Necessidade e Historicidade: razões de conveniência na teologia de Santo Anselmo

August 11, 2017 | Autor: Maria Leonor Xavier | Categoria: Philosophy, Medieval Philosophy, Anselm (Philosophy), Anselm of Canterbury, St. Anselm
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Itinerarium, 38 (Braga, 1991), nº141, pp.353-367.

NECESSIDADE E HISTORICIDADE RAZÕES DE CONVENIÊNCIA NA TEOLOGIA DE SANTO ANSELMO Maria Leonor L. O. Xavier Evidenciar a influência que a tradição do cristianismo exerceu na génese do valor da historicidade e, em especial, da historicidade da filosofia, é o objectivo de fundo desta exposição. Para esse efeito, destacaremos, em primeiro lugar, aqueles temas da mundividência e teovidência cristãs, de que a filosofia se apropriou, e que foram decisivos para a transformação da ideia de tempo e para a consequente emergência do histórico como atributo essencial do mundo, do homem e da razão. A partir deste horizonte, debruçar-nos-emos sobre o caso de Sto. Anselmo, paradigmático a muitos respeitos, mas, também, significativamente ilustrativo acerca da condição histórica da razão na própria teologia. Tomaremos, como ponto de referência, o texto fundamental da cristologia anselmiana — Cur Deus Homo — no qual o autor aplica a razão ao problema do sentido da Encarnação. Apesar de Anselmo, explicitamente, tratar da questão da necessidade da Encarnação, julgamos poder traduzi-la, na nossa linguagem, como um problema de sentido, não apenas pela dominância das problemáticas do sentido que o nosso tempo manifesta como resultante do processo de relativização da verdade, de relativização histórica inclusive, mas, também, já pela relatividade das razões em que o próprio autor pré-escolástico funda a noção possível de necessidade no âmbito da teologia. Necessidade essa, que não gera necessitarismo, sobretudo, porque não se opõe, antes supõe a condição da historicidade como inerente, ainda que não tematizada, à razão finita aplicada ao domínio excessivo de Deus. Entretanto, se o nosso objectivo específico é evidenciar a historicidade da razão teológica em Sto. Anselmo, e, desse modo, também a historicidade da razão filosófica, dado que ambas as razões não se distinguem substancialmente segundo o mesmo autor, a obra que escolhemos, como texto interpelativo, é, ademais, pertinente para o nosso propósito, pelo próprio tema teológico que elabora, uma vez que, através da Encarnação, o cristianismo introduz uma relação muito especial de Deus com a história. 1. O cristianismo e o valor da historicidade Na realidade, quer o tema da Encarnação quer mesmo o da Criação alteraram decisivamente a categoria antiga do tempo, e, desse modo, constituíram condições de possibilidade para a génese da categoria da historicidade, tal como ela foi assumida pela cultura ocidental. Criação e Encarnação representam, do ponto de vista metafísico, grandes descontinuidades nas ordens respectivamente do ser e do devir, e, consequentemente, tornam-se factores de descontinuidade para a concepção de todos os casos específicos de realidade constituída. 1

