naturalizadas pelos dados biológicos. Tal afirmação abriu caminho para a teoria dos papeis sociais, onde “normas e regras sociais determinam quais são os papeis possíveis e como devem ser desempenhados” pelos indivíduos, de acordo com fatores como idade e, principalmente, sexo (PISCITELLI, 2009, p. 127). Esses papeis, incorporados através da socialização, constituem o caráter cultural da diferença sexual. Assim, surgiram os primeiros elementos necessários para o rompimento da ordem coercitiva imposta pela matriz heterossexual. A princípio, sexo e gênero se tornaram dados separados, sendo o primeiro uma expressão que remete a características inatas e biológicas (PISCITELLI, 2009, p. 119) e o último, o “produto do trabalho da cultura sobre a biologia” (PISCITELLI, 2009, p. 124), ou seja, a leitura social feita das distinções entre homens e mulheres – posteriormente, essas noções seriam revisitadas e problematizadas. Em 1949, a escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir aplicou os conceitos de papeis sociais e socialização no seu livro O segundo sexo, na tentativa de dissecar a dominação masculina, ou seja, a discriminação exercida por homens sobre mulheres, pretensamente baseada em características biológicas. Beauvoir acreditava que, para superar esse quadro, seria necessário combater aquilo que o filósofo francês Michel Foucault denominou como dispositivos de controle social, como, por exemplo, a educação que direcionava as mulheres desde cedo para o casamento, a maternidade e a vida doméstica. É dela a frase célebre: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, uma forma de explicitar que a condição do feminino não é adquirida ao nascer, mas aprendida, uma construção social (PISCITELLI, 2009, p. 132). E se não é uma característica inata, pode ser modificada.

2.3 Teoria queer: confrontando a heteronormatividade Beauvoir dá início à segunda onda feminista, que, nos anos 70, se apropriou do conceito de gênero para explicar a forma com a qual a sociedade se vale dos dados sexuais para 2

A obra Sexo e temperamento em três sociedade primitivas analisou as tribos Arapesh, Mundugumor e Tchambuli. Entre os Arapesh, Mead verificou que tanto homens quanto mulheres apresentavam comportamentos considerados “femininos” (cooperativismo, sociabilidade, maternalismo), enquanto todos os indivíduos do povo Mundugumor ostentavam características tidas como “masculinas” (agressividade, virilidade e orientação para a caça), ou seja, exemplos onde a diferença sexual era pouca ou nula. Já os Tchambuli apresentavam uma inversão dos papeis sexuais (a mulher era o elemento dominador ao qual o homem era emocionalmente submisso). O trabalho de Mead mostrou que se as características sexuais dos povos da Nova Guiné eram tão diferentes entre si e, principalmente, diferentes do que se verificava na sociedade americana na época, elas não poderiam se configurar como um dado natural dos corpos (PISCITELLI, 2009, p. 129-130).

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circunscrever os indivíduos no âmbito cultural (PISCITELLI, 2009, p. 136). Essa noção prevaleceu nos estudos feministas até os anos 90, sendo questionada a partir do advento da teoria queer – expressão que por muito tempo possuiu carga pejorativa, usada principalmente para se referir a pessoas de minorias sexuais como “estranhos”. Os especialistas desse ramo teórico: [...] Querem provocar um jeito novo de conhecer e também pretendem apontar outros alvos do conhecimento. De modo geral, não produzem textos “propositivos”; neles se encontram poucas indicações sobre políticas programáticas afirmativas. A oposição binária heterossexualidade/homossexualidade ganha centralidade nas análises de quase todos, uma vez que entendem ser essa uma oposição que articula as práticas sociais e culturais, que articula o conhecimento e o poder e que contribui para produzir os sujeitos. A homossexualidade é analisada como parte de um regime de poder/saber (mais do que como uma identidade social minoritária). Então, pelas condições de sua emergência e por suas formulações, é possível afirmar que essa é uma teoria e uma política pósidentitária: o foco sai das identidades para a cultura, para as estruturas, linguísticas e discursivas e para seus contextos institucionais (LOURO, 2013, p. 61-62, grifo da autora).

Uma das concepções abaladas pelos teóricos queer é a de que o sexo é um dado natural, em oposição ao gênero, que seria uma leitura cultural deste corpo. Para Louro (2013, p. 83), a noção de um sexo inscrito “num domínio aparentemente estável e universal, o domínio da natureza”, serve apenas como fundamento para manutenção da ordem compulsória advinda da matriz heterossexual. Além disso, não haveria corpo “que não seja, desde sempre, dito e feito na cultura; descrito, nomeado e reconhecido na linguagem, através dos signos, dos dispositivos, das convenções e das tecnologias” (LOURO, 2013, p. 84). Se sexo e gênero não são categorias conectadas ou fixas, está aí denunciada a matriz heterossexual compulsória que se manifesta na forma de dualidades como homem e mulher, pênis e vagina, entre outros. Esses aspectos, por serem culturais e mutáveis, necessitam de dispositivos que perpetuem a sua continuidade, sendo um deles a performatividade. [...] Atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo ou substância interna, mas o produzem na superfície do corpo, por meio do jogo de ausências significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o princípio organizador da identidade como causa. Esses atos, gestos e atuações, entendidos em termos gerais, são performativos, no sentido de que a essência ou identidade que por outro lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos. (BUTLER, 2012, p. 194).

Assim, Butler retira o status ontológico do gênero (2012, p. 194) para lhe atribuir caráter performativo, isto é, reiterado pela performance – gesticulações, trejeitos e atitudes – e por discursos exógenos a ela, tais como o religioso, científico e midiático, o que sugere uma

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realidade fabricada deste gênero. A teórica defende que a perpetuação dessa estrutura de poder “cria a ilusão de um núcleo interno e organizador do gênero, ilusão mantida discursivamente com o propósito de regular a sexualidade nos termos da estrutura obrigatória da heterossexualidade reprodutora” (BUTLER, 2012, p. 195). E, uma vez que o gênero é um atributo artificial, ele pode ser ressignificado a fim de subverter a heteronormatividade, proposta que se associa diretamente com a aspiração do indivíduo pós-moderno de reconstrução da própria identidade, antes tida como essencial e inata.

2.4 Drag queens: corpos fabricados Paradoxalmente, a matriz heterossexual não só institui os limites das ações performáticas de gênero, mas aponta os locais onde essa performance é considerada transgressora (LOURO, 2013, p. 17). Surgem, então, indivíduos que ultrapassam as barreiras da normatividade. Através da “resistência e na subversão das ‘normas regulatórias’, eles e elas parecem expor, com maior clareza e evidência, como essas normas são feitas e mantidas” (LOURO, 2013, p. 18). E uma das maneiras de depravar essa compulsoriedade proveniente da heteronormatividade é a paródia. Na pós-modernidade, a paródia se constitui não somente numa possibilidade estética recorrente, mas na forma mais efetiva de crítica, na medida em que implica, paradoxalmente, a identificação e o distanciamento em relação ao objeto ou ao sujeito parodiado. [...] Isso pode significar apropriar-se dos códigos ou das marcas daquele que se parodia para ser capaz de expô-los, de torná-los mais evidentes e, assim, subvertê-los, criticá-los e desconstruí-los. Por tudo isso, a paródia pode nos fazer repensar ou problematizar a ideia de originalidade ou de autenticidade. (LOURO, 2013, p. 88).

Portanto, ao invés de se configurar como um mero recurso estilístico de comédia, a paródia carrega em si a potência de explicitar a construtividade em muitas categorias consideradas inabaláveis e seguras, entre elas a do gênero, como no caso das drag queens. Drag queens são artistas que desenvolvem performances de gênero caracterizadas pelo exagero e artifício do que se normatiza como mulher. Geralmente são homens3 que interpretam mulheres, independentemente da sexualidade que vivenciam. A arte drag é voltada para fins de entretenimento, podendo também se manifestar como forma de expressão corporal ou até

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Embora a maioria das drag queens sejam performances criadas por homens, existem mulheres que também interpretam o gênero feminino, a exemplo da americana Creme Fatale e da brasileira Palloma Maremoto. Não confundir com as drag kings, que são também performances de gênero, só que desta vez, em sua maioria, de mulheres interpretando o gênero masculino.

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mesmo de fetiche. Frequentemente, a performance drag carrega traços de feminilidade exagerada, tais quais a maquiagem carregada e roupas chamativas, mas há também as performers que incorporam mulheres “naturais”, ou mesmo as que agregam aos seus personagens características que extrapolam o dito universo feminino. A antropóloga cultural Esther Newton (1972, p. 3, tradução nossa) explica a etimologia do termo drag queen: ‘Queen’ é um nome genérico para qualquer homem homossexual. ‘Drag’ pode ser usado como adjetivo ou substantivo. Enquanto substantivo significa as vestimentas de um sexo vestidas pelo outro (um terno e gravata vestidos por uma mulher também compõem ‘drag’).

A transfiguração de um sujeito comum para uma drag queen passa pelo ato denominado de “se montar”. Louro (2013, p. 87) explica que a montação4 consiste na “minuciosa e longa tarefa de transformação de seu corpo, um processo que supõe técnicas e truques”, ou seja, um ato ritualístico que evidencia a construtividade de sua performance. A antropóloga Anna Paula Vencato (2002, p. 5) acredita que a palavra começou a ser usada entre os jovens adeptos da estética “clubber”5 e que, quando difundida, passou a designar qualquer pessoa que resolvesse “vestir-se e maquiar-se de forma bastante elaborada e não-usual”. Figura 1 – Caio Gobbi no aniversário do Hell’s Clube, 1997, exemplo da estética clubber.

Fonte: THUMP6 Vencato se refere a este processo como “montaria”, termo que acredito estar datado levando em consideração as minhas observações acerca da cultura drag. Por isso dei preferência ao uso da expressão “montação”. 5 Clubber, ou club kid, é o indivíduo pertencente à club culture (cultura de clubes), que, segundo Thornton (1996, p. 3), é uma expressão coloquial que diz respeito às manifestações culturais de jovens que consideravam boates e raves como pontos centrais de encontro e socialização. Alguns club kids tinham preferência por uma estética irreverente, considerada fashionista e que rompia com padrões socialmente estabelecidos. 6 Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2016. 4

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Apesar da alta carga de artifício presente na performance drag, Vencato (2002, p. 5) afirma que esse ato ultrapassa o que é fabricado a partir de maquiagem ou roupas, estando presente no imaginário da comunidade LGBT e existindo na “relação com o público e com os donos de bares, com a mídia e com as outras drags.” Ela defende que até mesmo o nome artístico faz parte da performance ou indica o que pode se esperar de um show drag (VENCATO, 2002, p. 2). O fato das drag queens flertarem com o universo do que é considerado feminino, não se traduz numa configuração dessa performance como uma identidade de gênero ou orientação sexual específica. Portanto, é prudente não confundi-las com pessoas transexuais, transgênero ou mesmo travestis7, especialmente porque verifica-se um fenômeno de “invisibilidade drag”, causada pela confusão feita entre elas e outras metamorfoses de gênero (VENCATO, 2002, p. 8). Segundo Vencato (2002, p. 11), existem três aspectos que distinguem drags de pessoas transgênero: temporalidade, corporalidade e teatralidade. Temporalidade porque a drag tem um tempo montada, outro desmontada e, ainda, aquele em que se monta. Diferente de travestis e transexuais, as mudanças no corpo são feitas, de modo geral, com truques e maquiagem. A corporalidade drag é marcada pela teatralidade, perspectiva que é importante para compreender esses sujeitos. (VENCATO, 2002, p. 11).

Dessa forma, percebe-se que a drag queen possui especificidades enquanto performance de gênero. A efemeridade de sua construção corporal se manifesta no processo ritualístico de montação – e que, portanto, delimita espaços onde a drag existe e onde ela deixa de existir. Este corpo, por sua vez, é atravessado por aspectos referentes ao artifício e ao exagero 8, características que se relacionam com a ideia de camp.

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A ideia de definir conceitos rígidos para identidades de gênero complexas e diversas é normativa, mas para fins didáticos se faz necessária. Vencato (2002, p. 15) defende que a travesti procura, através de processos diversos de construção corporal, uma aproximação do que é socialmente considerado um corpo feminino, porém “não quer tornar-se uma mulher ‘de verdade’, ou seja, não deseja extirpar seu falo”. Por sua vez, a pessoa transexual seria aquela “que nasce com um sexo anatômico mas que se sente ‘no corpo de outro alguém’, desejando ter o outro sexo” (VENCATO, 2002, p. 15), inclusive por meio de intervenções cirúrgicas. Por fim, transgênero seria um termo “guarda-chuva”, que engloba uma série de identidades desviantes da norma (VENCATO, 2002, p. 11). Compreendemos que certas noções são passíveis de problematização, como, por exemplo, a ideia de que a presença de pênis torna determinado corpo “menos feminino”. Além disso, existem mulheres transexuais que se afirmam como travestis, mesmo tendo se submetido à cirurgia. Assim, é possível depreender que as categorias travesti, transexual e transgênero dizem mais respeito a identificações pessoais e políticas de cada sujeito. 8 Boa parte da literatura existente sobre drag queens aborda o fenômeno a partir de uma perspectiva onde a performance drag é necessariamente calcada no excesso e na demasia. Entretanto, nos últimos anos e especialmente com o advento de RuPaul’s Drag Race, a arte drag tem abarcado outros tipos de encenação. Podemos chamar a atenção para as performers intituladas fish queens, que, diferentemente das outras drags, buscam uma ilusão feminina perfeita, muitas vezes sendo socialmente lidas como “mulheres naturais”, mas ainda temporárias em suas performances – elas se montam e se desmontam como uma drag queen comum. Posteriormente, falaremos com mais profundidade a respeito dessa representação.

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2.5 Camp: “A mentira que fala a verdade” O termo camp foi difundido pela escritora Susan Sontag (1987, p. 3) como sendo “uma visão do mundo em termos de estilo – mas um estilo peculiar. É a predileção pelo exagerado, por aquilo que está ‘fora’, por coisas que são o que não são.” Ela também explica que para o camp, a aparência e a forma são mais valorizadas do que o conteúdo. O Camp vê tudo entre aspas. Não é uma lâmpada, mas uma "lâmpada", não uma mulher, mas uma "mulher". Perceber o Camp em objetos e pessoas é entender que Ser é Representar um papel. É a maior extensão, em termos de sensibilidade, da metáfora da vida como teatro. (SONTAG, 1987, p. 4).

Em vista disso, é explícita a conexão entre camp e performance de gênero, mesmo em termos gerais, como proposto por Butler, mas principalmente em aspectos específicos, tais quais os referentes à paródia drag. Afinal, para o camp, o entendimento de que não há essência além da representação se aplica também ao gênero, enquanto resultado de um conjunto de ações performáticas. Já com relação à arte drag, a artificialidade camp está presente na escolha por uma encenação do que é considerado ser mulher, em detrimento de uma essência ou uma identidade “genuinamente feminina”. No entanto, pensar o camp, com todos os seus aspectos construídos e sintéticos, como uma oposição a um ideal “natural” de realidade é uma concepção binária que não condiz com as reflexões queer. Esse é o entendimento de Rodrigo Souza (2014, p. 8-9): O artifício, contudo, não deve ser pensado em oposição à realidade, mas como algo que se situa entre as categorias de real e irreal, dissolvendo-as. Assim, o artifício se refere, no caso por exemplo do travestimento, a uma subjetividade que prefere encarar o mundo como teatro, a vida enquanto transformação contínua, para além de prisões identitárias.

