“No princípio era o caos”: a formação de um povoado na fronteira americana dos Impérios Ibéricos através do estudo das relações de compadrio

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“No princípio era o caos”: a formação de um povoado na fronteira americana dos Impérios Ibéricos através do estudo das relações de compadrio Martha Daisson Hameister

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Duas impressões com intervalo de trinta e cinco anos Disse Domingos da Filgueira, em seu relato da viagem entre a Colônia do Sacramento e a Vila da Laguna, em 1703: “Advirto que o rio Grande à vista do que se diz dele é uma droga; porque nós assim que a ele chegamos, estávamos vendo os lobos sair para a praia e tornarem a meter-se no rio.”2. É a única utilização vista do termo droga na documentação do século XVIII para o espaço meridional do Estado do Brasil que o utiliza em suas acepções populares que se empregariam mais de duzentos anos mais tarde3. O ambiente hostil, selvagem e úmido eram a “droga” a que se referia Domingos da Silveira. Trinta e cinco anos depois, André Ribeiro Coutinho, comandante militar da Fortaleza do Rio Grande com poderes 1 Mestrado e Doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná. 2 FILGUEIRA, Domingos da. “Roteiro por onde se deve governar quem sair por terra da Colônia do Sacramento para o Rio de Janeiro ou Vila de Santos (1703)”. In: Capistrano de ABREU. Ensaios e Estudos, 3ª Série. Brasília/Rio de Janeiro: MEC/Civilização Brasileira, 1976. p. 70-72., grifo meu. 3 HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. Edição em CD. verbete “Droga”, acepções 7, 9, 12, 13 e 14.

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para governar o Continente do Rio Grande de São Pedro, também referiu-se ao que encontrou por lá. Na missiva datada de 1738, enviada a um seu amigo comerciante, na qual o historiador Guilhermino Cesar denominou o território como Terra dos Muitos4, Ribeiro Coutinho responde a esse amigo a pergunta sobre “do que é feita essa terra”. Nesse documento, na resposta constam os “muitos” problemáticos do Rio Grande, tais como “muita mosca, muita mutuca, muito mosquito, muita polilha, muita pulga, no inverno muita chuva, muito vento, muito frio, muito trovão”. No texto, antecedem a esses muitos incômodos outros “muitos” elogiosos: “verdade, porque aqui há muita carne, muito peixe, muito pato, muita marreca, muito maçarico real, muita perdiz, muito jacum, muito laticínio, muito ananás, muita courama, muita madeira, (...)”. Ribeiro Coutinho, militar instruído, também dá vazão à verve, temperando a tal carta com pitadas de humor quando diz que o novo povoamento “tem feito um grosso avanço, seis frascos de aguardente se vendem por onze mil réis, bebe o comprador dois e vende os outros por onze mil réis” e assumindo a fartura da terra em medidas que beiram o fantástico: (...) e para que Vossa Mercê veja a sua fertilidade sendo tudo areia, medi uma cana de milho e achei 22 palmos, pesou-se um linguado e tinha 19 libras, não vi princípios tão avultados em terra alguma nem a há mais salutífera, fecunda e forte”.5

Essa alternância entre polos opostos, entre a pujança e o desconforto, entre o muito que sobra e a “muita falta de tudo”, constatando o “muito por fazer”, esconde o quanto isso era bom em comparação com o que lhe antecedeu.

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COUTINHO, André Ribeiro. Carta a um amigo. In: CESAR, Guilhermino. Primeiros Cronistas do Rio Grande do Sul - 1605-1891. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1988., p. 94-95. 5 Idem, p. 95.

