Neoconstitucionalismo internacionalizado e a internacionalização do direito: o engajamento tardio do direito constitucional do Brasil na esfera internacional

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LEGALE, Siddharta. Neoconstitucionalismo internacionalizado e internacionalização do diretio: o engajamento tardio do direito constitucional do Brasil na esfera internacional. In: Carmen Tirburcio. (Org.). Direito Internacional - Coleção 80 anos da UERJ. 1ed.Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, v. , p. 543-570.

NEOCONSTITUCIONALISMO INTERNACIONALIZADO E A INTERNACIONALIZAÇÃO DO DIREITO: O ENGAJAMENTO TARDIO DO DIREITO CONSTITUCIONAL DO BRASIL NA ESFERA INTERNACIONAL1 Siddharta Legale2

1. ASPECTOS GERAIS “Ontem, os Códigos; hoje, as Constituições” 3. Amanhã, os tratados4. As palavras iniciais empregadas aqui servem para deixar evidente a necessidade de realizar um balanço crítico dos marcos do neoconstitucionalismo para, a um só tempo, apresentar algumas propostas de atualização e aprimoramento do mesmo por meio do confronto e simbiose com transconstitucionalismo 5, com o constitucionalismo em escala mundial6 com constitucionalismo multilevel7, constitucionalismo global ou qualquer outro nome que seja atribuído a um movimento que pretenda efetivar direitos humanos fundamentais e a democracia sem se circunscrever ao Estado-nação8.

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O presente texto foi elaborado por conta da comemoração dos 80 anos da Faculdade de Direito da UERJ. Ingressei no Doutorado em Internacional da UERJ em 2014, embora o diálogo com alunos e professores da casa seja antigo por meio de palestras, cursos e, em especial, no estágio no então escritório Luís Roberto Barroso & Associados, desde cedo na graduação na UFF. Para minha geração, a Faculdade de Direito da UERJ tem sido um berço de importantes contribuições sobre o neoconstitucionalismo e a constitucionalização do direito. Esta singela homenagem é um agradecimento ao intercâmbio constante de ideias e afetos que encontrei nos amigos antigos e novos desta instituição. 2 Professor de Direito Constitucional da UFJF-GV. Doutorando em Direito Internacional pela UERJ. Mestre em direito constitucional e Bacharel pela UFF. 3 A frase foi proferida pelo Professor Paulo Bonavides ao receber a Medalha Teixeira de Freitas no IAB em 1998. Cf. BARROSO, Luís Roberto Barroso. Curso de direito constitucional contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 368 4 Revemos, atualizamos, amaduremos ou aprofundamos algumas de nossas reflexões desenvolvidas inicialmente em: LEGALE, Siddharta. A Constituição Reinventada pelas Crises: do Neoconstitucionalismo ao Constitucionalismo Internacionalizado. Revista Direito Público n. 32, 2010, p. 158 e ss. 5 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 6 ACKERMAN, Bruce. A ascensão do constitucionalismo mundial. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (Coord). A constitucionalização do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. 7 PERNICE, Ingolf. The Global Dimension of Multilevel Constitutionalism A Legal Response to the Challenges of Globalisation. Völkerrecht als Wertordnung /Common Values in International Law: Festschrift für Christian Tomuschat /Essays in Honour of Christian Tomuschat, 2006. 8 TUSHNET, Mark. The Inevitable Globalization of Constitutional Law. Harvard Law School Public Law & Legal Theory Working Paper Series Paper No. 09-06. Disponível em: http://ssrn.com/abstract=1317766. Confira-se também: FERNANDES, Bernardo Gonçalves Alfredo. Direito Constitucional e Democracia: Entre a Globalização e o Risco. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

O transconstitucionalismo considera, em síntese, que qualquer ordenamento jurídico ou modelo de racionalidade possui pontos cegos, de modo que propõe “pontes de transição” ou “conversações constitucionais” entre os planos locais, estatais, transnacionais, internacionais ou supranacionais. Por meio do diálogo entre os diversos planos estatais, interestatais e não estatais procura-se estabelecer uma racionalidade transversal, capaz encontrar soluções melhores para os problemas constitucionais semelhantes. A simbiose proposta entre os movimentos será articulada realizando uma apreciação crítica dos marcos do movimento, por meio da avaliação do que se mantém consistente e do que se revela anacrônico em comparação com transconstitucionalismo, bem como do que poderia ser aprimorado em ambos por meio da aproximação teórica recíproca. Inicialmente, serão apresentados os conceitos centrais e uma crítica aos seus marcos histórico, filosófico e teórico do neoconstitucionalismo, a partir de um olhar que acentua o encontro entre direito constitucional, comparado, internacional e os direitos humanos. Questiona-se, por exemplo, se que o marco histórico do neoconstitucionalismo colocado no pós-guerra é adequado para compreender um mundo que deixou de ser bipolar, dividido entre socialismo e capitalismo? Será que o marco filosófico do póspositivismo é suficiente para pensar problemas em escala global? Será que realmente a teoria constitucional do pós-guerra descrita pela combinação da força normativa da constituição, com expansão do controle de constitucionalidade e com a nova interpretação constitucional ainda são pautas contemporâneas? Reconhecendo os méritos e limitações do neoconstitucionalismo, procura-se questionar se a passagem de um mundo bipolar do pós-guerra para um mundo multipolar e globalizado como de hoje não exigiria outros marcos ou, pelo menos, alguma revisão e reformulação dos antigos. Combina-se descrição, crítica e algumas propostas. Não se pretende romper, desmerecer, rebaixar as importantes conquistas do movimento neconstitucionalista, notadamente no Brasil, mas apenas chamar atenção para necessidade de repensar a teoria constitucional convencional a partir de outras chaves e questões tradicionalmente deixadas em segundo plano pelo movimento. Não se pretende reduzir as propostas teóricas a uma disputa teórica entre o neoconstitucionalismo e o transconstitucionalismo, do novo contra o mais “novo”, do certo contra o errado, do ilustrado contra a visão obtusa da realidade, do ultrapassado contra o atual. Nada disso. Neo e transconstitucionalismo possuem cada qual seus méritos

e limitações, potencialidades e pontos cegos. Juntos, revelam um potencial transformador bem mais elevado do que separados. Os méritos do neconstitucionalismo são bem conhecidos no Brasil e dispensam maiores comentários. Exclusivamente por isso, o texto se dedica mais à crítica do que ao elogio, mais às proposições teóricas do que a descrição. Avançamos e podemos avançar mais se os dois movimentos teóricos dialogarem, o que parece possível tendo em vista que compartilham de certas premissas comuns que possibilitam a construção de um direito constitucional internacional mais coerente e complexo que auxilie na construção de uma sociedade nacional e internacional mais justa e democrática9. Enfim, por que não um neoconstitucionalismo internacionalizado? Esse é o problema e a provocação central do presente texto.

2. EXPOSIÇÃO DOS MARCOS DO NEOCONSTITUCIONALISMO Convencionou-se chamar de neoconstitucionalismo, o movimento ou os movimentos10 sob os seguintes marcos na consagrada síntese do prof. Luís Roberto Barroso: (i) histórico – o pós-guerra; (ii) filosófico – o pós-positivismo; e (iii) o teórico – a força normativa da constituição, a nova interpretação constitucional e a expansão da jurisdição constitucional11. As Constituições do pós-guerra, como a alemã e a italiana, passaram a ser mais 9

Nesse sentido, MAZZUOLI, Valério e GOMES, Luiz Flávio Gomes. Direito supranacional. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2010. Usando o termo neoconstitucionalismo supranacional sem explicitar bem o sentido e origem do neoconstitucionalismo empregado aqui. Cf. MACHADO, Jonathas. Direito da União Européia. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p.33-60. 10 Sobre a universalização da democracia, Cf. Sobre a difusão da democracia no mundo, leia-se SEN, Amartya. Democracy as a Universal Value. Disponível em: 11 Sobre o tema, Cf. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de e SARMENTO, Daniel (Coord.) A Constitucionalização do direito: Fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 203 e ss. Para uma visão crítica do fenômeno, Cf. DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p..219. Sobre a crítica ao pendor judicialista, à preferência pro princípios e a panconstitucionalização, Cf. SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e possibilidades. In: Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.132 e ss. Sobre a crítica democrática e metodológica à constitucionalização, Cf. SARMENTO, Daniel. Ubiqüidade constitucional: os dois lados da moeda. In: Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento, A Constitucionalização do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 113-48. CARBONELL, Miguel. El neoconstitucionalismo en su laberinto. In: CARBONELL, Miguel.(Org.) Teoría Del neoconstitucionalismo. Editorial trotta, instituti de investigaciones jurídicas UNAM, sem data, p.1. O autor já havia tratado da mesma idéia anteriormente; CARBONELL, Miguel. Prólogo: Nuevos tiempos para el constitucionalismo. In: CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s) Madrid: Editorial Trota, 2003; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. O dilema constitucional contemporâneo entre o neoconstitucionalismo econômico e o constitucionalismo democrático. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; LIMA, Martonio Mon’alverne Barreto. Diálogos constitucionais: Direito, Neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

comumente retratadas, do ângulo formal, como o centro ou cume do ordenamento jurídico que serviria de parâmetro para as demais normas, enquanto, do ponto de vista material, passaram a ser cartas principiológicas, destinadas a conformar a realidade. É verdade que desde o século XIX difundiu-se o paradigma de a Constituição ser o documento superior da ordem jurídica, notadamente, por influência do constitucionalismo norte-americano, com o precedente Marbury vs. Madison (1801). No entanto, o que se defende é que a intensidade e qualidade desse controle mudaram após a segunda guerra mundial, consolidando-se uma força normativa de algumas Constituições12. A nova interpretação constitucional ampliou a força normativa da constituição, bem como permitiu uma contextualização e atualização constante. A proposta coloca, ao lado dos elementos ou métodos clássicos de interpretação (gramatical, sistemático, histórico e teleológico), novos princípios específicos de interpretação constitucional, como o da unidade da Constituição, máxima efetividade da Constituição, proporcionalidade e etc. Opera-se não só com a subsunção, mas também com a ponderação como forma de equacionar as colisões entre princípios13. Há uma vinculação não apenas à lei em sentido clássico, mas à lei no sentido pós-positivista14, como vinculação ao ordenamento, à juridicidade 15, à Constituição. Dá-se uma passagem do Estado legislativo de direito para um Estado Constitucional de direito 16. A expansão da jurisdição constitucional, por sua vez, erigiu-se em verdadeira

