Neoateísmo e os Cavaleiros do Apocalipse. Filosofia Ciência & Vida, São Paulo, nº 112, pp 15-23. Nov. 2015

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NEOATEÍSMO e os cavaleiros * do apocalipse

Como movimento político, o neoateísmo é essencial para elucidar a importância da laicidade do Estado como forma de garantir as liberdades individuais dos cidadãos

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ateísmo não é novidade. Pode-se dizer que ele é tão antigo quanto as próprias religiões. No Chandogya Upanishad, um dos Upanishads mais antigos, podendo ser datado de 800 a.C., já vemos um mito de criação sem criador. O mesmo pode ser encontrado entre os Maoris da Nova Zelândia e em mitos de criação Jainistas. Em alguns pré-socráticos também podemos ver claramente o ateísmo, como em Diágoras, Demócrito e Protágoras, no séc. V a.C. Para entender mais sobre a História do ateísmo até o século XX, o melhor livro é aquele com este mesmo nome, de Georges Minois (1946) que, no entanto, praticamente não trata do neoateísmo que será discutido neste texto. O que apenas reforça que há uma diferença entre estes dois tipos de ateísmo. O neoateísmo tem algumas diferenças cruciais do tradicional ateísmo do início do século XX que encontramos, por exemplo, em Friedrich Nietzsche (18441900). De início podemos notar que o neoateísmo não é niilista nem relativista.

Muito pelo contrário, é positivo, propositivo e muitas vezes cientificista. Sua grande base de referência é o Darwinismo e sua resposta ao argumento de William  Paley  (1743-1805) (argumento errôneo que diz que seres organizados precisam de um projetista inteligente para desenhá-los). Mas o seu ponto mais forte de referência está na luta pelos direitos e liberdades individuais que representam o Estado Laico. Ou seja, o neoateísmo é fundamentalmente um movimento político. Ateus  sempre existiram, mas não se organizavam e não tinham uma plataforma política conjunta. Dado o crescimento do poder político das religiões nos últimos anos, eles passaram a se organizar em defesa de um Estado Laico e das liberdades e direitos que este garante. Até mesmo da liberdade de credo. Neste sentido, a analogia feita por Richard Dawkins (1941) como o movimento homossexual é que melhor explica o surgimento atual do neoateísmo: homossexuais sempre existi* Agradeço o apoio do CNPQ e demais entidades através do projeto aprovado pelo edital MCTI /CNPq /MEC/CAPES nº43/2013

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Gustavo Leal Toledo é graduado em Filosofia na UERJ e mestre pela PUC-Rio, onde também se doutorou em Filosofia. Atualmente é professor do Departamento de Tecnologia em Engenharia Civil, Computação e Humanidades, na Universidade Federal de São João Del-Rei. Pesquisa nas áreas de Filosofia da Mente, Filosofia da Biologia, Epistemologia e Memética. ciência&vida • 15

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O NEOATEÍSMO É UM MOVIMENTO POLÍTICO CUJO FORTE PONTO DE REFERÊNCIA ESTÁ JUSTAMENTE NA NA LUTA PELOS DIREITOS E LIBERDADES INDIVIDUAIS QUE REPRESENTAM O ESTADO LAICO ram, mas era algo privado. Só que em um determinado momento foi importante se tornar um movimento público para colocar suas pautas no meio político. Eles, então, “saíram do armário”. Agora é a vez dos ateus saírem do armário e entrarem na esfera pública/política. Uma pesquisa feita em 2009 nos EUA mostrou que mais pessoas acreditavam no demônio do que na teoria da evolução de Charles Darwin (1809-1882), mas lá isso está mudando. Já no Brasil, o índice de pessoas sem Religião, segundo o IBGE, cresceu de 1,3% em 1990 para 7,6% em 2010, mas na Escandinávia, por exemplo, este número chega a 50%. Já o número de evangélicos aqui chegou a 22,2% da população, elegendo 82 cadeiras no Parlamento, incluindo o atual presidente da

