Natureza, poíesis e rito em Michelangelo Frammartino

October 2, 2017 | Autor: Juliana Alvarenga | Categoria: Giorgio Agamben, Audiovisual Translation, Arthur Danto, Michelangelo Frammartino, Poìesis
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Natureza, poìesis e rito em Michelangelo Frammartino

Juliana Alvarenga Freitas

Palavras chave: natureza, poìesis, rito, arte contemporânea, Michelangelo
Frammartino

Resumo:

Os conceitos do filósofo italiano Giorgio Agamben de prâxis e poìesis
revelam a coexistência e interdependência destas duas noções opostas. Na
vida contemporânea, onde a prâxis nos é exigida como sintoma de produção
relevante, a poìesis se mostra necessária, como um processo de conhecimento
e abertura, como nos diz Agamben. A poìesis requer um espaço para a
reflexão, e para abrir este espaço, estruturas metodológicas como ritos e
mitos podem ser usadas, como acontece na obra do artista italiano
Michelangelo Frammartino. Sua instalação audiovisual Alberi (árvores em
italiano) nos apresenta uma dimensão poética que documenta um ritual na
Calábria, sul da Itália, baseado em um mito no qual o homem se funde a
terra. Neste trabalho, fazemos uma interpretação da obra Alberi a partir da
noção de poìesis e do discurso do próprio artista. Esta abordagem se
aproxima com o que filósofo esteta americano Arthur Danto diz — que as
interpretações são descobertas e constituem a obra de arte e que o uso do
discurso do artista confirma suas intenções em seus trabalhos. Frammartino
relata que está interessado no rito e ressalta a importância de filmar o
invisível. Alberi aponta para a atual necessidade de reinserção da natureza
na cultura, da dimensão poética dos ritos, da coexistência e
interdependência do homem e da terra.

Alberi (árvores) é uma instalação audiovisual do artista italiano
Michelangelo Frammartino que nos apresenta uma dimensão poética de um
ritual na Calábria. Homens vestidos de árvores caminham pela paisagem e
chegam a uma pequena vila onde um grupo de pessoas arrancam-lhes algumas
folhas. Em festa na praça da cidade, as mulheres passam por um corredor de
homens árvores enfileirados.

Alberi (2013) tem 28 minutos de duração, e segundo o autor, não tem fim nem
começo, "é o espectador que dirige e controla o começo e decide o qual é a
versão final". (Frammartino) [1]. Frammartino relembra que sua primeira
experiência com o cinema foi na forma de loop, entrando e saindo do cinema,
sem necessariamente começar a assitir o filme do seu início e saindo
independente do momento do seu final. As impressões de infância do autor,
vivida entre a Calábria e Milão, constituem e determinam o caminho da sua
pesquisa. O discurso do artista sobre a obra é determinante para sua
interpretação, como afirma o filósofo esteta americano Arthur Danto. Alberi
trata de uma interpretação de um mito. Danto afirma que "interpretações são
descobertas, interpretações constituem a obra de arte" (Danto, 2014, p.59)
e segundo esta perspectiva, o próprio processo de construção de Alberi
também constitui uma obra de arte.


Fig. 01 Frame de Alberi, Michelangelo Frammartino, 2013. Um homem árvore
caminha pela floresta.



O mito de Romito, culto de fertilidade da idade média, era representado por
um grupo de homens na pequena cidade italiana de Satriano. Eles saíam com o
corpo coberto de folhas de Hera, segurando um bastão com ramos de plantas,
batendo nas portas das casas da vila pedindo donativos. Há muitas gerações
o ritual era esquecido. Frammartino viu uma imagem de um homem árvore e se
encantou com a beleza. O artista perguntou à população sobre o homem
árvore. Já não havia mais a tradição oral do mito, no entanto, as pessoas
se mostraram agradecidas pelo interesse do artista no antigo rito da vila.
Frammartino resolveu recriar o Romito junto com a população.

Quando a audiência pode participar ativamente da
construção de sua experiência visual, a conexão entre a
imagem e o espectador se torna mais forte. Para isso, a
pessoa precisa da liberdade para interpretar e entrar na
imagem à vontade, e então, quando eu comecei a trabalhar
em Alberi, eu comecei a procurar caminhos para fazer as
imagens se tornarem interativas — tentativas de criar uma
experiência participativa que resulte em liberdade de
audiência […] eu estava livre para inventar com eles,
porque nós estávamos trabalhando juntos [...]
(Frammartino, s.d.) [2]






Fig. 02 Frame de Alberi, Michelangelo Frammartino, 2013. Um grupo de homens
árvores caminha na floresta.