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O inferno antecedeu ao caos No ano de 1680, chegou às margens do Prata o governador do Rio de Janeiro nomeado em 1679, Dom Manuel Lobo que, sem saber, fora destacado para uma missão secreta: fundar ali uma fortificação. Não deveria ser a missão interrompida e nem mesmo a morte seria empecilho para sua continuidade. As ordens para essa empreitada foram entregues lacradas e somente deveriam ser abertas quando o navio estivesse em alto mar; nelas havia incluso um conjunto de nomes em ordem, prevendo a substituição das comandâncias se, por infortúnio, D. Manuel Lobo e alguns dos seus viessem a falecer ou serem capturados6. Um belo presente de grego lhe dera a Coroa, já que quase que concomitante ao seu embarque para a América, um interino para o governo do Rio havia sido nomeado. Não que a vida no Rio de Janeiro fosse fácil no ano de 1680, mas ao menos essa localidade já existia, tendo algumas ruas e igrejas e a sede de um bispado. Não foi lá que Dom Manuel Lobo, com vasta folha de serviços prestados à Coroa, colocou seus pés. A rota foi desviada, ainda em pleno oceano, para mais bem mais ao sul. Numa borda do Prata, pastos, campos, pedras, índios, vacas e cavalos introduzidos pelos padres da Companhia de Jesus. Do outro lado, a cidade de Buenos Aires. Motivos políticos e econômicos levaram a Coroa lusa a esse empreendimento. O fim da União Ibérica, quarenta anos antes, lhes custara a limitação do acesso aos metais preciosos que jorravam em terras de Espanha. O Rio da Prata era escoadouro não só para as águas, mas para a prata 6 Regimento que o Governador do Rio de Janeiro Dom Manuel Lobo, levou para a Colônia do Sacramento. In: MONTEIRO, Jônathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento 1680 -1777. Porto Alegre: Globo, 1937. v.2, p. 25; “Diversos pareceres dos Conselheiros do Príncipe D. Pedro sobre as reclamações do governo espanhol contra a fundação da Colônia”. In: CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (1750) - Antecedentes do Tratado. Documentos organizados e anotados por Jaime Cortesão. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores, 1951.p. 15-18; 20-31.

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do interior. Os animais que grassavam aos campos também eram objeto de interesse. Não menos que essas possibilidades de exploração, o anseio de fazer frente aos espanhóis e não abrir mão dessa importante via de acesso ao interior do continente7. No segundo dia após a chegada no Prata, Dom Manuel foi contatado por alguns homens de Buenos Aires, que indagaram “que tipo de gente eram”. Uma longa e interessante discussão, na qual participaram geógrafos de ambas as nações, padres da Companhia de Jesus, cada com seu argumento, para saber se estavam ou não em terras castelhanas. Ficou acordado que não. Achou Manuel Lobo que os espanhóis saíram satisfeitos do colóquio. Engano seu. Retornaram dias após e puseram por terra o que lá havia. Dom Manuel Lobo e vários dos seus comandados foram feitos prisioneiros. O fidalgo faleceu em prisão portenha. Uma nova fortificação foi erguida, sem paz formalizada, mas também sem guerra declarada. Esta sustentou-se até 1705. Prosperaram os negócios de extração de couros e alguma agricultura. Em 1705, o rompimento da paz ibérica refletiu-se no Prata sob a forma de ataques à Nova Colônia. Os portugueses capitularam. Em 1716, com um novo tratado de paz vigorando e com Sacramento novamente sob domínio luso, os portugueses reiniciaram as coureadas. Convocaramse casais da península para a ocupação da região8. N’A Política dos Casais, como a chamou Jaime Cortesão, a Coroa portuguesa estimulou esse traslado. Para ocupar 7 Sobre a ocupação lusa da margem setentrional do Prata da Colônia do Sacramento, ver MONTEIRO, Jônathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento 1680 -1777. Porto Alegre: Globo, 1937. e PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: o extremo sul da América Portuguesa. Porto Alegre: F. P. Prado, 2002. 8 MONTEIRO, Jônathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento... v.II, p. 25; MONTEIRO, Jônathas da Costa Rego. A Dominação Espanhola no Rio Grande do Sul (1763-1777). Rio de Janeiro: IHGB/IGHMB, 1979; PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: o extremo sul da América Portuguesa. Porto Alegre: F. P. Prado, 2002; HAMEISTER, Martha Daisson. O Continente do Rio Grande de São Pedro: os homens, suas redes de relações e suas mercadorias semoventes (c.1727c.1763). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002. [dissertação de mestrado], disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/ texto/cp000119.pdf