Itinerarium, 38 (Braga, 1991), nº141, pp.353-367. Por um lado, a Criação é grande descontinuidade na ordem do ser, enquanto significa a desdivinização do mundo e a deslocação do sentido do divino ou do absoluto para um ser substancialmente outro. Assim sendo, a Criação converte-se, por ela mesma, em factor de descontinuidades, tal como a que permite estabelecer entre tempo e eternidade, de acordo com a referida diferença no ser. O tempo adquire então um primeiro começo concomitante daquele em que se institui a contingência radical do mundo. Se progredirmos no processo de determinação do ser criado até ao homem, verificamos como aí se multiplicam as consequências da tese da Criação, gerando as descontinuidades que são a própria individualidade e, com ela, a possibilidade de todas as autonomias da vontade e da razão. Se a autonomia da vontade foi tematizada, através da noção de livre arbítrio, desde a patrística e sob o estímulo das controvérsias, sobretudo, antimaniqueísta (acentuando a autonomia em função do problema do mal) e antipelagiana (relativizando-a em função do problema da salvação), a autonomia da razão foi, igualmente, pressentida desde cedo, acolhendo, com Sto. Agostinho, o sentido da singularidade, mas só atingindo o foro da controvérsia na escolástica, através da questão da unidade do intelecto, associada à questão da individuação. Ora, com a positividade do indivíduo e a possibilidade de todas as autonomias do homem, estão criadas algumas das principais condições de valorização das descontinuidades da história e de irredutibilidade do fim da história ao princípio da Criação, uma vez que a criação do homem o constituiu como segundo factor de descontinuidades ou gerador de diferenças, capaz de cooperar com a obra primordial, através das diversas formas que souber imprimir ao seu devir. Infelizmente, o sentido da liberdade humana não colheu as suas principais conotações no modelo da Criação, como gesto arquetípico da liberdade divina, devido à solicitude dominante dos problemas do mal e da salvação. No entanto, a resposta cristã a este último problema não será, também, alheia ao espírito da tese da Criação: se esta é uma génese positiva do ser outro que não Deus, essa alteridade não deve estar destinada a voltar ao nada. Portanto, o fim correlativo da Criação deverá ser uma restauração, não uma anulação. Tal é o que se configura na escatologia da ressurreição, que, respondendo ao problema da salvação, não anula tudo o que fora objecto de criação. Todavia, o mundo do fim dos tempos não será já qualitativamente o mesmo que o mundo da Criação, o homem restaurado da Cidade de Deus não é já o homem originário do paraíso. Esta nova diferença é determinada pela grande descontinuidade histórica que o tema teológico da Encarnação introduz no sentido do devir humano, concedendo-lhe e caso exemplar do homem renovado1. As consequências antropológicas da Criação e da Encarnação revelam assim que o histórico co-determina o homem, a salvação e o mundo: o homem, pelo que a história é susceptível de acrescentar à sua natureza; a salvação, enquanto não é apenas processo individual, mas, também, percurso universal na direcção do espírito; e o mundo, como partícipe da história da queda e salvação do homem. A condição da historicidade emerge, deste modo, vinculada ao antropocentrismo da mundividência cristã. 1

Sto. AGOSTINHO, De Ciuitate Dei XVIII, 11 (texto da ed. beneditina reprod. em Biblioteca de Autores Cristianos (B.A.C.), 3° ed., n.° 172, Madrid, 1978, p. 429). 2

Itinerarium, 38 (Braga, 1991), nº141, pp.353-367. Não obstante, os temas da Criação e da Encarnação reflectem-se igualmente sobre as categorias do tempo e da razão: o tempo relativiza-se, diferencia-se e torna-se irreversível, de modo a fundar o valor do histórico; a razão diferencia-se, relativiza-se e autonomiza-se, de modo a requerer a condição histórica para a sua realização. Referimos já as principais repercussões da Criação na acepção do tempo: a aquisição de um primeiro começo juntamente com o estatuto de criatura; a descontinuidade entre tempo e eternidade análoga à descontinuidade entre criatura e Criador ou entre relativo e absoluto na ordem do ser. Estes dados foram preparados pela tradição patrística tornando-se explícitos em Sto. Agostinho, que, desta forma, resolveu as hesitações dos seus predecessores quanto à concepção da Criação como princípio temporal ou como começo eterno, devido à objecção da ociosidade anterior de Deus e da mutabilidade da Sua vontade, típica das antigas controvérsias sobre a Criação. Mas, se as aquisições agostinianas realçam como a Criação foi decisiva para a relativização do tempo, o mesmo não se passa para a constituição do sentido de irreversibilidade, inerente ao modo como assumimos o histórico. Na verdade, entre as fronteiras últimas do tempo, múltiplas reversibilidades permanecem possíveis. Para quebrar o fatalismo do eterno retorno, mais do que a Criação, foi determinante o tema teológico da Encarnação. Se a Criação pode ser entendida como grande descontinuidade ontológica, a Encarnação pode ser lida como grande descontinuidade histórica, sobretudo, por conter o evento histórico que torna irreversível a história. Com efeito, a eficácia salvífica da Encarnação constituiu o argumento decisivo2 contra a reversibilidade dos tempos. Esta é, porventura, a consequência mais relevante do próprio cristianismo para a alteração da categoria antiga do tempo e para a génese do valor da história, como factor positivo de descontinuidades no destino do homem. Se a Criação, mediante a relativização do tempo ao mundo criado, permite a diferenciação dos tempos, inclusivamente, do tempo histórico, a Encarnação acrescenta a irreversibilidade ao tempo histórico, e, dessa forma, possibilita a emergência do valor do novo. Uma das dificuldades de afirmação do cristianismo no contexto cultural antigo foi, tal como se faz sentir na apologética dos primeiros séculos, o facto de aparecer como uma religião nova. Daí todo o esforço desenvolvido, sobretudo, pela patrística grega, para fazer reconhecer a nova religião como a manifestação do Logos originário. Hoje, porém, a novidade deixou de requerer justificação porque se autonomizou como valor. A emergência deste valor do novo é, por sua vez, correlativa de uma consciência diferente do sentido e do valor do antigo: este, se perde o carácter absoluto que faz dele critério de verdade e fonte de todos os renascimentos, ganha também uma irredutibilidade, ou autonomia relativa, análoga à do novo, que convida a revê-lo e a cultivá-lo na sua especificidade própria. Novidade e antiguidade, coexistentes à luz de um ponto de vista que relativiza, entre si, todos os tempos, sem reduzi-los nas suas diferenças específicas; originalidade e mutabilidade, aliadas à ideia de progresso e à importância do futuro na determinação do sentido do devir: todas são valores derivados da acepção do tempo irreversível, que o

