Neoliberalismo e hegemonia financeira: a crise financeira de 2007-8 e a crise da dívida pública na Zona do Euro

July 18, 2017 | Autor: J. Bordin | Categoria: Economic Crises, Subprime crisis, Neoliberalismo, Crise Da Dívida
Share Embed


Descrição do Produto



UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de Sociologia e Ciência Política
Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política





Neoliberalismo e hegemonia financeira: a crise financeira de 2007-8 e a crise da dívida pública na Zona do Euro


João Gabriel Vieira Bordin
[email protected]





Artigo realizado para a disciplina Análise Sociopolítica do Sistema Financeiro no Capitalismo Contemporâneo, nível mestrado, ministrada pelo Prof. Ary Cesar Minella, como requisito para a obtenção de conceito.





1º Semestre de 2014

1. Introdução: as crises do ponto de vista marxista

Do ponto de vista da teoria marxista, as crises econômicas não decorrem apenas de mecanismos estritamente econômicos, embora suas condições estejam inscritas na própria lógica do desenvolvimento do capitalismo de modo geral (enquanto possibilidade formal ou abstrata), e, mais especificamente, nas características próprias de cada período de acumulação do capital. Como o capital é antes de tudo uma relação social, as crises econômicas são, também, resultantes de escolhas e decisões políticas, as quais, como tal, estão atravessadas por relações de antagonismo, dependência e conflito entre as classes sociais. Isso significa que as crises econômicas não são de algum modo extrínsecas à lógica de funcionamento do capitalismo e, portanto, fenômenos anômalos em relação ao seu funcionamento ótimo ou ideal; e que tampouco são fenômenos puramente mecânicos que independem dos sujeitos.
Além disso, as crises constituem-se em momentos de reestruturação no padrão de acumulação e de disputadas de hegemonia, e não apenas uma correção de curso ou flutuações cíclicas inerentes ao sistema. Não apenas a taxa de lucro é restabelecida no processo, mas novas bases de acumulação são criadas através da reconfiguração dos elementos constituintes do modo de produção capitalista em âmbito global, o que tem implicações sociais e políticas que extrapolam a esfera econômica strict sensu.
À luz desse referencial teórico, a premissa básica, portanto, deve ser de que fenômenos conjunturais, ou, mais especificamente, as crises financeiras das últimas décadas, tais como as que iremos analisar aqui, "são apenas compreensíveis de uma perspectiva bem mais longa" (BRENNER, 2003, p.13). Ou seja, só são compreensíveis a partir de uma perspectiva histórica que abarque os ciclos longos de transformação do modo de produção capitalista. Portanto, temos que "distinguir, na história do capitalismo, certos momentos em que numerosos fatores desembocam num novo conjunto de relações internacionais e internas, que 'formam um sistema' e que modelam a vida social" (CHESNAIS, 1996, p.14). A fase que nos interessa aqui é a que tem início em meados da década de 1970, a qual Chesnais (idem) chama de "mundialização financeira do capital", e que, do ponto de vista ideológico e político, convencionou-se chamar de "neoliberalismo".
Assim, a crise econômica de 2007-8 e a subsequente crise das dívidas públicas de alguns países da zona do euro devem ser vistas contra o pano de fundo do estágio atual de desenvolvimento do capitalismo, com suas características e processos de desenvolvimento específicos.
São as contradições do capitalismo contemporâneo que provocaram a atual crise estrutural no processo de acumulação do capital. E o capitalismo contemporâneo, a lógica de seu processo de acumulação, é, por sua vez, consequência das formas como ele próprio saiu de sua última – antes desta – crise estrutural. (CARCANHOLO, 2011, p.73)
A crise estrutural anterior, à qual se refere o autor, data dos anos 1970, quando o padrão de acumulação iniciado após o fim da II Guerra Mundial se esgota. O modo como tal crise foi superada – ou, em outros termos também marxistas: como as suas contradições foram deslocadas – deu a forma do padrão de acumulação que se estende até os dias de hoje. A hipótese com que geralmente operam os teóricos marxistas é que a persistência dessa crise e a velocidade cada vez mais rápida com que giram os ciclos econômicos, marcados por crises financeiras progressivamente mais graves, sugerem o esgotamento do ciclo iniciado em meados da década de 1970.
Em consonância com essas premissas, antes de analisar as crises em questão, o primeiro passo é caracterizar a atual fase de acumulação do capital a fim de compreender como se desenvolveram as condições para que tais crises ocorressem. Na próxima seção iremos, portanto, recuperar algumas teorias sobre o neoliberalismo e a financeirização do capitalismo contemporâneo.