Câmara, terceiro na sucessão presidencial. Isso facilita a passagem de projetos como o Estatuto do Nasciturno (Lei 478/2007) que prevê a proibição do aborto em todos casos, proibição do estudo com células-tronco embrionárias e da inseminação artificial com congelamento de embriões. Isso também tem dificultado a criação de leis sobre a criminalização da homofobia, a educação sexual nas escolas, o planejamento familiar, o debate sobre as drogas e outras pautas. No momento do voto, a bancada teocrática do Congresso, que une religiões de diferentes denominações, tende a votar unida em certas pautas, enquanto isso o grupo de ateus, a-religiosos e seculares (que separam igreja do Estado) não fazem o mesmo. Isso poderá levar à perda de importantes valores seculares, valores estes que são importantes para entender e conviver no mundo de hoje. É dentro deste ambiente de disputa política e de espaço público que surge o neoateísmo, tendo como seus principais expoentes, Richard Dawkins,1 Daniel Dennett (1942), Sam Harris (1967) e Christopher Hitchens (1949-2011), que ironicamente se autodenominaram em um vídeo do YouTube “os quatro cavaleiros do apocalipse”. Entender seus argumentos é entender esta nova vertente do ateísmo.

CRENÇA NA CRENÇA

Segundo o filósofo Daniel Dennett, seja qual for sua religião, há mais pessoas no mundo que não compartilham dela do que as que compartilham 16 •

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Daniel Dennett é um dos maiores filósofos da atualidade. Em seu livro QueVer mais sobre o neoateísmo de Richard Dawkins na matéria de capa da edição 111 desta revista

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IMAGENS: WIKIMEDIA/AGÊNCIA BRASIL

brando o encanto, defende que a Religião deve ser vista como um fenômeno natural como qualquer outro e, deste modo, pode ser pesquisada pela Ciência em seus fundamentos antropológicos e até neurológicos e discutida abertamente. Não deve haver restrições para o debate, assim como não há quando estamos discutindo política, ciência, economia, futebol, etc. Deste modo, o “encanto” a que ele se refere é o tabu contra a pesquisa científica do fenômeno religioso. Sugere, deste modo, que a Religião seria um conjunto de “memes”, ou seja, unidades de cultura que se replicariam de cérebro em cérebro como um vírus.2 No entanto, até mesmo uma pesquisa neutra sobre a Religião pode ser vista como hostil por religiosos. Tratar a Religião como um assunto como qualquer outro muitas vezes é visto como uma tentativa de diminuir sua importância. As religiões teriam, assim, um lugar especial entre os temas que um ser humano pode discutir. Não apenas os religiosos defenderiam isso, mas também muitos não religiosos. Este é o fenômeno que Dennett chamou de “crença na crença”, ou seja, mesmo não religiosos acreditam que a crença é algo, no geral, bom e que deve ser respeitada como algo especial dentro do fenômeno humano. Percebemos este fenômeno quando em um Estado Laico as religiões são tratadas como especiais. Se alguém, por exemplo, não quiser prestar serviço militar obrigatório por ser pacifista, será obrigado a fazê-lo, mas se for por motivos religiosos, será dispensado. Se alguém ofender preconceituosamente outra pessoa, será punido, mas se o preconceito for fundado em dogmas religiosos, será tolerado e até respeitado. Um exemplo bastante marcante se deu no recente surto de ebola na África.

Para evitar a propagação do ebola em Serra Leoa, decidiu-se por uma quarentena nos últimos dias de março de 2015. Ninguém poderia sair de casa. Com duas exceções: os muçulmanos poderiam sair por duas horas para suas rezas de sexta e os católicos para sua missa de domingo. Mas o que é mais importante, a saúde pública de um país, quiçá do mundo, ou seus ritos religiosos? Damos lugar especial não só para os religiosos em nossa sociedade, mas também para as explicações religiosas. Se alguém defender que o Universo simplesmente existe e que sua existência não precisa de explicação, não consideramos isso uma boa resposta. Mas se dizem o mesmo sobre Deus, vemos com bons olhos. No entanto, por que o Universo, que claramente existe, precisa de uma explicação e Deus não precisa? Se precisamos explicar a origem do Universo, precisamos pelo mesmo motivo explicar a origem de Deus. Talvez o melhor exemplo do lugar especial que as religiões têm seja o fato de que mesmo em um Estado Laico como o Brasil, continuemos tendo aulas de Religião em escolas públicas. Não se trata de entrar na polêmica sobre as tentativas de substituir a teoria da evolução pelo criacionismo ou, como é conhecido hoje, o Design Inteligente.3 Mas a questão é que

No Brasil, temos em 2015 um Congresso extremamente conservador

Sugestão de leitura: A goleada de Darwin, de Sandro de Souza: Record, 2009.