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Op. cit. XII, 14. 3

Itinerarium, 38 (Braga, 1991), nº141, pp.353-367. cristianismo promoveu e que é essencial à categoria da historicidade, tal como esta participa, hoje, da nossa consciência do real. Entretanto, assim como o tempo relativizado ao mundo da criação se deixa diferenciar segundo a multiplicidade das coisas, também p apuramento filosófico da categoria da historicidade revela ruma plurivocidade concordante com a diversidade do domínio do histórico. Nesta reflexão, interessa-nos, em particular, a historicidade da razão, que afecta, no âmago, a concepção de filosofia. A historicidade da filosofia é uma tese já multimodamente tematizada no pensamento ocidental. Não é, porém, nenhuma tematização, em particular, que pretendemos abordar, mas, antes, as condições de possibilidade do valor do histórico como atributo essencial da razão. Entre essas condições, impõem-se, mais uma vez, os dois temas com que a tradição do cristianismo contribuiu, do ponto de vista metafísico, para a génese da categoria da historicidade na cultura ocidental. Assim, por um lado, a Criação, instaurando uma descontinuidade fundamental na ordem do ser, gera por consequência uma diferença substancial na ordem da razão: a inteligibilidade do todo deixa de residir num princípio cósmico, numa alma do mundo ou num intelecto universal, transferindo-se para uma inteligência que transcende o mundo e o homem. A razão do homem deixa de ser uma parte substancial da razão do todo. Inteligência divina e razão humana não são da mesma substância, o que possibilita todos os processos de autonomização da razão criada, desde a individuação à laicização. Ambos estes processos nascem, aliás, como exigências do homem medieval, que é produto de uma cultura cristianizada. Todavia, a conquista da autonomia significa o reconhecimento da finitude, que conduz à problematização dos limites e ao sentido das relatividades múltiplas de uma razão criada, individual e temporal. É, sobretudo, pela sua relatividade ao tempo e pela sua alteridade com respeito à Inteligência suprema do real, que a razão humana se descobre na condição histórica. Nesta condição, só através da pluralidade e relação dos tempos, a razão pode aspirar à completude de uma verdade que ela não funda nem esgota com a finitude do seu olhar. Contudo, se a Criação determina a diferença substancial da razão humana e todas as relatividades daí decorrentes, incluindo a histórica, a Encarnação, por seu turno, introduz a historicidade na própria razão divina, se não ao nível da essência, pelo menos, ao nível da manifestação. De facto, desde o evangelista João que a pessoa de Cristo é interpretada como encarnação de Logos divino primordial (Jo. 1,1-18). Toda a patrística grega fez eco desta leitura, desenvolvendo uma teologia do Logos, onde integra múltiplos ingredientes da filosofia grega. Todavia, enquanto o Logos grego tendia a realizar o valor da universalidade mediante uma imanência cósmica, o Logos encarnado em Cristo manifesta, sobretudo, a singularidade de uma imanência histórica. O contexto cultural helenístico dos Padres gregos conduzia-os a compatibilizar o universal com o singular na concepção cristã de Logos. A relação com a totalidade é, desde o início, atribuída ao Logos, como princípio activo da Criação; mas, nessa relação, não se esgota a sua universalidade, uma vez que deverá permitir compreender a sua manifestação singular e histórica em Cristo. Por conseguinte, a universalidade do Logos cristão deverá integrar uma relação especial com a pluralidade dos tempos e a diversidade das culturas de modo a acolher a possibilidade do evento singular 4