2. Neoliberalismo e hegemonia financeira

O neoliberalismo surgiu em meados da década de 1940 como uma reafirmação dos valores liberais neoclássicos e como uma reação teórica ao Estado de bem-estar e à perspectiva econômica keynesiana, que, àquela época, firmava-se como modelo político-econômico dominante do capitalismo pós II Guerra. Como esse modelo renderia frutos nunca antes vistos, sustentando taxas de crescimento econômico altíssimas e praticamente não exibindo nenhuma crise importante até meados da década de 1970, o neoliberalismo permaneceu no ostracismo e desacreditado enquanto teoria econômica. Entre 1940 e 1970, o receituário anticíclico aplicado pela intervenção do Estado, concebido não apenas como regulador dos mercados mas também como investidor de peso, hegemonizou a política econômica mundial. Eram os "30 anos gloriosos", que Harvey (2008) chama de "liberalismo embutido":
Nos países capitalistas avançados, a política redistributiva (incluindo algum grau de integração política do poder sindical da classe trabalhadora e apoio à negociação coletiva), os controles sobre a livre mobilidade do capital (algum grau de repressão financeira particularmente por meio de controle do capital), a ampliação dos gastos públicos e a criação do Estado de bem-estar social, as intervenções ativas do Estado na economia, e algum grau de planejamento do desenvolvimento caminharam lado a lado com taxas de crescimento relativamente elevadas. O ciclo de negócios foi controlado com sucesso mediante a aplicação de políticas fiscais e monetárias keynesianas. [...] O Estado transformou-se na verdade num campo de força que internacionalizou relações de classe. Instituições da classe trabalhadora como sindicatos e partidos políticos de esquerda tiveram uma influência bastante concreta no aparato de Estado. (idem, p.21)
Somente com o esgotamento desse modelo, perto do final dos anos 1960, as propostas neoliberais foram recuperadas do exílio intelectual e político e aos poucos começaram a ser testadas e aplicadas. Os meios como isso se deu empiricamente foram bastante complexos e contraditórios, prenhes de desvios e variações diversas, mas o fato é que nos anos 1990 o neoliberalismo já havia se consolidado como a nova ortodoxia político-econômica simbolizada no "Consenso de Washington". Mas mais importante do que explicar o processo é compreendê-lo. A questão é: por que o neoliberalismo se mostrou tão atrativo para substituir o keynesianismo falido?
O princípio central do neoliberalismo é a ideia de que o mercado possui uma racionalidade intrínseca que, se deixada operar sozinha, sem interferência, leva ao funcionamento perfeito da economia, alocando recursos de forma ótima. Daí sua condenação de toda e qualquer interferência estatal. Importa notar, entretanto, que o neoliberalismo não é um corpus teórico unívoco e coerente, muito menos as experiências práticas que ele deu origem. Mas, para os nossos fins históricos aqui, pode-se abstrair essa questão a fim de operar apenas com alguns seus elementos típico-ideais. Ser-nos-ia, outrossim, impossível enunciar aqui ponto a ponto toda a teoria econômica neoliberal. Interessa-nos, sobretudo, apreender a dimensão de classe do projeto neoliberal.
Dentre as explicações que os neoliberais ofereceram para a recessão e estagflação que tomou conta da economia mundial na década de 1970, uma delas apontava para o excessivo poder que a classe trabalhadora, por meio dos sindicatos e por causa da situação de pleno emprego, havia obtido face aos capitalistas, onerando as empresas, reduzindo a taxa de lucro e pressionando para baixo o investimento. Ou seja, "Um dos principais obstáculos para o contínuo acúmulo de capital [...] na década de 1960 foi o trabalho" (HARVEY, 2011, p.20). Assim, uma das medidas para retomar o crescimento deveria ser, na visão dos neoliberais, destruir a capacidade de barganha dos trabalhadores, reduzindo o poder os sindicatos e criando um desemprego estrutural a fim de deprimir os salários. Uma vez que as raízes da crise estavam localizadas no poder nefasto dos sindicatos:
O remédio, então, era claro: manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamentária, com a contenção dos gastos com bem-estar, e a restauração da taxa "natural" de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos. Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis, para incentivar os agentes econômicos. Em outras palavras, isso significava reduções de impostos sobre os rendimentos mais altos e sobre as rendas. [...] Desta forma, uma nova e saudável desigualdade iria voltar a dinamizar as economias avançadas [...]. (ANDERSON, 1995, p.11)
Sob esse ângulo, fica claro que mais do que uma teoria econômica científica em sentido estrito, podemos "definir o neoliberalismo como uma configuração de poder particular dentro do capitalismo [...]. [...] esse período pode ser descrito como uma nova hegemonia financeira" (DUMENIL; LEVY, 2007, p.2):