O mito do homem árvore chamado Romito fala daquele que rejeitou a ideia de
migração e plantou raízes em sua própria terra. Frammartino afirma que o
caráter do Romito ainda continua conectado com a identidade cultural da
região, toda cercada de árvores, cujo nome, Lucania, vem de uma árvore
sagrada. Apesar do ritual não existir, o povoado parece fundido à
vegetação. Frammartino decide reinventar o Romito não em caráter
individual, mas como land art, como um grupo de Romitos, como toda uma
floresta que caminha. Sobre esta reinvenção, ou nos termo de Danto,
interpretação, o artista declara que filmando o ritual altera-se também
toda uma realidade.

A produção da ficção deu vida a uma nova realidade, e
assim há uma estranha conexão entre nosso trabalho e a
tradição antiga. Eu vesti cerca de 100 pessoas como
árvores para realizar o ritual; eles decidiram fazer uma
procissão através da floresta ao redor, culminando na
praça da vila, que foi literalmente transformada em uma
floresta. (Frammartino, s.d.) [3]


Agamben chama de espírito fantástico, algo entre as partes opostas que nos
revela o conhecimento potencial. Espírito fantástico é um "intermediário
entre o racional e o irracional, entre o corpóreo e o incorpóreo, do qual
se serve a divindade para comunicar-se com o que está afastado dela"
(AGAMBEN, apud CASTRO, 2012, p. 37), a conexão entre a natureza e o homem,
que em Alberi tem a forma de ritual.

Alberi é uma obra que tem uma evidente ideia central - a fusão do homem com
a vegetação como uma necessidade de reinserção da cultura na natureza. Esta
fusão homem vegetação revela uma tensão constituída por estas polaridades
distintas, que precisam se relacionar para alcançarem suas próprias forças.
Frammartino tem uma visão holística, onde a potência surge da tensão do
duplo oriundo do todo que foi dividido.

Na tradição antiga e pagã existe esta divisão. Os homens
fazem suas coisas e as mulheres ficam esperando e preparam
a comida. O que eu gosto nessa situação é que as mulheres
são os humanos, e estão esperando pela vegetação. Existe
um casamento entre os humanos e a vegetação. Essa foi para
mim a ideia. (Frammartino, s.d.) [4]


Frammartino declara que o que lhe interessa é o rito. A dualidade é
intensificada no rito, onde o real e o mágico se colocam igualmente
presentes em uma relação de coexistência e interdependência, onde tanto o
mágico potencializa o real, como o real potencializa o mágico.

Se você entra durante a escuridão, você vê tudo, vê que é
um ritual, mas se você entra quando estamos na floresta e
vê as criaturas, é mais magico, porque de alguma forma
você pensa que são criaturas da fantasia que entram na
vila. Então, quando você vem na escuridão, a floresta é
uma floresta real, não mágica. O que eu gosto na escuridão
é que você está conectado de uma maneira muito forte e eu
sempre trabalho com conexão. Nos meus filmes muitas vezes
existem momentos de escuridão, porque então você está
conectado com outras pessoas (Frammartino, s.d. ) [5]


Podemos pensar a coexistência e interdependência das polaridades a partir
das noções de prâxis e poíesis do filósofo italiano Giorgio Agamben. Para o
filósofo, a poíesis é fundamental para existência da potência, entendida
como desvelamento de um conhecimento. Atualmente, talvez seja comumente
aceite as ideias de que nem o homem e nem a sua cultura controlem os
processos naturais. A objetividade conjuntamente com a subjetividade são
necessárias para acessar o conhecimento, já que tudo que é dito sobre o
objeto parte do sujeito. O pensamento racionalista dos séculos XVI e XVII,
próprio da modernidade e da revolução industrial, pode ser pensado na
perspectiva da redução da poíesis à prâxis [6], e na passagem do pensamento
holístico e sistêmico para o mecanicismo especialista. Este pensamento
mecanicista, que procurava entender como funcionava o mundo permitindo
assim dominá-lo, hoje parece insuficiente para abordar as questões da
contemporaneidade.

