No limiar da história do mundo: sobre a atualidade do pensamento do Frantz Fanon.

May 27, 2017 | Autor: L. Santos Brandão | Categoria: Colonialism, Frantz Fanon, Colonialism and Imperialism
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Universidade de Brasília Instituto de Ciências Humanas – Departamento de História Disciplina: História da América 3 – 1º/2016 Turma: Professor: Carlos Eduardo Vidigal Aluno: Luiz Henrique Santos Brandão 11/0016301

No limiar da história do mundo: sobre a atualidade do pensamento do Frantz Fanon.

Aquilo que entendemos precisamente pela África é o espírito a-histórico, o espírito não desenvolvido, ainda envolto em condições da natureza e que deve ser aqui apresentado apenas como no limiar da história do mundo. - Georg Hegel. Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte. Minha última prece: Oh, meu corpo, faz de mim sempre um homem que interroga! - Frantz Fanon. Peau noire, masques blancs.

Resumo: O presente artigo busca identificar em que medida a análise do colonialismo desenvolvida nos anos 1950 pelo psiquiatra martinicano Frantz Fanon influencia os trabalhos desenvolvidos por intelectuais latino-americanos contemporâneos sobre o que chamamos hoje de pós-colonialismo. Palavras-Chave: Frantz Fanon; Modernidade; Colonialidade. Abstract: This article aims to identify how does the analysis made in the 1950's by the martinican psychiatrist Frantz Fanon influence contemporary works made by Latin-american intellectuals on the so called post-colonialism. Key Words: Frantz Fanon; Modernity; Coloniality.

Introdução A ideia e a motivação que me levaram a escrever esse artigo surgiu de uma inquietação ética e política que tem acompanhado a mim e a tantas(os) outras(os) colegas durante a graduação no curso de História da Universidade de Brasília. Dispensa qualquer comentário a maneira grosseiramente eurocêntrica como é organizado o currículo do curso, na contramão de todos os questionamentos e críticas suscitados pelos professores, debatidos por especialistas e levantados por estudantes cotidianamente. Essa, porém, não é uma especificidade do curso história na Universidade de Brasília, nem a Universidade de Brasília é um caso isolado no panorama universitário brasileiro. Pelo contrário, essa parece ser – salvo honrosas exceções que, mesmo assim encontram dificuldades em se estabelecer – a regra seguida pelas universidades ao redor do mundo. O cânone europeu organiza as instituições de ensino em todos os níveis, reproduzindo e arraigando um colonialismo epistemológico desde as séries iniciais da Educação Básica até o ensino superior. Um colonialismo institucional que não só desestimula, como poda as possibilidades de desenvolvimento de um discurso afirmador dos saberes e das culturas locais e seus sistemas de conhecimento, além de introjetar um complexo de inferioridade em quem está na periferia desse sistema excludente. Esse amparo institucional naturaliza e perpetua os padrões eurocêntricos de interpretação do mundo e do sujeito, de modo que as tentativas de romper com o cânone são encaradas, quando não com aversão, com condescendência. Assim, o aluno médio de graduação muitas vezes não chega – pelo menos não pelas vias institucionais – sequer a ter conhecimento da existência de qualquer material ou aparato teórico que questione a narrativa pretensamente universalista e objetiva europeia. Ou melhor: que questione a pretensão de universidade e objetividade do discurso europeu. Os grandes teóricos são europeus. Os grandes historiadores são europeus. A própria história, como disciplina e como tradição, é europeia. Por mais soe estranho aos padrões morais contemporâneos quando um Hegel escreve que “a África é algo fechado e sem história, que ainda está envolto no espírito natural [e, portanto, não humano]” (HEGEL, 2008), não se pode perder de vista os ecos que esse tipo de lógica encontra na organização geopolítica do conhecimento que ainda hoje tem lugar (e força) no sistema universitário mundial e como sua presença se faz sentir nas sociedades que compartilham a herança do período colonial. Qual não foi a minha surpresa e fascínio ao ter o meu primeiro contato com autores como Frantz Fanon! Sua denúncia e engajamento expunham as entranhas do que Grosfoguel chama de “sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno” (GROSFOGUEL, 2008) e