Itinerarium, 38 (Braga, 1991), nº141, pp.353-367. da Encarnação. Daí que a patrística grega seja maioritariamente favorável à interpretação do sentido da filosofia grega e da sabedoria judaica como revelações parciais do Logos cristão antes de Cristo. A manifestação do Logos cristão é, portanto, histórica e cultural, isto é, a história e a cultura são assumidas como meios positivos de manifestação da razão divina. Infelizmente, o Logos grego não encontrou equivalente na linguagem e cultura latinas, e, em consequência, a teologia cristã do Logos não obteve, no mundo ocidental, que foi esquecendo progressivamente o grego, a continuidade que poderia ter gerado. Na cultura latina, a semântica dos termos uerbum, ratio, mens, intellectus, intelligentia tendeu a desdobrar-se e a especializar-se em função da distinção substancial entre as referências do divino e do humano. Apesar de qualquer dos termos aplicados a Deus traduzir uma actividade intrínseca — a escolástica descreve a geração do Verbo divino como uma acção ad intra e prefere atribuir a Deus o termo intelligentia, pela sua conotação mais activa —, o facto é que a historicidade ficou, sobretudo, vinculada à razão humana, como forma da sua finitude e relatividade. Tal é o que encontramos suposto na teologia da Encarnação em Sto. Anselmo e que passamos a ilustrar com base no texto de Cur Deus Homo. 2. As razões de conveniência na teologia de Cur Deus Homo Como referimos no início, esta obra questiona o sentido da Encarnação por uma exigência de nacionalidade. O que se pretende não é confirmar a fé, como habitualmente nos inclinamos a pensar, mas satisfazer a razão, que se assume plenamente na condição solitária da sua autonomia, tal como acentua o interlocutor de Anselmo: «Não vim para que retires a dúvida à minha fé, mas para que me mostres a razão da minha certeza»3. Daí que todo o tratado Cur Deus Homo seja uma demonstração por redução ao absurdo da racionalidade da Encarnação, isto é, que toda a argumentação seja construída em função da hipótese da negação de Cristo e do que pela fé lhe diz respeito4. Cristo é, entretanto, um evento com dimensão histórica. Porém, Anselmo questiona-o, inquirindo pela sua razão ou necessidade5. Mas por que género de necessidade se interroga o autor? Não, certamente, por nenhuma necessidade histórica. No contexto medieval, o factor histórico é já assumido como determinação positiva do destino do homem, mas a história não possui ainda a autonomia e independência suficientes face aos sujeitos de vontade, que lhe permita estruturar-se segundo leis próprias e tornar-se fonte de novos necessitarismos para o homem. Por conseguinte, a necessidade do evento, cuja realidade histórica o autor suspende por hipótese, deverá ser de outra natureza. Neste momento, o que nos revela a permutabilidade dos 3

«Non ad hoc ueni ut auferas mihi fidei dubitationem, sed ut ostendas mihi certitudinis meae rationem». Cur Deus Homo, I, 25 (texto da ed. crítica do P. Schmitt reprod. em B.A.C., n.° 82, Madrid, 1970, p. 824. Doravante, esta obra será referida através das iniciais CDH). 4 Cf. CDH, praef.; I, 10 e 20. 5 Cf. CDH, I, 1. 5