O estatuto da poíesis em Alberi é o processo guia do seu desenvolvimento,
que, em harmonia tênue com seu oposto, a prâxis, governa ela mesma as
próprias leis da prática artística de Frammartino. Em Alberi, não se trata
de um resgate de um mito, mas de uma recriação de um mito e de sua poética.
As analogias poéticas são estruturas metodológicas de grande abertura que
podem recorrer desde elementos mágicos, míticos e animistas para
potencializar a dissolução entre artista - obra, e obra – espectador.
Poíesis, para Agamben, reside na "produção da verdade e na abertura, que
resulta dela" (Agamben, 2012, p. 122), e é desta maneira que Alberi se
torna potente. A noção de potência está relacionada com o devir, que para
Agamben, pode-se encontrar na raiz da poìesis: "[...] estava no interior da
poíesis a pro-dução na presença, isto é, o fato de que, nela, algo viesse
do não ser ao ser, da ocultação à plena luz da obra [...]", ou seja, a
poìesis como "um modo de verdade, entendida como desvelamento." (Agamben,
2012, p. 123)
Nesta reinvenção do mito de Romito não é relevante a busca de uma pesquisa
convencional de ritos e mitos. O Romito de Alberi não nasce de resgates
relativos à descrição histórica, ou busca de tradição oral, e sim de uma
interpretação de Romito. Danto nos apresenta o conceito de interpretação
como dualidades, que análoga à noção de prâxis/poíesis de Agamben, guarda
uma relação de coexistência e interdependência dinâmica. O filósofo discute
a noção de interpretação de superfície e interpretação profunda, e mostra
como a interpretação profunda depende da interpretação de superfície. A
interpretação de superfície tem caráter descritivo, se refere a aspectos
históricos e considerações meramente formais. Ao efetuar a interpretação de
superfície, começa também a interpretação profunda, que depende desta
anterior. Por outro lado, "a prática de superfície não sobreviveria se as
razões profundas para ela fossem conhecidas: ela não existiria se não fosse
oculta." (Danto, 2014, p.91). Danto no diz que, "na verdade, o que a
interpretação profunda supõe é um tipo de compreensão do complexo que
consiste em representações juntamente com a conduta que elas, no nível da
superfície, nos permite compreender." (Danto, 2014, p.88). Nesta
perspectiva, deve-se subtrair o significado da interpretação. O autor
compara a arte com a filosofia, que não responde perguntas, mas coloca
outras questões, amplia as discussões, abre para outras perspectivas. "A
interpretação profunda, finalmente, admite certa sobre determinação – a
obra pode significar muitas coisas diferentes sob a interpretação profunda,
sem ser nem um pouco indeterminada sob a interpretação de superfície."
(Danto, 2014, p.101)

A coexistência e interdependência da relação de dualidade é a
característica essencial que faz com que essa se afirme como dinâmica e
potente. As ligações entre prâxis/ poíesis, interpretação de superfície/
interpretação profunda, assim como a interligação entre a biografia do
artista e seu discurso ou o próprio trabalho, define a experiência e a
subjetividade como guia do processo criativo. Como nos diz Danto, o
discurso do artista é o mais próximo da interpretação, interpretação está
que é indissociável da obra de arte e que a constitui. De maneira análoga a
estas relações de dualidade, podemos pensar também a relação homem/
natureza.

As dualidades aqui consideradas são parte de um sistema dinâmico cuja
expressão é a potência. Danto nos diz que a obra "deve consistir
parcialmente em sentir as tensões filosóficas que elas devem ocasionar"
(Danto, 2014, p.67). Podemos pensar que a natureza da obra de arte é "uma
ocasião para a invenção crítica que não conhece limites." (Danto, 2014,
p.102).