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HESSE, Konrad. La fuerza normativa de la Constitución. In: Escritos de derecho constitucional, 1983, p. 59-84. ENTERRÌA, Eduardo García de. La Constitución española de 1978 como pacto social y como norma jurídica, Madrid: Inap, 2003. Entre nós, BARROSO, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais: por que não uma Constituição para valer? In: O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Editora Forum, 2012, p. 57-97. BARROSO, Luís Roberto. A doutrina brasileira da efetividade. In: Temas de direito constitucional, t. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio democrático. In: BARROSO, Luís Robert (Org.), A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 13 Para mais detalhes sobre a interpretação constitucional no neoconstitucionalismo, Cf. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7ª. São Paulo: Saraiva, 2010. BARCELOS, Ana Paula. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. SARMENTO, Daniel. Os princípios constitucionais e a ponderação de bens. In: LOBO TORRES, Ricardo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. 14 ARAGÃO, Alexandre. A concepção pós-positivista do princípio da legalidade. Revista de direito Administrativo n. 236, 2004 15 BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: renovar, 2006, p. 9-45. OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Público : o sentido de vinculação à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003. 16 FERRAJOLI, Luigi. Pasado y futuro del Estado de derecho In: CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s) Editorial Trotta

garantia institucional à proteção do conteúdo da Constituição 17. O controle jurisdicional de constitucionalidade das leis foi amplamente difundido no mundo e até países que adotavam um modelo de separação rígida dos poderes passaram a prever fórmulas análogas recentemente. Houve no período uma intensa judicialização da vida e da política18. Temas que tradicionalmente não ingressavam no judiciário são discutidos nessa seara e, ainda, o Judiciário adota um papel mais ativo, concretizando princípios jurídicos indeterminados e certas normas constitucionais, não raro tendo que lançar mão de competências implícitas. A Corte Constitucional é convocada a tratar a Constituição como norma, o que conduziu a inúmeros debates e controvérsias sobre a legitimidade democrática do Poder Judiciário e o seu papel contramajoritário 19 ou representativo20.

3. APRECIAÇÃO CRÍTICA DO NEOCONSTITUCIONALISMO E PROPOSTAS PARA SUA INTERNACIONALIZAÇÃO Pretende-se, a seguir, lançar uma profunda e incisiva crítica aos marcos do neconstitucionalismo. Cabem três observações preliminares. A primeira é que muitas críticas já estão sendo publicadas em diversos livros e artigos acadêmicos21 de forma esparsa, de modo que trataremos de compilar, incrementar ou desenvolver outras. A segunda é que não se pretende invalidar um movimento, mas apenas realizar uma reflexão crítica sobre seus rumos. Por fim, o confronto e simbiose com o transconstitucionalismo 17

Existe um debate clássico entre quem deveria ser o guardião da Constituição em que Kelsen defendeu que deveria ser um tribunal constitucional, enquanto Carl Schmitt o Chefe do Executivo. Cf. KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 18 WERNECK VIANNA, Luiz; CARVALHO, Maria Alice Resende de. Manoel Palacios Cunha Melo; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 19 Existem diversas posições sobre a compatibilidade entre jurisdição constitucional e a democracia. Pela compatibilidade parcial, Cf. BICKEL, Alexander. The last dangerous branch. Yale University Press, p. 133. Pela compatibilidade plena considerando uma jurisprudência dos valores, Cf. BACHOFF, Otto. Jueces y constitución. Madrid: Editorial civitas, 1987, p. 9- 69. Pela incompatibilidade, propondo inclusive a abolição da corte constitucional, Cf. TUSHNET, Mark. Taking the constitution away from the Courts. Princeton: Princeton University, 2000. 20 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Representação democrática do Judiciário: reflexões preliminares sobre os riscos e dilemas de uma ideia em ascensão. Disponível em: CAMARGO, Margaria Maria Lacombe; NETTO, Fernando Gama de Miranda. Representação Argumentativa: fator retórico ou mecanismo de legitimação da atuação do STF?. 2010. Disponível em: 21 ÁVILA, Humberto. "Neoconstitucionalismo" entre a ciência do direito e o direito da ciência. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel, BINENBOJM, Gustavo. (Coord.) Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. E FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Notas sobre o direito constitucional pós-moderno, em particular sobre certo neconstitucionalismo à brasileira. Revista de Direito Administrativo vol. 250, 2009. SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e possibilidades. In: Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.132 e ss.

serve para neoconstitucionalismo atentar mais intensamente ao processo de globalização, em especial no diálogo entre os direitos humanos e fundamentais22. Vale ressaltar que que o próprio Prof. Luís Roberto Barroso – principal representante do movimento no Brasil - vem aprimorando uma série de ideias ao longo dos últimos anos, trabalhando a maior abertura ao direito internacional, tendo abordado a questão em dois livros recentes: um dedicado à dignidade da pessoa humana na perspectiva comparada23 e outro, em conjunto com a Profa. Carmen Tiburcio, sobre uma série de temas do direito constitucional internacional24.

3.1. O MARCO HISTÓRICO: DO PÓS-GUERRA AO MUNDO MULTIPOLAR O mundo bipolar do pós-guerra é bastante diverso do mundo multipolar depois da queda do muro de Berlim (ou posterior aos atentos de 11 de setembro de 2001). Esse mundo antigo parece bastante distinto à realidade atual. A própria ONU que possuía cerca de 60 países inicialmente hoje alcança a cifra de cerca 200. O marco histórico no pósguerra tem como mérito acentuar a reaproximação entre direito e moral, face os horrores do nazismo. Parece relativamente antiquado, porém, diante das profundas modificações das relações internacionais em um mundo multipolar, bem como da intensificação com revolução científica e tecnológica das comunicações e do comércio internacional. Acrescente-se a isso, as reinvindicações por um processo de descolonização real, de uma emancipação do “Sul” e as limitações do marco tornam-se mais evidentes. Na América latina25, face ao movimento em defesa de um Estado plurinacional e descolonizador na Bolívia e Equador dos últimos anos, tem se reivindicado cada vez mais um pensamento que incorpore o pensamento das populações originárias e o conhecimento local. Não é necessário trocar como marco Berlim por La paz, Nova Iorque por Quito ou Paris pelo Rio de Janeiro fará pouca diferença se não estivermos cientes de que qualquer 22

Sobre a ascensão dos direitos humanos, TRINDADE, Antonio Augusto Cançado Trindade. O direito Internacional em um mundo em transformação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 671-722. 23 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013. 24 TIBURCIO, Carmen e BARROSO, Luís Roberto. Direito Constitucional Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. 25 Abordando brevemente a aclimatação do neoconstitucionalismo em relação à América Latina em razão da combinação entre os três marcos Cf. CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo: elementos para uma definición. In: MOREIRA, Eduardo Ribeiro e PUGLIESI, Marcio Pugliesi. Vinte anos da Constituição brasileira, 2009. Vale destacar, porém, que existem diferenças mais vincadas entre o neo e o novo constitucionalismo latino-americano, que não será possível aprofundar no presente trabalho.Por todos, Cf. DALMAU, Rubens Martinez. ¿se pude hablar de un nuevo constitucionalismo latinoamericano como corriente doctrinal sistematizada? Trabalho apresentado no Congresso Mundial de Direito constitucional, 2010. Disponível em:

marco é contingente e subjetivo: uma escolha, com certo apoio da realidade, para simbolizar ideias e ideais relevantes para nossa época. Do olhar de quem cresceu e viveu nos anos 90 com contato cotidiano com a internet e, por meio ela, com qualquer parte do globo é estranho pensar em um movimento de direitos confinados nas fronteiras de um Estado-nação apenas. Como bem destaca Manuel Castells, vive-se em uma sociedade em rede. O autor explica que de menos de quarenta milhões de usuários de internet em 1995 passou-se para a incrível cifra de 1,5 bilhão em 200926. O mundo do pós-guerra (1945-90), sob essa lente, parece uma espécie de préhistória do presente: um mundo “pré-google”, “pré-facebook” e “pré-youtube”, um mundo anterior à sociedade da informação. O fluxo de mercadorias, serviços e pessoas também se ampliou substancialmente no período. É preciso garantir direitos e a própria democracia na tomada de decisões. E isso não é possível apenas com base exclusivamente em Constituições nacionais. O neoconstitucionalismo, por mais que tenha flexibilizado avançando com a nova interpretação constitucional ao explorar técnicas como a ponderação, ainda precisa aprimorar

uma

hermenêutica

que

considere

redes

de

interlegalidade

e

interconstitucionalidade típicas de uma sociedade em rede, que considera as experiências e decisões estrangeiras e internacionais a sério. O neoconstitucionalismo precisa se abrir mais para o intercâmbio estrutural com outras culturas constitucionais, ao direito comparado e também ao direito internacional. O Direito Internacional teria, certamente, muito a ganhar ampliando a sua metodologia por meio da abertura, por ex., à ponderação. Em segundo lugar, muitos acontecimentos transcorreram entre a queda do muro de Berlim e a derrubada das Torres gêmeas do World Trade Center. Houve uma mudança profunda na maneira dos estados e nações se relacionarem. A sociedade internacional sai de um mundo bipolar marcado divisão entre capitalismo e socialismo para um mundo complexo com vários polos de poder econômico, político e cultural. Supera-se a fase dos conflitos de larga escala e a tensão da guerra fria. Não se está dizendo, com isso, que se presenciou o fim da história. Óbvio que não. Os conflitos mais retratados mudaram de endereço: envolvem hoje mais o terrorismo, intervenções armadas e ingerências humanitárias. Envolve disputas entre o norte e o sul, ocidente e oriente, antigas colônias e metrópoles. Afirma-se que a história dos últimos vinte ou 30 anos é substancialmente diferente do que foi no pós-guerra. Sendo assim, o movimento constitucional que não