Podemos, portanto, interpretar a neoliberalização seja como um projeto utópico de realizar um plano teórico de reorganização do capitalismo internacional ou como um projeto político de restabelecimento das condições de acumulação do capital e de restauração do poder das elites econômicas. Defenderei a seguir a ideia de que o segundo desses objetivos na prática predominou. A neoliberalização não foi muito eficaz na revitalização da acumulação do capital global, mas teve notável sucesso na restauração ou, em alguns casos (a Rússia e a China, por exemplo) na criação do poder de uma elite econômica. (HARVEY, 2008, p.27)
Em suma:
Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais [...]. (ANDERSON, 1995, p.23)
Se o neoliberalismo foi incapaz de criar riqueza e renda, foi no entanto capaz de redistribuí-la de forma a concentrá-la ainda mais nas mãos de uma elite capitalista, um tipo de acumulação que Harvey (2008, p.171) chamou de "acumulação por espoliação". Segundo ele (idem, pp.172-8), a acumulação por espoliação – vale dizer, o neoliberalismo – apresenta quatro características: 1) privatização e mercadifização; 2) financialização; 3) administração e manipulação de crises; e 4) redistribuições via Estado. Aqui, interessa-nos apenas a segunda dessas características, à qual acrescentamos uma quinta: o endividamento público e privado (tanto empresarial quanto familiar). Segundo Guttman e Plihon (2008, p.581), o que caracteriza o novo sistema econômico desenvolvido a partir dos anos 1970 é uma economia de endividamento conduzida pelas finanças:
[...] há três forças inter-relacionadas por trás dessa alteração fundamental no modus operandi do capitalismo: a dependência aumentada do endividamento em todos os ramos de atividades econômicas, a facilitação de tal financiamento via endividamento pela inovação financeira, e a globalização financeira como a força mais transcendental na internacionalização do capital.
A financialização é, no entendimento de Chesnais (1996, p.14), a característica central que define e especifica o capitalismo contemporâneo a partir da década de 1970: "O estilo de acumulação é dado pelas novas formas de centralização de gigantescos capitais financeiros [...]". Ou seja: "[...] é a esfera financeira que comanda, cada vez mais, a repartição e a destinação social dessa riqueza" (idem, p.15). Com a desregulamentação financeira, a proliferação de novos instrumentos financeiros e a crescente liquidez dos capitais, a especulação financeira tornou-se muito mais atrativa do que a inversão produtiva, de modo que o centro de gravidade da acumulação do capital deslocou-se da indústria para os serviços e, mais especificamente, para as finanças.
Cada vez mais liberta das restrições e barreiras regulatórias que até então limitavam seu campo de ação, a atividade financeira pôde florescer como nunca antes, chegando a ocupar todos os espaços. Uma onda de inovações ocorreu nos serviços financeiros para produzir não apenas interligações globais bem mais sofisticadas como também novos tipos de mercados financeiros baseados na securitização, nos derivativos e em todo tipo de negociação de futuros. Em suma, a neoliberalização significou a "financialização" de tudo. Isso aprofundou o domínio das finanças sobre todas as outras áreas da economia, assim como sobre o aparato de Estado [...]. (HARVEY, 2008, p.41)
A financialização somada ao endividamento público e familiar – uma consequência prática da redução da arrecadação fiscal e da demanda agregada implicada na política econômica neoliberal, que tiveram de ser substituídas pela expansão do crédito – constituem duas das principais características do capitalismo financeirizado. Segundo Foster e Magdoff (2008), "A dívida do setor financeiro como percentagem do PIB se elevou pela primeira vez do nível rasteiro nos anos 60 e 70, acelerou a partir dos anos 80 e disparou depois de meados dos anos 90". Foi ela a principal incentivo para o crescimento econômico do período: "Este aumento do peso da dívida acumulada, como percentagem do PIB, estimulou fortemente a economia, especialmente o setor financeiro, o que alimentou enormes lucros financeiros e marcou a financeirização crescente do capitalismo" (idem); e traduziu-se num crescimento explosivo dos lucros financeiros em comparação com os não financeiros, e numa abissal disparidade entre os estoques globais de capital real e capital fictício.
Portanto, quando analisamos o neoliberalismo, enquanto modelo de acumulação do capital, temos que manter em mente a centralidade das finanças – ou, mais especificamente, do capital fictício, agigantado ao ponto de tornar-se "disfuncional" para a acumulação (CARCANHOLO, 2011, p.75) – e do endividamento como motor desse modelo. Ambos esses processos encontram-se no cerne das crises recentes que analisaremos em seguida: a crise imobiliária de 2007-8 e a crise da dívida pública da zona do euro.