suas bases epistemológicas, culturais e econômicas. Fanon me abriu as portas não só para uma nova perspectiva historiográfica, mas para uma postura ética e política renovada, ressignificada em relação ao meu curso e à minha profissão. A partir dos questionamentos suscitados pelo contato com suas ideias, procurei conhecer as autoras e autores que trabalham hoje com categorias de análise similares e aprendi logo a admirar o esforço desses autores e autoras pela construção um projeto epistemológico, ético e político a partir de uma crítica à modernidade ocidental em seus postulados históricos, sociológicos e filosóficos, etc (CANDAU e OLIVEIRA, 2010), na busca pela construção de uma via alternativa concreta à essa modernidade eurocêntrica, tanto no seu projeto de civilização quanto em suas ricas, porém limitadas propostas epistêmicas . A minha intenção nesse artigo foi então aprofundar o meu contato com essas autoras e autores do pensamento pós-colonial contemporâneo, buscando detectar, em linhas gerais, traços e influências da análise do sistema colonial e seus efeitos (socioeconômicos e psicológicos) desenvolvida por Frantz Fanon nos anos 1950. Para tanto, o artigo foi dividido em três partes: a primeira delas busca apresentar o psiquiatra martinicano e o contexto no qual escreveu, visando assim situar as principais ideias desenvolvidas em seu livro “Peles Negras, Máscaras Brancas”, uma de suas principais obras. A segunda busca apresentar o grupo Modernidade-Colonialidade e suas principais contribuições para a decolonização epistêmica da América Latina. Na terceira e última parte busquei fazer um paralelo entre o pensamento de Fanon e as principais categorias de análise desenvolvidas pelo grupo citado, buscando encontrar as correspondências existentes entre ambos.

1. Quem foi Franz Fanon? Frantz Omar Fanon nasceu em 19251 na cidade de Fort-de-France, na então colônia francesa da Martinica. A situação socioeconômica relativamente privilegiada de sua família permitiu-lhe estudar no Lycée Victor-Schoelcher, reconhecido à época como o melhor colégio da Martinica, onde Fanon teve a oportunidade de assistir às aulas de figuras do porte de Aimé Césaire2, que permaneceria seu amigo e mentor, exercendo profunda influência sobre sua política e intelectual. Aos 17 anos, em 1943, juntou-se à Armée française de la Libération para lutar junto 1 2

Os dados de cunho biográfico foram obtidos, em sua maioria, no Encyclopedia of World Biography. "Biography of Frantz Fanon". Disponível no endereço http://www.bookrags.com/biography/frantz-fanon/ (acessado em: 20 junho 2016). Grande poeta martinicano e um dos maiores escritores em língua francesa da época. Entre suas principais obras, estão: Cahier d'un retour au pays natal (1939) e Discours sur le colonialisme (1950).