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CASTELLS, Manuel A sociedade em rede. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1999, p.IX.

considera atentamente esse mundo plural, multipolar e complexo não terá condições de dar corpo às suas próprias premissas: a proteção de direitos ou a maneira de compartilhar o poder para evitar abusos.27 Não é surpresa, por isso, que o neoconstitucionalismo tenha desenvolvido poucas considerações a propósito, por exemplo, do entrelaçamento entre o patamar de normatividade constitucional nacional com o internacional ou entre os demais estados e nações. É precisamente nesse ponto que se originam as dificuldades em entender, explicar e operar com uma pluralidade de fontes normativas e com o diálogo de fontes. Entendese, com isso, a origem das resistências de boa parte dos constitucionalistas com relação à convergência entre common law e civil law de forma menos vincada, à normatividade dos direitos humanos face de direitos fundamentais, ou ainda, a maneira de arquitetar instituições vocacionadas ao intercâmbio entre culturas diferentes 28. Sem dúvida o marco histórico do neoconstitucionalismo, é no mínimo questionável29. É claro que toda escolha de um marco representa uma escolha apta a representar certas ideias e a colocar outras em segundo plano. De um lado, o marco permitiu incluir com cuidado a nova fase de proteção dos direitos fundamentais em um texto constitucional aberto a uma nova interpretação e dotado de supremacia. Por outro, revela-se insuficientemente sensível ao diálogo entre direitos humanos fundamentais com sistemas regionais de direitos humanos, com Cortes internacionais estrangeiras e um diálogo mais intenso com as organizações internacionais30. É verdade que os estudos de caráter cosmopolita que incorporem maior normatividade começam na Declaração Universal de Direitos humanos (1948), os pactos de direitos civis e políticos e o pacto de direitos sociais e econômicos (1966) são importantes por iniciarem uma tendência de universalização dos direitos, a despeito da polarização entre ambos os Pactos contraponto Inglaterra e EUA à Rússia e China. No entanto, apenas em 1976, os pactos entraram em vigor e, ainda assim, muito marcados pelo contexto do pós-guerra.

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FUKUYAMA, Francis. The End of History? Disponível em: 28 PERRONE, Patrícia. Precedentes. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. 29 Para um questionamento do marco histórico do pós-guerra, por já haver supremacia da Constituição anteriormente, Cf. DIMOULIS, Dimitri. Uma visão crítica do neoconstitucionalismo. In: SALOMÃO, George Leite e SALOMÃO, Glauco Leite (Coord.). Constituição e efetividade. Salvador: Juspodivm, 2008. 30 Numa linha kantiana, trabalhando os elementos para uma jurisdição universal, Cf. FERREIRA, Gustavo Sampaio Telles. A “Paz Perpétua” no pensamento kantiano e os fundamentos de um Tribunal Penal Internacional Permanente. Revista de Direito da Universidade Veiga de Almeida n. 1. Disponível em: http://www.uva.br/icj/revista_direito_icj/gustavo_sampaio.htm

Outra dificuldade diz respeito aos sistemas regionais de proteção judicial. Embora a Convenção Americana de Direitos humanos tenha entrada em vigor em 1978, apenas na década de 90 o sistema ganha tração31. Foi tão-somente nos anos 2000 que se consolidou, expressamente e com essas palavras, o controle de convencionalidade 32 das leis nacionais à luz do Pacto de São José da Costa Rica pela Corte Interamericana de Direitos humanos, como veremos mais adiante. Nas palavras do professor Cançado Trindade, há um novo jus gentium com o fortalecimento do jus cogens, uma humanização do direito internacional e uma expansão do acesso à justiça internacional pelo ser humano 33. É necessário, porém, perceber que ampliação do diálogo do sistema nacional de proteção dos direitos fundamentais com os sistemas de integração regional ou dos direitos humanos oriundos da globalização é mais recente. A maneira de proteger direitos começa a mudar ou a ser complementar: as Cortes internacionais passaram a ditar normatividade em relação aos Estados – um cenário que se não é inédito, ao menos, parece extremamente raro. O movimento vem se atualizando nesse sentido. É emblemático e representativo dessa tendência as colocações do prof. Luís Roberto Barroso sobre a dignidade da pessoa humana, que toma a globalização como característica essencial do mundo moderno, que promove a “confluência entre Direito Constitucional, Direito Internacional e Direitos Humanos” diz respeito a tentativa de instituições nacionais e internacionais conjugarem “um mundo de democracias, comércio justo e promoção dos direitos humanos”34

3.2. O MARCO FILOSÓFICO: DA VIRADA KANTIANA À VIRADA COSMOPOLITA Dentre os neoconstitucionalistas, é comum dizer que isso, especialmente em razão da normatividade dos princípios, na linha de Ronald Dworkin e Robert Alexy. Essa reaproximação entre direito e moral ensejou uma “virada kantiana”35 para usar a expressão popularizada pelo prof. Ricardo Lobo Torres. Destaca-se, porém, que essa pode

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CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos humanos vol. III. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 31 e ss. Do mesmo autor Cf. O sistema interamericano de direito humanos no limiar do novo século: recomendações para o fortalecimento de seu mecanismo de proteção.In:GOMES, Luiz Flávio;PIOVESAN, Flávia.O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 81 e ss. 32 O termo aparece pela primeira vez na CIDH no caso Mack Chang vs. Guatemala (2003) em voto apartado do juiz Sergio Garcia Ramirez. 33 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. The access of individuals to international justice. Oxford: Oxford University Press, 2011 34 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporânea. Belo Horizonte: Forum, 2013, p. 11-12; 35 LOBO TORRES, Ricardo. Tratado constitucional financeira e tributário: valores e princípios constitucionais tributários. vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 6

ser mais ou menos intensa por conta da incorporação da moral ao direito, seja ela decorrente de uma aproximação necessária entre direito e moral (pós-positivismo), seja ela decorrente de uma aproximação contingente e pontual (positivismo moderado) 36. Atualmente, como bem destaca do prof. José Vicente Santos de Mendonça, há uma tendência tanto a uma “virada deliberativa” que incorpora uma racionalidade de tomada de decisões pautada no diálogo em razão da ampliação dos interlocutores como forma de ampliar a probabilidade de acertos, quanto uma “virada pragmatista” ou uma “virada institucional” na qual se pensa na tomada de decisões a partir das capacidades das instituições, do contexto em que são produzidas e das consequências próximas (ou não remotas) e comprovadas empiricamente37. Essa virada acaba por rejeitar valores em abstrato ou desacoplados dos contextos e instituições. Não se trata, portanto, pragmatismo inconsequente ou desalmado. O próprio professor destaca a necessidade de cotejar o pragmatismo com a noção de razão pública 38, ou seja, com argumentos aceitáveis potencialmente perante a esfera pública. É necessário traduzir tais viradas para o plano internacional, estimulando o que pode ser batizado de uma “virada cosmopolita” 39. Essa nova virada auxiliará a superar dicotomias como monismo e dualismo, voluntarismo e objetivismo no direito internacional. Considerando certo que houve “o sepultamento definitivo da idéia de que o Estado é o titular do monopólio da produção de normas jurídicas”40-41, é preciso que

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BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 37 Confira-se o cap. 1 de MENDONÇA, José Vicente Santos de. Direito Constitucional Econômico. Belo Horizonte: Editora Forum, 2014. 38 Sobre o conceito de razão pública, Cf. RAWLS, John. Political liberalism. New York: Columbia University, 2005, cap. 6. Para uma aplicação do conceito para facilitar o diálogo entre os povos do mundo, Cf. RAWLS, John. Direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 39 As propostas nesse sentido inspiram-se em um ideal Kantinano de um direito comum da humanidade. Kant classifica o direito em: 1) conforme o direito público (Staatsbürgerrecht) dos homens em um povo (jus civitatis); 2) Conforme o direito internacional (Völkerrecht) dos Estados nas suas relações recíprocas (jus gentium); 3) conforme o direito cosmopolítico (Weltbürgerrecht), na medida em que os homens e os Estados, estando numa relação externa de influência recíproca, são considerados cidadãos de um Estado universal da humanidade (jus cosmopoliticum). É interessante perceber na nota de rodapé do autor a frase anterior à classificação. A frase que antecede é esta: “Portanto, o postulado que está na base de todos os artigos seguintes é: todos os homens que podem exercer um sobre o outro influências recíprocas devem pertencer a uma constituição civil qualquer.” KANT, Immanuel. Para a Paz perpétua. In: A paz perpétua. São Paulo: perspectiva, 2004, p.51 e ss. Para um balanço da importância, Cf. HABERMAS, Jurgen. A idéia kantiana de paz perpétua – à distância histórica de 200 anos. In: A inclusão do outro – estudos de toeira política. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 193 e ss. 40 SARMENTO, Daniel Constituição e Globalização: a crise dos paradigmas do direito constitucional. In: Programa de Pós-Graduação da UERJ. (Org.). Anuário Direito e Globalização - "A soberania". Rio de Janeiro: Renovar, 1999, v. 1, p. 53-70. 41 A respeito, vale atentar para as transformações também da doutrina clássica da imunidade de jurisdição. Cf. TIBURCIO, Carmen. As novas tendências da Imunidade de jurisdição no direito internacional e no