3. Crises imobiliária e da dívida pública

À luz desse quadro histórico, o primeiro ponto que devemos ter em mente é que essas crises não são fenômenos isolados, nem suas causas principais são diretas e imediatas. Antes, constituem consequências de desequilíbrios gerados pelas transformações na estrutura econômica global do capitalismo pós-1970. Em comparação com o período anterior, crises financeiras (ao contrário das crises de superprodução) praticamente inexistiam. À medida que o indutor de crescimento econômico se deslocava para a capital fictício, as crises financeiras tornaram-se cada vez mais comuns e mais intensas, até atingir seu pico nos anos de 2007-8. Portanto, segundo Harvey (2011, p.13), essa crise "deve ser vista como o auge de um padrão de crises financeiras que se tornaram mais frequentes e mais profundas ao longo dos anos, desde a última grande crise do capitalismo nos anos 1970 e início dos anos 1980". Lordon (2007), lista a principais delas:
Desde que ela [a nova arquitetura financeira internacional] se impôs, tem sido difícil passar mais de três anos seguidos sem um incidente de envergadura [...]: 187, quebra dos mercados de ações; 1990, quebra dos "junk bonds" ("títulos podres") e crise das "savings and loans" (instituições financeiras de poupança e empréstimos) norte-americanas; 1994, crise de debêntures norte-americanos; 1997, primeira fase da crise financeira internacional (Tailândia, Coréia, Hong Kong); 1998, segunda fase (Rússia, Brasil); 2001-2003, estouro da bolha da Internet.
Portanto, embora o epicentro da crise de 2007-8 tenha se localizado no mercado hipotecário subprime nos EUA, só foi possível propagar-se tão rápida e intensamente pelos quatro cantos do globo por causa dos canais criados nas últimas três décadas de mundialização financeira do capitalismo, bem como a estreita integração entre os mercados financeiros globalizados.
Entre as causas diretamente implicadas na inflação da bolha imobiliária nos EUA, estão as políticas monetárias do FED e o incentivo dado ao investimento imobiliário como forma de superar a bolha das chamadas empresas de alta tecnologia "pontocom", que estourou em 2001. Com a saturação e queda deste mercado, os capitais em excesso de liquidez migrariam para o setor imobiliário e sustentariam um boom especulativo que inflaria uma nova bolha. Segundo Chesnais (2007a), "2001 é o ano que vê as autoridades monetárias norte-americanas adotarem a ampliação do crédito hipotecário, como resposta à crise da bolsa de ações de alta tecnologia". Mas as raízes do problema remontam, como viemos reiterando, a processos mais amplos e antigos:
Toda la etapa de la liberalización y globalización financiera de las décadas de los ochenta y los noventa estuvo basada en acumulación de capital ficticio, sobre todo en manos de Fondos de inversión, Fondos de pensiones, Fondos financieros… Y la gran novedad desde finales o mediados de los años 90y a todo lo largo de la primera década del siglo XXI fue, en los Estados Unidos y en Gran Bretaña en particular, el empuje extraordinario que se dio a la creación de capital ficticio en la forma de crédito. De crédito a empresas, pero también y sobre todo de créditos a los hogares, créditos al consumo y más que nada créditos hipotecarios. […] a todo lo que ya dije, se añadió el hecho de que durante los dos últimos años los préstamos se hacían a hogares que no tenían la menor posibilidad de pagar. Y además, todo eso se combino con las nuevas "técnicas" financieras […], permitiéndose así que los bancos vendieran bonos en condiciones tales que nadie podía saber exactamente qué estaba comprando… hasta el fuerte estallido de los "subprime" en 2007. (CHESNAIS, 2008)
