NIETZSCHE E PESSOA: ENSAIOS (2016)

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introd u çã o

I N T ROD UÇ Ã O INTERVALOS, INTERSECCIONISMOS E A PLURALIDADE DO SUJEITO

Os antigos invocavam as Musas. Nós invocamo­‑nos a nós mesmos. Álvaro de Campos Tarefa: ver as coisas como elas são! Meio: conseguir vê­‑las através de cem olhos, através de muitas pessoas! Nietzsche What was the world to me? Nothing, a zero; yet a zero full of mystery. Pessoa

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sta nova colectânea de ensaios procura fazer uma aproxima‑ ção entre o poeta filosófico multifacetado Fernando Pessoa e o filósofo dramático­‑poético Friedrich Nietzsche. Por um lado, revela a influência e o impacto que Nietzsche exerceu sobre Pessoa; por outro, ao relacionar os dois autores, permite também explorar temas tão diversos como a consciência, o cosmopolitismo, o fingimento e o artista, a multiplicidade de estilos e perspectivas, o neopaganismo, a relação entre criatividade e loucura, a mitologia criativa, a plura‑ lidade do sujeito, o conceito de nada e o niilismo, a metafísica das sensações, a estética não­‑aristotélica e a crise geral da modernidade. O que aqui está em jogo é uma troca criativa de ideias, a partir da qual se tornará clara a vantagem de ler Nietzsche à luz de Pessoa e [17]

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Pessoa à luz de Nietzsche. Acreditamos ainda que um olhar conjunto sobre Nietzsche e Pessoa pode promover o debate contemporâneo sobre o sujeito, tanto da perspectiva do pensamento francês pós­ ‑estruturalista, como da perspectiva da filosofia anglo­‑americana das ciências cognitivas, da filosofia da mente e da filosofia da linguagem. Nos últimos anos temos assistido a uma espécie de globalização do impacto de Pessoa, devido em parte à tradução em várias línguas dos magníficos poemas de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro Campos, bem como à excelente tradução em inglês do Livro do Desassossego por Richard Zenith e Margaret Dull Costa, mas também graças à explora‑ ção filosófica da sua obra, patente nos textos inovadores de José Gil, O Espaço Interior (1994) e Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações (1987), e no pequeno ensaio do filósofo francês Alain Badiou intitulado «Uma tarefa filosófica: ser contemporâneo de Pessoa», publicado pela primeira vez num volume chamado Petit manuel d’inesthetique (1998) e traduzido para português em 1999. Em face das várias traduções, ensaios e novas edições que agora são publicadas global e anualmente, torna­‑se cada vez mais evidente que estamos na presença de um poeta profundamente filosófico que mergulhou mais fundo do que a maioria nas profundezas do enigmático e elusivo «Eu» enquanto sujeito. É óbvio que Pessoa era um leitor ávido de filosofia e, de forma dispersa por toda a sua obra, encontramos inúmeras alusões e refe‑ rências à maior parte dos grandes filósofos da tradição ocidental, como muitos dos pré­‑socráticos, Sócrates, Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Descartes, Espinosa, Kant, Hegel e Nietzsche. No entanto, e apesar de algumas publicações nas últimas décadas1, os escritos, reflexões e discussões filosóficas de Pessoa continuam 1  Eis uma pequena lista de alguns títulos sobre Pessoa e a filosofia publicados nos últimos quatro anos: Gabriel Cid de Garcia, A Eloquência do Mundo: Fernando Pessoa entre a Literatura e a Filosofia (Garamond, 2014); Paulo Borges, Nuno Ribeiro, Cláudia Souza (eds.), Nietzsche, Pes‑ soa e Freud (Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2013); Pablo Javier Pérez López, Poesía, ontología y tragedia en Fernando Pessoa (Editorial Manuscritos, 2012); Nuno Ribeiro (ed.), Philosophical Essays: A Critical Edition (Contra Mundum Press, 2012); Nuno Ribeiro, Fernando Pessoa e Nietzsche: O Pensamento da Pluralidade (Verbo, 2011); Paulo Borges, O Teatro da Vacui‑ dade ou a Impossibilidade de Ser Eu. Estudos e Ensaios Pessoanos (Verbo, 2011).