Itinerarium, 38 (Braga, 1991), nº141, pp.353-367. termos necessitas e ratio, no texto em estudo, é que a demonstração da necessidade da Encarnação é para ser entendida, neste caso, como a demonstração da sua racionalidade. O nosso propósito é, então, mostrar que a racionalidade da teologia de Anselmo não é estranha à historicidade, antes a supõe como condição inerente. O autor de Cur Deus Homo delimita a questão da necessidade da Encarnação entre duas grandes possibilidades alternativas: Deus ou o homem. Contudo, a solução, que se constrói ao longo do texto, não é simples nem exclusiva. Há, sem dúvida, uma necessidade humana da Encarnação, que é uma necessidade de salvação: a dimensão da falta humana, entendida, não à medida do agente, mas, sim, do destinatário, torna-a irreparável pelo próprio homem6. Na impotência humana reside, pois, uma razão necessária não suficiente do sentido da Encarnação como redenção. Razão não suficiente porque logicamente o homem não obriga Deus. Razão necessária, não, em última análise, por causa do homem, mas porque não seria conveniente que Deus salvasse o homem de outro modo, como, por exemplo, pelo perdão gratuito sem redenção7. Assim, a necessidade, que parece advir do homem, não reside verdadeiramente na impotência humana, até porque esta não anula a culpa8, mas na conveniência com que, ao homem, se apresenta a ordem de Deus. É, com efeito, à ordem de Deus que dizem respeito as razões de conveniência em que Sto. Anselmo funda a necessidade da Encarnação. A conveniência da salvação com redenção é uma conveniência que, em última instância, advém do lado de Deus, uma vez que assenta no critério da justiça. O perdão sem a remissão da falta é expressão de misericórdia sem justiça. Ora, a misericórdia sem justiça é permissiva, admitindo a injustiça, o que não convém a Deus. A conjunção de misericórdia e justiça é, portanto, uma necessidade de conveniência em Deus. Todavia, essa mesma conjunção não afectará, limitando-as, a vontade e a liberdade divinas? Qual deve ser, acerca de Deus, o critério prioritário: a liberdade ou a justiça? A liberdade sem justiça dá origem à mesma inconveniência referida para o caso da misericórdia tomada em sentido absoluto. Daí o primado do critério da justiça, mesmo com respeito à vontade: «Se Deus quer isto, isto é justo, [a saber] o que não é inconveniente Deus querer»9. Aqui a vontade de Deus é razão suficiente de justiça, na condição, porém, de Deus querer apenas o que for conveniente.Portanto, até o sentido da vontade divina aparece condicionado por razões de conveniência. Entre os atributos divinos, é a justiça que reina como critério de todas as conveniências. Daí que a justiça seja, também, atributo privilegiado, em Sto. Anselmo, para caracterizar a essência divina: «Se não há nada maior ou melhor do que Deus, não há nada mais justo do que a suprema justiça, que conserva a honra de Deus na disposição das coisas e que não é outra coisa senão o próprio Deus»10. 6

Cf. CDH, I, 19-25. Cf. CDH, I, 12-13. 8 Cf. CDH, I, 24. 9 «[…]: si Deus hoc uult, iustum est, quae Deum uelle non est inconueniens». CDH, I, 12. 10 «Si Deo nil maius aut melius, nihil iustius quam quae honorem illius seruet in rerum dispositione summa iustitia quae non est aliud quem ipse Deus». CDH, I, 13. 7