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essas terras da Colônia recém devolvida aos domínios lusos, vieram: “60 casais de gente Transmontana que só entendem de Agricultura, de que aquelas tão dilatadas campinas necessitam”. Dentre esses casais, vinham os Souza Fernando, tio e sobrinho, suas respectivas esposas e filhos9. Algumas das famílias casaram seus filhos nos portos de embarque: as datas dos casamentos das quatro filhas mais velhas do casal Nicolau de Souza Fernando e Ana Marques são as mesmas10, indicando um casamento coletivo nos tempos que antecederam ao embarque, talvez para receber os incentivos prometidos pela Coroa para casais já formados. A década de 1720 foi marcada por saques e violência que, se não eram excepcionais em sua frequência, o eram pela riqueza de detalhes com que foram narrados11. Ataques às carretas de couros com roubo de carga e escravos foram frequentes e com menos frequência ocorreram os revides por parte dos coureadores lesados. Pessoas casando, crianças nascendo, o apresamento de gados, as coureadas, alguma produção agrícola, construções de casas e igrejas faziam parte da vida, não sem muito esforço e muitas vicissitudes: Queixão-se a V.M os Povoadores que Vossa Majestade foi servido mandar povoar a Nova Colônia do Sacramento, que hindo para a dita Praça 79 casaes ha 12 annos, tem experimentados grandes contratempos e calamidades de fomes por falta de mantimentos e de frios pelo clima da terra ser muito rigoroso no inverno e muito falto de madeiras (...) com risco de vida assim dos castelhanos, como dos indios barbaros que infestão a dita campanha. (...) Os ditos 70 casaes tem produzido perto de mil familias (...)12. 9

MONTEIRO, Jônathas da Costa Rego. A Colônia do Sacramento... p. 71 RHEINGANTZ, Carlos G. “Povoamento do Rio Grande de São Pedro. A contribuição da Colônia do Sacramento”. In: INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO / INSTITUTO DE GEOGRAFIA E HISTÓRIA MILITAR DO BRASIL. Anais do Simpósio Comemorativo do Bicentenário da Restauração do Rio Grande (1776-1976). Rio de Janeiro: IHGB/IGHMB, 1979. Títulos Nicolau de Souza Fernando e Antônio de Souza Fernando. 11 SÁ, Simão Pereira de. História Topográfica e Bélica da Nova Colônia do Sacramento do Rio da Prata, Escrita por Ordem do Governador e Capitão Geral do Rio de Janeiro em 1737 e 1777. Porto Alegre: Arcano 17, 1993.. p. 57. 12 Representação dos Povoadores da Nova Colônia do Sacramento em que expõem as suas queixas pelas privações que estavam sofrendo com a falta de mantimentos e os rigores do clima. In: MONTEIRO, Jônathas da Costa Rego. A Colônia do 10

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O que já não era bom sempre podia piorar. Em 1735, um novo rompimento da paz. Sacramento foi sitiada por cerco que durou até 1737. Não houve capitulação. A praça da Colônia foi mantida por luta e perseverança. Eram atacados simultaneamente desde terra e mar. Houve bloqueio terrestre montado de tal modo que não chegavam alimentos. Por mar, nem alimentos, nem tropas, nem armas. Para os feridos, não havia as boticas necessárias. Seus habitantes e defensores passaram fome, constando que até cães e ratos foram comidos no desespero. Tudo o que estava fora da murada da fortificação estava sujeito às investidas das tropas e foi arrasado13. Os estoques de grãos de cada família foram perdidos. Isso, sem contar as mortes. De Sacramento, os contingentes civis tiveram que evadir. Dentre esses, Antônio Simões e Maria Quitéria Marques de Souza, filha de Nicolau de Souza Fernando e Ana Marques. Antônio Simões e Maria Quitéria casaram-se na Colônia do Sacramento; seus filhos mais velhos, que nasceram em Sacramento14, foram conduzidos para o caos que se seguia ao inferno junto com seus pais. Vivendo o caos Na barra da Lagoa dos Patos deu-se, em 1737, a fundação da fortaleza de Jesus Maria e José. O local desde há muito já era conhecido e fora indicado por Cristóvão Pereira de Abreu, o mais experimentado dos condutores das tropas de animais que anualmente viajavam para São Paulo e Minas para proceder venda de cavalgaduras: E tornando ao Rio Grande (...) naquele lugar se pode fazer com um rio de excelente água doce, que permanente por um lado se mete no Rio Grande (...). Neste lugar é a única parte em que se pode povoar, e passar, e ainda que tem bastante largura, não é dificultoso o passar nela animais e razão de que com maré vazia tem bancos em que descansam, e tem já passado muitos com felicidade con-

Sacramento... v. II, p. 78-79. 13 PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento.... . p. 119-127. 14 RHEINGANTZ, Carlos G. “Povoamento do Rio Grande ...” Título Nicolau de Souza Fernando, p. 406-487.