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a ser uma área da sua obra amplamente negligenciada. Este volume pretende fazer um pequeno contributo para suprir esta lacuna, concentrando­‑se no intercâmbio criativo de ideias entre Pessoa e Nietzsche: juntam­‑se aqui o poeta e o filósofo da modernidade e do futuro par excellence, revelando o pensamento profundamente filosó‑ fico de Pessoa e a brilhante força poética de Nietzsche, ao mesmo tempo que se afirma e confirma a eterna contemporaneidade dos dois escritores. Quando lemos os vários capítulos sobre Nietzsche e Pessoa neste volume, percebemos que estes gravitam em torno de três temas fun‑ damentais: o intervalo, o interseccionismo e a pluralidade do sujeito. Relativamente ao primeiro tema, Nietzsche e Pessoa criaram um espaço dinâmico — um intervalo — entre literatura e filosofia, entre modernismo e pós­‑modernismo, entre o pensador poético e o poeta filosófico, e entre o sujeito e o mundo. Ambos se afirmam escri­ tores póstumos e, se Nietzsche insinua, na altura em que escrevia O Anticristo, que talvez não existissem ainda leitores adequados para a sua obra (AC, Prefácio), Pessoa declara que a sua revista de van‑ guarda Orpheu «sói ser para poucos» (Pessoa, 2012: 44). Todo o Livro do Desassossego pode ser visto como uma visão do intervalo: não é bem um romance, não é bem um tratado filosófico, não é bem coisa nenhuma, a não ser talvez, nas palavras de Bernardo Soares, «um mapa absurdo de sinais mágicos» (Pessoa, 2012: 354). Precisamente por este intervalo, Pessoa representa, na sua própria expressão, uma «literatura de antemanhã», enquanto Nietzsche poderá representar uma «filosofia de antemanhã». O segundo tema é o interseccionismo — um termo criado por Pessoa, representando aqui o cruzamento entre espaço, tempo e psicologia, bem como a discussão criativa entre Nietzsche e Pessoa, o filósofo e o poeta. Considerado como uma forma de sensacio‑ nismo, particularmente articulado no poema de Pessoa «Chuva Oblíqua», publicado pela primeira vez no segundo número de Orpheu, onde o poeta se transfigura em dois ou mais estados, e onde [19]

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a realidade é estilhaçada e depois novamente reconstruída, o inter‑ seccionismo é «the sensationism that takes stock of the fact that every sensation is really several sensations mixed together» (Pessoa, 1966: 185). Neste volume, o interseccionismo está presente num sentido ainda mais lato, enquanto aquilo que, em primeiro lugar, une Nietzsche e Pessoa e, em segundo lugar, descreve o trabalho de ambos enquanto escritores. Assim, eles intersectam­‑se em todos os tópicos mencionados acima, bem como nas suas próprias viagens enquanto escritores. Através do universo polifónico de Pessoa e da sua heteronímia, e as contínuas mudanças de pele de Nietzsche, como uma cobra, em O Nascimento da Tragédia, Humano Demasiado Humano, Assim Falava Zaratustra, Para Além do Bem e do Mal, Crepúsculo dos Ídolos ou Ecce Homo, entre outros, há um infinito des­ ‑mascaramento e re­‑mascaramento, um padrão interseccionista na viagem do escritor no movimento de separação, iniciação e retorno, mas acima de tudo há uma unidade na multiplicidade, onde a única totalidade é a diversidade (BM, 212). O papel tradicional do filósofo é fazer distinções e o do poeta é criar harmonia e totalidades, mas no caso de Nietzsche e de Pessoa, ambos vão para além das regras e dos papéis das suas vocações, tornando­‑se, por isso, filósofos e poetas maiores. Para ambos, a multiplicidade é uma outra palavra para com‑ plexidade, de onde o filósofo e o artista livres retiram «a sua força inventiva e de dissimulação» (BM, 44). Em última análise, talvez seja este, citando Álvaro de Campos na «Tabacaria», o único «Pórtico partido para o Impossível» (Pessoa, 2014: 202). Por último, é impossível pensar na associação entre Pessoa e Nietzsche — o poeta e o filósofo — sem pensar na pluralidade do sujeito. Numa entrada no seu diário, em 1932, Anaïs Nin — uma autora contemporânea de Pessoa, que viveu uma vida muito mais longa, mantendo um poderoso equilíbrio entre a voz feminina e o espírito livre do séc. xx — poderia estar a falar de Pessoa e de todo o seu empreendimento artístico quando escreve as seguintes linhas: [20]