Sontag (1987, p. 12) defende que o camp está ligado aos homossexuais no sentido de dissipar a moralidade em favor da estética. Já para Lacerda Júnior (2011, p. 4), através da vivência homossexual em uma sociedade heteronormativa, é possível entender o camp como parte de um “desprezo por instâncias legitimadoras em geral”, incluindo aí as que reforçam o binarismo de gênero. O comportamento teatral, por exemplo, é visto como fruto da aguçada consciência que o grupo tem do tanto de artificial que existe nos papeis sociais – em especial nos papeis de gênero – devido a sua não conformidade aos perfis exigidos pela sociedade. (LACERDA JÚNIOR, 2011, p. 4).

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É importante ressaltar, entretanto, que a noção do que é ou não camp é mutável e contextual, ou seja, a intitulação de algo ou alguém como camp é insuficiente, uma vez que tal aspecto está muito mais relacionado a perspectivas conjunturais do que à essência de determinado objeto/pessoa (SOUZA, 2014, p. 9). Assim, sendo variável de acordo com o tempo e o local, vemos a ideia de camp passar, ao longo dos anos, de algo “descompromissado e despolitizado” (SONTAG, 1987, p. 2) para uma possibilidade de resistência, mesmo que inconsciente, a determinados mecanismos de poder. Se, como já afirmava Sontag, no camp, ser é representar um papel, e que o camp vê tudo entre aspas, podemos entendê-lo também não apenas na perspectiva de uma oposição, de uma transgressão de fronteiras, de tomar a sensibilidade hegemônica normativa e erudita como algo a se opor; mas também através da ideia de criação, de invenção, de devir, de fluxos de intensidades e de afetos que escapam de planos de organização baseados em dicotomias. (SOUZA, 2014, p. 12).

A drag queen personifica essa sensibilidade ao se configurar em um sujeito que não se deixa capturar por categorias estanques, criando-se “de acordo com os encontros que a vida lhe oferece, celebrando-as em suas múltiplas possibilidades” (SOUZA, 2014, p. 12). Portanto, a arte drag enquanto performance camp ultrapassa os limites do mero entretenimento para se tornar uma crítica cultural através da hipérbole de gênero (SPARGO, 2006, p. 55-56). Zervigon (2004, p. 89-90, tradução nossa) distingue as manifestações camp entre drag queens em dois tipos. O primeiro deles diz respeito às performances low camp, onde o performer realiza uma caricatura de um ato antes considerado sério, exagerando e enfatizando determinados traços e se conectando mais com a ideia de um construto feminino do que com uma “feminilidade genuína”, apresentando um tipo de humor que pode se constituir numa crítica de gênero (ZERVIGON, 2004, p. 89, tradução nossa). Em contrapartida, as performances high camp se relacionam com a arte drag de encenar uma outra pessoa9, imitando-a em seus trejeitos, mas com a finalidade de ser o mais fiel possível. Zervigon (2004, p. 90, tradução nossa) afirma que esse é um ato que normalmente foge da estética cômica, e que a identificação da plateia com esse tipo de performer é semelhante ao que ocorre com uma diva. Louro (2013, p. 89) atesta o caráter sintético da drag queen como forma de subversão da noção de feminilidade a partir da exaltação dos traços que compõem essa caracterização, assim

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As impersonators, como são chamadas no exterior, são drag queens especializadas na personificação de um personagem, geralmente alguma celebridade. Para alguns performers, essa é a principal e única característica de seu trabalho, enquanto para outros é apenas uma de suas formas de encenação.

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demonstrando sua não naturalidade. Para Butler, essa é uma maneira não só de explicitar o atributo cultural do gênero, mas também de desconstruir a ordem sexo-gênero-sexualidade. A performance do drag brinca com a distinção entre a anatomia do performista e o gênero que está sendo performado. Mas estamos, na verdade, na presença de três dimensões contingentes da corporeidade significante: sexo anatômico, identidade de gênero e performance de gênero. Se a anatomia do performista já é distinta de seu gênero, e se os dois se distinguem do gênero da performance, então a performance sugere uma dissonância não só entre sexo e performance, mas entre sexo e gênero, e entre gênero e performance. [...] Ao imitar o gênero, o drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero – assim como sua contingência. (BUTLER, 2012, p. 196)

Se o gênero é, segundo Butler, um dispositivo composto por atos performáticos delimitados por uma conjuntura de fatores culturais diversos, a performance drag, no seu apreço pela teatralidade e artificialidade, é um dos meios mais eficazes de demonstrar a construtividade desse gênero.

2.6 Drag e os palcos A história está repleta de casos de homens que usam indumentárias femininas, especialmente nas artes cênicas. Segundo Amanajás (2014, p. 5), os primeiros indícios desse fenômeno foram registrados na Grécia Antiga, onde os papeis femininos eram interpretados exclusivamente por atores do sexo masculino, que usavam dispositivos diversos na composição de seus personagens, como máscaras, figurinos e enchimentos. Baker (1994 apud AMANAJÁS, 2014, p. 5) explica que, no começo, as drag queens10 se apresentavam de acordo com duas funções distintas: A primeira é a característica secular, ou seja, aquela drag que se manifesta em rituais de forma pagã, exercendo a função satírica de blasfemar e dar voz ao indizível perante a sociedade, a personagem que muito se assemelha ao bufão. A outra forma diz respeito a sua característica sagrada, aquela que teria a responsabilidade de viver as personagens trágicas na Grécia, que pertenceriam a uma narrativa.

Após o advento do catolicismo e a realização, por parte da Igreja, de encenações sacras que transmitissem os ensinamentos religiosos, as artes cênicas em geral entraram em um período de estagnação, que atravessou a Idade Média até o século XVI. Foi nessa época que o teatro Elizabetano, sob a figura de dramaturgos como William Shakespeare, recolocou a drag

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Apesar do conceito de drag queens ganhar outras conotações no século XXI, usaremos este termo para referenciar os homens que se travestiam de mulheres em suas apresentações cênicas/artísticas.

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queen em evidência nos palcos: os personagens femininos escritos por ele “eram interpretados por jovens adolescentes homens – meninos entre dez e treze anos” (AMANAJÁS, 2014, p. 9). Especula-se também que Shakespeare, ao conceber suas personagens femininas, ao rodapé da página em que descrevia tal papel, marcava-o com a sigla DRAG, dressed as girl (vestido como menina, em tradução livre), para sinalizar que aquela personagem seria interpretada por um homem. (AMANAJÁS, 2014, p. 10).

Paralelamente, verificou-se a ocorrência de performances teatrais drag também no Oriente. Amanajás (2014, p. 6) descreve o teatro Topeng da Indonésia, “que, em sua forma originária, era dançado apenas por atores masculinos que interpretavam papéis femininos”, característica que se verificava também no Kathakali, na Índia. Já na Ópera de Pequim, homens e mulheres participavam dos espetáculos, mas “por motivos de moralidade social, os personagens femininos eram de responsabilidade dos atores das companhias, destinando a parte de dança para as mulheres, que não compartilhavam o palco com os homens” (AMANAJÁS, 2014, p. 8). Contudo, foi no Japão que o transformismo dentro dos palcos se adotou com mais intensidade, como se constatou em manifestações cênicas tradicionais como o Kabuki, o Kyogen e o Nô, exclusivas, à época, para praticantes do gênero masculino. Berthold (2004, p. 84 apud AMANAJÁS, 2014, p. 7) explica que “os japoneses não veem nada de estranho no fato de um homem expressar os sentimentos de uma mulher, sua felicidade ou desespero”. Figura 2 – Bando Tamasaburo V, ator de kabuki conhecido por seus papeis onnagata

Fonte: Japão em Foco11 11

Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2016.

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Tais modalidades teatrais contavam com especialistas em encarnar apenas personagens femininas, denominados de onnagata. A relação entre ator e personagem alcançava tamanha seriedade que alguns defendiam a constância dessa interpretação feminina até mesmo fora de cena (AMANAJÁS, 2014, p. 7). Vale ressaltar, entretanto, que, em linhas gerais, não havia naquele tempo qualquer relação entre a personificação de uma mulher e uma identidade sexual desviante da norma (ZERVIGON, 2004, p. 89, tradução nossa). Essa situação começou a se modificar em 1674, quando o rei inglês Carlos II concedeu permissão às mulheres para atuarem nos palcos, o que, de acordo com Baker (1994 apud AMANAJÁS, 2014, p. 11), ocorreu devido a uma irritação do monarca “em presenciar homens adultos em trajes femininos ao invés de belas damas”. Os atores drag coexistiram com as atrizes no teatro por algum tempo, até que sua função tornou-se obsoleta. Foi aí que, no século XVIII, após anos de esquecimento, as drag queens reapareceram, dessa vez personificadas na imagem dos crossdressers, conceituados pelo autor como: Homens vestidos de mulher em suas mais luxuosas roupas da moda (aqui inicia-se a concepção da vestimenta como moda nos parâmetros dos dias de hoje, pois, na era Elizabetana, o código de vestimenta era relacionado ao status social e ao gênero) passeavam pelas ruas da França, Itália e Inglaterra e, pela primeira vez, a drag queen começou a se relacionar com o que é o homem homossexual. (AMANAJÁS, 2014, p. 11).

Entretanto, as drags não se ausentaram dos palcos por muito tempo, tendo retornado, na passagem do século XIX para o século XX sob a figura da dama pantomímica (AMANAJÁS, 2014, p. 13), uma personagem que despertava ao mesmo tempo a identificação do público a respeito de temas cotidianos, bem como o distanciamento por conta do aspecto “grotesco e exagerado” do ator, algo característico da performance parodística. A drag propositalmente exagera os traços convencionais do feminino, exorbita e acentua marcas corporais, comportamentos, atitudes, vestimentas culturalmente identificadas como femininas. O que faz pode ser compreendido como uma paródia de gênero: ela imita e exagera, aproximase, legitima e, ao mesmo tempo, subverte o sujeito que copia. (LOURO, 2013, p. 87-88).

Até meados dos anos 1940 e 1950, a dama pantomímica perdurou como uma performance artística “respeitada e aceita, personagem que todo o comediante eventualmente possuía em seu leque” (AMANAJÁS, 2014, p. 14). Sua atuação, que contava com características do clown, da comédia stand up e do canto, permaneceu como a única forma de arte drag existente na época.

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2.7 O cômico também é político O século XX foi o cenário de uma série de mudanças e acontecimentos de ordem global, que reconfiguraram as relações de poder e de consumo, além de, consequentemente, as performances drag. No âmbito tecnológico, a chegada de dispositivos culturais como a televisão e o cinema limitou a atuação da dama pantomímica, uma vez que ela agora disputava a atenção do público com outras formas de entretenimento. Consequentemente, o momento incentivou uma reconstrução do ofício das drag queens (AMANAJÁS, 2014, p. 14). Mas foi no território sociopolítico que se verificou uma transformação ainda mais acentuada, especialmente no campo da reivindicação de direitos sociais. O movimento feminista, cujo primeiro momento foi pautado pela busca de “direitos iguais à cidadania” (PISCITELLI, 2009, p. 126), intensificou-se entre as décadas de 1950 e 1960, inflamado pelos ideais de Simone de Beauvoir, e procurando mudanças mais concretas e amplas das relações de poder que oprimiam – e ainda oprimem – as mulheres. A década de 20 marca o surgimento de uma nova mulher no mundo Ocidental, ativa, que trabalha, dirige e é independente. O cinema estadunidense exerceu grande influência sobre a liberação da mulher, mostrando imagens de um ideal de beleza tanto masculino quanto feminino que levou as mulheres a diminuírem, por exemplo, o cumprimento das saias e dos cortes de cabelo. Essa modificação na sociedade afetou diretamente o ator drag queen que, como já mencionado, preocupava-se com roupas da moda e com o glamour em um show de entretenimento em que não somente bastaria cantar, dançar e improvisar (como perceberam as jovens e glamorosas drags), mas personificar grandes mulheres da vida real como parte de seu repertório. (AMANAJÁS, 2014, p. 14-15).

A Revolução Sexual, os movimentos de contracultura e a efervescência de uma nova cultura pop, fenômenos paralelos às lutas do movimento feminista, também possuíram decisivo impacto no caráter das performances drag, ao propiciarem a formação de uma comunidade LGBT, em parte resguardada pelo fim de restrições legais aos relacionamentos homossexuais (AMANAJÁS, 2014, p. 15). Nessa conjuntura, a drag queen encontrou espaço em bares voltados para jovens LGBT que, da mesma forma que seus colegas heterossexuais, “também buscaram uma identidade cultural própria através da música, da moda e das gírias” (AMANAJÁS, 2014, p. 16). Uma explicação para o fascínio por drag queens dentro da cultura LGBT pode ser dada por Wayne Koestenbaum (1993 apud ZERVIGON, 2004, p. 89, tradução nossa), ao afirmar que elas, “assim como as divas da ópera, performam o tipo de liberdade que a maioria dos homens gays pode apreciar apenas de forma vicária”.

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Mais tarde, as relações entre a comunidade LGBT e as drag queens se estreitariam ainda mais com as revoltas de Stonewall. MacRae (2011, p. 26) define o evento como “uma batalha de três noites, travada por homossexuais, incluindo muitos travestis e prostitutos, contra a polícia no gueto guei de Nova York em junho de 1969.” À época, o bar conhecido como Stonewall Inn, situado na cidade de Nova York, enfrentava constantes abusos por parte dos policiais, como revistas vexatórias e prisões sem motivação. Zervigon (2004, p. 90, tradução nossa) afirma que as drag queens foram bastante ativas durante esse período tanto em oposição a medidas e ideologias que limitavam sua liberdade de expressão, quanto em apoio aos homens gays “enrustidos” que constantemente negavam a si mesmos essa liberdade. O episódio marcou uma nova possibilidade de atuação dentro da performance drag.

Por algum tempo, nenhuma drag aceitaria que temáticas políticas fossem o centro de suas performances, uma vez que estar em drag era significado de diversão. Em meados dos anos 70, contudo, ser gay se tornou um ato político e, uma vez que ser artista é, em si, um ato político e social, mesmo que não intencional, a drag queen despontou como um dos maiores símbolos da luta pelos direitos gays. (AMANAJÁS, 2014, p. 18) Figura 3 – Manifestantes durante as Revoltas de Stonewall

Fonte: haemosexual.com12

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Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2016.

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2.8 As rainhas do deserto cinematográfico À medida que a cultura LGBT se tornava mais popular, instigando parte do imaginário coletivo, as drag queens também adquiriam maior espaço e visibilidade. Um dos primeiros meios onde isso ocorreu foi no cinema, que enquanto mobilizador do cenário drag e das identidades móveis pode ser entendido como um cinema queer. Nesse cenário despontaram nomes como o do cineasta John Waters, que através do clássico Pink Flamingos (1972) apresentou ao mundo a escatológica Divine, possivelmente uma das drags mais memoráveis dos últimos tempos, conhecida pela sua atitude transgressora e por um total desprezo pelos valores tradicionais da sociedade. Três anos depois, estreava o emblemático The Rocky Horror Picture Show (1975), um musical dirigido por Jim Sharman, que satirizava os filmes de terror de baixo orçamento e colocava o ator Tim Curry travestido no papel de Dr. Frank-N-Furter, uma travesti-cientista vinda da galáxia Transylvania. Segundo Nepomuceno (2010, p. 153) o tom cômico que envolvia as performances do travestismo, predominante na década de 1970, deu lugar a trabalhos mais voltados para dramas pessoais nos anos que se seguiram, numa época que coincidiu com o surgimento de uma corrente denominada de New Queer Cinema. Nascido no território do cinema independente dos Estados Unidos a partir dos anos de 1990, o New Queer Cinema representa um cenário que investe em uma prática discursiva positiva sobre o homoerotismo, em uma época que o público GLBT - gays, lésbicas, bissexuais e travestis, transexuais, transgêneros - estava sendo alvo de uma guerrilha moral devido a crescente expansão da Aids em todo o mundo. O termo New Queer Cinema foi assim determinado pela crítica de cinema e feminista norte-americana B. Ruby Rich, em um artigo publicado em 1992 na revista britânica Sight & Sound, onde a mesma buscava conceituar a efervescente produção cinematográfica com temáticas gays bastante difundidas nos circuitos e festivais de cinema independentes ou nos festivais de cinema exclusivamente GLBT. (NEPOMUCENO, 2010, p. 140-141).