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duzidos pelos mercadores da Laguna, e eu passei alguns em minha companhia”15

José da Silva Paes e Gomes Freire de Andrade de muito solicitavam a criação de um ponto militar para apoio à Colônia do Sacramento situado à sua retaguarda. Tais apelos só foram encontrar eco em Lisboa quando seus temores tornaram-se realidade. Os castelhanos atacavam Sacramento e os auxílios pedidos à Vila da Laguna tardaram. A possibilidade de perder tal posição chave fez com que a Coroa autorizasse tal empreitada. Em meio à confusão, as populações civis foram transferidas. Apesar de não ter sido planejada para receber esse misto de povoadores e refugiados, a fortaleza os recebeu e os militares procederam seu assentamento no entorno, à sombra protetora da fortificação. Em 1738, foi nomeado o primeiro pároco para atender o serviço das almas da improvisada povoação16. Ilustração I –

Registros Batismais da População Livre – Rio Grande – 1739-1748 - anos inteiros

5HJLVWURV%DWLVPDLVGH3RSXODomR/LYUH 5LR*UDQGH  80

Número de Registros

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Ano inteiro

Fonte:

QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini. Paróquia de São Pedro do Rio Grande: estudo de história demográfica (1737-1850). Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1992. [tese de doutorado], p. 203 – Anexo 2: Nascimentos, casamentos e óbitos da população livre por ano civil 1737-1849.

15 ABREU, Cristóvão Pereira de. Notícia – 2ª Prática que dá ao P.M. Diogo Soares, o Capitão Christovão Pereira, sobre as campanhas da Nova Colônia, e Rio Grande ou Porto de S. Pedro. “Notícias Práticas”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.69 - Primeira parte 1908. p. 308, disponível em: http://www.ihgb.org.br/rihgb/ rihgb1906t00691.pdf 16 Arquivo da Diocese Pastoral de Rio Grande (doravante ADPRG), 1º e 2º Livros de Registro de Batismos da Vila do Rio Grande, 1738-1755. (doravante 1LBat-RG e 2LBatRG). Revista de História Regional 15(2): 95-128, Inverno, 2010 101

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Os batismos da localidade eram muito mais incrementados pelas populações de indígenas que por ali passavam. O que a irregularidade no número dos batismos oculta foi colocado no último parágrafo da já mencionada carta de André Ribeiro Coutinho: “Vem mais guarnição, chegaram 200 e tantos índios e índias, chegaram casais e na terra não há mais que o que fica dito”17. Pode-se exemplificar aqui com o ano de 1743, no qual uma visitação às estâncias de Viamão, a essa época sem pároco, fez proceder registros de crianças e jovens nascidos há algum tempo, alguns na Vila da Laguna. A esses foram acrescidos os batismos de alguns índios adultos ou crianças tape e suas mães, apanhados na campanha, além de um homem “de nação inglesa”. Tais registros, ou para além das crianças nascidas nas imediações do forte, resultaram em trinta e cinco registros batismais, no mínimo. Esses, se reduzidos dos 67 batismos desse ano, corrigem o salto perceptível no ponto que lhe é correlato no gráfico. A curva irregular dos batismos não é, portanto, suficiente para se pensar em crescimento vegetativo da população. Antes, acusa os esforços feitos em aproximar pessoas de todo o tipo para o convívio na localidade, registrados através do seu ingresso na cristandade.

Uma família em meio ao caos Imersos nesse mar de irregularidades e incertezas estavam Antônio Simões e Maria Quitéria Marques de Souza. Uma das crianças nascidas na localidade nesse ano de 1743 foi seu filho Manuel18, que mais tarde se chamaria Manuel Marques de Souza, tal qual um padre seu tio materno. Manuel ainda iria tornar-se militar e viria a ter um papel importante nas tropas que expulsaram, em 1777, os castelhanos que ainda haveriam de tomar o Rio Grande em 1763. Mas

17 18

COUTINHO, Carta a um amigo... p. 95, negrito meu. ADPRG - 1LBat-RG, – registro de batismo de Manuel, 07/03/1743, fl. 40.