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I have always been tormented by the image of multiplicity of selves. Some days I call it richness, and other days I see it as a disease, a prolif‑ eration as dangerous as cancer. My first concept about people around me was that all of them were coordinated as a whole, whereas I was made up of a multitude of selves, of fragments. I know that I was upset as a child to discover that we only had one life. It seems to me that I wanted to compensate for this by multiplying experience. Or perhaps it always seems like this when you follow all your impulses and they take you in dif‑ ferent directions. In any case, when I was happy, always at the beginning of a love, euphoric, I felt I was gifted for living many lives fully. [...] It was only when I was in trouble, lost in a maze, stifled by complications and paradoxes that I was haunted or that I spoke of my ‘madness’, but I mean the madness of the poets. (Nin, 1979: 54)

A «pluralidade do sujeito» é um tema pertinente e fundamental na filosofia e literatura modernas, que tanto Nietzsche como Pessoa penetram e incorporam profundamente. A crítica de Nietzsche do sujeito, ou da subjectividade do homem — a questão de saber em que medida é que a identidade do homem pode ou não ser com‑ preendida em termos do conceito de um «eu» ou «sujeito» —, teve um impacto maciço em certos pensadores (como Deleuze, Foucault, Derrida) na segunda metade do séc. xx, culminando com o debate sobre «a morte do sujeito». No entanto, o que só agora, nas últimas duas décadas, se começa a perceber na investigação sobre Nietzsche, é que a crítica do sujeito ou do pensamento subjectivo na filosofia de Nietzsche, longe de significar a sua morte, antes o possibilita como pluralidade, abrindo novas perspectivas para o pensamento e a prá‑ tica criativa perante a crise contínua da modernidade. Encontramos um movimento semelhante na obra poética de Fernando Pessoa. No mesmo ano (1914) em que criou os seus três heterónimos mais famosos (Caeiro, Reis e Campos), Pessoa escreveu num pedaço de papel «Sê plural como o universo!», e a sua «vontade de poder» manifestou­‑se na sua infinita criação de múltiplas personas e esti‑ los. Se houver alguma possibilidade de encontrar este «Eu» elusivo, [21]

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ela pressuporá necessariamente uma viagem pela total diluição do «Eu» como sujeito, por forma a reencontrar­‑se como «Eu» plural. Inspirando­‑se em Nietzsche, Graham Parkes escreve em Composing the Soul que «the air of paradox dissipates if one regards the poet’s self not as something unitary but as inherently multiple» (Parkes, 1994: 29). Ou, como diz um determinado Nietzsche na sua autobio‑ grafia dissimulada, Ecce Homo, esta «enorme multiplicidade» é, con‑ tudo, «a contrapartida do caos» (EH, Porque Sou Tão Perspicaz, 9). O desejo de Nietzsche e de Pessoa é criar formas que possam captar um sujeito múltiplo, e um sujeito enquanto processo, não enquanto produto. Deste ponto de vista, podemos compreender mais profun‑ damente a afirmação de Deleuze de que «o sujeito não é um sujeito, mas um envelope» (Deleuze, 1990: 212). O que tornou a compilação desta colecção de artigos ainda mais desafiante e entusiasmante foi o debate contínuo e não resolvido sobre a caracterização de Nietzsche e Pessoa como modernistas, pós­‑modernistas ou ambos. Esperamos que o leitor possa decidir por si próprio ao fazer a sua própria viagem ao longo deste livro. Esta colecção está dividida em três partes, em conformidade com a forma grega antiga da ode, levada à perfeição por Píndaro: uma estrofe, uma antístrofe e um epodo. Esta escolha foi parcialmente inspirada pela estrutura de uma das maiores odes de Álvaro de Campos, a «Ode Marítima», e pela admiração que Nietzsche nutria pelos poetas líricos antigos, contemplando ainda uma pequena referência à dialéctica hegeliana moderna da tese, antítese e sín‑ tese. A estrofe contém um ensaio de Eduardo Lourenço intitu‑ lado «Nietzsche e Pessoa», publicado originalmente em francês, na edição francesa Fernando Pessoa: Roi de notre Baviere, em 1988 e, na tradução que aqui se apresenta em 1989, na colectânea organizada por António Marques, Nietzsche: Cem Anos Após o Projecto «Vontade de Poder — Transmutação de Todos os Valores». Decidimos republicar este ensaio não só pela combinação de profundidade e amplitude de perspectiva no tratamento da relação ente Nietzsche e Pessoa na [22]