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Itinerarium, 38 (Braga, 1991), nº141, pp.353-367. Esta identificação de Deus com a justiça significa, entretanto, uma opção fundamental a respeito de uma questão já formulada por Sto. Agostinho: Deus está acima da ordem das coisas ou é regido por ela?11. Tal como Agostinho não nega que a atitude de Deus perante o mal não pode ser arbitrária porque Deus é justo12, e que o próprio Cristo seja entendido como manifestação da ordem divina13, assim também Anselmo, identificando Deus com a justiça, está optando por conceber Deus dentro, não fora da ordem de todas as coisas. Esta opção compreende-se, aliás, à luz da exigência de racionalidade que caracteriza tanto o bispo de Hipona como o arcebispo de Cantuária. Admitir Deus fora ou para além da ordem significaria excluí-lo completamente de qualquer possibilidade de inteligência por parte do homem. Pelo contrário, se Deus é, de alguma forma, inteligível, Ele deve poder ser concebido segundo a medida de todas as coisas, ainda que seja Ele mesmo essa medida. Assim interpretamos a definição anselmiana de Deus como justiça suprema; assim se compreende que o homem possa elaborar, sobre Deus, razões de conveniência. A opção de Sto. Anselmo determina a possibilidade da sua teologia racional. Retomando a questão da Encarnação e os termos da amplitude em que ela oscila, Deus e o homem, verificámos já que à necessidade de salvação não se reduz a necessidade da Encarnação, dado que esta não se justifica tanto pela impotência do homem para remir a sua falta, quanto pela inconveniência de Deus perdoar o homem sem remir a sua falta. Deste modo, o fundamento da necessidade da Encarnação desloca-se decisivamente para Deus. Nesta questão, o antropocentrismo é mais aparente do que real, dado que Anselmo, nos momentos mais decisivos da argumentação, defende sempre o primado de Deus. Todavia, pode parecer, também, que a necessidade da Encarnação se reduza à necessidade de evitar inconveniências em Deus, afectando a gratuidade da própria iniciativa divina14. Esta objecção hipotética é apenas o pretexto para o autor precisar o sentido da necessidade em Deus. Na realidade, a necessidade das razões de conveniência não é divina, mas substancialmente humana, uma vez que exprime o ponto de vista do homem sobre Deus e, por consequência, participa da mesma relatividade desse ponto de vista, inclusivamente, da sua condição histórica. Daí que as razões de conveniência sejam susceptíveis de mais e de menos, isto é, admitam graus, denunciando como são inteiramente relativas entre si. No percurso do próprio texto, urna mesma razão não apresenta sempre invariavelmente o mesmo grau de conveniência. Tal é a condição de todas as razões humanas na sua relatividade histórica. Por isso, necessidade e historicidade são compossíveis na teologia de Sto. Anselmo. A precisão do sentido da necessidade em Deus permite, aliás, confirmar esta compossibilidade: a necessidade em Deus é o mesmo que imutabilidade, e esta só impropriamente se diz necessidade15. Por conseguinte, aquilo que é

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Cf. Sto. AGOSTINHO, De Ordine, I, 10, 29 (texto da ed. beneditina reprod. em Bibliothèque Augustinienne, n.° 4, Paris, 1948, p. 348). 12 Cf. Idem, op. cit., I, 7, 18-19. 13 Cf. Idem, op. cit., I, 10, 29. 14 Cf. CDH, II, 5. 15 Cf. CDH, II, 5 e 17. 7

Itinerarium, 38 (Braga, 1991), nº141, pp.353-367. propriamente necessidade não é imutável. Esse é o caso da necessidade substancialmente humana das razões de conveniência. Significativa acerca da relatividade destas razões é a oscilação, quando não hesitação, entre os princípios da omnipotência e da justiça, como fundamentos de conveniência. Caso ilustrativo dessa oscilação é, entretanto, a resolução da objecção segundo a qual não seria próprio de Deus suportar a humilhação de Cristo, patente, especialmente, na sua morte16. Mais do que inconveniência, este facto afigura-se de uma total impropriedade com respeito à divindade de Cristo. Não será, pois, sem complexa e subtil elaboração racional, que Anselmo virá a justificar, ao longo da obra, a humilhação e a morte de Cristo por aqueles atributos divinos com que, precisamente, aquelas parecem mais contraditórias: a omnipotência e a justiça. De novo, porém, a nossa leitura acentuará o primado da justiça, que é o primado da racionalidade de Deus e condição de possibilidade de todas as,razões de conveniência em teologia. Antes, porém, que a solução da referida objecção tenda definitivamente para o lado de Deus, a humilhação de Cristo passa, também, pela necessidade humana de salvação: o homem só pode ser salvo por uma pessoa divina, para que a dívida da sua libertação não se converta na sujeição a um ser igual a si mesmo17. A primeira razão de conveniência para as provações de Cristo, enquanto Deus encarnado, advém, portanto, da dignidade do homem. Mas, também aqui, o homem não é razão suficiente ou conveniência decisiva para a humilhação de Deus em Cristo: tanto a impotência, como já vimos, quanto a dignidade do homem não são verdadeiramente as razões que decidem do sentido da Encarnação em Sto. Anselmo. O homem apenas fornece conveniências menores. O antropocentrismo anselmiano nunca se excede a ponto de contrariar as exigências objectivas da ordem racional do real. As conveniências maiores advêm, de facto, de Deus ou, mais rigorosamente, do sentido humano do divino. Interessante é notar, em particular, como Anselmo transforma a impropriedade da libertação humana pela Encarnação, no que esta significa de indignidade para Deus, em necessidade de conveniência, com base no mesmo princípio que servira de fundamento àquela impropriedade: a omnipotência divina. No percurso de tal transformação, são etapas decisivas a afirmação do primado da vontade na obediência de Cristo18 e a interpretação do sentido da sua morte como dom e, por conseguinte, como expressão de poder19. A humilhação máxima de Cristo inscreve-se, assim, como uma possibilidade da omnipotência divina. Contudo, essa possibilidade pode entrar em confronto com a vontade divina, caso ambas não coincidam. A este propósito, o autor aborda a dialéctica entre o poder e o querer, que resolve basicamente a favor do primado do querer, como documenta inequivocamente o seguinte passo: «Todo o poder é posterior à vontade»20. Ora, se todo o poder pressupõe vontade, a fortiori, em Deus, o poder de suportar a humilhação através da Encarnação só pode ser