Uma das obras mais significativas dessa época é o documentário Paris is Burning (1990), de Jennie Livingston. O trabalho realiza uma etnografia da cena LGBT periférica de Nova York, no final dos anos 80, numa época onde predominavam os balls, eventos marcados pela presença de competições dos mais diversos tipos, inclusive entre drags. O filme foi bastante aclamado pela crítica, recebeu diversos prêmios e até hoje exerce influência sobre outros meios dentro da cultura pop, inclusive RuPaul’s Drag Race. As movimentações ocasionadas pelo New Queer Cinema possibilitaram o surgimento de filmes como Priscilla, a Rainha do Deserto (1994), uma história sobre duas drag queens e

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uma mulher trans que atravessam a Austrália para realizar um show em um resort. A obra promove reflexões acerca do descentramento das identidades, especialmente quando somos confrontados com o fato de que a funcionária do hotel responsável pelo show é casada com uma das drags, com quem também tem um filho. Outro trabalho importante para a divulgação e enaltecimento da cultura drag é Para Wong Foo, Obrigado Por Tudo, Julie Newmar (1995), um road movie cuja narrativa gira em torno de três drag queens, que viajam de Nova York a Hollywood a fim de competirem no concurso nacional Drag Queen of America. Apesar do tom leve, o filme levanta problemáticas acerca do machismo e da homofobia presentes na cultura estadunidense e personificados na figura do preconceituoso Sargento Dollard e de Virgil, um mecânico que bate na própria esposa. Conforme explica Nepomuceno (2010, p. 157): As subjetividades presentes nestas produções são marcadas pelo nomadismo da experiência corporal e se fazem presentes na erótica da multiplicidade afetiva em uma possibilidade vital de subversão moral, de resistências aos modelos imperativos vigentes.

A partir do aparato proporcionado pela indústria cinematográfica independente e seus movimentos, as drag queens conseguiram se projetar na condição de sujeitos visíveis e influentes, o que permitiu a proposição de questionamentos da ordem do gênero, da sexualidade e das identidades fluidas. Porém, é preciso ressaltar que elas não se restringiram às telas de cinema, estando presentes também na rádio, na televisão e até mesmo na Broadway, em musicais como A Gaiola das Loucas (1978), ou festivais como o Wigstock, realizado anualmente em Nova York. Todos esses meios conferiram uma amplitude de ação maior para a drag queen, possibilitando a realização dessas performances em áreas ainda inéditas. Assim, o cinema, ao se apresentar como produtor de significados e sentidos, consistiu em uma grande vitrine para a popularização da cena drag em todo o mundo, especialmente no período entre as décadas de 90 e virada para o século XXI. Esse foi o local de partida para que outros agentes da mídia começassem a explorar estes personagens em diversos contextos sociais. Uma vez que a drag queen deixa de ser um ator social específico de um nicho, ela ganha maior glamourização e chega com força total às peças de teatro e espetáculos musicais, videoclipes, turnês mundiais, programas de variedade, campanhas publicitárias, revistas e novelas. E é durante esse fenômeno que assistimos ao surgimento de RuPaul’s Drag Race, reality show estadunidense considerado como o maior propagador da cultura drag, e que veremos a seguir.

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3 DRAG RACE E UMA NOVA POLÍTICA DOS CORPOS 3.1 A primeira supermodelo drag do mundo Em termos de pioneirismo na cena drag, é impossível não mencionar a figura de RuPaul Charles, um dos artistas de maior reconhecimento no cenário internacional. Nascido em 1960 na Califórnia, RuPaul - seu nome in e out of drag13 são os mesmos - percorreu um longo caminho até o estrelato: estudou artes cênicas em Atlanta e, durante os anos 80, esteve envolvido com produções do cinema underground, além das atividades da sua banda punk, Wee Wee Pole. Seu primeiro papel de destaque nacional foi como figurante do videoclipe de Love Shack, da banda new wave The B-52’s, em 1989. No entanto, foi somente em 1993, após se mudar para Nova York e lançar o álbum Supermodel of the World, que RuPaul ganhou notoriedade global. Seu principal single, Supermodel (You Better Work) alcançou sucesso inesperado, num cenário onde o grunge e o rap eram os gêneros dominantes. Tal feito, vale ressaltar, só foi conquistado através de muito esforço, como explicam os produtores executivos do single, Fenton Bailey e Randy Barbato14 (2013, p. 43, tradução nossa): No começo, não deu muito certo. Todas as gravadoras nos recusaram. Não. Não. Não. Mas aquilo não nos impediu. Nós mandamos uma demo para a Tommy Boy, um selo hip hop alternativo hardcore que parecia ser o último a se interessar por uma grande e velha drag queen. Nós tínhamos acabado de conhecer a co-fundadora da gravadora, Mônica Lynch, graças a uma entrevista que nós tínhamos feito com ela sobre uma polêmica a respeito de umas letras de rap usadas no episódio piloto de Manhattan Cable. Nós não poderíamos ter ficado mais surpresos quando ela nos ligou e ofereceu um contrato a Ru.

Com o êxito de “Supermodel”, RuPaul conseguiu firmar diversas parcerias que alavancaram sua carreira, incluindo uma campanha com a MAC Cosmetics e o lançamento em 1996, através do canal VH1, de The RuPaul Show, um programa de entrevistas pelo qual passaram nomes como Nirvana, Diana Ross e Duran Duran (BAILEY; BARBATO, 2013, p. 49, tradução nossa). Outros pontos altos da carreira de RuPaul incluem a regravação da música Don’t Go Breaking My Heart, em um dueto com o cantor Elton John no ano de 1994, além da criação de uma boneca de brinquedo em sua homenagem, idealizada pelo estilista canadense 13

In drag (ou apenas in) é uma expressão usada para determinar quando o performer está caracterizado como uma drag queen, ao passo em que out of drag (out) designa quando ele está fora desse personagem. 14 Bailey e Barbato são também os fundadores da World of Wonder Productions, uma produtora estadunidense de reality shows e documentários para a TV, além de conteúdo audiovisual voltado para a internet. Idealizada em 1991, a WoW, como também é conhecida, seria a responsável, alguns anos depois, pela criação de RuPaul’s Drag Race.

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Jason Wu - na caixa da boneca estava estampada a frase “99% plástico, 1% mulher” (BAILEY; BARBATO, 2013, p. 49, tradução nossa).

3.2 “Senhores, liguem seus motores, e que a melhor mulher vença!” A parceria entre RuPaul Charles, Fenton Bailey e Randy Barbato se mostraria ainda bastante frutífera nos anos que se seguiram, especialmente com o endurecimento das condições de vida para os LGBT nos Estados Unidos - como se verificou nos oito anos da administração do ex-presidente estadunidense George W. Bush, de 2001 a 2009, em políticas públicas como o Don’t Ask, Don’t Tell [em português, “Não pergunte, não diga”], que baniram pessoas abertamente homossexuais do serviço militar. Os produtores viram, nessa conjuntura, a necessidade de elaborar um show que abordasse o que eles chamaram de “espécie ameaçada de extinção” (BAILEY; BARBATO, 2013, p. 49, tradução nossa). A espécie em questão era a drag queen. A empreitada, entretanto, mostrou-se complicada, uma vez que a televisão estadunidense era bastante conservadora e “drags eram muito extremas, assustariam os espectadores, não representavam a classe média dos EUA, entre outros motivos” (BAILEY; BARBATO, 2013, p. 49, tradução nossa). Mesmo quando surgiram notícias de que seria lançada a Logo, uma emissora de TV a cabo voltada para o público LGBT, os produtores da WoW tiveram dificuldades para vender a ideia de um reality show sobre a arte drag, supostamente por ser “gay demais”. Nos primeiros dias, a Logo não queria assustar os vizinhos. Ela pretendia vender a ideia de gays como sendo os caras da porta ao lado. Pessoas normais suburbanas. É uma preocupação comum. Em toda Parada do Orgulho LGBT você escuta as mesmas reclamações sobre drag queens e fetichistas arruinando o movimento. (BAILEY; BARBATO, 2013, p. 49, tradução nossa).

A Logo cedeu, após muita insistência, e então nasceu em fevereiro de 2009 o programa RuPaul’s Drag Race, que conta, até o momento, com dez temporadas e mais de cem episódios no currículo. O reality show consiste em uma competição entre drag queens pelo título de America’s Next Drag Superstar [em português, “A Próxima Superestrela Drag Americana”], além de um cheque no valor de cem mil dólares e um suplemento de um ano de maquiagem. As participantes [também chamadas de RuGirls ou “Garotas da Ru”] são avaliadas de acordo com quatro critérios - Charisma [Carisma], Uniqueness [Originalidade], Nerve [Coragem] e Talent [Talento] - através de provas nas mais diversas áreas, como interpretação cênica, canto, dança e costura de figurino para o seu personagem.

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Cada episódio semanal de RuPaul’s Drag Race é estruturado de forma similar. O primeiro bloco cria uma conexão com o episódio anterior, amarrando a narrativa do reality show, enquanto o bloco seguinte apresenta as queens em um novo dia de trabalho, prontas para a execução do Mini Challenge [ou “Mini Desafio]. Na ocasião, elas devem executar uma uma tarefa que pode render algum presente para a vencedora ou mesmo uma vantagem no Main Challenge [“Desafio Principal”], uma prova mais robusta que determina as melhores e as piores da semana, além das que são consideradas safe [“salvas”]. Além do desempenho no Main Challenge, outro critério de avaliação semanal são os desfiles: cada semana, RuPaul designa um tema o qual as garotas devem seguir na apresentação de seu figurino na passarela. Os segmentos posteriores retratam os preparativos das RuGirls para o desafio principal, o que, a depender da tarefa, podem incluir ensaios com coreógrafos, músicos ou diretores de cinema. Já no “Dia da eliminação”, o espectador assiste às queens se preparando para o desfile na passarela, que ocorre no bloco seguinte, diante de uma bancada de jurados composta atualmente por Michelle Visage, cantora e apresentadora de TV; Carlson Kressley, estilista, ator e também apresentador; Todrick Hall, cantor, ator e Youtuber; além da própria RuPaul e mais um jurado convidado. Após a apresentação dos resultados do Main Challenge e da passarela, o apresentador passa a palavra para os jurados, que elaboram críticas a respeito da performance das drag queens, que, enquanto estão presentes na passarela, tem a chance de defender o seu trabalho. Em seguida, RuPaul pede para que elas se dirijam aos bastidores, a fim de que os juízes possam continuar suas deliberações. É a partir delas que o apresentador define quem é a vencedora do desafio e quem são as duas piores da semana, destinadas a performar no Lip Sync For Your Life [“Dublar por sua vida”], abreviado como LSFYL. Ser capaz de dublar uma música é uma das atividades principais de uma drag queen, o que explica a característica redentora do Lip Sync For Your Life: é nesse momento que as competidoras possuem a chance de mostrar seu talento e versatilidade na busca por uma chance de continuar no programa - a vencedora do duelo recebe o Shante, you stay15, aval de RuPaul para prosseguir na competição, enquanto a perdedora amarga o Sashay away [em português pode ser entendido como “sair de um lugar de maneira confiante”] e a consequente eliminação. E vale tudo, desde apelar para elaborados movimentos de dança ou mesmo se valer de elementos cômicos na tentativa de cativar os jurados.

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A expressão é uma referência ao documentário Paris is Burning (1990), e era usada pelos MCs nos balls de Nova York para enaltecer alguém que estivesse fazendo uma boa apresentação na passarela.

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É nesse ritmo que RuPaul’s Drag Race se desenvolve, criando um enredo que desemboca no último episódio, o Reunited [“Reunião”], gravado em um teatro de Los Angeles. Lá, em meio a números de dublagem e entrevistas, as participantes lavam a roupa suja em frente a uma plateia composta por fãs e concorrentes de outras temporadas. Ao final, o mundo descobre quem foi a escolhida para se tornar a America’s Next Drag Superstar – e RuPaul deixa claro que, por mais que ela tenha consultado os jurados, a decisão final é dela. De acordo com Bailey e Barbato (2013, p. 50): Certamente o Drag Race é um show gay bastante ousado, mas também é uma forma de fazer TV falando sobre a TV. Ele desconstrói, depois reconstrói, deslumbra e provoca o reality show competitivo enquanto gênero. É um programa montado em drag.

3.3 Construindo um legado RuPaul’s Drag Race mostrou-se como o resultado de uma fórmula de sucesso, se consolidando como a atração mais assistida da Logo (BAILEY; BARBATO, 2013, p. 50). Um dos reconhecimentos desse fenômeno veio em setembro de 2016, com a conquista de um Emmy – o prêmio de maior prestígio da televisão estadunidense – de Melhor Apresentador de Reality Show para RuPaul Charles. Ele, que havia dito alguns meses antes que preferia “ganhar um enema do que um Emmy” (CHARLES, 2016a) brincou com a polêmica no discurso de aceitação afirmando que agora, graças à Academia de Artes e Ciências Televisivas, poderia ter os dois. Como resultado desse bom desempenho, vários subprodutos se originaram a partir de Drag Race. Podemos citar o Untucked16, série que vai ao ar após o final de cada episódio do programa principal e que retrata o momento onde as queens aguardam as deliberações dos jurados acerca dos desafios semanais. Conforme explica Santos (2015, p. 9): Trata-se do momento em que se intensifica o apelo emotivo do programa, quando se potencializam os dramas e se desenvolvem conflitos e tensões entre as participantes. É o instante em que as queens relatam suas experiências íntimas com a homossexualidade e com o mundo do entretenimento, com os relacionamentos afetivos, familiares e profissionais, e onde também elas recebem mensagens de apoio de seus familiares, namorados ou amigos. Na técnica do show, é no Untucked que se torna possível cativar o público e ampliar ou minimizar a aceitação ou rejeição de alguma participante. Em português, untucked significa “desaquendado”. Aquendar é uma gíria no meio LGBT que se refere ao processo de esconder o pênis durante a composição de um personagem drag, logo desaquendado é o sujeito que está com este órgão à mostra. O nome sugere que, durante essa parte do programa, as participantes estão em um momento mais descontraído e relaxado. 16

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Além do Untucked, foi lançado em outubro de 2012 RuPaul’s Drag Race All Stars, um spin-off [derivado] da série principal. All Stars é uma competição apenas para veteranas das temporadas anteriores de Drag Race e conta com a mesma bancada de jurados, além da conhecida estrutura de desafios, eliminações semanais, Untucked próprio e prêmios para a vencedora. Entretanto, algumas das regras foram modificadas. Na primeira edição do All Stars, a disputa se dá por duplas, ao invés de individualmente, com duas participantes sendo desclassificadas a cada semana. Ao final, a dupla finalista concorre entre si pelo título de Next Drag Superstar. Já na segunda temporada, exibida em 2016, as drag queens voltam a competir de forma individual, porém passam a ser responsáveis por eliminar umas às outras. Para isso, foi instituído o Lip Sync For Your Legacy [em português, “dublar pelo seu legado”], onde as duas melhores de cada episódio duelam entre si por uma gorjeta de dez mil dólares e o direito de tirar da disputa uma das três piores competidoras da semana. Ainda, as quatro primeiras a serem desclassificadas retornam à competição no quinto episódio da série, em um desafio de duplas onde elas se enfrentam por uma oportunidade de continuar no jogo. Outro produto derivado do Drag Race é o reality show RuPaul’s Drag U, que conta, em cada episódio, com três mulheres consideradas “masculinas” buscando uma forma de canalizar sua “diva interior”. Para tanto, elas são montadas com a ajuda de ex-participantes da série principal e avaliadas de acordo com sua transformação drag, sua performance e sua mudança de atitude. Drag U estreou em julho de 2010, mas durou apenas três temporadas, tendo seu final anunciado em 2013. Todos estes programas derivados surgiram do sucesso e da enorme repercussão da matriz de RuPaul’s Drag Race, porém acompanhar a atração ainda se mostra uma tarefa complexa para os fãs. O programa só vai ao ar em tempo real nos Estados Unidos e no Canadá, através da Out TV. Em outros países, as temporadas chegam aos canais de televisão com até anos de atraso. A alternativa é recorrer a plataformas de streaming como o Netflix – que não disponibiliza todos os episódios da série – ou a downloads piratas. A fim de manter uma conexão com os fãs, o programa investe na diversidade de plataformas online. Os perfis oficiais no Facebook17, Twitter18 e Instagram19 são

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Disponível em: . Acesso em: 10 out 2016. Disponível em: . Acesso em: 10 out 2016. 19 Disponível em: . Acesso em: 10 out 2016. 18

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constantemente alimentados com conteúdo referente ao show, como teasers de episódios, entrevistas e até clipes das RuGirls. Além disso, a World of Wonder conta com um canal no YouTube20 onde são transmitidas webséries criadas pelas ex-participantes.