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não é desse tempo de batalhas para a retomada de territórios, contra inimigos armados, que trata esse estudo e sim da batalha quotidiana dessas famílias na retomada de suas vidas e, principalmente, na recriação de laços e relações. Fixemo-nos, pois, nessa família derivada de Nicolau de Souza Fernandes e Ana Marques, Antônio Simões e Maria Quitéria, que, junto com irmãos e cunhados, dirigiram-se para a barra do Rio Grande. O de Manuel não foi o primeiro batismo a ser registrado por esse núcleo familiar oriundo da Colônia do Sacramento. Antes dele, no ano de 1739, houve Angélica, crioula filha de Teresa Mina, escrava de Antônio Simões e, no ano seguinte, Luís Francisco, primeiro filho do casal registrado em Rio Grande19. Antônio Simões nasceu no Arcebispado de Lisboa, no ano de 1690. Casou-se em 1726 na Colônia do Sacramento com Maria Quitéria, nascida no Valongo, no ano de 1712. Antônio foi envolvido com o comércio de tropas do sul e mesmo com a empreitada de abertura do Caminho das Tropas, levadas a cabo entre os anos de 1728 e 1732. Recebeu sesmaria por mercê de Sua Majestade e nela fez benfeitorias. No estudo de Maria Luiza Bertulini Queiroz, Antônio Simões, situa-se na terceira faixa de maiores proprietários de escravos, com posse mínima comprovada entre 5 e 7 cativos. Na segunda faixa, situam-se os proprietários de 8 a 10 escravos. Acima disso, o caso isolado de um único proprietário com 15 cativos, não compondo propriamente uma faixa20. Com sesmaria e posse de escravos Antônio Simões não se situava, portanto, na base da pirâmide social da nova localidade que se fundava. Parte da prole desse casal nasceu na Colônia do Sacramento. Segundo o genealogista Carlos Rheingantz, seriam eles Teodósia Maria de Jesus, José e Ana Marques Vitorina. Bernardo Marques teria nascido em Rio Grande no ano de 1737, antes da chegada do primeiro pároco e não consta nos 19

ADPRG - 1LBat-RG fl. 7v, 14,. QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini. A Vila do Rio Grande de São Pedro. Rio Grande: FURG, 1987. p. 98-100. 20

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registros batismais. Rheingantz deixa indicada a imprecisão do seu nascimento, mas não de sua morte na Colônia do Sacramento, em 1749. Luís Francisco, o primeiro filho registrado em Rio Grande, segundo Rheingantz21, se tornaria tenente. Depois dele viriam Manuel, nascido em 1743, Escolástica, em 1745, Feliciano, em 1748, Joaquina, em 1750 e Maria, nascida em 175222. As páginas dos livros de batismo de Rio Grande, onde foram registrados esses últimos, guardam também informações sobre os seus padrinhos. Em tais registros, apenas um dos padrinhos não recebeu nenhuma distinção dada por patentes ou funções junto a seus nomes. De Luís Francisco foi padrinho o próprio vigário, de Manuel, um tenente, de Escolástica, um tenente coronel, de Joaquina, um ajudante e de Maria, um capitão. O padrinho de Feliciano, sem nenhuma desinência de cargo ou patente, aparece em outros registros como sendo soldado de Dragões e, posteriormente, capitão de infantaria e cavalaria das Ordenanças. No trabalho de Queiroz aparece na faixa de posse de 8 a 10 escravos e detentor de uma sesmaria no Chuí, em Castilhos Grandes, confirmada em 175323. Não seria, portanto, um João-ninguém no contexto colonial. Registros batismais: do caos pode nascer a ordem Sendo os registros batismais da localidade de Rio Grande o corpus documental principal para essa pesquisa, deu-se a necessidade de conhecer a instituição do batismo da Igreja Católica e os seus significados para a cristandade da fronteira. Foi exigido um mergulho na antropologia social para entender as relações de reciprocidade simétricas e 21 RHEINGANTZ, Carlos G. “Povoamento do Rio Grande... Título “Nicolau de Souza Fernando”, 406-487. 22 ADPRG, 1LBat-RG, fls. 14, 40, 55, 78, 106, 121v. 23 QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini. A Vila do Rio Grande... p. 98; ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO.”Demarcação do Sul do Brasil”. In: Revista do Arquivo Público Mineiro.v. XXIII (1). 1929. p. 556-557.