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forma exímia do ensaio clássico que este texto apresenta, mas, prin‑ cipalmente, como forma de agradecimento pelo trabalho pioneiro e inestimável de Eduardo Lourenço na literatura, na filosofia e na pro‑ moção da cultura portuguesa. A antístrofe está dividida em três secções ou intervalos, cada uma com cinco ensaios: «Intervalo I: Raízes, Referências e Conversas», «Intervalo II: Entre Filosofia e Poesia» e «Intervalo III: A Estética da Pluralidade». No primeiro intervalo são trazidas à luz as raízes da influência de Nietzsche sobre Pessoa, apresentando­‑se referên‑ cias e leituras indirectas, bem como conversas entre as várias vozes e heterónimos de Pessoa na esteira de Nietzsche. Bartholomew Ryan explora o impacto do Zeitgeist de Nietzsche na revista revolucionária Orpheu e, em particular, o modo como uma nova forma de cosmopoli‑ tismo emerge e se torna possível a partir das ideias de Nietzsche e do grupo de Orpheu (especialmente através de Álvaro de Campos), aqui provocativamente chamados «os filhos de Nietzsche», concentrando a sua análise nas noções de «bom europeu», cidadão do mar e caosmos da pluralidade. Pablo Javier Pérez Lopez apresenta um estudo cui‑ dadoso indispensável sobre a biblioteca de Pessoa e as referências a Nietzsche, em que procura determinar aquilo que Pessoa poderá ter possuído e lido, anexando ainda um conjunto de anotações de Pessoa sobre Nietzsche nunca antes publicadas. Antonio Cardiello explora o projecto filosófico e espiritual inacabado de Pessoa neo‑ paganismo e «regresso dos deuses» na sua relação fascinante com Nietzsche e o seu ataque ao cristianismo. Richard Zenith propõe­ ‑se a fazer uma leitura de Pessoa e dos seus heterónimos à luz de duas doutrinas fundamentais de Nietzsche, o eterno retorno e a vontade de poder, mostrando ainda como Pessoa incorpora no seu empreen‑ dimento artístico muitos dos «novos valores» que Nietzsche desejava para o futuro. Por último, Fabrizio Boscaglia revela a afinidade his‑ tórica e filosófica entre ambos os autores, no que diz respeito às múlti‑ plas metamorfoses e formas do islão. O segundo intervalo explora a dissolução das fronteiras entre filosofia e poesia ao ler Pessoa e Nietzsche, ao mesmo tempo que [23]