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Mais sobre os “memes” pode ser visto na edição 51 desta revista.

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A RELIGIÃO

está sempre buscando se expandir e conquistar mentes que ainda não aceitam seus preceitos; isso, dentro do Islamismo, seria ainda mais marcante

A Filosofia budista tem servido como base para a propagação do terror em nome do nacionalismo no sul da Ásia

Quem matou mais? Uma crítica comum que os ateus fazem às religiões é que elas se consideram detentoras dos valores éticos da humanidade, mas sua história está recheada de malfeitos. Malfeitos estes que não ficaram no passado das religiões, mas são atuais, como pode ser visto no que o Estado Islâmico (ISIS) está fazendo agora no Iraque e na Síria. O livro O lado negro do cristianismo, por exemplo, apresenta um breve histórico de maldades de apenas uma delas. No entanto, os religiosos respondem, e com razão, que a história do ateísmo também está recheada de malfeitos, como nos regimes comunistas, com destaque para a antiga URSS e a China. Estes dois regimes ateus mataram juntos uma quantidade inumerável de pessoas sem similar na história da humanidade. Nesta disputa de quem matou mais, o ateísmo sairia na frente, dizem os religiosos. Mas uma questão se coloca: ateus podem fazer maldades, mas não fazem maldades em nome do ateísmo, já os religiosos têm um longo histórico de maldades em nome da religião. A questão é que é preciso analisar por qual motivo estas pessoas foram mortas. Os ateus mataram não ateus porque eles não eram ateus? Ou foi por outro motivo? Se foi por outro motivo, então não devíamos jogar a culpa em seu ateísmo, pois se formos contar qualquer pessoa morta por um ateu, seja por que motivo for, teremos também que colocar na conta dos religiosos qualquer pessoa morta por um religioso, mesmo que não seja por motivos religiosos. A verdadeira questão deve ser, então, “mais pessoas foram mortas

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por ateus porque não eram ateias ou mais pessoas foram mortas por religiosos porque não eram da religião certa?” Se ignorarmos esta questão, teremos de colocar na conta dos religiosos cada maldade que um religioso fez durante toda a história da humanidade. Por exemplo, a Igreja Católica foi uma aliada confiável na instalação de regimes fascistas na Espanha, em Portugal e na Croácia. Basta lembrar o Tratado de Latrão de 1929 e das relações entre a Igreja Católica e o nazismo de Hitler. Poderíamos lembrar, por exemplo, o discurso de Hitler no Reichstag (1933), quando este considera a cristandade o fundamento da moral do Reich. Além disso, diferentemente dos religiosos, os ateus não alegam ter supremacia moral, o que deixa os religiosos em uma saia-justa ainda maior. A capacidade de fazer o mal é, para o ateísmo, parte natural de qualquer pessoa, seja ela ateia ou não. Já para um religioso é um problema, pois não só eles se veem como o bastião da moralidade no mundo contemporâneo como também acreditam que o mundo é governado por uma força justa e benevolente, o que os leva a certas contradições. Curiosamente, o velho argumento do “problema do mal” quase não é usado pelo neoateísmo. Este argumento fala que se o mal existe ou Deus não é onisciente, então não sabe da existência do mal, ou é onisciente, mas não é onipotente, por isso não pode fazer nada para resolver o problema do mal. Mas se ele for onisciente e onipotente, não pode ser bom, pois sabe da existência do mal, pode resolver este problema, mas não o faz.