se leve em conta a experiência de outros Estados e das Organizações Internacionais. Dessa forma, é essencial limitar e reler o exercício da soberania ou a sua relativização a partir dos direitos humanos, das normas de jus cogens, enxergadas sob a lente de uma constitucionalização do direito internacional. Mais do que isso, espera-se transportar e adaptar, de um lado, a normatividade dos princípios conquista no plano nacional para o internacional e, por outro, permitir um debate em uma esfera pública mais ampla amparada que permita obter novos interlocutores e mais informações e subsídios empíricos por meio da comparação jurídica que auxiliem a decidir melhor. Levar a sério essa “virada cosmopolita”42 significa reconhecer a ampliação da normatividade internacional e oferecer um esforço racionalizar um pouco mais a política também por meio da ordem jurídica internacional, de modo a superar tanto um provincianismo nacionalista, quanto um internacionalismo utópico. O diálogo entre ambos os campos (e não a preferência unilateral a priori de um deles) é que deve pautar a argumentação jurídica43. Para tanto, é preciso pensar em formar de democratizar as instâncias de poder internacional. Pode-se apontar, como componentes lógicos, pelo menos, a adoção de determinados tratados-constituição com supremacia, o reconhecimento do jus cogens44 com determinadas normas imperativas de direito internacional em contraposição a uma margem de apreciação nacional e, ainda, a criação de ordens constitucionais pela comunidade internacional ao lado de uma judicialização de valores superiores da comunidade internacional por meio de Cortes Internacionais. Mattias Kumm coloca, de forma precisa e interessante, a questão de que o coração das preocupações morais no plano internacional estão quatro princípios: legalidade internacional; subsidiariedade jurisdicional; adequada participação e accountability; e o princípio substantivo de alcançar resultados razoáveis que não violem os direitos

direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto; e TIBURCIO, Carmen. Direito constitucional internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, 41 ACCIOLY, Hildebrando. Manual de direito internacional público. São Paulo: Saraiva, 1993,p .8. 42 Sobre os dilemas dessa virada cosmopolita, destacando a dificuldade de um Constitucional com C maiúsculo que garanta direitos humanos, democracia e estado de direito no plano internacional Cf. KUMM, Mattias. The Cosmopolitan Turn in Constitutionalism: An Integrated Conception of Public Law. Indiana Journal Of Global Legal Studies 20, 2013, p. 605 e ss. 43 SARMENTO, Daniel. SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Editora Forum, 2012, p. 450. SARMENTO, Daniel. Intepretação constitucional cosmopolita. Disponível em: 44 Vale lembrar que desde a Convenção de Viena de 1969, ratificada pelo Brasil em 2009, o jus cogens deixou de ser uma mera especulação acadêmica ou judicial, tendo amparo normativo no art. 53. Para uma maior reflexão sobre o tema vale conferir os capítulos I, II, IXX e XX:. TOMUSCHAT, Christian; e THOUVENIN, Jean-Marc (Org). The Fundamental Rules of International Legal Order. Leiden, Boston: Martinus Nijhoff, 2006.

fundamentais. O autor destaca esses quatro princípios como formas de procurar harmonizar o encontro tenso e sinérgico entre o direito internacional com o direito interno, sem estabelecer uma primazia de um ou de outro 45. Por fim, destaque-se ser possível identificar pelo menos três desdobramentos entrelaçados dessa virada cosmopolita em relação às releituras do direito internacional 46. Em primeiro lugar, a reivindicação de uma interjusfundamentalidade, ou seja, de um diálogo e intercâmbio das experiências constitucionais em proteger e efetivar direitos fundamentais entre si e entre o plano nacional e o internacional47. Em segundo lugar, uma maior reinvindicação de que os procedimentos de participação nas organizações internacionais sejam democráticos 48. Em terceiro lugar, uma profunda mudança na compreensão das fontes do direito internacional, conforme veremos em nossa proposta de atualização dos marcos teóricos para um neoconstitucionalismo internacionalizado.

3.3. OS MARCOS TEÓRICOS DO NEOCONSTITUCIONALISMO INTERNACIONALIZADO: CONSTITUIÇÕES TRASNACIONAIS, COMPARAÇÃO JURÍDICA E CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE As críticas aos marcos teóricos serão sistematizadas a partir dos próprios marcos do neconstitucioanlismo. Logo em seguida, pretende-se atualizar esses três marcos teóricos do neoconstitucionalismo, contrastando a força normativa da Constituição com o advento das Constituições transnacionais49, a nova interpretação constitucional com a necessidade de expandir e aprimorar a comparação jurídica e, por fim, a expansão da jurisdição constitucional à difusão do controle de convencionalidade. Em síntese, no âmago de um neoconstitucionalismo internacionalizado encontram-se: as constituições transnacionais, a comparação jurídica e o controle de convencionalidade. 45

KUMM, Mattias. Democratic constitutionalism encounters international law: terms of engagement. In: CHOUDRY, Sujit. Migration of constitutional ideas. Cambridge: Cambrigde University Press, 2006, p. 256. 46 LOBO TORRES, Ricardo. Op. Cit, p. 316-7. 47 Além da constitucionalização como a irradiação dos direitos fundamentais, o professor Ricardo Lobo Torres chama atenção para abertura da Constituição não apenas para o sistema político, mas também ao econômico, financeiro e internacional. Cf. LOBO TORRES, Ricardo. Op. Cit, p. 253. 48 Refletindo a partir de um marco teórico habermasiano para pensar a sociedade internacional Cf. FERNANDES, Bernardo Gonçalves Alfredo. Direito Constitucional e Democracia: Entre a Globalização e o Risco. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. Sobre o princípio democrático, Cf. BARCELLOS, Ana Paula. Papéis do direito constitucional no fomento do controle social: democrático: algumas propostas sobre o tema da informação. Revista de Direito do Estado n. 12, 2008, p. 77 e ss. 49 Marcelo Neves chama atenção para o fato de a Constituição deixar de ser um mero filtro de irritação e influência recíproca, tornando-se uma “instância da relação recíproca e duradoura de aprendizado e intercâmbio de experiências com racionalidade particulares”. Cf. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 62.

Destaque-se, preliminarmente, a sinergia entre os três marcos teóricos. A elevação da normatividade e hierarquia de certos tratados internacionais constitui o pressuposto lógico da realização do controle de convencionalidade. A comparação jurídica funciona como o instrumental metodológico útil a interpretação constitucional cosmopolita, servindo tanto para a harmonização e diálogo entre as soluções para problemas constitucionais de planos local, nacional e internacional, quanto para fundamentar uma visão crítica ao processo de internacionalização. Essas três categorias teóricas juntas permitem traduzir e modernizar a linguagem jurídica de constitucionalistas e internacionalistas de modo a adequá-la a um contexto de um mundo multipolar que vivencia uma irreversível “virada cosmopolita”. A crítica à força normativa da Constituição vem sendo objeto de uma profunda reformulação em decorrência do processo de constitucionalização do direito internacional e de internacionalização do direito constitucional 50. De um lado, determinados tratados, costumes e princípios internacionais adquirem uma força normativa muito semelhante às das Constituições Nacionais. Tem se afirmado, especialmente por conta da consolidação das normas de jus cogens, por exemplo, a consolidação de Constituições globais, parciais e supranacionais para as relações internacionais. De outro, as Cartas constitucionais cada vez preveem dispositivos, como o nosso art. 5º, §2 e §3º que atribuem um status diferenciado aos tratados de direitos humanos, que podem, se respeitado o procedimento adequado, ter status de emendas à Constituição. Some-se a isso uma difusão do direito comparado, recorrendo a precedentes estrangeiros e a decisões de Cortes Internacionais, como subsídios para tomada de decisões pelas Cortes Constitucionais. Seja por um ângulo, seja por outro, a Constituição do Estado é no mínimo revista. Ela passa a ocupar outro lugar na descrição do ordenamento jurídico. A Constituição hoje é uma Constituição de muitas mentes, para utilizar a expressão de Cass Sunstein51. Nessa linha, percebe-se que a estrutura piramidal, escalonada hierarquicamente e rígidas, típicas, por ex., na lógica positivista kelseniana, revela-se insuficiente para compreender a geometria do ordenamento jurídico. As leituras de Kelsen, especialmente as realizadas no Brasil, para descrever a teoria da constituição parecem anacrônicas e inconsistentes. A descrição vulgar do cume da pirâmide kelseniana representada pela

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LEGALE, Siddharta. Internacionalização do direito: reflexões críticas sobre seus fundamentaos teóricos. Revista da Seção Judiciárila do Rio de Janeiro vol. 20, n. 37, 2013. 51 SUNSTEIN, Cass R.A Constitution of Many Minds: why the founding document doesn’t mean what it meant before.3ªed.Princeton e Oxford: Princeton University Press,2011.