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procura mostrar como as duas disciplinas podem e devem auxiliar­‑se mutuamente, por exemplo, na análise da poesia filosófica de Pessoa através de Nietzsche ou na reflexão sobre o pensamento poético de Nietzsche sob o prisma do universo literário filosófico e psicológico de Pessoa. Os resultados podem ser muito produtivos e surpreenden‑ tes, como demonstram os cinco ensaios incluídos nesta secção. João Constâncio apresenta uma leitura aprofundada do famoso poema de Álvaro de Campos, «Tabacaria», analisando e elucidando cuida‑ dosamente a ideia do «não ser nada» através das múltiplas possibili‑ dades filosóficas abertas pelo pensamento de Nietzsche. Oswaldo Giacóia Júnior concentra­‑se nas relações entre a vida e a obra do pensador e do poeta, entre filosofia e psicologia, e ainda na forma como a criação literária pode modificar a compreensão da experiên‑ cia do pensamento, através das «cartas da loucura» de Nietzsche e as «modulações polimorfas dos heterônimos» de Pessoa. André Boniatti procura demonstrar a presença obscura e enigmática de Nietzsche e Zaratustra no principal heterónimo de Pessoa, Alberto Caeiro, onde frequentemente o poeta de Pessoa se torna o filósofo e o filósofo de Nietzsche se torna o poeta. O ensaio de Filipa de Freitas traz­‑nos um terceiro escritor que, enquanto grande filósofo das máscaras e da multiplicidade, rivaliza tanto com Nietzsche como com Pessoa: Søren Kierkegaard. Freitas capta, de forma perspicaz, a ligação entre a primeira e persistente questão de Kierkegaard — «O que é um poeta?» (Kierkegaard, 2013: 43) e o tédio e o niilismo de Campos e Nietzsche. Ainda que a diferença fundamental entre os três autores seja que Kierkegaard é um cristão que procura acor‑ dar o leitor para a verdade de Cristo encarnado, ao passo que tanto Pessoa como Nietzsche são pagãos perniciosos, nenhum deles perdeu a esperança na procura e na alegria espiritual que pode ser (re)descoberta na afirmação da criatividade poética. No ensaio final desta secção, Ernani Chaves esclarece a espada de dois gumes ou a dupla face da realidade para o poeta e o filósofo no que diz respeito à verdade e à mentira, através do conceito de fingimento a operar tanto em Nietzsche como em Pessoa. Talvez a famosa declaração de [24]

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Campos, «Fingir é conhecer­‑se» (Pessoa, 2014: 448) se aplique, afinal, tanto a Pessoa como a Nietzsche. No terceiro intervalo analisam­‑se as peculiaridades de uma esté‑ tica nascida da multiplicidade, alteridade ou pluralidade, bem como o consequente desdobramento da actividade literária, poética ou filosófica numa profusão interminável de estilos, máscaras, vozes, metamorfoses e até tarefas — um desafio ou um destino que tanto Nietzsche como Pessoa aceitam e incorporam de forma magistral. Assim, Maria Filomena Molder apresenta um estudo aprofundado sobre a «pluralidade do sujeito» em Nietzsche e Pessoa, usando como pedra­‑de­‑toque uma distinção subtil entre o «outrar­‑se» de Pessoa e o «tornar­‑se naquilo que se é» de Nietzsche, e assinalando em ambos os casos o seu valor operatório para a inspiração e criação poéticas ou literárias dos dois autores. Unidos por uma recusa comum do con‑ ceito de sujeito, Nietzsche e Pessoa demarcam­‑se, segundo Molder, por uma certa forma de heroísmo que, caracterizando a filosofia do primeiro, se encontra totalmente ausente no segundo. Maria João Mayer Branco analisa as críticas de Pessoa e Nietzsche à estética de Aristóteles através de uma leitura de «Apontamentos para uma estética não­‑aristotélica», de Campos, e do Nascimento da Tragédia, de Nietzsche, desvelando ainda, a partir destes textos, a relação entre decadência e afirmação nos dois autores. No mesmo sentido, Marta Faustino e Antonio Cardiello procuram mostrar como Nietzsche e Pessoa partilham um ideal estético semelhante no que diz respeito à sua compreensão da arte como essencialmente transfiguradora e afirmadora do real, em oposição a qualquer tipo de «ideal ascético», bem como à sua atribuição ao artista da tarefa suprema de dinamizar e divinizar a vida, procurando ainda justificar esta semelhança por uma eventual influência indirecta de Nietzsche sobre Pessoa através do livro de Gaultier, De Kant à Nietzsche. Gianfranco Ferraro contri‑ bui com uma interessante reflexão sobre a apropriação do género da autobiografia e da confissão pela filosofia, de forma particularmente evidente nas Confissões de Santo Agostinho, com uma significativa alte‑ ração nas Meditações de Descartes, mas definitivamente recuperado [25]