As várias causas diretas implicadas e a série de eventos que produziram e desencadearam a crise de 2007-8 são complexas demais para ser tratadas aqui. Podemos, no entanto, nos valer da valiosa síntese de Lordon (2008):
A crise dos mercados de crédito que castiga a economia norte-americana oferece uma visão quase ideal das relações fatais da especulação desenfreada. Como em uma parada, desfilam novamente as toxinas gerais do mundo financeiro, sempre as mesmas e numa ordem absolutamente idêntica: 1. as tendências "Ponzi" da especulação; 2. a lassidão das avaliações de riscos na fase de alta do ciclo financeiro; 3. a vulnerabilidade estrutural a uma pequena mudança de ambiente e o efeito catalizador de um enfraquecimento pontual do sistema, que precipita a reviravolta; 4. a revisão instantânea das estimativas; 5. o contágio de outros setores do mercado; 6. o choque dos bancos excessivamente expostos; 7. a ameaça de um acidente sistêmico, ou seja, de um colapso global, seguido de uma recessão generalizada por estrangulamento do crédito e um pedido de socorro aos bancos centrais feito por todos os fanáticos da livre iniciativa privada.
Vale ressaltar aqui o primeiro e o segundo pontos. As bolhas especulativas se baseiam na hipótese impossível de que sempre haverá novos investimentos para sustentar os ganhos do que investiram antes. Enquanto a liquidez e o crédito eram excessivos, os juros baixos, e os instrumentos de securitização davam a impressão de minimizar os riscos e, portanto, incentivavam o "risco moral" (ponto dois: lassidão das avaliações na fase de alta), cada vez mais camadas da população de fato ingressavam no mercado imobiliário (os chamados "subprimes", isto é, pessoas que não tinham condições de pagar por suas hipotecas), ou os que nele já estavam auferiam cada vez maiores rendas com suas hipotecas atreladas a imóveis sobrevalorizados. Mas uma vez que ocorreu uma "pequena mudança no ambiente" (o aumento da taxa básica de juros pelo FED), a "vulnerabilidade estrutural" do sistema precipitou a queda. Como os produtos financeiros estão completamente articulados e espraiados pelo sistema, o contágio rapidamente espalhou-se pelos bancos e investidores, levando ao choque de confiança e ao colapso global do sistema.
O ponto culminante da crise é a restrição do crédito e a recessão. Uma vez que o dínamo da economia é o capital financeiro, tanto ao fornecer crédito para investimentos produtivos quanto para o consumo familiar, a destruição de ativos financeiros afeta diretamente o que os marxistas chamam de "economia real", reduzindo a demanda, derrubando a produção e gerando desemprego. O que se segue é um ciclo vicioso que só pode ser rompido fazendo o crédito fluir novamente para irrigar a economia. O problema é que os resgates trilionários dados aos bancos pelos bancos centrais pouco são utilizados neste sentido. Ao invés de fomentar a produção, o emprego e consumo, as receitas públicas são usadas para concentrar e centralizar ainda mais o capital financeiro nas mãos de instituições cada vez mais "grandes demais" para falir.
O termo "socorro nacional" é impreciso. Os contribuintes estão simplesmente socorrendo os bancos, a classe capitalista, perdoando-lhe dívidas e transgressões, somente isso. O dinheiro vai para os bancos, mas até agora nos EUA não para os proprietários que foram despejados ou a população em geral. Os bancos estão usando o dinheiro, não para empréstimos [isto é, para religar o circuito do crédito], mas para reduzir o desnível dívida-capital e comprar outros bancos. Eles estão ocupados em consolidar seu poder. (HARVEY, 2011, p.33)
Assim, além das pessoas diretamente afetadas pela inadimplência e pelo desemprego, a sociedade em geral é quem arca com o prejuízo via transferência de receita pelo Estado. É neste ponto que entra a crise da dívida pública em alguns países da zona do euro.