aos Aliados e o General de Gaulle contra o governo colaboracionista de Vichy, tendo lutado em diversas partes da Algeria e da França contra as forças alemãs. Em 1945 retorna ao seu país natal, mas logo é aprovado na Universidade de Lyon onde estudou medicina e psiquiatria e teve sua formação filosófica largamente influenciada por Maurice Merleau-Ponty. Em sua residência, sob a tutela do psiquiatra catalão François Tosquelles, um dos principais defensores do papel da cultura na formação de psicopatologias. É nessa época, logo após terminar sua residência, que Fanon escreve seu primeiro trabalho de maior fôlego. “Ensaio sobre a desalienação do Negro” é um estudo sobre os efeitos psicológicos negativos provocados pela subjugação do negro dentro do sistema colonial. O texto foi submetido como tese de doutoramento na Universidade de Lyon mas mas foi rejeitado (ALICE, 2006). Em 1952, por recomendação do editor, Fanon muda o nome do trabalho e publica “Peles negras, máscaras brancas” pela Éditions du Sueul. O livro é uma reflexão que surge a partir de sua própria experiência como um negro vivendo na metrópole colonial. As denúncias feitas por Fanon no decorrer do livro são altamente autobiográficas. Em 1953 Fanon deixa a França para ocupar uma posição de chefia no Hospital Psiquiátrico de Bilda-Joinville, na Argélia, onde passa a aplicar os métodos desenvolvidos pelo seu antigo colega/professor Dr. François Tosquelles. O método da socioterapia, ou “terapia institucional” opera sob o pressuposto de que se adaptar à cultura do paciente e compreender seus mecanismos de subjetivação para que se obtenha efetividade na terapia. Com a eclosão da guerra da Argélia em 1954, Fanon engaja-se nos movimentos de resistência nacionalista argelinos e entra para a Front de Libération Nationale (FLN). Em 1956 ele pede demissão do seu posto no Hospital de Bilda-Joinville e no ano seguinte é deportado. Expulso da Argélia e tendo renunciado à cidadania francesa – ato que marca o rompimento com sua formação francesa assimilacionista –, Fanon junta-se à FLN na Tunísia e passa a trabalhar no El Moudjahid, órgão central de imprensa do movimento independentista, como especialista em problemas de tortura, já que acumulara vasta experiência sobre o assunto em seu trabalho de atendimento psiquiátrico a torturadores no Hospital de BildaJoinville (MACEY, 2013). Em 1959 participa da delegação argelina no congresso panafricano realizado em Accra e em 1960 é nomeado embaixador do Governo Provisório da República da Argelia em Gana. Na mesma época, inicia seus estudos do Al Corão e se converte ao islamismo 3 (MACEY, 3

A pesar de Fanon ter se afirmado publicamente como muçulmano no final de sua vida, Macey afirma que

2012). Os escritos produzidos nesse período foram publicados postumamente (1964) num volume sob o nome Pour la révolution africaine. Ainda em 1960 é diagnosticado com leucemia e parte para a URSS a fim de realizar o tratamento em Moscou. Volta para a Tunísia e profere ainda algumas palestras para oficiais da ALN e faz uma última visita à Sartre em Roma. Em 1961 a CIA 4 financia sua viagem e tratamento nos Estados Unidos (CODEVILLA, 1992), onde escreve sua última e mais famosa obra, Os Condenados da Terra5, prefaciado por Jean-Paul Sartre e que influenciou largamente os movimentos de independência africanos e o posterior surgimento de uma literatura póscolonial. Fanon morre aos 36 anos, poucos meses antes antes da independência da Argélia. Seu corpo encontra-se hoje no cemitério Chouhadas de mártires da guerra, na Argélia, junto com três de suas principais obras: Peau noire et masques blancs, La cinquième année de la révolution algérienne e Les Damnés de la terre. Embora o reconhecimento da obra de Fanon tenha se dado tardiamente da França e no seu próprio país natal, seus escritos influenciaram de maneira direta e imediata aqueles a quem foram dirigidos: o povo argelino. A publicação da versão em inglês do Condenados da Terra (Wretched of the Earth, na edição americana), em 1963, no entanto, lhe conferiu certo reconhecimento internacional de destaque tendo influenciado de maneira notável movimentos como os Panteras Negras nos Estados Unidos. Suas análises utilizam-se de métodos da psicanálise, sociologia, antropologia, linguística e literatura para abordar o problema da colonialidade, buscando afastar tanto as simplificações das explicações macro – sociológicas e econômicas – quanto os reducionismos subjetivistas das explicações psicanalíticas. A partir de sua postura sóbria e engajada, Fanon expõe, por exemplo, como a noção de 'raça' é constitutiva da ideia de nação e de forma alguma exterior ao 'corpo republicano' francês, reabilitando o papel da colônia na construção da identidade nacional francesa. Ao apontar a clivagem racial que fundamenta o sistema colonial, Fanon denuncia um republicanismo que se diz 'indiferente às diferenças', mas que nega à populações inteiras, com