Constituição (ou eventualmente pelo direito internacional) foi achatada ou, para os mais radicais, imprensada a ponto de se esfacelar, tornando-se um complexo de estruturas normativas interligadas. Dois novos paradigmas podem ser destacados para descrever o novo fenômeno: o ordenamento jurídico como trapézio e o como rede. J.J. Gomes Canotilho passou a defender que, sem prejuízo da Constituição continuar a desempenhar importante papel na determinação das fontes do ordenamento jurídico, dos critérios de validade e eficácia das fontes, bem como da competência das entidades que revelam as normas jurídicas, o cume da pirâmide kelseniana foi achatado. O ordenamento jurídico tornou-se um trapézio, cuja aresta mais estreita e elevada, além de contar com a normatividade da Constituição, passou a compartilhar seu altiplano normativo com os direitos humanos, o direito comunitário e as normas de jus cogens do direito internacional. Há um pluralismo de ordenamentos superiores 52-53. François Ost e Michel van de Kerchove, por sua vez, criticam mais incisivamente a pirâmide hierarquizada de Kelsen em razão da dificuldade de abarcar teorias de interpretação mais amenas, se comparadas à mera relação de antinomia entre a norma fundamental superior com as normas inferiores, bem como suscitar certa perplexidade quando se está diante da relação entre sistemas jurídicos. Embora reconheçam que tais observações não conduzam necessariamente à exclusão do modelo piramidal, defendem o paradigma do ordenamento jurídico construído em rede. Chamam atenção para o temperamento da hierarquia e a interpenetração de sistemas e pluralidade de pirâmides. Pirâmides descontínuas, em arquipélagos, coordenadas em redes de interlegalidade. 54. Como explica Dieter Grimm, tornou-se comum constitucionalizar as Cartas das organizações internacionais, transformando direito internacional público ou jus cogens em uma espécie de “Constituição societal” dos atores globais, embora isso não signifique que a Constituição estatal tenha se tornado obsoleta55. Nessa linha de raciocínio, procurase ressignificar conceitos básicos teoria da constituição para compreender essa complexa

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CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7º Ed. Coimbra: Coimbra editora, 2003, p.693-708. 53 Defendendo o trapézio entre nós, Cf. PIOVESAN, Flávia. Controle de convencionalidade direitos humanos e diálogo entre jurisdições. In: MAZZUOLI, Valério de Oliveira; MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.) Controle de convencionalidade. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 115 e ss. 54 OST, François e KERCHOVE, Michel van de. De La pyramide au réseau? Vers un nouveau mode de production Du droit R.I.E.J.44, 2000. 55 GRIMM, Dieter.The Achievement of Constitutionalism and its Prospects in a Changed World. Disponível: <

interface e diálogo entre o constitucional e o internacional, por exemplo, repensando o próprio conceito de Constituição para incluir novas classificações possíveis. Sem ignorar as diversas acepções que o termo Constituição pode adquirir, como a sociológica (soma de fatores reais de poder)56 , política (decisão política fundamental)57 ou jurídica (conjunto de normas)58, destaca-se que pensar o termo como decorrência de um ato de vontade de um poder constituinte é insuficiente para compreender o entrelaçamento do direito constitucional com o direito internacional. Reconhecer dada norma como uma Constituição decorre de uma percepção cultural costumeira, como uma espécie de Constituição viva 59. A experiência Constitucional britânica demonstra justamente tal possibilidade. A sintética Constituição norte-americana, complementada, por exemplo, por precedentes de momentos constitucionais 60 variados da Suprema Corte também revolve culturalmente os significados de suas normas. Nessa linha de raciocínio, é preciso perceber que a sociedade internacional não é uma mera invenção acadêmica, mas sim um processo histórico que se acentuou no pósguerra e, em especial, após a queda do Muro de Berlim, enxergada como símbolo do começo da construção de um mundo multipolar. Essa sociedade internacional possui processos para formais (por ex., tratados) e processos informais (por ex., costumes) para delimitar as obrigações normativas de seus sujeitos: Estados, organizações internacionais e os próprios indivíduos. A imposição dialógica de obrigações pode se dar de forma explícita ou tácita, consensualmente ou contra a vontade por via costumeira em certos casos para garantir certos direitos ou normas de jus cogens. Até mesmo porque seria impossível uma regulação consciente e total de todo o globo. Ora, partindo-se de tais premissas, não é difícil concordar com Christian Tomuschat, quando o autor diagnostica a existência de uma Constituição da comunidade internacional, caracterizada de forma semelhante à

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Sobre a Constituição como soma de fatores reais de poder, Cf. LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 1998. 57 Sobre a Constituição como decisão política fundamental, Cf. SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza Editorial, 1982, p. 29 e ss. 58 Sobre a Constituição como o cume de um ordenamento jurídico hierarquizado e escalonado em forma de pirâmide, Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.247 e ss. 59 ACKERMAN, Bruce. The Living Constitution. Harvard Law Review. Vol. 120. N. 7. May 2007. 60 ACKERMAN, Bruce. We the People: foundations. London: The Belk Press of Harvard University Press, 1993, 10 e ss. Do mesmo autor, Cf. Constitutional Politics/Constitutional Law The Yale Law Journal, Vol. 99, No. 3, 1989.

Constituição britânica: é uma Constituição costumeira 61. Em outras palavras, as constituições transnacionais possuem a sua normatividade construída pelo costume e consolidada pelo reconhecimento/criação por parte jurisprudência internacional. Como bem colocou Otávio Augusto Drummond Cançado Trindade, o uso do termo

“Constituição”

para

designar

determinados

instrumentos

constitutivos,

especialmente de organizações internacionais, como a ONU, OIT e OMC, passa a se referir a um “direito internacional objetivo” que vincula e juridiciza as relações internacionais, sob bases de inspiração kantiana 62. É possível conceber, nessa linha, uma tipologia das Constituições desse neoconstitucionalismo internacionalizado, em rol exemplificativo, em três espécies63 que passam a incluir determinados tratados em categoriais constitucionais, cujo aspecto comum que sustenta a tipologia é o costume internacional, construído em especial no pós-guerra, que pensa o constitucionalismo sem recorrer necessariamente ao Estado64-65. O primeiro é a noção de “Constituição global”, segundo a qual a Carta das Nações Unidas (ou, para alguns, certos dispositivos interpretados como jus cogens) representaria uma verdadeira Constituição da Comunidade internacional 66. Por um lado, há resistências em admitir com facilidade essa ideia, uma vez que a separação de poderes foge aos moldes tradicionais e a proteção dos direitos fundamentais demanda aprimoramento. A Corte Internacional de Justiça está longe de possuir as características

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TOMUSCHAT, Christian. Obligations arising for states without or against their will. Recueil des cours, Volume 241, 1993-IV, p. 195-374. 62 CANÇADO TRINDADE, Otávio Augusto Drummond. A Carta da Nações Unidas: uma leitura constitucional. Belo Horizonte: DelRey, 2012, p. 5 63 GRIMM, Dieter. Types of Constitutions. The Oxford Handbook of Constitutional Law. Ed. Roselfeld, Michel; SAJO, Andras, Oxord University Press, 2013, p. 54-75. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constitucionalismo político e constitucionalismo societal num mundo globalizado. In: “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários sobre a história constitucional. Coimbra: Almedina, 2006,p . 296 e ss. 64 Para uma reflexão sobre o tema de uma constituição sem Estado e da constitucionalização do direito internacional, Cf. TEUBNER, Gunther. Societal Constitutionalism: Alternatives to State-centred Constitutional Theory. Trad. L. Fraser Storrs Lectures 2003/04 Yale Law School. 65 Em uma visão crítica ao constitucionalismo transnacional como crise da soberania e Constituição nacional, Daniel Sarmento e Cláudio Pereira afirmam que, embora o direito internacional esteja deixando de regular apenas relações entre os estados e incorporando o Indivíduo também há um certo modismo intelectual no emprego inflacionado da ideia de Constituição no cenário de globalização, que não existe um povo mundial e que um Estado mundial é uma utopia distante, um sonho dos internacionalistas, já que a Constituição do Estado ainda permanece relevante. Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de e SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Editora Forum, 2012, p. 91 e ss 66 Sobre os dilemas relacionados a Carta da ONU como uma Constituição global Cf., DUPUY, PierreMarie. The constitutional dimensiono of the charter of the united nations revisited.Max Plack Yearbook of United Nations Law. SZUREK, Sandra. La Charte des Nations Unies, Constitution Mondiale? In: COT, Jean-Pierre; PELLET, Alain; FORTEAU, Mathias. La Charte des Nations Unies – commentaire article par article. 3 ed. Paris: Economica, 2005, p. 29 e ss.

de um Poder Judiciário67. O processo de aprovação dos tratados pela Assembleia só conta com a participação de alguns Estados e não dos povos. Some-se a isso, o monopólio do Conselho de Segurança por poucos Estados e fica claro que a ONU ainda necessita ser democratizada. Por fim, as políticas públicas universais ainda demandam uma Administração global, o que, atualmente, ainda está bem distante da realidade. Por outro lado, é inegável o avanço que se obteve no sentido de vedar o uso da força nas relações internacionais e pelo fato de ao menos alguns dispositivos da Carta da ONU constituírem um verdadeiro jus cogens, afirmando-se como parâmetro de validade para os demais tratados e pactos internacionais (art. 2º e 103 da Carta). A respeito do art. 103, Pierre-Marie Dupuy explica que o dispositivo deu força ao discurso que assume a Carta da ONU como uma Constituição, porque, seja em uma dimensão institucional, seja em uma dimensão material do conceito de Constituição, o dispositivo estabelece a prioridade das obrigações resultantes da Carta em relação as demais de modo análogo à lógica constitucional. De fato, parece que estamos diante de um verdadeiro TratadoConstituição, decorrente não apenas de uma leitura positivista ou fundacional da Carta, mas de uma leitura principiológica e histórico-evolutiva, que considera as decisões judiciais e os costumes relacionados ao dispositivo. A segunda classificação é a que aponta a existência de “Constituições parciais”. Tais Constituições limitam-se a determinados sistemas econômicos, científicos ou culturais, procurando ampliar o processo de constitucionalização do direito internacional em harmonia com a “Constituição global”. À semelhança da Carta das Nações Unidas, o Tratado-Constituição da OIT ou o Tratado da OMC, para alguns autores, poderiam ser considerados como Constituições parciais. A parcialidade decorre do fato desses tratados voltarem-se com especial importância especificamente à regulamentação das relações de trabalho ou de comércio internacional. A Constituição supranacional, por fim, vincula não só os Estados, mas também conforma condutas dos particulares, impondo limites ou exigindo atitudes. Embora o referendo que aprovaria uma Constituição para Europa tenha sido rejeitado por certos países68, já é possível afirmar que existem elementos para reconhecer a existência de uma Constituição supranacional no âmbito da União Europeia. A rejeição parece ter sido fruto 67