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assimétricas24 que tal instituição acaba por propiciar em uma comunidade. Por não haver ocasião para uma discussão mais aprofundada, indicam-se os estudos de Stephen Gudeman como principal referência para essa discussão voltada aos compadrios, em especial os artigos publicados na década de 1970, bem como o artigo em co-autoria com Stuart Schwartz sobre o compadrio e batismo de escravos25. Antes de discorrer sobre a análise, há que se dizer algo sobre os aspectos que são fundamentos de relações que eram estabelecidas na Vila, tendo a Igreja a propiciá-las, com suas regras próprias. Regras essas que, mesmo estando publicadas desde 1707 sob o nome de Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, tampouco foram seguidas à risca. Houve espaço para adequações: tratava-se de um povoando novo, em local onde estava dado o “caos”, em que escravos africanos, crioulos, indígenas de diferentes etnias, lusos e castelhanos tentavam ordenar com suas práticas e que, para seu bom funcionamento, deveria aglutinar dentro dos limites das práticas toleráveis pela religião católica, gente de distintas tradições religiosas e culturais26. Evidências disso são os registros de filhos de indígenas claramente polígamos mas cuja poligamia não foi anotada pelo padre. Mais interessante se torna a análise quando se percebe esse espaço entre as normas e as práticas que se evidenciam na documentação. A existência dessas brechas e espaços em que os agentes

24 MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas.”. In. Sociologia e Antropologia. v.2. São Paulo: EPU/EdUSP, 1974; WEINER, Annette B. The Paradox of Keeping-While-Given. Berkeley/Los Angeles/Oxford: University of California Press, 1992; GODELIER, Maurice. O Enigma do Dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001 25 GUDEMAN, Stephen.”The Compadrazgo as a Reflection of the Natural and Spiritual Person”. In: Proceedings of the Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland.vol. 0 (0). 1971; GUDEMAN, Stephen.”Spiritual Relationship and Selecting Godparent”. In: Man, New Series.vol. 10 (2). Jun. 1975.1975; GUDEMAN, Stephen and SCHWARTZ, Stuart. “Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII”. In: João José REIS. Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos Sobre o Negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988; GUDEMAN, Stephen and STIRRAT, R. L.”The Compadrazgo and Sri Lanka”. In: Man, New Series.v. 11 (3). Set. 1976.1976. 26 DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1707.

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sociais se movem, com mais ou menos desenvoltura, tornam a análise mais rica. Essa característica não é específica de Rio Grande, mas está presente nas sociedades católicas da América. Diz Gudeman: Eu acredito que todos os sistemas de compadrazgo, incluindo a versão da Igreja, podem ser vistos como um conjunto de variações que ocorrem através do tempo e do espaço. As formas correntes do complexo derivam do dogma da Igreja, o qual foi enunciado ao tempo da Conquista (século XVI). Desde então, o contato entre muitas áreas rurais e a Igreja são esporádicos. As regras eclesiásticas atuais foram codificadas ao longo do tempo por especialistas da Igreja; os dogmas folclóricos foram codificados através de gerações de leigos. Todas as formas têm um fundamento similar mas se desenvolvem em diferentes direções. Todavia, as versões contemporâneas, são derivadas da mesma “grande tradição” e são vinculadas por suas conexões históricas à difusão do Cristianismo, do qual são variantes27.