3.4 O espetáculo de Drag Race na cultura da mídia Uma vez que RuPaul’s Drag Race se configura como um produto midiático, qualquer análise feita sobre o programa perpassa os conceitos traçados pelos estudos de cultura da mídia, ou seja, a investigação da maneira pela qual os artefatos culturais disseminados pelos meios de comunicação de massa provocam impacto na subjetividade coletiva. Segundo o filósofo estadunidense Douglas Kellner (2001, p. 307): [...]A cultura da mídia põe à disposição imagens e figuras com as quais seu público possa identificar-se, imitando-as. Portanto, ela exerce importantes efeitos socializantes e culturais por meio de seus modelos de papeis, sexo e por meio das várias ‘posições de sujeito’ que valorizam certas formas de comportamento e modo de ser enquanto desvalorizam e denigrem outros tipos.

A partir disso, é possível depreender que o conjunto de dispositivos culturais midiáticos possui papel preponderante na formação das identidades individuais e, consequentemente, na composição das comunidades contemporâneas. Tal conjuntura pode ser explicada a partir do que o escritor francês Guy Debord denominou de “sociedade do espetáculo”: Considerado em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos –, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade. (DEBORD, 1997, p. 14, grifo do autor).

Assim, sendo a espetacularização apresentada enquanto paradigma de realidade na contemporaneidade, as conclusões apontam para uma presença massiva da mídia – o veículo no qual são disseminadas as imagens do espetáculo – no cotidiano das pessoas (KELLNER, 2001, p. 11). Entretanto, é leviano deduzir que tais representações imagéticas estão desconectadas do contexto social que as gerou. Nesse sentido, Debord (1997, p. 14) ressalta que “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas,

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mediada por imagens”. Logo, para uma compreensão dessas conexões de poder, é preciso dissecar a composição da própria cultura da mídia. A cultura da mídia é industrial; organiza-se com base no modelo de produção de massa e é produzida para a massa de acordo com tipos (gêneros), segundo fórmulas, códigos e normas convencionais. É, portanto, uma forma de cultura comercial, e seus produtos são mercadorias que tentam atrair o lucro privado produzido por empresas gigantescas que estão interessadas na acumulação de capital. (KELLNER, 2001, p. 9).

Deste modo, é perceptível que as diretrizes capitalistas compõem parte fundamental do cerne do aparato midiático, o que é óbvio se considerarmos que boa parte desta estrutura é formada por conglomerados empresariais que visam o lucro. Ou seja, as relações sociais da sociedade do espetáculo servem aos dispositivos de manutenção do consumo e do capital, incluindo as que reafirmam o binarismo de gênero e a heterossexualidade compulsória, parâmetros básicos para a conservação da economia dos corpos úteis. Essas relações ocorrem não por imposição, mas através de instrumentos sensoriais que seduzem o público (KELLNER, 2001, p. 11). Porém, seria superficial deduzir que a relação entre mídia e indivíduos se dá de maneira vertical e determinante, sem uma resposta contrária. [...] O público pode resistir aos significados e mensagens dominantes, criar sua própria leitura e seu próprio modo de apropriar-se da cultura de massa, usando a sua cultura como recurso para fortalecer-se e inventar significados, identidade e forma de vida próprios. Além disso, a própria mídia dá recursos que os indivíduos podem acatar ou rejeitar na formação de sua identidade em oposição aos modelos dominantes. Assim, a cultura veiculada pela mídia induz os indivíduos a conformar-se à organização vigente da sociedade, mas também lhes oferece recursos que podem fortalecê-los na oposição a essa mesma sociedade. (KELLNER, 2001, p. 11-12).

Se grande parte da cultura da mídia age na direção de uma conformação das estruturas de poder preponderantes, estejam elas ligadas a relações de gênero, de classe ou de raça, ainda é possível encontrar exceções que fogem à regra. Uma delas é RuPaul’s Drag Race, que mesmo perpetuando determinadas noções problemáticas, pode ser lido como um programa subversivo no tocante às ressignificações de gênero a partir das performances drag apresentadas.

3.5 “De salto alto”: contestações a partir da Geração Z Um dos motivos que explicam o sucesso de Drag Race reside no panorama no qual ele se encontra. Com a ascensão da Geração Z, movimento que colocou as noções estáticas de gênero e sexualidade em cheque, houve uma reconfiguração dos sistemas culturais, simbólicos

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e mercadológicos a fim de atender às demandas dessas pessoas. Como exemplo, temos o Facebook, a maior rede social da atualidade, que permite aos usuários brasileiros, desde março de 2015, a definição da identidade de gênero através de dezessete opções além do masculino e feminino, enquanto nos Estados Unidos são mais de cinquenta possibilidades (ALLEGRETTI, 2016). Enquanto isso, a loja de departamentos britânica Selfridges inaugurou em 2015 uma sessão de roupas “sem gênero”21, ao mesmo tempo em que grifes como a estadunidense Hood By Air embaçam a linha que separa homens e mulheres, seja na confecção de roupas ou no casting de modelos22. Portanto, se a Geração Z é parte de uma conjuntura capitalista, é justo pensar que suas reflexões e problematizações acerca da estrutura heteronormativa de gênero ocorrem também dentro das relações de consumo, não só de bens, mas principalmente de produtos culturais como músicas, filmes e séries. Nesse sentido, faz-se compreensível a ascensão de RuPaul’s Drag Race enquanto forma de entretenimento popular, especialmente entre o público mais jovem. Uma vez que “a televisão e outras formas da cultura da mídia desempenham papel fundamental na reestruturação da identidade contemporânea e na conformação de pensamentos e comportamentos” (KELLNER, 2001, p. 304), é fundamental ponderar sobre como essa construção se dá no âmbito da pós-modernidade e da flexibilidade identitária assumida pela Geração Z. Kellner (2001, p. 310-311), ao estudar a ambiguidade identitária entre os personagens do seriado Miami Vice (1984 - 1990) defende que: Essas duplicidades dão indícios da artificialidade da identidade, de que a identidade é construída e não dada, de que é uma questão de escolha, estilo e comportamento, e não uma qualidade moral ou psicológica intrínseca. Também indica que a identidade é um jogo que se joga, que é possível trocála facilmente. A identidade pós-moderna, então, é construída teatralmente pela representação e papeis e pela construção de imagens. Enquanto o lugar da identidade moderna girava em torno da profissão e da função na espera pública (ou familiar), a identidade pós-moderna gira em torno do lazer e está centrada na aparência, na imagem e no consumo.

A partir da análise de uma série de TV, Kellner (2001, p. 312) enxerga um reflexo do que seria um dos aspectos mais latentes da pós-modernidade: a derrocada do ideal de uma identidade natural, centrada e única em decorrência de um novo modelo onde a fabricação identitária de cada indivíduo ocorre de forma efêmera e fragmentada. Tal noção conecta-se com 21

Disponível em: . Acesso em: 13 out 2016. 22 Disponível em: . Acesso em: 13 out 2016.

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a ideia de gênero enquanto característica performática e não-essencial, o que é demonstrado a partir da arte drag, principal premissa de RuPaul’s Drag Race. A drag queen repete e subverte o feminino, utilizando e salientando os códigos culturais que marcam esse gênero. Ao jogar e brincar com esses códigos, ao exagerá-los e exaltá-los, ela leva a perceber sua não naturalidade. Sua figura estranha e insólita ajuda a lembrar que as formas como nos apresentamos como sujeitos de gênero e de sexualidade são, sempre, formas inventadas e sancionadas pelas circunstâncias culturais em que vivemos. Os corpos considerados “normais” e “comuns” são, também, produzidos através de uma série de artefatos, acessórios, gestos e atitudes que uma sociedade arbitrariamente estabeleceu como adequados e legítimos. (LOURO, 2013, p. 89).

Drag Race é vendido como uma plataforma que evidencia e exalta as performances drag, manifestações intrinsecamente conectadas às aspirações pós-modernas de efemeridade identitária. Assim, o reality captura o zeitgeist da sociedade, traduzindo seus anseios e se firmando de maneira sólida no cenário midiático global.

3.6 “You Better Work!”: a drag enquanto celebridade pop O sucesso de RuPaul’s Drag Race permite a sua categorização como elemento integrante da cultura pop, não por coincidência um cenário permeado pelas noções de temporalidade e efemeridade. Janotti Junior (2015, p. 45) afirma que a expressão cultura pop surgiu a partir da crítica musical inglesa para “tentar demarcar, e até certa medida desqualificar como efêmero, o surgimento do rock’n’roll e o histrionismo da cultura juvenil que ali emergia.” Para ele, o pop é: Como uma membrana elástica, o pop remodela e reconfigura a própria ideia de cultura popular ao fazer propagar através da cultura midiática expressões culturais de ordem diversas como filmes, seriados, músicas e quadrinhos. A compreensão inicial desses fenômenos como pop já atestava uma das contradições adensadas dessas vivencias culturais: de um lado seu aspecto serial, a produção massiva, de outro, o modo como os produtos pops servem para demarcar experiências diferenciadas através de produtos midiáticas, que nem por isso deixam de ser ‘populares’. (JANOTTI JUNIOR, 2015, p. 45).

Transferindo esse conceito para o âmbito da arte drag, entende-se que o reality show se traduziu em um marco histórico, permitindo a inserção dessas performances em contextos ainda não desbravados, e dando continuidade ao movimento iniciado nos anos 70, que popularizou a imagem da drag queen.

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É praticamente inconcebível falar de RuPaul’s Drag Race sem ao menos trazer à tona a composição antes guetificada da imagética drag. As drags faziam parte, em suma, dos espaços marginalizados de sociabilidade gay. Hoje, no entanto, o fenômeno causado por esse reality, com ares de America’s Next Top Model23, redimensiona a construção de subjetividades em torno da dita estética camp e reapropria seu quê de subversão política, fazendo das drags, parte da rentável indústria do mainstream. (LANG et al., 2015, p. 2).

Assim, se no passado as drag queens eram marginalizadas, restringindo suas atividades a estabelecimentos voltados para o público LGBT, hoje seu escopo de atuação adquire novos contornos. É o caso da brasileira Pabllo Vittar, que além de trilhar uma sólida carreira musical, iniciada em 2015 com o hit Open Bar, se tornou garota-propaganda da Avon no ano seguinte24; ou mesmo da estadunidense Adore Delano, uma RuGirl que não só realiza turnês mundo afora como emplacou seu álbum mais recente, After Party, no primeiro lugar na parada eletrônica da Billboard, algo inédito para uma drag queen25. Para entender de que forma RuPaul’s Drag Race é responsável pela escalada na popularidade das drags, é preciso uma investigação dos aspectos intrínsecos à estrutura do programa. Um desses fatores consiste na deliberada massificação da cultura drag que, atrelada à lógica capitalista, atende aos interesses do chamado pink money: Trata-se, em linhas gerais, de um modo de distinção social, no qual os LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais ou transgêneros) que tenham acesso a bens de consumo de primeira linha se tornam lidos socialmente (pelos sistemas de normatização) como mais aceitos e, portanto, incorporados à permissividade moral hegemônica heterocentrada. Além disso, o “pink money” torna a própria lógica drag aceita enquanto padrão de consumo heterossexual. (LANG et al., 2015, p. 2-3).

Dessa forma, Drag Race é responsável por “digerir” a cultura drag – fruto de uma resistência aos modelos hegemônicos de gênero e, consequentemente, aos interesses do capital – e “reprocessa-la” a fim de tornar consumível pelas massas. Isso se verifica, por exemplo, nos desafios exigidos por RuPaul como requisito para que as queens avancem na competição. Características como habilidades nas áreas de canto e dança, atuação ou até mesmo publicidade são atributos próprios das subindústrias de celebridades (TURNER, 2004 apud LANG et al., 2015, p. 5). Além disso, outro aspecto relevante é a busca por uma estética drag ideal, normatizando performances ainda consideradas como pouco atraentes do ponto de vista

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Reality show estadunidense que busca uma mulher, dentre catorze participantes, que possua as características necessárias para se tornar “a próxima top modelo americana”. 24 Disponível em: . Acesso em: 13 out 2016. 25 Disponível em: . Acesso em: 13 out 2016.

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comercial – temos como exemplo o fato de que, até hoje, nenhuma queen considerada “acima do peso” [comumente chamadas de big girls ou “garotas grandes”] consagrou-se vencedora de uma temporada do programa, o que reforça a padronização da beleza atrelada a corpos magros, não por coincidência uma exigência entre as mulheres em evidência na cultura midiática. É razoável, portanto, afirmar que RuPaul’s Drag Race age como um instrumento de formação mercadológica de drag queens, desenvolvendo um conjunto de saberes e métodos que compõem o que pode ser considerado como uma “celebridade drag”. Posto que tal fórmula é vendida como uma possibilidade de sucesso, o reality show possui apelo entre as performers drag que almejam um impulso na carreira. Se antes as poucas (quase) celebridades drags eram meras coadjuvantes dos risíveis espetáculos de humor, RuPaul’s Drag Race puxou o gatilho para toda uma virada iconográfica que as recoloca enquanto sujeitos em ascensão, ainda que com algumas ressalvas. E isso dá margem para o fomento, cada vez maior, de uma expectativa do estrelato. A cultura de celebridades traz, por meio de seu aparato, os insumos necessários para a construção de drags como as de RuPaul, que preguem a autenticidade, o empoderamento, e toda a ideia de sujeitos pessoalmente fascinantes, extravagantes, únicos. (LANG et al., 2015, p. 3).