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Cf. CDH, I, 3 e 6 e 8. Cf. CDH, I, 5. 18 Cf. CDH, I, 9-10. 19 Cf. CDH, II, 10-12 e 16. 20 «Omnis potestas sequitur uoluntatem». CDH, II, 10. 17

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Itinerarium, 38 (Braga, 1991), nº141, pp.353-367. expressão da Sua vontade21. Já vimos, entretanto, como a concepção anselmiana da vontade divina se deixa condicionar por razões de conveniência, a fim de que as acções de Deus não se tornem ininteligíveis, escapando ao próprio princípio assumido da inteligibilidade de Deus: a justiça. Na verdade, apesar do peso do critério da omnipotência e de a vontade divina se impor como instância última na resolução da presente objecção, o facto é que, neste caso, triunfa igualmente a justiça como o atributo verdadeiramente absoluto de Deus, com respeito ao qual todos os demais são relativos. Com efeito, a justiça intervém determinantemente no sentido da obediência e, mesmo, da morte de Cristo, o qual, mais do que o Redentor, é o Justo exemplar, por não ter cedido a nada, nem à morte, por amor da justiça22. Poder-se-á, no entanto, perguntar que justiça é esta, que converte uma morte injusta no testemunho maior da justiça. Não se trata, na realidade, de uma justiça adstrita aos actos humanos, mas da própria ordem que dá sentido à totalidade do ser. É a mesma ordem, intitulada justiça e identificada com Deus, que tanto determina a sua realização exemplar na figura singular e histórica de Cristo, quanto justifica a própria Redenção, pois não convinha que a obra da Criação ficasse incompleta sem a restauração do homem, enquanto ente criado para o fim da felicidade23. A felicidade do homem, tal como a sua dignidade e impotência para a salvação, funciona apenas como conveniência menor relativamente à conveniência maior da ordem que institui a racionalidade do todo. Este antropocentrismo moderado de Sto. Anselmo não constitui, de facto, base suficiente para reduzir o sentido da Encarnação à Redenção. A Redenção é apenas um imperativo da justiça, que cabe a Deus e ao mundo da Criação. Oscilando entre o homem e Deus, o pêndulo da resolução da questão da Encarnação inclina-se definitivamente para o lado de Deus, sem excluir o homem como conveniência menor. Todavia, mesmo as razões que se ajustam melhor a Deus não valem todas absoluta e indiferentemente. Entre as conveniências acerca de Deus, também existem menores e maiores. A omnipotência é, sem dúvida, uma conveniência maior, mas não é o critério último e absoluto de todas as conveniências ou razões sobre Deus. Esse papel reserva-o Sto. Anselmo à justiça. Desse modo, verificamos como, na teologia de Cur Deus Homo, as razões de conveniência são inteiramente relativas entre si, revelando-se hierarquicamente organizadas em função de um princípio de unidade que é condição de possibilidade de todas elas e, por isso, da própria teologia, entendida como expressão do ponto de vista mais elevado da razão humana sobre Deus. Já anteriormente fomos conduzidos a reconhecer que a definição de Deus como justiça suprema significa a opção pela integração de Deus na ordem total do ser e, dessa forma, possibilita a teologia como obra autónoma da razão. Sem dúvida que se trata de uma opção teológica, na medida em que afecta o sentido do absoluto relativamente ao ser. No entanto, uma vez que a mesma condiciona previamente o próprio estilo de teologia que Sto. Anselmo pratica, trata-se, também, de uma opção filosófica que manifesta grandes aspirações na razão humana, ao 21