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por Nietzsche, especialmente no seu Ecce Homo — e também por Pessoa. Inspirando­‑se na Arqueologia do Saber, de Michel Foucault, Ferraro procura, justamente, «uma arqueologia do si em Nietzsche e Pessoa», os grandes escritores das ficções verdadeiras, onde por vezes a confissão pode ser apenas outra forma de escondimento, lembrando­ Peer Gynt, de Ibsen, que disse ou perguntou: «skrifte, og dog dølge — ? [confessar, e ainda assim esconder — ?]»2. O último ensaio oferece uma viagem conduzida por Fernando Ribeiro pelas várias vozes do modernismo europeu, contemplando não apenas Nietzsche e Pessoa, mas também os poetas franceses Baudelaire e Rimbaud, acompanha‑ dos pelas reflexões de autores tão díspares como Benjamin, Dilthey, Wittgenstein, Agamben, Ricoeur ou Freud, contribuindo assim para o esclarecimento do contexto filosófico, poético e literário da estética da pluralidade na modernidade. A terceira e última secção ou o epodo deste livro consiste num dos‑ siê concebido e organizado por Jerónimo Pizarro, contendo doze textos de Pessoa com uma referência explícita a Nietzsche. Este dos‑ siê disponibiliza cópias dos manuscritos originais de Pessoa, acompa‑ nhadas da análise altamente cuidada, experiente e erudita de Pizarro dos vários rabiscos, assinaturas, fragmentos e notas de Pessoa. Esperamos que esta colecção possa abrir novas perspectivas para a reflexão não apenas sobre Pessoa e Nietzsche, mas também sobre Pessoa e a filosofia em geral, e que encoraje e incite o leitor a reagir, a continuar a explorar e a desenvolver trabalho futuro, retirando even‑ tualmente inspiração de alguns dos ensaios aqui reunidos. No inte‑ rior das tensões persistentes e não resolvidas entre a modernidade e a pós­‑modernidade, bem como da sobrecarga de informação desta era revolucionária da tecnologia e das comunicações digitais, o escri‑ tor, enquanto poeta e filósofo — como Pessoa e Nietzsche — pode e deve continuar a emergir, a criticar e a celebrar, no eterno mistério da vida e do estar vivo. Pensando em e com Pessoa e Nietzsche, como 2  Ibsen, Henrik, Peer Gynt, III.iii, 84/59.

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pessoas que viveram através dos seus escritos e nos seus escritos, esta introdução termina com uma passagem de outro autor que poderia igualmente ser colocado nas margens da filosofia e da literatura: Le dieu de l’écriture est donc à la fois son père, son fils et lui. Il ne se laisse pas assigner une place fixe dans le jeu des différences. Rusé, insais‑ sable, masqué, comploteur, farceur, comme Hermès, ce n’est ni un roi ni un valet; une sorte de joker plutôt, un signifiant disponible, une carte neu‑ tre, donnant du jeu au jeu. (Derrida, 1972: 105)

Bartholomew Ryan Lisboa, 31 de Outubro de 2015

bibliografia Deleuze, Gilles, Pourparlers 1972­‑1990, Paris, Minuit, 1990. Derrida, Jacques, La dissémination, Paris, Éditions du Seuil, 1972. Kierkegaard, Søren, Ou­‑Ou: Um Fragmento de Vida (Primeira Parte), tradução, introdução e notas de Elisabete M. Sousa, Lisboa, Relógio D’Água, 2013. Nietzsche, Friedrich, Para Além do Bem e do Mal, trad. Carlos Morujão, Lisboa, Relógio D’Água, 1999. Nin, Anaïs, The Journals of Anais Nin, Volume 1 1931­‑1934, Londres, Quartet Books, 1979. Parkes, Graham, Composing the Soul: Reaches of Nietzsche’s Psychology, Chicago, University of Chicago Press, 1994. Pessoa, Fernando Páginas Íntimas e de Auto­‑Interpretação, ed. Jacinto do Prado Coelho e Georg Rudolf Lind, Lisboa, Ática, 1966. Pessoa, Fernando, Pessoa Inédito, coord. Teresa Rita Lopes, Lisboa, Livros Horizonte, 1993. Pessoa, Fernando, Livro do Desassossego, ed. Richard Zenith, Lisboa, Assírio & Alvim, 2012. Pessoa, Fernando, Álvaro de Campos. Obra Completa, ed. Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello, Lisboa, Tinta­‑da­‑china, 2014.

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