No entanto, para criar uma narrativa que transpareça a ideia de glória e triunfo e, simultaneamente, seja capaz de gerar reconhecimento por parte do espectador, é preciso retratar a drag queen enquanto um ser próximo e passível de identificação antes de conceder a ela uma aura de figura notória. Com essa finalidade, Drag Race busca humanizar suas participantes: elas aparecem “desmontadas” em todos os episódios e sua caracterização drag, tanto em termos de composição de figurino quanto no processo de maquiagem, é revelada nos mínimos detalhes. É o que Vencato (2002, p. 36) define como a exposição do camarim26 enquanto local do mistério e da transfiguração do performer em drag queen, o que, diferentemente do que a autora defende, não destitui as RuGirls de seu brilho e sua aura de fantasia. Além da identificação física – expectador e personagem estão desmontados – as participantes tem seus dramas familiares e pessoais retratados nos episódios. Questões como homofobia na infância, racismo, mortes na família, problemas com álcool ou drogas e dificuldades financeiras já arrancaram lágrimas no workroom e são fatores capazes de gerar empatia emocional com o público que, ao vislumbrar a fragilidade dentro dessas pessoas, entende que não se tratam de entidades sobrenaturais. Mas nem tudo são dores e, na maior parte Para Vencato (2002, p. 36), o camarim é um “território impregnado de um certo ar de mistério” e, especialmente para a drag queen é “o local em que se opera uma transformação”. Assim, a autora defende que o acesso restrito a esse espaço garante o elemento surpresa próprio da performance drag e, dessa forma, a exposição dessa dimensão particular “pode fazer com que todo o brilho e a fantasia que advêm dessas figuras desmanchem-se no ar”. 26

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do tempo, as queens se divertem umas com as outras, trocam piadas e shade27, perambulam pelo ambiente de trabalho sem a parte superior das roupas ou mesmo sem roupa alguma, tudo de maneira bem espontânea. Este investimento nos aspectos particulares e subjetivos das participantes também revela o interesse do público consumidor no voyeurismo da vida íntima, dando caráter da espetacularização, portanto, mais interação e participação por parte dos fãs com a vida das personagens. Fãs de drags, assim como os outros fãs, possuem um gosto focado na estética e performatividade da celebridade, mas também o interesse na vida privada e cotidiana dos performers. No caso, a vida cotidiana envolve, especialmente, a celebridade quando não está montada. Há um forte interesse em ver a personagem em seu corpo “natural”, biologicamente atribuído como masculino [...]. Esse é um dos motivos do sucesso do reality show produzido por RuPaul, no qual as reflexões, desafios e dramas cotidianos são mostrados. O programa torna a celebridade familiar e ordinária aos olhos do fã, exibindo esse outro lado das drags através de uma estratégia de “despi-las” e, consequentemente, torná-las mais humanas (ou íntimas) e menos artificiais. Daí uma das adaptações à estética do artifício, como nos referimos anteriormente. (LANG et al., 2015, p. 11).

A drag queen, ao passo que se caracteriza como uma entidade artificial e fabricada, causa ao espectador comum estranhamento, desconforto e distanciamento. A fim de torna-la identificável, é preciso gerar uma afinidade, uma proximidade, o que ocorre a partir da sua “naturalização”, um processo apoiado na ideia de que, por trás da figura insólita que embaça a fronteira entre os gêneros, existe um ser humano como qualquer outro.

3.7 “Drag-se” você também: impacto do programa na cena drag brasileira

Ao desenvolver uma fórmula que metamorfoseia a drag queen, antes um ser restrito ao underground LGBT, em uma estrela pop, RuPaul’s Drag Race estimula a cultura drag mundo afora, inclusive no Brasil. É notável o crescente número de programas, festas, shows – tem sido sucesso nas maiores capitais do país que as participantes de RPDR venham com suas turnês, fazendo enormes filas de fãs, aonde muitos vão inclusive montados – e a própria atividade de drags e performers tem sido bastante difundida. (LANG et al., 2015, p. 8).

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Sales (2015, p. 18) define o shade, no contexto da comunidade LGBT nova-iorquina retratada no documentário Paris is Burning (1990), como uma forma complexa, criativa e artística de ofender alguém, além de um marcador na maneira com a qual os indivíduos daquele cenário interagem entre si.

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Entretanto, dizer que esse fenômeno se resume a uma idolatria a RuPaul’s Drag Race é arriscado e simplista. Decerto, o programa exerce enorme influência sobre a cultura drag em âmbito nacional, tal qual é possível observar em Academia de Drags, um reality show brasileiro feito para o YouTube28 e que guarda visíveis semelhanças com seu sósia estrangeiro: é também uma competição semanal entre drag queens, que precisam vencer desafios de dança, interpretação e comédia e são julgadas por um painel de jurados denominado de “conselho de classe”. Ao término de cada episódio, o conselho se reúne em deliberação e, posteriormente, Silvetty Montilla, famosa drag queen paulistana e apresentadora do programa, divulga o boletim de cada uma das “alunas”: as que não conseguem notas boas o suficiente vão para a recuperação, onde devem realizar um número de dublagem para lutar pelo direito de continuar no programa. É oportuno ressaltar a existência de iniciativas que, embora instigadas por Drag Race, não agem necessariamente em conformidade com os padrões estabelecidos pelo programa. É o caso do projeto carioca Drag-se, que estreou em 2015 e une treze artistas da nova cena drag carioca através de uma série de vídeos para o YouTube29, retratando a vida cotidiana desses indivíduos e mesclando com clipes de performances musicais e tutoriais de maquiagem30 – em 2016, o projeto passou a ser exibido pelo Canal Brasil no formato documentário. Alma Negrot é uma das integrantes do Drag-se e afirma ser contra a padronização da arte drag promovida por RuPaul’s Drag Race (BELMIRO, 2016). Ademais, ela sente falta de novas propostas entre as veteranas, ainda que respeite o estilo delas. A composição estética de Alma inclui materiais como plantas e sucata, e é caracterizada por elementos da arte abstrata e surrealista. Mas, para além dos contornos profissionais, as maiores transformações causadas por Drag Race recaem sobre o fã, que se sente tentado a extrapolar os limites de mero espectador de televisão e tornar-se participante ativo da cena drag, porém não apenas como chave para uma vida de fama e glamour. Existe, no contexto da pós-modernidade, como já foi explicado, uma rejeição a conceitos fixos socialmente impostos, entre eles os de identidade, gênero e sexualidade. Isso motiva tais indivíduos a buscar, através da cultura de mídia, referências com as quais seja possível construir uma personalidade e, nesse caso, eles descobrem através de Drag Race que se montar pode ser uma força política válida nesse processo identitário. A identificação do fã com as celebridades drags é refletida especialmente no crescente contingente de pessoas que também estão se “montando” enquanto 28

Disponível em: . Acesso em: 13 out 2016. Disponível em: . Acesso em: 13 out 2016. 30 Disponível em: . Acesso em: 13 out 2016. 29

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drag queens ou kings, reproduzindo tanto padrões estéticos, quanto na afetação do comportamento. (LANG et al., 2015, p. 10).

Assim, os sujeitos pós-modernos, ao reconhecerem a potência por trás da arte drag, protagonizam a reinvenção da cena, que adquire novos contornos e propósitos, escapando do âmbito profissional e se tornando objeto não só de diversão e hobby, mas principalmente de empoderamento. De acordo com Ritter (2015) “com o alcance do reality show televisivo, uma nova geração começa a entender o salto alto e a maquiagem como forma de expressão”. Dessa forma, se proliferaram, ao redor do Brasil, casas de shows e festas e voltadas à temática drag, a fim de abarcar esse público que, diferentemente do que prega o senso comum, não se restringe aos ambientes considerados LGBT. [...] Existe uma aura sobre as múltiplas possibilidades de “fazer drag”. Não se trata de uma delimitação essencialmente territorial, no que concerne às sociabilidades e regiões de atuação LGBT, nem de estabelecer uma linha divisória entre espumas, silicone e hormônios para designar os enchimentos pelos quais se alcança um ideal estético feminino. A experiência de incorporar uma persona drag está relacionada tanto a finalidades artísticas, lúdicas e profissionais quanto ao prazer subjetivo, desde que se tenha consciência de que é uma imagem ou personagem drag que está sendo incorporado. Do mesmo modo, sua presença e potencialidade de atuação não se restringem apenas ao circuito das boates e eventos destinados ao público LGBT, mas aos demais espaços nas mídias e acontecimentos sociais e culturais. (SANTOS, 2015, p. 3-4).

Ritter (2015), cita, como exemplo dessa diversidade de consumidores a dona de casa Ilma Segurão Carstens, de 67 anos, que é fã dos figurinos de Drag Race, além do designer gráfico Roberto Azeredo, 28 anos, homem heterossexual que acompanha o programa e acredita que uma pessoa não pode ser definida em sua sexualidade de acordo com o que assiste. Atualmente, a nova onda de fãs consumidores e participantes da cultura drag representa os anseios por uma maior fluidez de gênero e sexualidade, propiciando à figura da drag queen mais status, glamour e aceitação graças a força da representação pop como política de atuação. Portanto, é através desta cultura, fortemente sustentada pela mídia e pela indústria do entretenimento, que percebemos outras formas de ser fazer drag e de consumir estas identidades.

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4 “GLAMUROSAS” E “MACHUDAS” SUBVERTENDO O GÊNERO A proposta deste segmento do trabalho é analisar a maneira pela qual as diferentes encenações drag retratadas em RuPaul’s Drag Race questionam e subvertem o binário de gênero homem-mulher. Para isso, foram selecionadas como objeto de estudo quatro performers distintas, sendo uma delas a própria apresentadora do programa, RuPaul Charles, além de três participantes: Milk e Courtney Act, ambas competidoras da sexta temporada, e Acid Betty, que disputava a coroa na oitava temporada. O critério usado para a escolha dessas performers foi a busca pela representação mais diversa possível das diferentes representações de drag queens. Conforme Vencato (2002, p. 40) [...] Em relação às drags, pode-se dizer que é através de como se montam, não em termos instrumentais apenas, mas principalmente em termos expressivos, ou seja, pelo produto final da montaria, que podem ser ou não classificadas enquanto pertencentes a um ou outro estilo.

Assim, a performance de RuPaul traz consigo os elementos clássicos do que se espera de uma drag queen, calcados especialmente na artificialidade e exagero camp; Milk está associada a uma estética que mistura os signos considerados masculinos e femininos, ou seja, o ambíguo, o entremeio de gênero; Courtney Act se aproxima das fish queens, as que buscam uma “ilusão feminina” ao invés de uma paródia exagerada, se assemelhando ao que se julga uma “mulher real”; e Acid Betty remete a aspectos do movimento trannimal onde são usados elementos diversos de codificação que alimentam a idéia do pós-humano. A fim de desenvolver a pesquisa, realizei uma análise qualitativa de conteúdo de todos os episódios de RuPaul’s Drag Race e Untucked, exibidos em 2014 e 2016, e referentes respectivamente à sexta e oitava temporadas, totalizando 45 capítulos. Dividi esse estudo em tópicos por participante, dessa forma permitindo uma abordagem mais específica de cada performance drag e como ela subverte ou reitera o gênero também enquanto dispositivo performático. Desta maneira, cheguei às quatro personagens centrais que serão analisadas fora da ordem cronológica de exibição dos episódios. Além disso, examinei outras produções discursivas sobre o tema como entrevistas, matérias jornalísticas, videoclipes, redes sociais e outros materiais que considerei pertinentes para a análise. Essa decisão foi tomada a partir da compreensão de que RuPaul’s Drag Race não se configura em um começo, meio e fim para a carreira dessas artistas, sendo apenas uma plataforma que lhes confere maior visibilidade.

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4.1 RuPaul Charles: a personificação do camp Figura 4 – Figurino de RuPaul no segundo episódio da oitava temporada

Fonte: Elaborada pelo autor

Parece plausível iniciar uma análise a respeito das drag queens de RuPaul’s Drag Race a partir da persona que dá nome ao programa. RuPaul Charles, como foi explicado previamente, é uma das celebridades midiáticas de maior visibilidade no cenário global e foi pioneiro enquanto drag em diversas áreas de atuação. Dessa forma, ele estabeleceu sólida carreira na indústria fonográfica e televisiva, através de um reality show que elevou o status carregado pelas drag queens atualmente e que lhe rendeu um Emmy, o maior prêmio da televisão estadunidense. Na qualidade de criador do Drag Race, RuPaul se tornou embaixador da cultura drag ao redor do mundo, lançando exatas cem drag queens ao estrelato e inspirando pessoas com suas histórias, um legado do qual ele parece estar ciente, especialmente quando se refere à última temporada do programa. Drag Race é popular porque, no seu núcleo, está a história da tenacidade do espírito humano. Nós podemos ver essas crianças que foram colocadas de lado pela sociedade e que conseguiram criar um jeito de se mostrarem e serem incríveis. E assisti-las florescendo através desses desafios é cativante, especialmente quando conhecemos suas histórias. E eu conheço as histórias delas porque também é a minha, e é a de todo mundo que pensa do lado de fora da caixa. (CHARLES, 2016b, tradução nossa).

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Embora RuPaul’s Drag Race tenha alcançado considerável sucesso, expressos por sua audiência e pelo reconhecimento tanto do público quanto da crítica especializada, seu criador rejeita o selo de mainstream. Apesar da existência de um processo de criação de celebridades drag, o qual perpassa por aspectos normativos, RuPaul é categórico quando defende que o reality show, ao trazer à tona a quebra dos padrões de gênero a partir das performances drag, jamais poderia fazer parte da cultura de massa. Assim, o que se testemunha a respeito da cultura drag hoje em dia “é o mais mainstream que ela pode ser” (CHARLES, 2016a, tradução nossa). Há uma atitude queer neste posicionamento de RuPaul, uma vez que, em se configurando como um contraponto à cultura normatizante popular, ele evoca uma das peculiaridades que Spargo (2006, p. 37) atribui ao movimento queer: o perpétuo “confronto com o normal, a norma, seja ela a heterossexualidade dominante ou a identidade gay/lésbica”. Com frequência, RuPaul associa essa realidade padronizada ao que ele chama de matrix, paradigma do qual ele conseguiu escapar graças à arte drag. Eu não acho que o show poderia algum dia se tornar mainstream porque drag é a antítese da matrix. Sabe, a matrix diz “escolha uma identidade e se apegue a ela, porque eu quero te vender cerveja e xampu e eu preciso que você esteja apegado ao que você é para que eu saiba como comercializar essas coisas para você”. Drag é o oposto, drag diz “identidade é uma piada”. (CHARLES, 2016b, tradução nossa).

No momento em que RuPaul desconfigura a identidade enquanto atributo sólido ao qual uma pessoa deve estar presa, ele traz à tona o argumento da performatividade como processo constitutivo dos sujeitos. Sua ideia de que a drag queen oferece a possibilidade de debochar da composição identitária de um indivíduo está em consonância com a noção de paródia – designada por Butler (2012) e Louro (2013) – como um dispositivo de subversão das categorias estanques de gênero. Posto isto, é relevante voltar-se para a maneira na qual RuPaul caracteriza sua persona drag. No começo da carreira, a drag queen ostentava visuais considerados mais ousados, que misturavam traços femininos e masculinos, gerando uma ambiguidade que causava desconforto. Entretanto, após o sucesso de Supermodel e especialmente ao longo de oito anos de RuPaul’s Drag Race, o apresentador evidenciou, na maior parte do tempo, um estilo semelhante, composto por cabelos volumosos e normalmente loiros, vestidos compridos de gala, salto alto e bastante maquiagem. Apesar de, a princípio, tal conjunto fazer parte do

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universo considerado feminino, RuPaul deixa explícito que ele “não se veste como uma mulher e sim como uma drag queen”31, se distanciando de qualquer tentativa de ilusão de gênero. [Feminilidade] nunca foi para mim. Eu sempre fiz o que eu pensava ser interessante. Eu sempre fiz o que me chamava a atenção. Se parecer com uma mulher nunca foi o critério para mim, mas sim fazer drag. E drag não é específico de um gênero. Drag é apenas drag, é exagero. […] Brincar com gênero é o que o drag faz, mas leva-lo a sério? Não, porque a isso é o que a noção de feminilidade alude, ao se parecer e se sentir “real”. Para a maioria das drag queens essa não é a regra, porque a aparência e a sensação de real são chatas. (CHARLES, 2016a, tradução nossa).