O compadrio é uma das relações subjacentes ao ato do batismo. Ela existe entre os pais carnais e os padrinhos – pais espirituais – de uma criança, cujo nome é derivado do compartilhamento dos deveres de pais. Os compadres são co-pais de uma criança. Todo o compadrio acontece sob os auspícios da Igreja. Essa regulamenta quem pode servir de padrinho e dita regras – positivas e negativas – ao conjunto de relações estabelecidas entre os parentes carnais e entre os parentes espirituais. Como pais e padrinhos irmanamse espiritualmente no batismo, tem-se como exemplo de regra positiva o respeito e o auxílio mútuo devido entre uns e outros. Como exemplo de regra negativa, os impedimentos matrimoniais que geram: um compadre não poderá desposar à comadre nem padrinho à afilhada dado o parentesco gerado no batismo. Assim como o batismo, o compadrio também tem sua história e, assim como as regras do sacramento, modificou-se com o passar do tempo e assumiu nuanças locais28. Para a Colônia, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia além de especificação de normas tridentinas, 27 28

GUDEMAN, Stephen.”The Compadrazgo..., p. 50, (tradução livre). GUDEMAN, Stephen.”The Compadrazgo ...

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inclui itens novos, alguns dispondo sobre os sacramentos e educação religiosa a serem ministrados aos escravos, outros minimizando as penalidades aplicadas àqueles que deixassem em atraso batismos de crianças por morarem em locais ermos e carentes de curas ordenados. O batismo deveria ser ministrado por padre ou vigário, mas ciente de que na Colônia nem sempre havia um nas imediações, estabelecia uma série de licenças e permissões: em caso de perigo poderia ser ministrado por leigo, mulher ou mesmo infiel que “tenham a intenção de fazê-lo, como faz a Igreja Católica”, não devendo faltar a sinceridade e “alguma das coisas essenciais”, quais sejam a água e as palavras ditas em latim ou em vulgo, “Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. O sal e o óleo santo eram acessórios dispensáveis ao interesse principal de salvar a alma do batizando. Causa o batismo efeitos maravilhosos, porque por ele se perdoam todos os pecados, assim o original como atuais, ainda que sejam muitos e mui graves. (...) É o batizando adotado em filho de Deus, e feito herdeiro da Glória, e do Reino do Céu. (...) E por este Sacramento de tal maneira se abre o Céu aos batizados, que se depois do Batismo recebido morrerem, certamente se salvam, não tendo antes da morte cometido algum pecado mortal 29.

Se são dadas a perceber a maior parte das obrigações espirituais instituídas pelo aspecto religioso do rito nos registros batismais, tais como a presença dos óleos santos, de padrinhos e a atribuição de nomes cristãos, o aspecto funcional, ou seja, expressões mundanas e pragmáticas desses laços não são dados a ver como o são em outra sorte de documentação. Tem-se a Devassa Sobre a Entrega da Vila do Rio Grande às Tropas Castelhanas30 a trazer alguns tantos indícios dessas relações a influenciarem aspectos outros da vida que não o estritamente religioso. Essa devassa investigava as responsabilidades nos eventos que culminaram na tomada da Vila do Rio Grande pelos castelhanos e os saques que a ela se seguiram, praticados por castelhanos ou lusos. 29

DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras... Título 10, § 34. BIBLIOTECA RIOGRANDENSE. Devassa Sobre a Entrega da Vila do Rio Grande às Tropas Castelhanas - 1764 -. Rui Grande: Biblioteca Riograndense, 1937. 30

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Um conjunto de quinze questões são feitas aos suspeitos e às 58 testemunhas previstas inicialmente e a mais quinze “referidas” que somaram-se posteriormente. Há uma décima sexta questão que não está inscrita entre as quinze. Antes da assinatura ou do “sinal” dos analfabetos, há uma observação acerca “do costume”, o que, em termos jurídicos, indica relação pessoal da testemunha com o referido sobre o qual vai depor31. A ela todos os inquiridos responderam. A maior parte, “do costume: não disse nada”. Outros alegaram-se “um primo-irmão”; um ex-sócio “mas não inimigo”; um “procurador para lhe assistir a casa em sua absência”, um homem “casado com uma neta de” e seis homens que diziam “ser compadre de”. Um documento oficial que assume aspectos de inquérito fazia anotar o compadrio como possível interferente no depoimento, provavelmente para alertar que, de acordo com os laços sagrados do compadrio, a testemunha iria contra o elo espiritual. Na Devassa há uma afirmação interessante de uma testemunha: “(...)do costume disse ser compadre do dito José da Silveira [Bitencourt] porém que era seu inimigo e que juntamente era compadre do dito referente [Antônio de Souza Fernando]”32. Isso significa que o elo mundano da relação de compadrio de Eusébio Alves de Souza com o implicado José da Silveira Bitencourt foi rompido, ao passo que a amizade com o outro compadre permanecia. Amigos tornaram-se inimigos. Entretanto, o elo espiritual permanecia. Negava-se a amizade, mas não o compadrio. Negava-se o que unia a carne mas não se negava a relação superior entre espíritos. Isso ratifica a ideia do parentesco espiritual como superior ao terreno, apresentada como uma das chaves para seu entendimento segundo Gudeman. Servem para pensar os comportamentos sociais sob essas normas religiosas. Quanto à abrangência desse rito católico na sociedade meridional, pode-se dizer que era o “mais democrático” – no sentido de cobrirem uma mais variada gama da população e 31