A crise da dívida pública em vários países da zona do euro começou logo após a crise de 2007-8, já em 2009, quando alguns deles se viram com dificuldades ou efetivamente impossibilitados de cumprir com o serviço de suas dívidas. Embora as raízes dessa crise remontem à formação da zona do euro – especialmente os desequilíbrios comerciais entre os países membros, e a ortodoxia da política fiscal imposta formalmente pela união monetária (LAPAVITSAS et all, 2010) –, sua causa imediata foi o choque do crédito decorrente do pânico gerado pelas perdas da crise financeira global e à debacle geral das instituições financeiras, o que impossibilitou aos Estados tomarem empréstimos nos mercados de créditos.
The integration of peripheral countries in the eurozone has been precarious as well as rebounding in favour of Germany. The sovereign debt crisis has its roots in this underlying reality rather than in public profligacy in peripheral countries. When the crisis of 2007 – 2009 hit the eurozone, the structural weaknesses of monetary union emerged violently, taking the form of a public debt crisis for […] peripheral countries. (LAPAVITSAS et all, 2010, p.324)
Como esses países sustentavam altos níveis de endividamento em relação ao PIB, diante do risco de bancarrota, seus títulos se tornaram pouco atrativos. Noutras palavras, esses países com enormes passivos se viram impossibilitados de obter recursos financeiros a fim de cumprir com suas obrigações:
For the euro periphery, the 2008 global financial crisis triggered a major reassessment among investors of the sustainability of rapid credit growth and large external deficits. In turn, this took the form of significant private sector capital outflows, the tightening of credit conditions, and a shuddering halt in construction activity, with national banking systems grappling with the twin problems of rising estimates of loan losses and a liquidity squeeze in funding markets. In turn, the combined impact of domestic recessions, banking-sector distress, and the decline in risk appetite among international investors would fuel the conditions for a sovereign debt crisis. (LANE, 2012, p.54)
As tentativas de resolver o problema e evitar um default, que se imagina será generalizado dado a interdependência dos bancos nos países da zona do euro, não questionaram os dogmas neoliberais. Com efeito, a crise se mostrou um momento "oportuno" para reafirmar esses dogmas. Assim, como condição para os resgates por parte do BCE (Banco Central Europeu) e do FMI (Fundo Monetário Internacional), foram impostas políticas fiscais ortodoxas muito duras (isto é, medidas de austeridade), resultaram numa forte recessão. Alguns países, como Grécia, Espanha e Portugal, viram seu PIB encolher abruptamente, ao mesmo tempo em que as taxas de desemprego se elevam a níveis inéditos ao longo de todo o pós II Guerra. E, o que é pior, com a redução nos gastos sociais, e um verdadeiro desmonte do que havia sobrado do Estado de bem-estar, a crise econômica se traduziu numa terrível crise social.
A Grécia representa um caso particularmente dramático e ilustrativo no que concerne à ineficiência de tais políticas. Embora já exibisse uma elevada razão de endividamento por PIB, resultado do dinheiro fácil e barato à disposição dos países da euro zona, a crise financeira global tornou impossível à Grécia rolar sua dívida. Ela foi, então, o primeiro país a ser socorrido pela troika, em meados de 2010. Mas, desde então, as condições duríssimas de austeridade impostas em troca do resgate, bem como as reformas estruturais, não fizeram senão afundar o país numa severa recessão sem, com isto, reduzir o endividamento (FEATHERSTONE, 2011). O que tais medidas têm assegurado, afinal, é a transferência de recursos públicos para o sistema bancário.