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essa era mais uma posição política do que um engajamento espiritual, já que Fanon teria mantido a postura agnóstica e a-metafísica que o acompanhou durante toda a sua vida (MACEY, 2012, 167). Sobre os interesses geopolíticos em torno da imagem de Fanon à época, ver: EHRMANN, Eric. Vous rappelez-vous Ibrahim... Ibrahim Fanon? In.: Huffington post Maghreb le 5 février 2014. Disponível em: http://www.huffpostmaghreb.com/eric-ehrmann/rappelezvous-ibrahim-ibra_b_4390594.html (acesso em: 20 junho 2016) “O título, evidentemente, foi retirado do primeiro verso da Internacional, o hino do movimento operário mundial.” WALLERSTEIN, Emmanuel. Ler Fanon no século XXI. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 82. 2008, p.4.

seu sistema colonial, o acesso aos ditos 'direitos fundamentais' com a justificativa da inferioridade racial: O mundo colonial é um mundo maniqueísta. Não basta ao colonizador limitar fisicamente o colonizado, com suas polícias e seus exércitos, o espaço do colonizado. Assim, para ilustrar o caráter totalitário da exploração colonial, o colonizador faz do colonizado uma quinta-essencia do mal. A sociedade colonizada não somente se define como uma sociedade sem valores […] O indígena é declarado impermeável à ética, aos valores. É, e nos atrevemos a dizer, o inimigo dos valores. Neste sentido, ele é um mal absoluto. Elemento corrosivo de tudo o que o cerca, elemento deformador, capaz de desfigurar tudo que se regere à estética ou à moral, depositário de forças maléficas (FANON, 1961).

2. Modernidade-Colonialidade. Em Mundos y conocimientos de otro modo, Arturo Escobar apresenta um grupo de investigadores “crescentemente interconectado na América latina e nos Estados Unidos, e que vem ganhando relativa relevância nos últimos anos, […] suscitando um número cada vez maior de investigações, reuniões e publicações em torno de conceitos compartilhados” (ESCOBAR, 2003). A esse grupo, composto por figuras proeminentes do pensamento latino americano contemporâneo, como Enrique Dussel, Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Ramón Grosfoguel,

Catherine

Walsh

e

Nelson

Maldonado

Torres,

Escobar

chama

de

Modernidade/Colonialidade. A despeito da heterongeneidade plurinacional – Peru, Argentina, Porto Rico, Colombia, Estados Unidos entre outros – e multidisciplinar – semiologia, filosofia, sociologia, linguística e antropologia – o eixo central que dá unidade e coesão aos trabalhos desses intelectuais é a ideia de que “a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não derivada dela” (MIGNOLO, 2005). Como apontam os brasileiros Vera Candau e Luiz Fernandes de Oliveira, é “graças a colonialidade que a Europa pode produzir as ciências humanas como modelo único, universal e objetivo na produção de conhecimentos, além de deserdar todas as epistemologias da periferia do ocidente” (2010). Nesse ponto, a ressalva que Nelson Maldonado-Torres faz em Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto, faz-se pertinente: deve-se atentar para a diferença entre os conceitos de “colonialismo” e “colonialidade”. Para ele, O colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania de um

povo está no poder de outro povo ou nação, o que constitui a referida nação em um império. Diferente desta ideia, a colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, mas em vez de estar limitado a uma relação formal de poder entre dois povos ou nações, se relaciona à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça. Assim, apesar do colonialismo preceder a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Ela se mantém viva em textos didáticos, nos critérios para o bom trabalho acadêmico, na cultura, no sentido comum, na auto-imagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência moderna. Neste sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente (TORRES, 2007, 131).