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as aulas de Religião são disfarçadas de aulas de Ética, pois se entende que Religião, Ética e Moral andam lado a lado. Esta é a “crença na crença” de que Dennett nos fala. É comum que pais seculares coloquem seus filhos em escolas confessionais por entenderem que lá eles receberão melhores valores. Esta relação entre Religião e Ética é um dos assuntos mais debatidos no neoateísmo.4 Países muçulmanos como a Arábia Saudita chegam a considerar o ateísmo uma forma de terrorismo, punível por lei. Mas o fato é que a História nos mostra que muitos dos malfeitos da humanidade foram perpetrados em nome da Religião e que os valores como a tolerância, a igualdade e os direitos humanos só surgiram com o mundo secular. Até no budismo, uma Religião tradicionalmente pacífica, vemos vertentes terroristas, como no caso do sul-asiático, em que eles matam uma minoria muçulmana. Tal tema ficou ainda mais evidente em uma pesquisa realizada por quase 40 anos por Vern Bengtson, da Universidade do Sul da Califórnia, e que recentemente incluiu famílias seculares para ver como são passados os valores morais nestas em comparação às outras famílias. O que Bengtson descobriu é que as famílias seculares tinham alto nível de proximidade emocional entre seus membros e padrões éticos e morais eram passados claramente e em alguns casos tidos até como mais importantes do que em famílias religiosas. As famílias seculares defendiam valores como a empatia, a resolução racional de problemas, a autonomia pessoal e a independência de pensamento. Outro estudo feito em 2010 pela Universidade de Duke mostrou que pessoas criadas com valores seculares mostravam menos propensão ao racismo, à homofobia, eram menos vingativas, menos militarisVer mais no artigo sobre Dawkins que foi publicado na edição 111.

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tas, menos nacionalistas, menos machistas e mais tolerantes. Cabe lembrar que mesmo com o crescimento do número de lares seculares, ateus continuam a ser minoria no sistema prisional americano e que países democráticos com grande número de não religiosos, como Dinamarca, Holanda, Suécia, Bélgica e Nova Zelândia, têm alto nível social e baixo nível de criminalidade. Se a falta de crença implicasse em falta de valores, então seria esperado o oposto. Por isso Dennett diz que devemos parar de crer na crença como algo bom e entendê-la apenas como fenômeno a ser estudado. Talvez seja hora de dissociar esta relação entre Religião e Ética e entender que uma pessoa tolerante e que respeita e preserva os direitos dos outros deve ser chamada de uma “pessoa secular” e não de uma “pessoa religiosa”.

O modo ácido e sarcástico de escrever de Christopher Hitchens o tornou uma das referências no neoateísmo

HITCHENS E A MADRE TERESA

Em seu livro Deus não é grande, Hitchens ataca diretamente a Religião sem meio-termo. Chega a falar que considera a Religião algo imoral “que envenena www.portalcienciaevida.com.br •

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O ATEÍSMO E SUA DEFESA DOS DIREITOS INDIVIDUAIS PARTE DO PRESSUPOSTO DE QUE TODOS OS CREDOS SÃO IGUAIS PERANTE O ESTADO E DEVEM SER IGUALMENTE RESPEITADOS

Será que o altruísmo e a generosidade de Madre Teresa não passavam de fantasia imposta como verdade pela imprensa?

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tudo”, pois não basta para o religioso apenas viver com sua religião, ele quer também impô-la aos outros. Na visão deste, já que entende que sua Religião é o seu bem maior, ele estaria ajudando ou mesmo salvando não crentes ao impô-la. No entanto, segundo Hitchens, “aqueles que oferecem falsos consolos são falsos amigos”. Ou, como disse Dawkins, “o poder de consolo da Religião não a torna verdadeira”. Ou seja, oferecer sua Religião como ajuda para alguém, por mais que pareça uma boa intenção, seria, para ele, uma ação imoral da qual