4. Considerações finais

Apesar da intervenção estatal na crise, com compras de instituições financeiras, empréstimos e políticas monetárias, a condução dessas crises deixa muito claro como os dogmas neoliberais do capitalismo financeirizado continuam inquestionáveis. Por trás de tudo isso, encontra-se a máxima: privatizar os lucros, socializar as perdas. As causas da debacle financeira não estão sendo tratadas, ao contrário: além de as tentativas de retomar o crescimento terem dado resultados pífios, prepara-se o terreno para a próxima crise, uma vez que a desregulamentação financeira e a concentração de capital se aprofundam como resultado desta. Isso segue a receita típica das crises financeiras nesta fase do capitalismo: a crise atual também fora preparada pela crise antecedente (a bolha pontocom de 2001-3). O problema é a velocidade e intensidade com que as crises financeiras têm se sucedido. Se a crise de 2007-8 foi a mais terrível desde o crash de 1929, é assustador imaginar o que virá depois dela se reformas profundas e estruturais não forem feitas no mercado financeiro. Tudo indica para o fato de que o capitalismo se encontra no limitar de uma fase nova, e as saídas encontradas para essa crise darão a tônica da fase seguinte. Capitais em excesso serão destruídos, as elites econômicas reconfigurar-se-ão, mas a lógica central do modo de acumulação provavelmente seguirá intacta. Tudo aponta para a permanência das políticas neoliberais, uma vez que nenhum outro modelo se apresenta como substituto.

Referências bibliográficas

ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (orgs). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
BRENNER, Robert. O boom e a bolha: os Estados Unidos na economia mundial. Rio de Janeiro: Record, 2003.
CARCANHOLO, Marcelo. Conteúdo e forma da crise atual do capitalismo: lógica, contradições e possibilidades. In: Crítica e Sociedade: revista de cultura política, v.1, n.3, dez. 2011.
CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.
________. Até onde irá a crise financeira?, nov. 2007. Disponível em: < http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=2141>. Acesso em: 30 jul. 2014.
________. Como la crisis del 29, o más…: Un nuevo contexto mundial. In: Herramienta, n.39, oct. 2008. Disponível : < http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-39/como-la-crisis-del-29-o-mas-un-nuevo-contexto-mundial>. Acesso em: 30 jul. 2014.
DUMENIL, Gérard; LEVY, Dominique. Neoliberalismo: neoimperialismo. In: Economia e Sociedade, Campinas, v.16, n.1, 2007.
FEATHERSTONE, Kevin. The Greek sovereign debt crisis and EMU: a failing state in a skewed regime. In: Journal of Common Market Studies, v.49, n.2, p.193-217, 2011.
FOSTER, John; MAGDOFF, Harry. Implosão financeira e estagnação: de volta à economia real, dez. 2008. Disponível em: . Acesso em: 29 jul. 2014.
GUTTMAN, Robert; PLIHON, Dominique. O endividamento do consumidor no cerne do capitalismo conduzido pelas finanças. In: Economia e Sociedade, Campinas, v.17, Número Especial, p.575-611, dez. 2008.
HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.
________. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
LANE, Philip. The European sovereign debt crisis. In: Journal of Economic Perspectives, v.26, n.3, p.49-68, 2012.
LAPAVITSAS, Costas et all. Eurozone crisis: beggar thyself and thy neighbor. In: Journal of Balkan and Near Eastern Studies, v.12, n.4, dec. 2010.
LORDON, Frédéric. O mundo refém das finanças, set. 2007. Disponível em: . Acesso em: 30 jul. 2014.


11


Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.