A postura irreverente que RuPaul demonstra ter com relação a gênero, identidade e drag se estende a diversos aspectos da sua vida, o que já lhe rendeu algumas controvérsias. Em 2014, durante a sexta temporada de Drag Race, internautas acusaram o show de transfobia devido ao emprego da expressão “she-mail32”, que remete a um termo pejorativo usado para se referir a travestis. RuPaul, em uma postura de rejeição à imposição de qualquer norma, inclusive de vocabulário, resistiu enquanto pôde, mas foi voto vencido quando os produtores do reality decidiram acatar às demandas do público. Em sua defesa (CHARLES, 2016a, tradução nossa), ele alegou que a intenção por trás da palavra era servir como um amálgama que fosse divertido e fizesse um jogo de linguagem, e que as reclamações fazem parte de um processo de entendimento da vida como uma grande mentira. “O primeiro estágio é a raiva, e depois a amargura. O terceiro estágio é a risada e a irreverência e finalmente entender que ‘eu posso me divertir, não levar tão a sério, brincar com isso’.” (CHARLES, 2016a, tradução nossa). Ao usar o ato de se montar como uma forma de debochar das identidades sólidas e do binarismo de gênero, estendendo isso a um modus vivendi que nega qualquer compromisso com a seriedade, RuPaul exercita põe em prática uma atitude camp em diversos aspectos. De acordo com Sontag (1987, p. 10): A questão fundamental do Camp é destronar o sério. O Camp é jocoso, antisério. Mais precisamente, o Camp envolve uma nova e mais complexa relação com o "sério". Pode-se ser sério a respeito do frívolo, e frívolo a respeito do sério. [...] Os recursos tradicionais que permitem ultrapassar a seriedade convencional – ironia, sátira – parecem fracos hoje, inadequados ao veículo culturalmente supersaturado no qual a sensibilidade contemporânea é educada. O Camp introduz um novo modelo: o artifício como ideal, a teatralidade.

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Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2016. A palavra era usada na frase “you’ve got a she-mail” [você recebeu um “she-mail”], que precedia os anúncios de RuPaul acerca dos desafios semanais e funciona como um trocadilho entre “e-mail” e o termo “shemale”, traduzido como “traveco”. 32

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É desta forma que Mamma Ru – um dos apelidos carinhosos dados a RuPaul, que é visto como uma mãe e mentora por outras drags – constrói o seu legado. Através do reality show que provocou uma das maiores mudanças já vivenciadas pela cena drag global, sua mensagem ao mundo, entre uma polêmica e outra, é a de que não levemos questões como gênero, identidade ou até mesmo a vida tão a sério. Afinal, tudo não passa de uma ilusão na qual a coisa mais poderosa que podemos fazer é “nos tornar a imagem da nossa própria imaginação”.

4.2 Courtney Act: feminina e não-conformista Figura 5 – Courtney desfila com seu modelito “Tony Awards” no episódio The Rusical

Fonte: Elaborada pelo autor

Havia, desde antes do começo da sexta temporada de RuPaul’s Drag Race, grande expectativa para a participação de, Courtney Act, drag queen criada pelo australiano Shane Jenek. Relativamente famosa em seu país por ter se tornado finalista do Australian Idol, um show de talentos para cantores, Courtney estava destinada a ser rival de Adore Delano 33, em uma edição onde os desafios musicais foram uma constante. A primeira impressão de Courtney no reality show é marcante: ela adentra o workroom, no segundo episódio da temporada, com um visual considerado tipicamente “feminino”,

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Danny Noriega, o criador de Adore Delano, havia participado em 2008 do American Idol, um programa feito nos EUA nos mesmos moldes do Australian Idol.

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composto por peruca longa e loira, brincos, vestido curto, salto alto e maquiagem leve, sem os exageros tidos como próprios de uma drag queen. Por ser adepta de uma estética mais “enxuta”, Courtney se assemelha a uma “mulher de fato”. Na ocasião, ela brinca: “é aqui o America’s Next Top Model?” (RUPAUL’S BIG OPENING PART 2, 2014, 5min) – se referindo ao reality show de modelos americanas. Courtney performa um tipo de drag conhecido como fish queen. O termo advém da expressão “serving fish” (traduzido literalmente para “servindo peixe34”) que, dentro da cultura drag, é usado para “se referir a uma queen que possui uma aparência bastante feminina” (CLARKE, 2014, tradução nossa). Logo, uma fish queen é aquela especializada em criar uma performance ilusória, se assemelhando ao que é classificado como uma “mulher de verdade”, em oposição às drags exageradas e camp, que abusam dos elementos femininos na composição de seus personagens. A entrada de Courtney em Drag Race demarcou um ponto de tensão entre a feminilidade que se pretende “natural” das fish queens e a artificialidade escancarada das drags mais convencionais, que resistiram à aparência da australiana por considerarem-na muito feminina e pouco drag. Os comentários vieram de todos os lados: Magnolia Crawford, competidora na mesma temporada, afirmou: “Courtney se parece com uma garota. Muito bonita, mas isso não me impressiona. Isso não é drag” (RUPAUL’S BIG OPENING PART 2, 2014, 6min). Darienne Lake, outra participante, disse que não sentia muita “energia drag” vindo dela. É cabível, assim, pensar nos termos de uma “normatização drag” que impele aos performers os atributos camp da demasia, do excesso e da artificialidade explícita. Portanto, existe o consenso de que, para uma drag queen, é preferível personificar o feminino de maneira exagerada a assemelhar-se a uma mulher de verdade. Vencato (2002, p. 13) expõe que, do ponto de vista das queens entrevistadas, “drag não quer se parecer com uma mulher pois, caso se parecesse, não seria uma drag queen e sim, uma travesti”. A posição é defendida por Montero (apud Garber, 1991, 456-457, tradução nossa), segundo o qual: A imperfeição de sua imitação é o que faz dela atraente, que a faz eminentemente legível. Imitações perfeitas de mulheres por homens ou de homens por mulheres são curiosas, mas não interessantes. É necessário que exista algum ‘conto de fadas’, não uma barba por fazer grosseira ou a falta de habilidade do amador, mas algo compreensível, um pé que é muito grande, um gesto sutil ou a natureza peculiar da voz.

A expressão é considerada pejorativa, uma vez que o “peixe” faz referência ao cheiro coloquialmente atribuído à vagina de uma mulher. 34

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Como foi posto anteriormente, a drag queen é conhecida por realizar uma paródia do gênero feminino, um ato que pressupõe uma identificação e ao mesmo tempo um distanciamento desse objeto, o que ocorreria graças aos atributos provenientes da estética camp – a maquiagem carregada, os cabelos volumosos, o salto alto demais. Porém, é necessário pensar na performance parodística em termos menos rígidos, inclusive rompendo sua associação com a comédia, em especial porque a finalidade principal de tal encenação é denunciar que o gênero em si é também uma ficção. A noção de paródia de gênero aqui defendida não presume a existência de um original que essas identidades parodísticas imitem. Aliás, a paródia que se faz é da própria ideia de um original. [...] Como imitações que deslocam efetivamente o significado do original, imitam o próprio mito da originalidade. No lugar de uma identificação original a servir como causa determinante, a identidade de gênero pode ser reconcebida como uma história pessoal/cultural de significados percebidos, sujeitos a um conjunto de práticas imitativas que se referem lateralmente a outras imitações e que, em conjunto, constroem a ilusão de um eu de gênero primário e interno marcado pelo gênero, ou parodiam o mecanismo dessa construção. (BUTLER, 2012, p. 197).

Logo, a aspiração por uma ilusão perfeita do gênero feminino é uma contradição, pois tal desejo pressupõe a existência de um molde representativo da “mulher real”, o que se traduz em uma impossibilidade, uma vez que os aspectos que constituem o feminino são arbitrados culturalmente e variam de acordo com o espaço/tempo, impossibilitando a demarcação de parâmetros rígidos. Assim, Courtney realiza a imitação de um ideal inventado e normativo de mulher que é uma paródia em si, não havendo, portanto, qualquer distinção entre essa e uma performance drag tradicionalmente camp, no que concerne à busca por uma artificialidade de gênero. Esse entendimento, entretanto, não é compartilhado pelas competidoras de RuPaul’s Drag Race, e mesmo as competidoras consideradas mais “femininas” acabam absorvendo essas posturas. É o caso de Joslyn Fox, uma drag queen cuja performance também busca a aproximação do que seria considerado uma “mulher real”. Criticada por usar muitos acessórios na passarela do sexto episódio da temporada, ela desabafou no Untucked: “eu sinto que o meu drag é tão feminino e parecido com uma mulher real que acaba não sendo drag o suficiente, e por isso eu acabo exagerando no look” (UNTUCKED – OH NO SHE BETTA DON’T!, 2014, 12min). Isso reforça a visão de que drags femininas às vezes não são reconhecidas como drag queens de verdade por não optarem pelo atributo do exagero. No entanto, Courtney demonstra estar ciente da performatividade por trás do ilusionismo criado por sua personagem, segundo entrevista concedida à OUT Magazine:

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Eu acho que é como RuPaul diz, “você nasceu pelado e o resto é drag”. Para mim isso é algo literal para homens e mulheres. Eu espero que as mulheres possam ver como esse ideal de beleza é criado e como eu estou literalmente criando a ilusão de uma mulher, e isso é o que muitas mulheres também estão fazendo. Eu não acho que exista nada errado com relação à beleza ou a esse tipo de ilusão, mas o problema é que as pessoas acham que é real. E, na minha opinião, uma vez que você reconhece que é tudo uma espécie de fingimento, e que nós estamos criando uma pintura ou um trabalho de arte, como aquelas fotos que você vê na capa das revistas (com a mesma quantidade de detalhes sendo aplicada), então está tudo bem. (JENEK, 2014, tradução nossa).

Os questionamentos levantados por Courtney dialogam diretamente com a noção de performance de gênero abordada pela teoria queer. Não só a performer exprime a compreensão da construtividade que sustenta as categorias de gênero e o fazer drag: ela, além disso, percebe a artificialidade por trás das noções de beleza comercializadas para as mulheres. Dessa maneira, através de sua performatividade enquanto drag queen que cria uma ilusão feminina normativa, ela chama a atenção para essas imposições estéticas, em uma atitude de empoderamento. O fato de a realidade do gênero ser criada mediante performatividade sociais contínuas significa que as próprias noções de sexo essencial e de masculinidade ou feminilidade verdadeiras ou permanentes também são construídas, como parte da estratégia que oculta o caráter performativo do gênero e as possibilidades performativas de proliferação das configurações de gênero fora das estruturas restritas da dominação masculinista e da heterossexualidade compulsória. Os gêneros não podem ser verdadeiros nem falsos, reais nem aparentes, originais nem derivados. (BUTLER, 2012, p. 201).

Parte desse empoderamento se revela, também, na forma como Courtney lida com sua sexualidade. Além de ter protagonizado um momento de beijos acalorados com Adore Delano no clipe de Jump The Gun35, ela também revelou, no Untucked do segundo episódio da temporada, que já teve relações sexuais como homens enquanto estava montada, atribuindo isso ao fato de seu drag se assemelhar muito a uma mulher. Estar em drag me dá acesso a certos tipos de homem, devido a minha estética particular. É muito fácil estar com um homem hétero. Quando um hétero me pega achando que eu sou uma mulher, isso me faz me sentir no paraíso. É muito fascinante ser um homem e uma mulher e ver como as mesmas pessoas reagem tão diferentemente a essa imagem. (UNTUCKED – RUPAUL’S BIG OPENING PART 2, 2014, 17min).

Talvez os motivos que levam Courtney a explorar de forma tão livre a sua sexualidade estejam ligados à identidade de gênero que construiu a partir de suas performances enquanto 35

Disponível em: . Acesso em: 22 out 2016.

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drag. Após o final da sua temporada, ela tornou-se amiga de Chaz Bono, homem trans, ativista LGBT e filho da cantora pop Cher, uma pessoa que a influenciou na sua transição para um estado de gênero indefinido. Eu ainda estava bastante apegado ao conceito rígido de que um homem deveria ser um homem e uma mulher deveria ser uma mulher. Foi apenas quando eu me tornei amigo de Chaz que eu consegui quebrar essas ideias e perceber que eu não tinha que ser um homem e não tinha que ser uma mulher. Eu poderia ser apenas eu. [...] A partir do minuto em que eu abandonei essa necessidade de ser homem, eu fiquei muito mais confortável. Eu ainda sou a mesma pessoa. Eu ainda sou feliz em ser assim. Eu simplesmente não sinto aquela opressão vinda de uma necessidade de ser masculino. Isso foi muito liberador. (JENEK, 2015, tradução nossa).

Para Courtney, o gênero diz respeito muito mais a um atributo artificial e individual do que a uma categoria baseada em dados supostamente naturais. Tal ponto de vista se traduz em um entendimento no qual as esferas homem e mulher, ao invés de mundos separados por uma genitália, fazem parte de uma mesma matiz onde as divisões são mais embaçadas do que parecem ser. A fim de clarificar as noções por trás dessa gradação entre identidades de gênero, Courtney toma para si emprestado o conceito de “trans”. Para mim, “trans” queria dizer que você nasceu homem e queria se tornar uma mulher, ou vice-versa, mas eu percebi que “trans”, igual a todo o resto, é o espectro. Então, eu não sei – se eu gasto 20% do meu tempo montada, eu sou 20% mulher e 80% homem? [...] Trans não é uma questão binária. Nada é, é tudo tons de cinza. Eu acredito que nós estamos em um ponto onde podemos começar a aceitar verdadeiramente que as coisas não são preto-no-branco. Talvez essa seja a próxima fronteira. (JENEK, 2014, tradução nossa).

Uma vez que entre as imagens do masculino e do feminino existem diversos “tons de cinza”, qual é o ponto em dividir o gênero entre dois modelos estanques? Esse é o tipo de reflexão que Courtney busca fazer ao evocar a noção de “trans” para demonstrar que estamos em constante trânsito entre o que se considera “homem” e “mulher”, ou, segundo Foucault, entre os gêneros que se supõem “inteligíveis”. Gêneros “inteligíveis” são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. Em outras palavras, os espectros de descontinuidade e incoerência, eles próprios só concebíveis em relação a normas existentes de continuidade e coerência, são constantemente proibidos e produzidos pelas próprias leis que buscam estabelecer linhas causais ou expressivas de ligação entre o sexo biológico, o gênero culturalmente constituído e a “expressão” ou “efeito” de ambos na manifestação do desejo sexual por meio da prática sexual. A noção de que pode haver uma “verdade” do sexo, como Foucault a denomina ironicamente, é produzida precisamente pelas práticas regulatórias que geram

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identidades coerentes por via de uma matriz de normas de gênero coerentes. (FOUCAULT, 2003, p. 38).

Se, a princípio, a performance de Courtney Act enquanto uma drag queen magra, loira e julgada dentro dos padrões de beleza parece advir de perspectivas normatizantes de gênero, vimos que o contrário é o que ocorre. Ao se caracterizar nos moldes de uma mulher concebida como “bonita”, Courtney busca levantar questões acerca da construção cultural que circunda as noções de beleza e, consequentemente, de gênero. Tal conduta se reflete na maneira como ela vivencia sua sexualidade e, inclusive, seu próprio gênero, posicionamentos inspirados diretamente pelas noções de performatividade propagadas a partir da teoria queer. Assim, mesmo ao adotar uma estética supostamente menos “transgressora”, Courtney revoluciona a matriz heteronormativa e o binário homem-mulher, embaralhando esses conceitos e demonstrando sua artificialidade.