Cf. CDH, II, 10-12; 16-17. Cf. CDH, I, 9; II, 18. 23 Cf. CDH, II, 1-4. 22

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Itinerarium, 38 (Braga, 1991), nº141, pp.353-367. mesmo tempo que reflecte a finitude do seu ponto de vista. Com efeito, optar por considerar Deus dentro da ordem de todas as coisas é deliberar concebêLo do mesmo ponto de vista a partir do qual se compreendem todas as coisas. Tal é a perspectiva de uma razão substancialmente humana que estabelece a necessidade de todas as razões de conveniência sobre Deus, à luz do mesmo critério que assume como princípio da ordem universal e da inteligibilidade de todo o ser. Nesse sentido, interpretamos a demonstração da necessidade da Encarnação, em Cur Deus Homo, como uma demonstração da racionalidade da mesma, com base numa opção fundamental da filosofia de Sto. Anselmo. A pertença de Deus à ordem da razão é bem explícita nos passos em que o autor pré-escolástico afirma e reafirma a racionalidade da vontade divina: «Na verdade, a vontade de Deus nunca é irracional»24; «[...], porque Deus nada faz sem razão, [...]»25. A mesma tese exprime-se ainda através da identificação de Deus com a verdade26. Se Deus estivesse acima da verdade, ficaria fora do alcance da razão. Se, pelo contrário, Deus é racional, todas as atribuições de que for, enquanto tal, susceptível, ficarão sujeitas à própria necessidade que a razão institui: «Assim como, em Deus, de qualquer pequeno inconveniente se segue a impossibilidade, assim também qualquer pequena razão se faz acompanhar de necessidade, se não for vencida por nenhuma maior»27. Nestas palavras de Anselmo, contudo, a necessidade que a razão institui assume inteiramente a relatividade das razões que a constituem. A ideia de conveniência, traduzida, na maior parte das vezes, pelos verbos conuenire e decere, exprime, sobretudo, a finitude de todas as razões humanas com respeito à infinitude de Deus. A inter-relatividade das razões de conveniência, por seu lado, exprime a redutibilidade do ponto de vista opcional que as fundamenta, a outros pontos de vista capazes de razões maiores. O carácter opcional do princípio da racionalidade de Deus é, em última análise, expressão da relatividade singular e histórica da razão anselmiana. Esta assume, ademais, a sua relatividade, na medida em que inclui a possibilidade da sua própria refutação, no caso de a história da razão filosófica vir a confrontá-la com razões maiores, não no caso das filosofias que parecem refutá-la, partindo de opções fundamentais diversas que, de algum modo, afectam o princípio da racionalidade de Deus. Concluindo, necessidade e historicidade são, não apenas compossíveis, como também correlativas na teologia de Sto. Anselmo, que não se distingue, quanto ao ponto de vista racional, da sua filosofia: se a necessidade reflecte a irrecusabilidade da razão, a razão supõe a historicidade na sua relatividade não menos irrecusável.

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«Voluntas namque Dei nunquam est irrationabilis». CDH, I, 8. «[…], quia Deus nihil sine ratione facit, […]». CDH, II, 10. 26 Cf. CDH, II, 17. 27 «Sicut enim in Deo quamlibet paruum inconueniens sequitur impossibilitas, ita quamlibet paruam rationem, si maiori non uincitur, comitatur necessitas». CDH, I, 10. 25

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