Em outras palavras, por mais que a época dos sistemas formais de exploração colonial tenha terminado com as últimas revoltas de independência africanas e asiáticas nos anos 1970 e 1980, para os autores do grupo “Modernidade/Colonialidade”, a colonialidade sobrevive como uma permanência histórica nas estruturas do cotidiano, na construção de mecanismos de subjetivação, imaginário e epistemologias dessas sociedades que compartilham da assim chamada 'herança' colonial (CANDAU e OLIVEIRA, 2010). Isso posto, Quijano elabora o conceito de “colonialidade do poder” para dar conta do que seria essa estrutura de dominação à qual foram submetidas as diversas nações e povos da America Latina, África e Ásia, a partir da conquista (QUIJANO, 2005). As implicações simbólicas e subjetivas operadas por essa estrutura de dominação marcada pela colonialidade do poder são exploradas de forma magistral por Candau e Oliveira: O termo faz alusão á invasão do imaginário do outro, ou seja, sua ocidentalização. Mais especificamente, diz respeito a um discurso que se insere no mundo do colonizado, porém também se reproduz no lócus do colonizador. Nesse sentido, o colonizador destrói o imaginário do outro, invisibilizando-o e subalternizando-o, enquanto reafirma o próprio imaginário. Assim, a colonialidade do poder reprime os modos de produção de conhecimento, os saberes, o mundo simbólico, as imagens do colonizado e impõe novos. Opera-se, então, a naturalização do imaginário do invasor europeu, a subalternização epistêmica do outro não-europeu e a própria negação e o esquecimento de processos históricos não-europeus. Essa operação se realizou de várias formas, como a sedução pela cultura colonialista, o fetichismo cultural que o europeu cria em torno de sua cultura, estimulando forte aspiração à cultura europeia por parte dos sujeitos subalternizados. Portanto, o eurocentrismo não é a perspectiva cognitiva somente dos europeus, mas torna-se também do

conjunto daqueles educados sob sua hegemonia. Nesse sentido, pode-se afirmar que a colonialidade do poder constituiu a subjetividade do colonizado […] (CANDAU e OLIVEIRA, 2010).

Quijano deduz dessas implicações da colonialidade do poder, a sua noção de “colonialidade do saber” (QUIJANO, 2007), ou seja, a supressão de todas as formas de produção de conhecimento, expressão cultural ou legado histórico não-europeias. Aqui já se pode observar o papel desempenhado pelo conceito de raça como mecanismo justificador que sustenta esse tipo de silenciamento. A afirmação da hegemonia epistemológica da modernidade europeia “não admite nenhuma outra epistemologia como espaço de produção de pensamento crítico nem científico” (GROSFOGUEL, 2007) e isso se traduz num racismo epistemológico: a produção intelectual e cultural dos povos indígenas, africanos ou asiáticos não merece (ou ainda, não pode receber) nenhum crédito porque estão reduzidos a uma condição de primitivismo e irracionalidade e isso se dá por pertencerem eles à outra raça (inferior). Nesse sentido, Mignolo vai ao encontro de Grosfoguel quando afirma que “as ciências humanas, legitimadas pelo Estado, cumpriram papel fundamental na invenção do outro, através da criação da noção de progresso como uma linha temporal em que a Europa aparece como superior6 (MIGNOLO, 2005). O passo além, no sentido de uma aproximação mais explícita e direta com a análise desenvolvida por Fanon, é dado por Catherine Walsh quando ela observa a negação de um estatuto de humanidade para africanos e indígenas na modernidade colonial (WALSH, 2006).