as pessoas precisariam estar protegidas, em especial as crianças. As religiões podem até conviver temporariamente e se tolerar, mas dada a oportunidade, um lado vai sempre tentar se sobrepor ao outro, pois entende que isso é melhor para eles. Deste modo, nas palavras de Sam Harris, “a intolerância é intrínseca a todos os credos”, pois todos acham que estão certos enquanto todo o resto está errado. Por isso que Hitchens pode dizer que: “Eu deixo a cargo dos fiéis queimar igrejas, as mesquitas e as sinagogas uns dos outros, algo que sempre podemos confiar que eles farão. Quando eu vou à mesquita, tiro meus sapatos. Quando vou à sinagoga, cubro minha cabeça”. Como disse Dawkins, ateus não destruiriam os Budas de Bamiyan, isso foi trabalho do fundamentalismo religioso do Talibã. Ou seja, o ateísmo e sua defesa dos direitos individuais do Estado Laico partem do pressuposto de que todos os credos são iguais perante o Estado e devem ser igualmente tratados e respeitados. Não cabe ao ateu ou ao Estado Laico dizer qual Religião as pessoas devem ter. A tolerância é um valor secular. Já para um religioso, uma Religião está certa e é o caminho para salvação, a dele, e as demais não estão corretas. Por isso, segundo Hitchens, o respeito que ela pode ter aos demais credos é apenas temporário. O grande exemplo que Hitchens nos dá, e o motivo pelo qual ele ficou mais conhecido, foram suas críticas a Madre Teresa de Calcutá, que é considerada por muitos uma santa de postura ética inquestionável. No entanto, Hitchens nos fala que ela voou de

Calcutá para a Irlanda para conclamar os fiéis a votar “não” em um referendo sobre se a constituição daquele país deveria permitir o divórcio. Posteriormente, ela denunciou a contracepção como algo tão imoral quanto o aborto (que para ela era assassinato). Em seus momentos mais radicais, Hitchens chega a pintar uma imagem da Madre Teresa como uma oportunista política interessada apenas em seus propósitos financeiros. Polêmicas à parte, a questão é que a Madre Teresa, como uma boa religiosa, defendeu publicamente que suas posturas religiosas deveriam se sobrepor em países seculares. O que apenas reforça o argumento central de Hitchens de que os valores religiosos e seculares são incompatíveis.

SAM HARRIS E O MUNDO ISLÂMICO

Em seu livro A morte da fé, Harris defende que existem crenças boas e crenças más, dizendo que quando uma crença ameaça a existência de outros (ou de inocentes como as crianças) então devemos interceder. Para ele, o islamismo se mostra atualmente como uma crença belicosa, radical e perigosa para a própria existência do mundo secular, ou seja, o islamismo seria, agora, o que o cristianismo foi na Idade Média. Este foco específico nos preceitos islâmicos é que lhe rende frequentemente acusações de islamofobia. Harris deixa claro que vê no atual conflito a existência de duas visões de mundo que são incompatíveis. Um exemplo que ele nos dá é que o número de livros que a Espanha traduz para o espanhol por ano é maior do que o número total de livros traduzidos para o árabe desde o século IX. Muslim, por exemplo, quer dizer “aquele que se submete à vontade de Deus”. Esta seria uma Religião que se preocupa com o comportamento cotidiano muito mais do que apenas na

crença em certos preceitos. Ou seja, ser muçulmano é seguir certo estilo de vida, com certos preceitos práticos estabelecidos quando da criação desta Religião. Daí surge o conflito com o modo de vida secular contemporâneo. Por isso, dentre as religiões que mais crescem no mundo, a islâmica se apresenta mais distante dos valores seculares. O Corão 9, 123, por exemplo, fala “ó vós que credes! Combatei os renegadores da fé, que vos circunvizinham, e que estes encontrem dureza em vós, e sabeis que Allah é com os piedosos”. Não está claro como deve se dar este “combate”, no entanto, na literatura Hadith (literatura sobre a vida e ensinamentos de Maomé e que é usada para balizar a interpretação do Corão) este combate é mostrado de forma ainda mais belicosa, incluindo a pena de morte para apostasia (largar a Religião islâmica). Por isso, Harris nos fala que “os terroristas do 11 de setembro não eram covardes ou lunáticos, mas, sim, homens de fé”. Ao dizer isso, Harris não está afirmando que todos os muçulmanos sejam terroristas jihadistas e que deveriam ser tratados como tal. Ele entende que a

Harris é um dos mais polêmicos neoateístas pelas suas posições sobre a relação entre o mundo secular e o islã www.portalcienciaevida.com.br •