4.3 Milk: a mulher-barbada Figura 6 – Milk, caracterizada como “RuPaul do workroom” no episódio Snatch Game

Fonte: Elaborada pelo autor

RuPaul’s Drag Race, sexta temporada, quinto episódio (Snatch Game36). O tema da passarela era “Noite dos Mil RuPauls”, ou seja, demandava a execução de um look que fizesse referência à apresentadora do reality show. Uma a uma, as participantes apareceram trajando 36

Snatch Game é um dos desafios mais tradicionais do programa, no qual as queens, em um cenário que simula um game show de auditório, devem realizar a personificação de alguma celebridade do mundo pop e fazê-la engraçada.

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elegantes vestidos longos, cabelos volumosos e loiros e salto alto, exibindo glamour e feminilidade da cabeça aos pés. Entretanto, a última drag queen a se apresentar surpreendeu a todos: completamente careca, usava um terno, sapatos de bico fino e bastante batom para acentuar o tamanho da boca. O momento, protagonizado por Milk, se tornou um dos mais icônicos da história do programa, mas foi recebido de maneira controversa pelo júri. Michelle Visage afirmou: “parte de mim está extremamente ofendida por você ter entrado na passarela de calças, mas a outra parte acha que é genial, porque isso é RuPaul” (SNATCH GAME, 2014, 32min), ao que Milk responde: “isso é o que eu gosto de fazer, eu gosto de tentar coisas inesperadas”. Já o estilista Santino Rice, na época jurado fixo do programa, cobrou da participante um look mais glamouroso e feminino, opinião corroborada por RuPaul. Ela rebateu: “honestamente, às vezes sinto que se eu usasse vestidos e cabelos lindos como as outras, eu me destacaria pelos motivos errados. As pessoas ririam de mim e eu não poderia rir de mim mesma” (SNATCH GAME, 2014, 33min). Após o final da temporada, Milk concedeu uma entrevista ao portal The Advocate, onde ela explicou os motivos que a levaram a personificar um RuPaul masculino. Antes de tudo, eu sabia que fazer um look estilo “RuPaul no workroom” seria hilariamente divertido. Eu também queria quebrar o visual de dez clones de um RuPaul feminino na passarela. É importante misturar as coisas! Eu não considero drag como personificação feminina. Isso não é RuPaul’s Female Impersonation37 Race. (DONIGAN, 2014b, tradução nossa).

A problemática levantada a partir das escolhas estéticas de Milk naquela passarela resume boa parte da sua passagem por Drag Race. A drag queen originária do Brooklyn, Nova York, e criada por Dan Donigan quando ele ainda morava em Boston, é influenciada pelo estilo genderfuck, que segundo Taylor (2012, p. 99, tradução nossa): [...] É um termo pós-moderno usado para descrever uma pessoa ou performance que brinca/fode ou faz escárnio com as imagens normativas de gênero e, nesse jogo, desestabiliza o binário de gênero e subverte a lógica do paradigma sexo/gênero.

De certa forma, toda performance drag, a partir do momento em que perturba os limites estabelecidos entre os gêneros, pode ser considerada um ato genderfuck. Entretanto, no tocante

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Female impersonation (em português, personificação feminina) diz respeito à transformação de gênero no sentido masculino para feminino intrinsecamente relacionada a vestimentas e teatralização, cuja base principal é a própria transformação demonstrada pelo performer (VENCATO, 2002, p. 5).

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à estética, as manifestações genderfuck são aquelas onde os signos arbitrariamente associados aos homens ou às mulheres encontram-se misturados em um só corpo. Desde os anos 1970, as performances drag tem gradativamente servido a uma agenda disruptiva, que se encontra fundamentada na história recente do camp enquanto forma teatralizada de uma práxis política. Nós presenciamos isso particularmente na autoformação de identidades drag radicais que não se encontram baseadas apenas no ato de emular o gênero oposto: drags que empregam a estética genderfuck; drags que propositadamente perturbam o gênero, incomodando a hegemonia heterossexual. O estilo drag que é mais comumente associado com a cultura contemporânea queer é o que mistura diversos signos sexuais, de gênero e de sexualidade, se engajando em jogos e performances simbólicas. (TAYLOR, 2012, p. 102, tradução nossa).

Elementos genderfuck estiveram presentes desde a primeira aparição de Milk em RuPaul’s Drag Race, no segundo episódio da temporada, quando ela adentrou o workroom em um visual andrógino, composto por terno e gravata, chapéu e, ao mesmo tempo, uma calcinha e salto alto, além da maquiagem carregada com o intuito de aumentar o tamanho dos lábios – uma marca registrada da performer. Em um áudio em off, ela se definiu, na ocasião, como uma performer “club kid” e conceitual, com apreço pelo exagero: “ela não é só uma nota, é uma sinfonia inteira” (RUPAUL’S BIG OPENING PART 2, 2014, 4min). Sua aparência extravagante despertou o comentário de outra competidora, Trinity K. Bonet, que afirmou que ela parecia ter saído de um circo. Trinity, conhecida por ostentar uma estética drag mais convencional, protagonizou também um momento de choque cultural com outra participante influenciada diretamente pela cultura clubber, a nova-iorquina Vivacious. No terceiro episódio, Vivacious declarou a ela que se inspirava nos club kids de sua cidade, como Amanda Lepore, para compor seus looks, considerados abstratos e criticados por algumas pessoas. Trinity a interrompe dizendo que queria perguntar exatamente isso, se ela já não pensou em se renovar. Em áudio off, Vivacious fala que a “nova geração só sabe ser feminina, mas quando eu entro numa boate, todos olham pra mim. Você ainda é aquela garotinha no canto tentando parecer uma mulher” (SCREAM QUEENS, 2014, 18min). O caso expõe uma tensão existente entre os diferentes estilos de drag, especialmente entre aquele mais conceitual e um outro mais tradicional. Mais tarde, durante o Lip Sync For Your Life daquele capítulo, no qual Vivacious é eliminada, Milk diz que se identifica com a estética drag da nova-iorquina, que é algo que ela adora. Ao evocar a imagem de um ser que mistura os atributos do masculino e do feminino, Milk traz à tona a figura da fronteira (LOURO, 2013, p. 20) enquanto “lugar de relação, região de encontro, cruzamento e confronto”, além de “zona de transgressão e subversão”. Uma vez que

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a drag queen se apresenta como uma nômade desse local de ambiguidade, Milk se posiciona com ainda mais indeterminação, já que deturpa os sistemas sígnicos que compõem uma drag e, consequentemente, que constituem os gêneros inteligíveis. Conforme explica Butler (2012, p. 39): A matriz cultural por intermédio da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de “identidade” não possam “existir” - isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e aquelas em que as práticas do desejo não “decorrem” nem do “sexo” nem do “gênero”. Nesse contexto, “decorrer” seria uma relação política de direito instituído pelas leis culturais que estabelecem e regulam a forma e o significado da sexualidade. Ora, do ponto de vista desse campo, certos tipos de “identidade de gênero” parecem ser meras falhas do desenvolvimento ou impossibilidades lógicas, precisamente porque não se conformam às normas da inteligibilidade cultural. Entretanto, sua persistência e proliferação criam oportunidades críticas de expor os limites e os objetivos reguladores desse campo de inteligibilidade e, consequentemente, de disseminar, nos próprios termos dessa matriz de inteligibilidade, matrizes rivais e subversivas de desordem de gênero.

A performance de Milk seria, então, um ponto fora da curva dos sistemas de gênero inteligíveis, ou seja, aqueles que se conformam na ordem sexo-gênero-sexualidade arbitrada por dispositivos múltiplos de poder a serviço da heteronormatividade. Quando tal sistema traça as regras de performatividade a serem seguidas por homens e mulheres ele, simultaneamente, determina onde ocorrem as transgressões. E é nessa área que Milk realiza suas encenações, trajando, ao mesmo tempo, barba e salto alto, terno e maquiagem, confundindo e sabotando os limites impostos às performances de gênero. No entanto, mesmo quando se propõe a realizar algo considerado do universo feminino, Milk mostra ser inovadora e irreverente. Isso se verificou no quarto episódio da temporada, Shade – The Rusical, cuja proposta para a passarela era “vestir-se para um Tony Award”. Na ocasião, ela decidiu usar um vestido longo preto, salto alto preto com meias vermelhas e uma flor de adorno, além de uma peruca ruiva volumosa, maquiagem carregada e uma barriga falsa para simular gravidez, uma escolha novamente polêmica. Durante o Untucked daquele episódio, Milk reiterou sua posição em não fazer uma escolha segura ao ir de “grávida” para a passarela, mas foi criticada por Gia Gunn, drag queen que investe em uma aparência mais voltada para a ilusão do feminino. Para Gia, Milk havia fugido ao tema proposto e precisava jogar mais sério e ser mais versátil – leia-se, ser mais convencional em sua estética. Milk respondeu: “bem, é um look incomum, mas se eu fosse ao Tony Awards eu seria essa vadia louca. Eu não seria aquela garota num vestido de sereia” (UNTUCKED – THE RUSICAL, 2014, 6min). Gia replicou: “me desculpe, querida, mas drag queens se vestem como garotas.

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Eu não vejo feminilidade”. O embate entre as duas persistiu até o momento em que Gia foi eliminada, no episódio seguinte, ocasião na qual ela declarou: “Estou chateada, porque há crossdressers lá dentro que vieram para um programa de drags vestidas como garotos. Se analisar, drag significa ‘dressing up as girls’ [vestir-se como uma garota], não ressaltar o que você já é, um homem enorme” (SNATCH GAME, 2014, 40min). Toda a ousadia de Milk, assim como sua predileção pelos excessos, fazem referência à estética camp, que, para ela, significa “parecer uma piada enquanto se está dentro da piada” (DONIGAN, 2014a, tradução nossa). Tais preferências, porém, se mostraram incompreendidas tanto por suas colegas de profissão quanto pela estrutura de Drag Race, o que a forçava constantemente a aderir à padronização promovida pelo programa, ou seja, ser mais “feminina”. Quanto a essa pressão, ela afirmou: Eu adoro quando as pessoas dizem “eu não te entendo”. O que eu faço é visual. Eu não me incomodo quando as pessoas não compreendem. Drag Race já está na sexta temporada, então eu quis ter certeza de que o que eu fiz na passarela era completamente diferente do que foi feito nas outras cinco edições. Qual é o ponto em continuar fazendo a mesma coisa, os mesmos vestidos, o mesmo look? O que vai ser lembrado, no fim das contas, não é um simples vestido de gala. É aquele vestido de gala em uma drag queen grávida ou em uma vadia careca. (DONIGAN, 2014a, tradução nossa).

Assim, é possível afirmar que a passagem de Milk representou um marco na trajetória de RuPaul’s Drag Race, expondo os preconceitos existentes entre diferentes estilos drag, assim como a normatização que o reality reforça. Sua performance, que variava entre a androginia e o exagero, entre o genderfuck e o camp, representa um ponto de ruptura da heteronormatividade e do modelo binário de gênero. Com uma trajetória considerada das mais originais e memoráveis já apresentadas pelo programa, Milk foi motivo de incômodo para o público, para outras drag queens e até mesmo para RuPaul, mas ser unânime não está entre os objetivos dela. “Quão chato seria se você fosse adorado por todo mundo, certo? Eu, Dan, também conhecido como Milk, posso não ser para todos, mas sou para qualquer um!” (DONIGAN, 2014a, tradução nossa).

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4.4 Acid Betty: drag queer Figura 7 – Acid Betty com seu look “anfíbio” no episódio New Wave Queens

Fonte: Elaborada pelo autor

Desde antes do início da sua carreira, Acid Betty traçou parâmetros claros que a colocaram em oposição a qualquer tipo de normatividade em sua performance. Simbolicamente, na busca pela autenticidade de sua persona drag, seu criador Jamin Ruhren saiu de Los Angeles, onde trabalhava como dançarino profissional, e partiu em direção à Nova York, trilhando o caminho contrário ao que as queens normalmente fazem em busca de fama e sucesso. Foi lá que, entre 2005 e 2006, Acid Betty nasceu. Seu nome faz referência à conhecida pin-up dos anos 1950, Betty Page, e à droga LSD, conhecida popularmente como ácido, sendo assim uma indicação da estética adotada por ela - confirmando a teoria de Vencato (2002, p. 2) que afirma que o modo como uma drag queen se denomina contém dicas da performance que ela desempenha. Assim como Milk, Acid se inspirou nos club kids como Lady Bunny e Leigh Bowery para criar o que ela chama de “drag queen híbrida” (RUHREN, 2014, tradução nossa). Ao entrar no workroom no primeiro episódio da oitava temporada de RuPaul’s Drag Race, ela usa um vestido metade roxo, metade azul, peruca volumosa e colorida, calça legging estampada, salto plataforma e uma máscara prateada, que, quando retirada, revela uma maquiagem bastante incomum, feita em tons e cores diversos, com formatos que lembram escamas. Em áudio off, Acid declara que seu estilo drag é “completamente exagerado, é como uma viagem de drogas

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sem as drogas” (KEEPING IT 100!, 2016, 3min), o que se revela uma tarefa árdua e complexa, de acordo com entrevista concedida ao portal online Huffington Post, dois anos antes de seu ingresso no programa. Minha intenção nunca foi a de ser uma drag queen, uma “personificadora” ou ilusionista do feminino. Eu tento expressar conceitos, emoções ou momentos específicos ao invés de aspirar ser uma “mulher inteligível”. Eu sou conhecida por desafiar os limites da arte drag. [...] Eu realizo basicamente tudo que você está vendo. Eu estilizo e faço o design das perucas, maquiagem e figurino, assim como os vídeos que acompanham algumas das minhas performances ao vivo. (RUHREN, 2014, tradução nossa).

Durante a sua passagem por Drag Race, Acid Betty se propõe a constantemente quebrar os limites da performance drag e apresentar algo novo e inédito ao reality show. O primeiro main challenge consiste em criar um look com a temática “dinheiro”, ao que ela responde com um vestido coberto de notas falsas, algumas delas pintadas, peruca metade loira e metade preta altos, calça legging dourada, um cinto cravejado de moedas, salto alto preto e maquiagem dourada espalhada em pedaços por todo o corpo. Ao caminhar pela passarela, Acid declara: “eu faço freaky drag e eu acho que eu sou a melhor. A cena drag não deve ser homogênea e nem todas as queens devem se parecer. Por isso Acid Betty está aqui, pra representar” (KEEPING IT 100!, 2016, 40min). Durante as críticas dos jurados, Michelle Visage afirma: “eu adoro que você é diferente. Cada centímetro do seu corpo foi coberto por um pensamento. Pra mim, isso é drag” (KEEPING IT 100!, 2016, 47min). Carlson Kressley afirma que no ensaio fotográfico - que as participantes realizaram antes da prova de costura - ela parece bem “avant-garde e artística”: “você está me dando Tunnel 1993”, em referência à boate LGBT que foi reduto dos club kids em Nova York. Todos os esforços de Acid Betty em se destacar por sua originalidade partem de um desejo em mudar o que ela considera uma padronização da cena drag nova-iorquina. Ela alega que, quando começou a trabalhar na cidade, os club kids não possuíam expressividade e apenas um tipo de drag normativo fazia sucesso, o que a fez desenvolver um estilo no qual a falta de enchimentos ou peitos falsos - em geral, próteses usadas para criar a ilusão de uma mulher ainda a validassem enquanto drag queen (RUHREN, 2014, tradução nossa). Tal estética a aproximou do movimento tranimal, criado em meio à cena clubber de São Francisco no final dos anos 1990 como forma de resistência à prevalência de um tipo de drag em detrimento das outras.