3. Convergências. Em Peau noire, masques blancs, Fanon faz adaptações da fenomenologia de MerleauPonty, do existencialismo satreano, do materialismo marxista e da psicanálise de Freud para a tecer uma das mais agudas e profundas análises da situação colonial produzidas em sua época. Suas influências podem ser percebidas nos escritos pós-estruturalistas, na teoria queer, entre muitos outros, mas, principalmente, nos estudos pós-coloniais. As ressonâncias do pensamento fanoniano no pensamento pós-colonial latino 6

A esse respeito, é importante ter em conta a influencia de pensadores como o já citado Georg W. F. Hegel, que em seu “Filosofia da História” formula uma das suas mais célebres afirmações sobre a África: “A África não é uma parte histórica do mundo. Não tem movimentos, progressos a mostrar, movimentos históricos próprios dela. Quer isto dizer que sua parte setentrional pertence ao mundo europeu ou asiático. Aquilo que entendemos precisamente pela África é o espírito a-histórico, o espírito não desenvolvido, ainda envolto em condições da natureza e que deve ser aqui apresentado apenas como no limiar da história do mundo” (HEGEL, 2008, 88)

americano não são banais. Assertivas como a de que não é mais suficiente compreender objetivamente a realidade, mas que é necessário intervir (FANON, 1952), é uma rebelião contra o mito da objetividade e universalidade do conhecimento moderno eurocêntrico. É o reconhecimento e a denúncia de que esse mito serve ao propósito de alienar as pessoas que vivem nas margens desse sistema e silenciar qualquer outra forma de lidar consigo mesmas e com o mundo. As ideias de racismo epistêmico e de colonialidade do ser já podem ser antevistas quando Fanon afirma, já nas primeiras linhas de Peau noire, masques blancs: “le Noir n’est pas un homme” (FANON, 1952). No sistema colonial, o Ser é o Ser colonizador. O colonizado, em oposição a este, se constrói e é construído pelo colonizador como um não-Ser. Essa distinção cria uma alienação radical desse não-branco (e consequentemente um não-Ser) em relação a si próprio e um consequente impulso por “embranquecer-se”, ou seja, passar da esfera do não-humano, do primitivo, do selvagem, do negro, para o mundo humano, civilizado, educado, branco. A esse fenômeno, Fanon chama de “epidermização”: processo de subjetivação pelo qual a pessoa forçada à subalternidade internaliza as representações sociais tecidas em torno de si pelo opressor e passa a existir, em todos os níveis, dentro desse referencial. Uma outra correspondência, talvez até inesperada – dado o caráter inflexível e impertinente que uma leitura mais desatenta7 pode atribuir às críticas tecidas por Fanon à Europa e ao pensamento europeu – é o fato de Fanon, assim como os autores citados aqui, apontarem para uma coexistência produtiva entre os saberes europeus e saberes não-europeus. A decolonização

seria

então

um

trabalho

mais

de

“provincializar

a

europa”

(CHAKRABARTY, 2000) e “desprovincializar as ciências sociais” (COSTA, 2006) do que de rechaçar as contribuições que podem ser feitas pelo pensamento europeu (vide a admiração de Fanon por Sartre).

Conclusão Penso que a maior qualidade da denúncia feita por Frantz Fanon e também dos trabalhos realizados no âmbito dos estudos pós-coloniais é apontar para a necessidade de se reconhecer, principalmente em sociedades que assumem posições periféricas dentro desse 7

A problemática tradução para o inglês e a leitura simplista do último trabalho de Fanon criaram uma ideia de que ele seria um defensor da violência quando, investindo a atenção e o cuidado devido, Les Damnés de la Terre mais uma crítica dialética da não-violência.

“sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno” (GROSFOGUEL, 2008) como as latino-americanas, as possibilidades de existência de um “pensamento-outro” (KHATIBI, 1979), de enfoques epistemológicos marginais e subjetividades subalternizadas e excluídas, que lutem contra a não-existência, a existência dominada e a subalternização. Abre-se assim a possibilidade da construção de um pensamento formulado a partir das experiências históricas marcadas pela colonialidade, um “pensamento limiar”, como propõe Mignolo (2003), que promova um reordenamento da geopolítica do conhecimento, uma crítica da subalternização e a construção de uma nova modalidade epistemológica nas fronteiras entre a tradição ocidental e a diversidade de tradições suprimidas e silenciadas pela modernidade e pela colonialidade.

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