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Devemos considerar direito dos muçulmanos a submissão das mulheres e a pena de morte para os homossexuais? Até onde vai a tolerância secular e o relativismo cultural?

maior parte do mundo islâmico não é radical e não defende a morte de todos os infiéis. No entanto, além dos jihadistas radicais, há os islamistas, que não são violentos, mas querem propagar o islã para todo o mundo e não respeitam as crenças diferentes. Haveria ainda um terceiro grupo, os conservadores, que se preocupam mais com a própria Religião do que com a dos outros, mas são contra direitos humanos fundamentais, em especial em relação a mulheres e aos homossexuais. Estes três grupos juntos não seriam um pequeno grupo, mas em muitos países seriam a larga maioria, segundo Harris.

Voltei dos Mortos Recentemente um livro fez sucesso midiático por se tratar do neurocirurgião Eben Alexander III que teve morte cerebral, mas ainda assim passou por experiências que julgou serem de após a morte e tratou isso como Uma prova do céu (nome de seu livro). Ele está longe de ser o único que “volta dos mortos para contar história”. Mas a diferença neste livro é que um neurocirurgião julgou que seu córtex estava inoperante e daí tirou a conclusão de que este não é necessário para a experiência consciente e de que o céu existe. Seria uma prova de que a mente não é o cérebro, mas, sim, algo que sobrevive a este. No entanto, a revisora técnica da edição brasileira do livro, a mais conhecida neurocientista do Brasil, Suzane Herculano-Houzel, que é ateia, em sua página na internet dá a mais simples resposta para este fenômeno: ao contrário do que o Dr. Alexander falou, seu córtex provavelmente não estava inoperante. Em todo o seu livro, o aclamado neurocirurgião não dá prova científica alguma desta inoperância. Poderíamos ir mais além e dar o direito da dúvida para o Dr. Alexander. E se seu córtex estivesse realmente inoperante, isso seria prova de que ele esteve morto e foi ao céu? Não existiriam outras explicações mais simples e plausíveis? Para chegar a esta conclusão, teríamos de presumir que a ciência atual é capaz de definir precisamente o limite entre vida e morte. Mais ainda, precisaríamos presumir que o limite entre vida e morte é algo nítido, claro e inquestionável do tipo “tudo ou nada”. Mas não seria mais razoável entender que esta é uma área cinzenta, sem limites definidos? E se estes limites existem, não poderia a ciência atual eventualmente errar na atribuição destes limites em alguns casos particulares, mesmo que raros?

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Recentemente os doutores Peter Rhee (Universidade do Arizona) e Samuel Tisherman (Universidade do Maryland) foram capazes de reanimar animais que poderiam ser classificados como mortos, tendo tido todo seu sangue drenado e sua temperatura reduzida em 20 graus. Pretendem em breve fazer o mesmo com humanos. Talvez depois disso o limite entre vida e morte se expanda mais uma vez. Isso já aconteceu antes, na década de 1960, quando o Dr. Peter Safar introduziu a técnica de massagem cardíaca. O que era antes um paciente morto passou a ser visto como um paciente vivo e que poderia ser salvo. Não poderia ser este o caso do Dr. Alexander? Mesmo que ele tenha estado no limite da morte, de onde normalmente ninguém é capaz de voltar, mesmo que a recuperação deste da quase morte tenha sido extraordinária, ainda assim, como disse Christopher Hitchens, “qualquer supervisor de hospital em qualquer país dirá que algumas vezes os pacientes apresentam recuperações impressionantes”. Quando observamos muitos casos, o inesperado passa a ser ordinário. A recuperação de um paciente que normalmente não voltaria não implica diretamente que ele estava plenamente morto. E mais ainda, como saberemos se a experiência que ele teve se deu em seus dias de coma ou apenas no momento em que voltava à vida? Qualquer pessoa do mundo é capaz de se lembrar de sonhos que pareceram durar horas, mas quando vemos no relógio, estamos dormindo há apenas poucos minutos. Se ele estava realmente morto, não é mais plausível dizer que suas experiências se deram apenas após a volta à vida, mesmo que pareçam ser anteriores para ele?