Vale consignar que existem interessantes propostas de construção de uma Corte Constitucional Internacional. CUNHA, Paulo Ferreira da. La Cour Constitutionelle Internationale (ICCo) - Une Idée qui fait son chemin. Disponível em: < http://www.hottopos.com/notand38/21-26PFC.pdf> 68 Para mais detalhes sobre o projeto de uma Constituição para Europa, Cf. VIERA, José Ribas et al. A Constituição europeia: o projeto de uma nova teoria constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

muito mais de circunstâncias econômicas do que uma rejeição ao direito comunitário. A doutrina e jurisprudência comunitária e, até mesmo, algumas Cortes constitucionais dos Estados integrantes do bloco reconhecem a primazia do direito comunitário e efeito direito que pode até mesmo chegar a desaplicar o direito interno em certos casos de confronto. O costume comunitário vem alterando a hierarquia normativa de certos tratados comunitários ao afirmar que desfrutam de aplicabilidade imediata e primazia. O paradigmático o caso Costa vs. ENEL de 1964 do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias pode ser considerado, em nossa visão, o equivalente lógico do direito comunitário europeu ao que representou Marbury vs. Madison (1801) para o direito constitucional norte-americano. A comparação entre os casos é pertinente, porque foi o caso Costa vs. E.N.E.L que estabeleceu a relativização da soberania de forma clara e incisiva por meio do reconhecimento do princípio de primazia do direito comunitário. Sendo assim, a despeito da ausência de um documento solene e formal, afirmando que “Eis aqui a Constituição Europeia” ou de uma “Constituição global”, fato é que existe em certa medida uma forma própria de proteção de direitos e separação de poderes, que procura se amoldar as necessidades de uma sociedade internacional contemporânea e globalizada. Não se justifica uma leitura formalista para, recorrendo a um conceito rígido de povo e de Constituição, alegar uma inflação desses conceitos de Constituição para esvaziar a possibilidade de tradução dessas categorias constitucionais para a arena internacional, quando existem profundas transformações nos costumes do pós-guerra a demandar uma nova teoria constitucional internacional. Algumas manifestações, nesse sentido, são a multiplicidade de redes de cooperação em plano mundial na sociedade e a proteção de certas categorias de direitos como normas imperativas, jus cogens. A crítica mais conhecida à nova interpretação constitucional afirma que haveria um sincretismo metodológico desnecessário dos supostos novos princípios de interpretação constitucional (máxima efetividade, unidade da constituição etc.) com os métodos clássicos de interpretação (gramatical, histórico e teleológico), já aqueles poderiam ser reconduzidos a estes.69 A crítica não parece de todo procedente. Se não houve uma mudança profunda, muitas vezes a mudança de nomes, aparências estimulou uma nova mentalidade social sobre a interpretação constitucional.

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SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: SILVA, Virgílio Afonso da (Org.). Interpretação constitucional. Coleção Teoria e Direito Público. São Paulo: Malheiros, 2005.

Conceber o acréscimo da comparação jurídica como método de interpretação revelase apenas um importante ponto de partida para obtenção de mais informações para se decidir melhor. É preciso aperfeiçoar a sua metodologia com intuito de que ela seja útil para conhecer, regular e permitir a análise crítica da relação da interpretação constitucional dos diferentes países entre si, bem como da interpretação constitucional e convencional. O tema adquire redobrada importância, porque a doutrina constitucional tradicional costuma ser omissa e a contemporânea, insuficiente. A doutrina tradicional não articula as discussões teóricas de forma sistemática do método com o processo de globalização. Não se trata da mera questão da aplicação da lei no tempo e no espaço, típicas do direito internacional privado, mas da comparação entre culturas jurídicas. Tradicionalmente utilizada para produção de leis, a comparação jurídica tem sido adotada mais frequentemente no processo de tomada de decisões judiciais, em especial nos casos mais complexos das Cortes Constitucionais, que acabam de ter um papel de tradutores das provisões constitucionais para a esfera pública 70. Novamente, refinar a metodologia torna-se essencial para compreensão mais alargada dessa interpretação constitucional cosmopolita. A comparação, por isso, pode ser classificada pelo menos em duas espécies: (i) comparação no tempo, vertical ou diacrônica, relaciona-se à história e ao encadeamento temporal dos elementos de uma mesma comunidade, servindo para reconstruir processos evolutivos constitucionais; e (ii) comparação no espaço, sincrônica ou horizontal, cuja análise recai nos elementos de ordens jurídicas diferentes de uma mesma época. A comparação pode se dividir igualmente entre : (iii) macrocomparação que ocorre na comparação entre sistemas jurídicas como um todo e não raro distantes; e (iv) a microcomparação, ou seja, aquela realizada entre institutos pontuais geralmente de países vizinhos ou de sistemas jurídicos similares 71. Nessa linha, a comparação jurídica se torna uma espécie de princípio de interpretação72, uma metodologia destinada a incrementar a qualidade das decisões. Como o acesso a tais informações se tornou mais fácil nos sites dos Tribunais em um mundo multipolar e complexo, dotado de experiências interessantes variadas que podem ser reproduzidas pode ser encontrada em qualquer parte. A comparação jurídica como 70

HIRSCHL, Ran. From comparative constitutional law to comparative constitutional Studies. International Journal Of Constitutional Law. Vol. 11, 2013, Editorial, p. 1-12. 71 VERGOTTINI, Giuseppe de. Derecho Constitucional Comparado. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2004, p. 1-54 SACCO, Rodolfo. Introdução ao direito comparado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 226. 72 SILVA, José Afonso da. Um pouco de direito constitucional comparado. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 19-26.

princípio ou método de interpretação constitucional, dentro dessa nova cultura jurídica global. A comparação permite individualizar, distinguir, agrupar, classificar sistemas jurídicos e institutos, de modo a imprimir um olhar crítico sobre as nossas próprias tradições ao contrastá-las com as demais. Pensar de forma teórica sobre as tradições e, de forma prática sobre suas experiências institucionais permite encontrar um espaço de interseção entre as culturas, povos e Estados de modo a pôr diferenças de lado e superar a separação rígida entre esses elementos.73 Há uma profunda “batalha de metáforas”74 para designar o fenômeno do intercâmbio de decisões, experiências e informações entre os Estados e Organizações Internacionais, tais como o emprego dos termos “empréstimos constitucionais”, “transplantes”, “migração de ideias constitucionais”75, “engajamento constitucional”76 ou simplesmente comparação jurídica. Nas últimas décadas, o fenômeno tem vivenciado a intensificação do uso da jurisprudência para o conhecimento e intercâmbio das experiências constitucionais77. Essa dimensão de uma “Constituição de muitas mentes” para usar a expressão de Cass Sunstein78 mostra-se uma forma de conseguir mais informações e, desse modo, decidir melhor e com maior probabilidade de acerto. Em sentido semelhante, Christopher McCrudden destaca que esse intercâmbio de decisões do campo dos direitos humanos fundamentais tem construído uma espécie de common law entre as nações79-80. Não desejamos realizar uma digressão sobre os termos, “sistemas jurídicos” (René David), tradições (Patrick Glenn) e famílias jurídicas (Jorge Miranda). Sobre uma teoria da tradição e esse “espaço entre”, Cf. GLENN, Patrick. Legal traditions of the World. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 4 e ss. 74 PERJU, Vlad. Constitutional transplants, borrowing, and migrations. In: ROSENFELD, Michael; SAJO, Andras(Orgs.)The Oxford Handbook of Constitutional Law. Oxford University Press, 2013, p. 1328-1349. 75 CHOUDHRY, SUJIT. Migration as a new metaphor in comparative constitutional law. In: The migration of constitutional ideas. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. 76 Não desejamos aprofundar questões técnicas e metodologias da comparação. Por todos, Cf. JACKSON, Vicki. Comparative constitutional law: Methodologies In: ROSENFELD, Michael; SAJO, Andras (Orgs.) The Oxford Handbook of Constitutional Law. Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 54-75 VERGOTINI, Giusepe. Balance y perspectivas del derecho constitucional comparado. Disponível: < http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/2/642/26.pdf > 77 Sobre o novo contexto em que o direito comparado lança mão e influencia as decisões judiciais, Cf. HIRSCHL, Ran. From comparative constituctional law to comparative constitutional Studies. International Journal of Constitutional Law, vol. 11, 2013, p. 1-12. DIXON, Rosalind; GINSBURG, Tom & DIXON, Rosalind. Introduction. In: Comparative constitutional law. Massachussetts: Edward Elagar Publishing Inc., 2011, p. 1-19 78 SUNSTEIN, Cass R.A Constitution of Many Minds: why the founding document doesn’t mean what it meant before.3ªed.Princeton e Oxford:Princeton University Press,2011. 79 MCCRUDDEN, Christopher. A common law of human rights?: transnational judicial conversations on constitutional rights. Oxford Journal of Legal Studies vol. 20, n 4, 2000, p. 499 e ss. 80 Existem entusiasmadas e críticas ao fenômeno. Entendendo que sua utilização é seletiva e viola o a soberania popular, Cf. POSNER, Richard. No, thanks we already have our own laws. Disponível em: < > Reputando o diálogo e a maior quantidade de informações como benéfica para produzir melhores decisões, Cf. JACKSON, Vicki. Yes Please, I'd Love to Talk With You. Disponível em: Em sentido 73