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Segundo uma de suas fundadoras, a musicista e performer Jer Ber Jones, que também cunhou o termo tranimal38: [...] Muita gente que se montava no nosso meio em São Francisco estava mais interessada em um tipo afetado de drag. Definitivamente eram influenciadas por todas essas figuras tão citadas atualmente: John Waters, Leigh Bowery, Boy George, Cindy Sherman e Grace Jones, ao invés de drag queens que só querem parecer bonitas ou se passar por mulheres. (JONES, 2012, tradução nossa).

Assim, os membros desse grupo investem em montações onde qualquer material serve como uma prótese na criação de uma imagem muitas vezes considerada não-humana - pedaços de papel e plástico, rolhas, ossos, dentre outros. Esta proposta, ao invés de um simples apelo por uma diversidade maior de apetrechos na composição de um personagem drag, consiste principalmente em criar alternativas para que se montar seja um processo menos caro e consumista (JONES, 2012, tradução nossa). Dessa forma, o movimento tranimal se constrói enquanto forma de resistência queer tanto estética quanto concreta às estruturas que sustentam o capital. Apesar das conexões entre Acid Betty e esta cena não serem explícitas, é possível notálas em dois aspectos, sendo o primeiro deles relacionado à luta pela manutenção de uma identidade queer que se contraponha aos constantes esforços de assimilação por parte do capital. Spargo (2006, p. 27) explica que o modelo assimilacionista surgiu por volta dos anos 1970, substituindo uma política de liberação voltada para a transformação do sistema e retratando gays e lésbicas como uma minoria que buscava direitos iguais e proteção legal. [Grupos pelos direitos LGBT] estiveram ativamente envolvidos na promoção de imagens “positivas” dos homossexuais. Isso incluiu críticas a imagens negativas e homofóbicas na mídia, entre elas os estereótipos populares camp dos seriados cômicos de televisão, vistos como depreciativos [queering?] à imagem de pessoas gays e lésbicas. A promoção de imagens e narrativas de auto-valorização, prazer e estilo talvez tenha avançado as perspectivas de grupos ou indivíduos cuja imagem positiva adaptava-se à cultura dominante heterossexual. (SPARGO, 2006, p. 28).

É plausível afirmar, baseado nas reflexões previamente realizadas, que a política assimilacionista continua, se estendendo inclusive às drag queens, e representada na busca de RuPaul’s Drag Race por alguém que contenha a estética ideal e as características performáticas necessárias para a encenação do papel de “celebridade drag”, ou seja, drag comercial. Não surpreende, então, que antes de entrar no programa, Acid o condenava de forma veemente,

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O vocábulo vem da junção das palavras “transvestite”, que em português significa travesti, e “animal”.

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dizendo que ele era uma das razões pelas quais a vida noturna de Nova York estava perdendo sua identidade queer (RUHREN, 2014, tradução nossa). Entretanto, seria superficial afirmar que Acid agiu de forma contraditória ao decidir ingressar em Drag Race. Ao ser eliminada no quinto episódio da temporada, ela declarou: Existe uma subcultura de freaks no mundo drag que não são representados de fato, então achei importante que um artista bizarro e estranho possa ser aceito como artista drag de verdade e levado a sério. E eu achei importante que eles também são alguém e podem fazer coisas que mudam o mundo. (UNTUCKED – SUPERMODEL SNATCH GAME, 2016, 18min).

A outra ligação entre Acid e as drags tranimal reside na busca por uma imagem que ultrapassa os limites do humano. No quarto episódio da temporada, cuja passarela tinha como tema as cores neon, ela investiu em um dos figurinos mais icônicos daquela edição: além do vestido em tons degradê de rosa e cinza, Acid tinha os braços, o colo e o rosto cobertos de maquiagem verde, bem como unhas postiças avantajadas, uma peruca rosada com detalhes em amarelo e próteses na região das sobrancelhas, das bochechas e das orelhas que lembravam barbatanas e guelras de um peixe ou anfíbio. O figurino é bastante elogiado pelos jurados, especialmente pelo músico Chris Stein, convidado do episódio, que o chama de “fantástico e épico” (NEW WAVE QUEENS, 2016, 30min). Ao se posicionar como “drag queen híbrida” e executar uma montação que funde elementos animalescos artificiais ao seu corpo humano, Acid Betty acende discussões em torno do conceito de pós-humano ou ciborgue que, segundo Donna Haraway (2009, p. 36) seria um “híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção”. Ora, uma vez que o que se determina como “máquina” pode ser interpretado como qualquer composto artificial, não só a drag queen mas qualquer pessoa que tenha passado por uma intervenção de algum composto construído pelo homem – de um medicamento a uma prótese biônica – seria um ciborgue. No final do século XX, neste nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras, híbridos – teóricos e fabricados – de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues. O ciborgue é nossa ontologia; ele determina nossa política. O ciborgue é uma imagem condensada tanto da imaginação quanto da realidade material: esses dois centros, conjugados, estruturam qualquer possibilidade de transformação histórica. (HARAWAY, 2009, p. 37).

Haraway sugere que as conexões entre a tecnologia e a biologia tomaram tais proporções que seria impossível dissociar esses dois meios, e é precisamente nesse ponto onde se faz possível realizar uma ponte em direção aos estudos de gênero. A autora dialoga com a teoria

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queer e as ideias de performatividade ao apontar para uma realidade na qual a noção de natureza é abalada pela totalidade do ciborgue, da mesma forma que os supostos dados naturais que compõem o gênero de um indivíduo são, na verdade, parte dos artifícios que o constituem. De acordo com Tomaz Tadeu (2009, p. 11): Uma das características mais notáveis desta nossa era (chamem-na pelo nome que quiserem: a mim, “pós-moderna” não me desagrada) é precisamente a indecente interpenetração, o promíscuo acoplamento, a desavergonhada conjunção entre o humano e a máquina. Em um nível mais abstrato, em um nível “mais alto”, essa promiscuidade generalizada traduz-se em uma inextrincável confusão entre ciência e política, entre tecnologia e sociedade, entre natureza e cultura. Não existe nada mais que seja simplesmente “puro” em qualquer dos lados da linha de “divisão”: a ciência, a tecnologia, a natureza puras; o puramente social, o puramente político, o puramente cultural. Total e inevitável embaraço.

Se uma drag queen tradicional é capaz de explicitar as imposições culturais por trás da ideia de mulher, uma drag que cria um personagem simultaneamente animal e humano leva essa discussão a um outro nível. A questão não mais se restringe ao âmbito do gênero, das identidades e do idealismo: agora, até mesmo a materialidade e o corpo do ser humano enquanto ser natural é posta em xeque. Uma vez que o sintético está fisicamente consubstanciado ao biológico de tal forma que seria impossível desagrega-los, então rendem-se aí os argumentos de idealizam o homem como indissociável, uno e inquebrantável. Visto que na nossa própria carne, o que teoricamente nos há de mais objetivo, não se diferencia mais o natural e o artificial, nas nossas subjetividades, feitas de compostos muito mais etéreos, não seria diferente. Assim, o que resta a esse indivíduo pós-humano? Tomás Tadeu (2009, p. 14) esboça um caminho: O ciborgue nos força a pensar não em termos de “sujeitos”, de mônadas, de átomos ou indivíduos, mas em termos de fluxos e intensidades, tal como sugerido, aliás, por uma “ontologia” deleuziana. O mundo não seria constituído, então, de unidades (“sujeitos”), de onde partiriam as ações sobre outras unidades, mas, inversamente, de correntes e circuitos que encontram aquelas unidades em sua passagem. Primários são os fluxos e as intensidades, relativamente aos quais os indivíduos e os sujeitos são secundários, subsidiários.

Portanto, através de uma prática que, segundo Spargo (2006, p. 56-57), se vale do camp para “agir como uma subversão queer de normas respeitáveis de identidades e modos de ser tanto heterossexuais quanto gays e lésbicos”, Acid Betty elevou a arte drag a um patamar inédito em RuPaul’s Drag Race. Sua passagem é uma personificação do queer enquanto categoria “mais sensual, mais transgressora, uma demonstração deliberada de diferença que não quer ser

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assimilada ou tolerada” (SPARGO, 2006, p. 35), e se traduz em uma potência que age enquanto contrapartida e resistência às forças voltadas para a padronização da arte drag. Além disso, com montações criativas que ultrapassam não só as barreiras de gênero mas também do ser humano, Acid desestabiliza as diversas noções baseadas em uma suposta naturalidade do homem ao questionar a própria natureza humana. Sua performance de ciborguedrag-híbrido parece distante dos aspectos normativos, porém uma breve análise mostra que todos os dedos estão apontados para nós. Somos todos ciborgues e, diferentemente da ideia de pureza, eternidade e imanência que nos circunda, estamos irremediavelmente misturados, efêmeros e fragmentados. E, se não somos mais sujeitos interligados, mas sim as conexões entre essas unidades – se é que ainda podemos falar em algo “uno” – para onde esse fluxo nos levará? Parece cabível evocar a figura do “viajante pós-moderno” citada por Louro (2013, p. 22), para quem “a transição, o processo, o percurso podem se constituir, no fim das contas, em sua experiência mais vital ou mais ‘autêntica’”. Não há destino, apenas a viagem.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: Dublando por minha vida Falar sobre drag queens sob a ótica da teoria queer é lidar constantemente com o fugaz, o etéreo e o que não se enquadra. É também um exercício de resistência à tentação de normatizar conceitos e criar delimitações que facilitam os percalços da pesquisa, mas que traem a verdadeira essência deste peculiar objeto: não ter essência definida. Assim, essa habitante de entremeios, quando submetida aos regulamentos da academia, se revela um objeto de análise por vezes difícil de lidar. Deve ser mencionada no masculino ou no feminino? Durante as entrevistas, quem fala é a persona drag ou o sujeito “real”? Eles são de fato distintos? Enfrentei todos estes questionamentos ao longo das minhas investigações sem muita surpresa, consciente de que o objeto de estudo com o qual eu lidava propõe não só a quebra da formalidade científica, mas anteriormente uma ressignificação das relações de poder dentro da própria linguagem. Nossa língua, estruturada em uma polarização entre masculino e feminino, obedece a uma lógica de gênero binária atrelada à docilização dos corpos e, consequentemente, à manutenção das estruturas que sustentam o capital. Ainda, ela é a responsável pela geração de uma “ficção linguística do sexo” (BUTLER, 2012, p. 50), ou seja, “uma categoria produzida e disseminada pelo sistema da heterossexualidade compulsória, num esforço para restringir a produção de identidades em conformidade com o eixo do desejo heterossexual”. A desconstrução dos princípios heteronormativos, dessa forma, pressupõe o empreendimento de “uma mudança epistemológica que efetivamente rompa com a lógica binária e com seus efeitos: a hierarquia, a classificação, a dominação e a exclusão” (LOURO, 2013, p. 46-47). No contexto acadêmico, esse seria o primeiro passo para a composição de uma pedagogia queer. Uma pedagogia e um currículo queer estariam voltados para o processo de produção das diferenças e trabalhariam, centralmente, com a instabilidade e a precariedade de todas as identidades. Ao colocarem em discussão as formas como o “outro” é constituído, levariam a questionar as estreitas relações do eu com o outro. A diferença deixaria de estar lá fora, do outro lado, alheia ao sujeito, e seria compreendida como indispensável para a existência do próprio sujeito: ela estaria dentro, integrando e constituindo o eu. A diferença deixaria de estar ausente para estar presente: fazendo sentido, assombrando e desestabilizando o sujeito. (LOURO, 2013, p. 49-50, grifo da autora).

Essa seria, talvez, a principal utopia lançada pelas drag queens que, no contexto das identidades fluidas da pós-modernidade, ajudam a repensar, através de suas performances, o que é ser homem ou mulher. O advento da chamada Geração Z, a partir da virada do milênio,

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fomentou essa discussão com questionamentos que desestabilizaram o modelo binário de gênero e criou um terreno fértil para o surgimento do reality show RuPaul’s Drag Race. Por meio de uma estrutura que transforma a drag, outrora restrita ao underground LGBT, em uma celebridade pop, Drag Race se consolidou como um produto de entretenimento pop rentável e de sucesso. A narrativa desenvolvida pelo programa, além de criar uma imagem comercializável da drag queen, constrói um elo entre ela e o espectador ao humanizá-la, retratando as alegrias e dores que existem por trás da maquiagem. Assim, o show se coloca na vanguarda de um movimento revitalizante da cena drag, que não só se popularizou, mas adquiriu novos contornos. O ato de se montar deixa de estar restrito a uma atuação profissional e torna-se uma práxis política de insubordinação dos corpos às normas vigentes. A montação expressa uma insatisfação acerca das imposições do gênero e da identidade enquanto atributos inflexíveis. Embora perpetuasse noções problemáticas que normatizavam o saber/fazer drag, RuPaul’s Drag Race ainda permitiu a presença de encenações de gênero diversas. A apresentadora do programa, a veterana RuPaul, incorporava o artifício, o exagero e o deboche do camp não só nas suas performances, mas principalmente no seu modo de vida, o que lhe rendeu algumas polêmicas no campo do “politicamente correto”. Enquanto isso, Courtney Act, através de um ilusionismo que visava à mimese de uma mulher “real”, provocou indagações acerca do que seria um gênero inteligível e desencadeou conflitos com as participantes que não a consideravam suficientemente drag. Além disso, conhecemos Milk e sua capacidade de causar fascínio e incômodo por meio de uma montação que mistura os signos atribuídos ao masculino e ao feminino em um só corpo, subvertendo visualmente a relação sexo-gênero-performatividade. E, em termos de hibridismo, seria impossível não mencionar Acid Betty, uma drag queen que se vale das tecnologias de gênero para mostrar que a ideia do homem enquanto produto da natureza tornou-se obsoleta: somos pós-humanos-ciborgues irremediavelmente fundidos aos nossos próprios artifícios. Baseei minhas análises não só considerando aspectos restritos ao programa, mas traçando investigações acerca de outras produções discursivas e culturais relativas às personagens abordadas. Considero então que cada uma dessas performances, à sua maneira, promove a quebra das oposições binárias que estruturam o mundo como conhecemos: masculino e feminino, natural e artificial, real e imaginário. Seus questionamentos encontram eco em meio a uma nova geração de pessoas que não mais se identificam por meio dessas polarizações e vislumbram realidades mais difusas e diluídas, onde preto e branco se misturam em tons de cinza.

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Por se tratar de uma temática em voga na sociedade atual, acredito na força deste trabalho enquanto uma ferramenta que facilita a compreensão dos agentes sociais contemporâneos e suas inquietações. Entretanto, não pretendo fazer deste momento um ponto final, pois creio que outras pesquisas semelhantes abrirão espaço em uma academia ainda permeada por um certo moralismo e que fecha os olhos diante de questões cujo debate se faz premente. Além disso, como afirma Luhmann (2000, p. 151, apud LOURO, 2013, p. 53), “em vez de colocar o conhecimento (certo) como resposta ou solução, a teoria e a pedagogia queer [...] colocam o conhecimento como uma questão interminável”. Compartilhei do mesmo sentimento ao estudar drag queens, seres que não se arrogam no direito de encerrar qualquer “verdade incontestável”, pelo contrário, fazem da ficção e da fantasia o objetivo a ser alcançado. Assim, afirmo que a certeza definitiva acerca das questões de gênero é uma incongruência com o espírito queer: a compreensão dessa matéria pressupõe o ato de transitar junto a esses viajantes pós-modernos, em uma jornada em que muitos outros provocadores inquietos também embarcarão. “Posso ouvir um amém?”

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