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Surge, então, a questão mais polêmica proposta por ele: saber até que limite o mundo secular deve respeitar as crenças e preceitos postos em prática pelo mundo religioso em geral, e pelo islamismo em particular. Devemos considerar direito dos jihadistas sírios que vão aos acampamentos de refugiados exigir sexo com meninas menores de idade por considerarem isso também uma forma de jihad que elas são, então, obrigadas por dever religioso? E a mutilação feminina em países da África, deve ser respeitada como parte da cultura religiosa deles? E a pena de morte para apostasia? E a condenação de Salman Rushdie? E o Papa ou seus cardeais indo a países africanos assolados pela aids e dizendo para não usarem camisinha? E a proibição de pesquisas com células-tronco? E a quantidade de morte em abortos malfeitos? E a direita religiosa norte-americana que vê com bons olhos a destruição de Israel porque entende que este é um dos últimos sinais bíblicos do apocalipse? A Religião tem sido uma fonte histórica de violência, nos Bálcãs, na Irlanda do Norte, na Cachemira, no Sudão, no Sri Lanka, na Indonésia, no Cáucaso, no Azerbaijão e o exemplo mais recente, na Síria e no Iraque com o avanço do Estado Islâmico. Até que limite ela deve ser respeitada? A resposta de Harris é que o respeito se dá a quem também retribui com respeito. Ou seja, se sua Religião ou modo de vida permite que pessoas com outras religiões e outros modos de vida possam existir pacificamente e praticar livremente as ações que lhes dizem respeito,

Para Harris, o absurdo de toda esta situação que nós estamos, neste momento, matando uns aos outros por literatura antiga

aí a tolerância deve ser retribuída com tolerância. Caso contrário, e este é o cerne de toda polêmica envolvendo Harris, devemos defender a própria existência dos valores seculares pelos meios necessários. Devemos interceder, mesmo que militarmente. Não vemos guerra e mortes porque certas pessoas gostam mais de gatos e outras gostam mais de cachorros. Mas vemos porque certas pessoas gostam mais de um livro antigo e outras gostam mais de outro. Talvez isso não seja claro porque nos acostumamos com os absurdos desta literatura por ouvi-los diariamente desde criança. Como disse o comediante Bill Maher, outro neoateu, se você quiser ver o quão estranho são as crenças de uma Religião, o melhor é ver uma nova Religião para a qual ainda não acostumamos com os seus mitos, como a Cientologia, que pode ser visto no livro Prisão da fé, de Lawrence Wright. Para um cientologista, um tirano chamado Xenu que governava a Con-

federação Galática 75 milhões de anos atrás, com alguns conspiradores (na maioria psiquiatras!), fez uma matança em massa e colocou os corpos em algo parecido com aviões, transportando bilhões deles para Teegeeack, conhecida hoje como planeta Terra, onde foram jogados em vulcões e explodidos com bombas de hidrogênio. Mas estes eram imortais e flutuaram para fora libertados de seu corpo, onde foram capturados e submetidos a uma espécie de lavagem cerebral. O planeta foi abandonado pela Confederação, mas estas “almas” ficaram lá se ligando às pessoas vivas e atrapalhando a vida destas e seu progresso espiritual. Um exemplo ainda mais interessante é o culto à carga, onde indígenas da Polinésia fazem pistas de avião e estátuas de avião por acreditar que eles são seus Deuses e voltarão trazendo benesses como fizeram durante a II Grande Guerra. Curiosamente, mesmo depois de todo este ataque ácido à Religião, Sam Harris defende que há muito na visão religiosa de mundo que pode ser visto como positivo, como a compaixão e a devoção. Harris é também um aberto defensor da meditação e de um misticismo com preceitos seculares, mas defende que a ética deve ser estudada pela ciência, se desligando de preceitos religiosos. Assim, Dawkins, Dennett, Harris e Hitchens formam o quaternário apocalíptico do neo-ateísmo. No entanto, nenhum deles advoga pela proibição da Religião, mas apenas por sua retirada da esfera política e substituição pelos valores seculares. Ser ateu, hoje em dia, é muito mais uma questão política do que religiosa.

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