A expansão da jurisdição constitucional desempenha um marco de destaque no estado contemporâneo, segundo o neoconstitucionalismo. Sozinha, contudo, não será capaz de superar os desafios do mundo globalizado, ainda que venha dando mostras que procura se adaptar. Por exemplo, nota-se a utilização de precedentes estrangeiros81, as conferências entre as cortes constitucionais para troca de experiências e participação em seminários internacionais de juízes. O judiciário possui imperfeições e limites decorrentes de sua posição institucional, de modo que hoje não se defende mais que a Corte constitucional tem a última palavra em matéria na interpretação constitucional, preferindo-se uma teoria que incorpore o diálogo entre os poderes82. É preciso traduzir essas reflexões para uma expansão da jurisdição convencional, ou seja, do controle de convencionalidade realizado pelas Cortes Internacionais. Tal expansão permite, por ex., enxergar uma Corte Internacional de Direitos Humanos em alguma medida como uma Corte Constitucional transnacional que deve dialogar, ao invés de se sobrepor unilateralmente à Corte Constitucional nacional. A judicialização da política e da vida contribuiu para solução de certos problemas. Contudo, não pode resolver ou camuflar a crise política que o parlamento vivencia, bem como a necessidade de fortalecer esse Poder contra incapacidades sistêmicas, contra a usurpação de competências pelo Executivo e contra corrupção, clientelismo, patrimonalismo e paroquialismo. Uma reforma política, pelo menos no Brasil, é urgente. Houve também um processo, no plano interno, uma intensificação da judicialização de alguns problemas relacionados às relações internacionais. Ganharam intensa repercussão midiática em casos envolvendo a extradição e o refúgio ou asilo político, como os casos envolvendo Cesare Batisti no Brasil83 ou Henrique Pizzolato na Itália. De um ponto de vista do direito internacional, percebe-se que o neoconstitucionalismo não dedicou uma especial atenção a observar a jurisprudência das Cortes regionais de proteção de direitos humanos (ex: Corte Interamericana de Direitos

semelhante, Cf. SUNSTEIN, Cass R.A Constitution of Many Minds:Why the founding document doesn’t mean what it meant before.3ªed.Princeton e Oxford: Princeton University Press,2011. Entendendo que autonomia e empréstimo constitucional não são contraditórios, Cf. TUSHNET, Mark Constitution. The Oxford Handbook of Constitutional Law. Ed. ROSENFELD, Michel; SAJO, Andras. Oxford: University Press, 2013, p. 217-233. 81 STAMATO, Bianca. Constitucionalismo Mundial e ‘Intercâmbio mundial entre Juízes’ In: BARROSO, Luís Roberto.(Org.) A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 714. 82 Sobre tese dos diálogos, Cf. MENDES, Conrado Hubner. Direitos fundamentais, separação dos poderes e deliberação. São Paulo: Tese de doutorado da USP, 2008, p 193 e ss. BRANDÂO, Rodrigo. Supremacia judicial vs diálogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. 83 STF, EXT 1.085, Rel. Min Gilmar Mendes, Red. p/ acórdão Luiz Fux.

Humanos), dos tribunais internacionais (ex: Corte Internacional de Justiça) e dos tribunais comunitários ou de integração (Ex: Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul ou Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias). Sob a ótica o direito comparado, o neoconstitucionalismo também carece de estudos mais detidos sobre a maneira de precedentes de cortes constitucionais de países diferentes vem sofrendo um intercâmbio e como isso deveria ser feito de forma mais técnica. No primeiro caso, o cenário parece se manter, enquanto, no segundo, tudo indica uma transformação em curso com o resgate e florescimento dos estudos de direito comparado, dadas as recentes publicações. A principal proposição crítica, porém, seja a atualização de seu marco teórico jurídico do neoconstitucionalismo com a incorporação explícita o chamado controle de convencionalidade. O acesso à justiça internacional por meio do direito de petição em Cortes Internacionais de Direitos humanos em especial, como bem colocou Antônio Augusto Cançado Trindade, eleva o ser humano de sujeito passivo para um sujeito ativo do direito internacional84. Substitui-se um modelo de sociedade interestatal para uma sociedade de indivíduos, estados e organizações internacionais. Esse resgate do indivíduo e a proteção efetiva de seus direitos em suas múltiplas facetas (criança, idoso, deficiente, apátrida e etc) conduz a rejeição de dogmas positivistas mais tradicionais ou clássicos, a ruptura com um dualismo exacerbado que abre um fosso entre a ordem doméstica e a internacional e, por fim, rejeita um voluntarismo dos estados na produção de fontes do direito internacional pautadas exclusivamente na soberania dos estados. Por conta disso, é fundamental para compreender a virada teórica cosmopolita que o acesso à justiça internacional pelo indivíduo do ângulo formal com a possibilidade de estar em juízo e material pelo controle efetivo da violação de tratados, costumes, princípios

internacionais.

Esse

controle

efetivo

culmina

no

controle

de

convencionalidade. Existem, ao menos, quatro definições para o termo e, em qualquer delas, fica evidente a sua afinidade com uma proposta de neoconstitucionalismo internacionalizado à medida que se passa a respeitar mais a juridicidade dos tratados internacionais, notadamente os de direitos humanos85, comparando-os com as previsões do ordenamento jurídico interno.

84

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. The access of individuals to international justice. Oxford: Oxford University Press, 2011 Confira-se também: GUGGENHEIM, Paul. Les principes de droit international public. Recueil des cours, Vol. 80, 1952, p. 1-189. 85 Sobre as três visões, Cf. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle jurisdicional de convencionalidade das leis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 76-95.

Na primeira, o controle de convencionalidade significa a responsabilidade internacional do Estado por violação aos direitos humanos. O Estado é responsabilizado no âmbito internacional sempre que ele viola uma norma ou obrigação internacional. Do ponto de vista clássico, ao não cumprir a sua obrigação, ele pratica um ato ilícito à luz do direito internacional. Perceba-se que o parâmetro de referência é necessariamente o direito internacional e se faz necessário que o Estado – e não apenas seus nacionaisafetem os direitos e interesses de outros Estados, seja por uma ação ou por uma omissão relevante para ele se tornar suscetível responsabilização via, por exemplo, uma decisão de uma Tribunal Internacional, como a Corte Internacional de Justiça da ONU. Na segunda acepção, o controle de convencionalidade concentrado é entendido como a verificação da compatibilidade das normas locais diante das normas internacionais de direitos humanos, não pela via judiciária interna, mas por mecanismos para se fazer cumprir obrigações internacionais. Interessante notar que a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos humanos já abordava um controle de convencionalidade com esse tom, passando por dois momentos86. O primeiro em que entendia necessário um dano à vítima para estabelecer a incompatibilidade de norma do direito interno com a convenção americana, tratando-a como uma decorrência da responsabilidade internacional sem usar tal nome expressamente. A segunda fase já considera possível a verificação da compatibilidade desde a edição da norma interno, mesmo não havendo um dano concreto. Nessa etapa, a CIDH exerce o controle concentrado de convencionalidade, o que pode ocorrer, de ofício ou mediante provocação das partes, em casos contenciosos, opiniões consultivas ou mesmo em resoluções de supervisão.87 Um caso representativo dessa jurisprudência da Corte Interamericana a 86

O controle de convencionalidade no sistema interamericano foi afirmado explicitamente pela primeira vez no caso Mack Chang vs. Guatemala (2003) pelo juiz Sergio Garcia Ramirez em voto apartado e, novamente, pelo mesmo magistrado no caso Tibi vs Ecuardor (2004). A primeira vez, porém, que o plenário afirma o controle de convencionalidade foi no caso Almonacid Arellano vs. Chile (2006). Sobre o controle difuso de convencionalidade ou “extenso (vertical e geral)” pelo Juiz nacional, vale conferir o voto do Juiz Sergio Garcia Ramirez no caso Trabajadores Cesados del Congreso( Aguado el faro y otros) vs Perú (2006). Para uma abordagem mais detalhada dos precedentes da CIDH, Cf. MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer. Interpretación conforme y controle difuso de convencionalidad el nuevo paradigma para el juez mexicano. In: MAZZUOLI, Valério de Oliveira; MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.) Controle de convencionalidade. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 547 e ss. MARINONI, Luiz Guilherme. Controle de convencionalidade (na perspectiva do direito brasileiro). MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer. Interpretación conforme y controle difuso de convencionalidad el nuevo paradigma para el juez mexicano. In: MAZZUOLI, Valério de Oliveira; MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.) Controle de convencionalidade. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 79 e ss. 87 Para mais detalhes sobre o caso e a jurisprudência Cf. CANTOR, Ernesto Rey. Controles de convencionalidade das leys. In: Eduardo Ferrer Mac-Gregor Arturo Zaldívar Lelo de Larrea( Coords) La ciencia del derecho procesal constitucional. Estudios en homenaje a Héctor Fix-Zamudio en sus cincuenta años como investigador del derecho Tomo IX Derechos

respeito do controle de convencionalidade 88 envolve a questão da anistia brasileira a a responsabilidade internacional do Brasil em razão da a guerrilha do Araguaia89. Na terceira, emprega-se o controle jurisdicional difuso de convencionalidade tem sido definido como a compatibilidade vertical das leis com os tratados de direitos humanos em vigor no país, de tal forma que as leis só teriam validade se compatíveis com esses tratados e com a Constituição. Haveria a exigência “dupla compatibilidade normativa” superior: uma advinda da Constituição e outra oriunda dos tratados de direitos humanos. A dualidade e o diálogo entre as fontes se justifica, porque 1) aumentaria a completude do sistema; 2) devendo-se optar pela norma mais favorável aos direitos humanos da pessoa protegida nas relações internacionais, 3) existem métodos para ponderar os direitos envolvidos por meio, por exemplo, da proporcionalidade ou de standards específicos; 4) a redação do art. 5º, §2º e o art. 5, §3º recomenda que se atribua uma força expansiva dos direitos humanos por alguns direitos básicos terem se tornado jus cogens de direito internacional. Apesar de ser uma posição sólida, não foi o status constitucional que prevaleceu na jurisprudência do STF. Depois de muitas controvérsias, foi aprovada a Emenda 45/04, inserindo o §3º no 5º para permitir que, mediante 2 turnos e 3/5 os tratados de DH fossem equivalentes às emendas. A jurisprudência, sob fortes críticas, então considerou o status supralegal, superior às leis e inferior à constituição, dos tratados anteriormente promulgados, sem o respeito a esse procedimento. Chama-se atenção igualmente para a existência de propostas que denominam o controle de supralegalidade90 com instrumentos internacionais comuns, como no caso caráter dos tratados de direito tributário, que possuem caráter especial pelo art. 98 do CTN, prevalecendo sobre as disposições internas, ainda que uma lei posterior pretender alterá-lo. A doutrina tem sido bastante crítica à decisão do STF em função dessa criação de mais uma camada

humanos y tribunales internacionales. Universidad Nacional Autónoma de México, 2008. Disponível em: . 88 SANTOS, Alexandre Dantas Coutinho. O controle de convencionalidade e a sua repercussão no direito brasileiro. In: SARMENTO, Daniel (Coord.). Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 425 e ss 89 Existe um interessante filme baseado nos acontecimentos, combinando ficção com entrevistas dos envolvidos, chamado a Araguaia - Conspiração do silêncio, dirigido por Ronaldo Duque. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SKagL2WmH-0 RAMOS, André de Carvalho. O primeiro ano da sentença da Guerrilha do Araguaia. Revista Consultor Jurídico, 24 de novembro de 2011, 12:14 Disponível em: 90 MENDES, Gilmar Ferreira. A supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos e a prisão civil do depositário infiel no Brasil. In: MAZZUOLI, Valério de Oliveira; MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.) Controle de convencionalidade. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013,, p. 213 e ss.