Alberi aponta para uma reconexão do homem com o kosmos[7]. A obra pode ser
interpretada como um processo de incorporação do todo no individual, de
toda a floresta de homens árvores em cada um dos Romitos, a conexão de cada
um com seu entorno. Para que esta conexão aconteça, é necessária a inclusão
do mágico e do rito para que se crie um espaço para a reflexão. Essa
condição poética e estrutural do rito em Alberi permite soluções geradas
através dos processos de transformação de que nos relata Frammartino. Os
homens árvores transformam sua própria natureza ao transformar a natureza
ao redor com o rito da floresta que caminha. Ao imprimir a si próprios
homens árvores outro ritmo, o ritmo do rito, eles se conectam com outras
realidades, que mesmo ligadas ao mágico, de alguma maneira se tornam
evidentemente reais. A palavra ritmo vem do grego rythmós que, entre
outros, têm os significados de: "1. movimento regrado e medido; ritmo;
tempo; cadência [...] 3. maneira de ser; condição (de homem); natureza;
temperamento, 4. figura; disposição; forma" (Almeida Prado, 2010, p. 189,
vol.4). Podemos dizer que o ritmo é a natureza do rito em Alberi, natureza
esta que inclui também o homem e sua cultura.

Cada vez que revisitamos a possibilidade de uma arte mágica ou mitológica,
agregamos outras reflexões importantes e necessárias para que possamos,
espectadores e criadores da obra, acessar o conhecimento latente presente
nas obras, nos artistas e também nos espectadores. Seria necessidade
contemporânea a reintegração da cultura com a natureza se pensarmos que o
mito pressupõe um espaço para devoção vinculado a uma poìesis que abre para
novas perspectivas. É fundamental para o acesso ao conhecimento escolhas de
soluções para além das já dadas anteriormente. Adotar uma premissa mágica
ou mítica é criar de início situações controversas que não aceitam soluções
dadas a priori. E a adoção do rito em Alberi nos apresenta uma natureza
humana que ao se travestir de árvore se conecta de uma forma nova com seu
próprio entorno.




Referencias bibliográficas

Agamben, Giorgio. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2012.

Almeida Prado, Ana Lia Amaral de. Dicionário Grego-Português. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2006-2010.

Castro, Edgardo. Introdução a Giorgio Agamben, uma arqueologia da potência.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

Danto, Arthur. O descredenciamento filosófico da arte. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2014.

Frammartino, Michelangelo. Forest of ideas: Michelangelo Frammartino talks
about his installation Alberi (entrevistado por Anne-Katrin Titze, s.d.)
Disponível em: http://www.eyeforfilm.co.uk/feature/2013-05-03-michelangelo-
frammartino-conversation-on-cinematic-installation-alberi-feature-story-by-
anne-katrin-titze

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[1] "It is the viewer that drives and controls the beginning and decides
what is the final cut." (Frammartino, s.d.)
[2] "When the audience can actively participate in constructing their
visual experience, the connection between the image and the viewer becomes
stronger. For this, one needs the freedom to interpret and enter the image
at will, and so when I started working on Alberi, I began looking for ways
to make images interactive — attempts to create participatory experience
that result in freedom of viewership. […] I was free to invent with them,
because we were working together" (Frammartino, s.d.)
[3] "Making fiction gave life to a new reality, and so there is a strange
connection between our work and that ancient tradition. I dressed nearly
one hundred people like trees to perform the ritual; they enacted a
procession through the surrounding forest, culminating at the village
square, which was literally turned into a forest." Frammartino, s.d.)
[4] "In pagan and old tradition there is this division. The men do their
thing and the women are waiting and prepare the food. What I like about
this situation is, the women are human and are waiting for the vegetation.
There is marriage between humans and vegetation. This was for me the idea."
(Frammartino, s.d.)

[5] "If you enter during the darkness, you see everything, that it's a
ritual but if you enter when we are in the forest and see the creatures
it's more magic, because in someway you think that they are fantasy
creatures and they enter a village. So when you come in the darkness, the
forest is a real forest, not magic. What I like in the darkness is that you
are connected in a very strong way and I'm always working on connection. So
in my movies many times there are darkness moments because you are
connected with other people." (Frammartino, s.d.)

[6] Quando se translitera (muda para o alfabeto latino termos em alfabeto
grego), não é obrigatório o uso de acentos, é um critério adotado por cada
autor. Porque pesquiso prâxis e poíesis no autor italiano Giorgio Agamben
que adota os acentos, para padronização do texto, opto também pelo uso dos
acentos, referidos também no dicionário grego: prâxis (Almeida Prado, 2010,
p.119, Vol. 4) e poíesis (Almeida Prado, 2010, p. 101, Vol. 4).
[7] Do grego kósmos, têm, entre outros, os significados de: "3. Boa ordem;
disciplina; regra; medida 5. Ordem do universo; cosmo; mundo; universo"
(Almeida Prado, p. 88, vol.2).
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