intermediária entre a lei e a Constituição, que não encontra amparo nem no direito positivo, nem na teoria piramidal de Kelsen91. Tem se criticado igualmente a diferença de status por uma questão cronológica: os antes e depois da E.C. 45/0492. É essencial afirmar que essa terceira acepção do controle jurisdicional de convencionalidade pode ser subdivida em controle concentrado/difuso no plano internacional e abstrato/difuso no plano interno. O controle difuso de convencionalidade incumbe a qualquer juiz à luz da jurisprudência da Corte interamericana 93, restando saber se isso acontecerá de forma semelhante ou diferente ao stare decisis norte-americano94. Já o controle abstrato de convencionalidade95 seria, por ex., aquele que teria nascido para o direito brasileiro com a E.C. 45/04, que atribuir aos tratados internacionais de direitos humanos status equivalente ao de emenda constitucional acabou por transformá-los em parâmetro para o controle abstrato de constitucionalidade. Segundo Valério Mazzuoli, esse controle conferiria a possibilidade de o STF apreciar uma ação direta de inconvencionalidade, uma ação declaratória de convencionalidade, uma ação direta de inconvencionalidade por omissão ou um mandado de injunção ou até uma arguição de descumprimento de preceito fundamental a partir dos tratados de direitos humanos96.

91

Para uma abordagem mais ampla do direito dos tratados no ordenamento brasileiro, Cf. BARROSO, Luís Roberto. Constituição e tratados internacionais: alguns aspectos da relação entre direito internacional e direito interno. In: TIBURCIO, Carmen e BARROSO, Luís Roberto. Direito Constitucional internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, p. 193 e ss. 92 APPIO, Eduardo. Os Juízes e o controle de convencionalidade no Brasil. In: MAZZUOLI, Valério de Oliveira; MARINONI, Luiz Guilherme (Coord.) Controle de convencionalidade. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p.181 93 Nesse sentido, ALBANESE, Susana. El Control de Convencionalidad la Corte Interamericana y la Corte Suprema Convergencias y divergencias. In: Jurisprudencia Argentina el 28 de agosto de 2007. 94 Defendendo o modelo do stare decisis, após uma consideração da jurisprudência da Corte Interamericana, Cf. SAGUES, Nestor Pedro. Obligaciones internacionales y control de constitucionalidad. Estudios Constitucionales n. 8º, n. 1,Universidade de Talca, 2010, p. 126. Observe-se que possivelmente haverá um problema de aclimatação do instituto. Tradicionalmente se diz que o Brasil importou o modelo difuso sem o stare decisis. Embora esteja está em aberto no Supremo sobre a possibilidade de conferir efeitos vinculantes ao precedente do Supremo sem a comunicação ao Senado por uma mutação constitucional, provavelmente, isso não será admitido com base na crítica de vinculação atribuída de forma direta, após a EC45, burla o procedimento para edição da súmula vinculante. Fato que redobra as controvérsias. 95 Também defende a existência de um controle abstrato de convencionalidade embora em sentido diverso e relacionado à atuação da Corte interamericana, confrontando a convenção com a lei local, Cf. HITTERS, Juan Carlos. Control de constitucionalidad y control de convencionalidad. Comparación (Criterios fijados por la Corte Interamericana de Derechos Humanos). Estudios Constitucionales, Año 7, N° 2, 2009, p. 118. 96 Idem, ibidem, p.147 e ss. Observe-se que devido à discussão ser recente ainda se tem uma série de incertezas processuais, como, por exemplo, poderíamos levantar o fato de o parâmetro da ADI ser a constituição e talvez o instrumento adequado para viabilizar o controle de convencionalidade seja não todas as ações, mas sim a ADPF, devido à sua natureza subsidiária ou residual.

Na quarta acepção, o controle jurisdicional de convencionalidade é exercido não apenas em relação aos direitos humanos, mas em relação ao direito comunitário 97. Por exemplo, o importante caso Costa vs. ENEL, decidido em 1964, adotou o princípio da primazia do direito comunitário. A controvérsia teve origem quando o italiano Flamínio Costa se recusou a pagar a conta de energia elétrica da empresa ENEL, sob o fundamento de se recusar a aceitar a estatização desta empresa, na qual possuía ações. Ele alegava que tal nacionalização, além de inconstitucional, contraria o Tratado de Roma. Chegando ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, entendeu-se que o Judiciário nacional não pode sobrepor a aplicação do Tratado a uma lei interna, porque um ato unilateral do direito interno não poderia prevalecer sobre o Tratado e o direito comunitário 98. Em qualquer acepção, é certo que o controle de convencionalidade põe em evidência a existência de um processo constitucional transnacional para proteção dos direitos humanos, por exemplo, no continente americano pela comparação entre a previsão dos direitos fundamentais nas Constituições nacionais e o Pacto de São José da Costa Rica99. Embora ainda seja necessário ampliar o acesso à justiça internacional100 removendo, por ex., algumas barreiras do acesso do ser humano a certas cortes, como a Corte Interamericana, fato é que houve avanços na tutela judicial dos direitos humanos. Por fim, destaque-se um bom modelo teórico de magistrado nacional ou internacional para compreender e operar com transformações apontadas é aquele que François-Ost denominou de “Juiz-Hermes”. À semelhança do mito, o Juiz-Hermes seria capaz de decodificar, interpretar, contrabandear, traduzir a rede de significados dos direitos e responsabilidades para mundos diferentes, nos quais há diversas fontes normativas estatais e não estatais do direito e de diferentes níveis de poder – mesmo os

97

HITTERS, Juan Carlos. Control de constitucionalidad y control de convencionalidad. Comparación (Criterios fijados por la Corte Interamericana de Derechos Humanos). Estudios Constitucionales, Año 7, N° 2, 2009, p..113. 98 http://iom.fi/elearning/files/european_law/case_law/european_union/CASE%20OF%20Costa%20vs%2 0ENEL.pdf 99 Sobre o processo constitucional transnacional, Cf. PESANTES, Hernán Salgado. Justicia constitucional transnacional: El modelo de La Corte interamericana de derechos humanos. Control de constitucionalidad vs. convencionalidad In: Armin von Bogdandy Eduardo Ferrer Mac-Gregor Mariela Morales AntoniazziCoords. )La justicia constitucional y su internacionalización ¿Hacia un ius constitucionale commune en América Latina? Tomo II Primera edición: 2010. Disponível em: http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/libro.htm?l=2895 100 CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça como programa de reforma e como método de pensamento”. In: Processo, ideologias e sociedade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2008, p. 379-397.

estatais que se imbricam na rede normativa-, de modo a operar o trânsito de significados pelos fios da rede local, nacional, regional ou global101.

4. APONTAMENTOS FINAIS Em desfecho, serão compendiadas as principais propostas investigadas. Em primeiro lugar, o marco histórico do neoconstitucionalismo colocado no pósguerra precisa ser atualizado. Deixou de adequado para compreender um mundo que deixou de ser bipolar, dividido entre socialismo e capitalismo. O marco parece antiquado para lidar com um mundo multipolar que exige a constante comparação entre normatividade interna e internacional, bem como o diálogo entre culturas diferentes. Em segundo lugar, o marco filosófico do pós-positivismo é bastante relevante para a compreensão das conquistas do neconstitucionalismo no processo de redemocratização. A problematização orifunda“virada kantiana”, que propugna a incorporação dos valores e a normatividade dos princípios na interpretação constitucional, precisa ser objeto de reflexão no plano internacional. A constitucionalização do direito internacional tem estimulado uma “virada cosmopolita”, que supere dicotomias simplistas entre um voluntarismo e objetivismo, da discussão entre dualismo e monismo, fragmentação e unidade do DIP, por meio da promoção plural, dialógica e empiricamente informada de determinadas normas como as de jus cogens de direito internacional com as normas fundamentais de direito interno dentro de margens de apreciação nacionais razoáveis. Em terceiro lugar, e por fim, vale destacar três transformações fundamentais na teoria constitucional para um neoconstitucionalismo internacionalizado: (i) o advento de Constituições transacionais, sem que isso invalide a importância da Constituição doméstica; (ii) o estímulo ao uso do direito comparado também em decisões judiciais em uma clara “virada cosmopolita”; e (iii) a expansão do controle convencionalidade no plano internacional e interno ao lado da expansão da jurisdição constitucional. Essas transformações substanciais pelo encontro entre o direito internacional e no direito constitucional são muito recentes. Não se pode dizer que foi amor à primeira vista entre as duas áreas. Apostava-se pouco que formariam uma dupla entrosada. Houve um certo estranhamento inicial de fato e um engajamento tardio do direito constitucional na esfera internacional. Mas certamente será cada vez mais difícil separá-las.

101

OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: três modelos de Juiz. Revista do Juizado da Infância e Juventude, 2009, p. 109 e ss.

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