Cf. verbete “costume”, acepção 8, in: HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico

... 32

BIBLIOTECA RIOGRANDENSE. Devassa ... p. 147.

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um número bem maior de pessoas que outras fontes – para a localidade e o período. Mesmo quando sabe-se de suas limitações. Toda a sorte de documentação que propicia registros nominais é excludente em sua essência. Se é Rol dos Confessados, exclui, salvo preciosismo de algum pároco, os menores de sete anos. Se é relação de cobrança de impostos, exclui os pobres. Se é testamento, exclui quem não tem o que legar. Segundo Wrigley, os muito pobres, os muito jovens e os que migram muito são, geralmente, a população excluída dos registros33. Os registros batismais, ainda que deixem “escapar” parte dos nascimentos, incluem todos os setores da sociedade, pois essa era uma sociedade cristã que não podia prescindir de seu rito de iniciação, o batismo. Assim pobres e ricos, assim livres e escravos, todos deveriam batizar-se. Do geral para o particular Não nasciam crianças apenas em boas famílias e, tendo Rio Grande um bom número de escravos, de índios em seu entorno e tendo recebido um significativo número de migrantes dos Açores a partir de finais de 1750, também Antônio Simões, Maria Quitéria e seus filhos foram convidados ao compadrio por essas parcelas. Batizaram gente de toda a espécie: filhos de índios, escravos, libertos, soldados de baixa patente, camponeses, peões, oficiais da Coroa, comerciantes, migrantes vários. Na progressão dos compadrios em Rio Grande até o ano de 1763 e, depois, no Estreito e Viamão, por onde a família passou após a tomada da Vila por castelhanos, estabeleceram muitas relações de compadrio34. Beiram a 120 as vezes em que ao menos um dos membros da 33

WRIGLEY, Edward Allan. “Introduction”. In: E. A. WRIGLEY. Identifying People in the Past. Londres: Edward Arnold, 1973. p. 12. 34 HAMEISTER, Martha Daisson. Para Dar Calor à Nova Povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da Vila do Rio Grande (1738-1763). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006. [Tese de Doutoramento] p. 279-282. disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp000119.pdf Revista de História Regional 15(2): 95-128, Inverno, 2010

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família foi à pia como padrinho nas localidades mencionadas entre 1738 e 1776. Mais seriam se fossem encontrados os desaparecidos livros de registros batismais de escravos de Rio Grande e alguns registros corroídos fossem dados a ler. Se Antônio Simões e Maria Quitéria Marques de Souza foram pouco ecléticos ao eleger os padrinhos de seus filhos, os registros batismais mostram a variedade de pessoas que convidaram a eles e a seus filhos para padrinhos. A família era uma das mais procuradas para o compadrio no Continente do Rio Grande de São Pedro. Deviam ter algumas qualidades que os tornavam compadres, comadres, padrinhos e madrinhas desejáveis, assim como eles próprios desejavam manter esse tipo de laço, um parentesco espiritual com funções práticas na vida quotidiana, com gente de toda a espécie. Se proteção e cuidado podem ser os motivos do convite para batizar, há que se pensar o que poderia haver de benefício em não eludir um convite desses. Uma categoria específica de batismos dá pistas para perceber alguns dos benefícios que uma família situada em patamares sociais bastante elevados na fronteira poderia obter. Em Rio Grande, até 1749, um mínimo de doze meninas e um menino minuano foram batizadas por Maria Quitéria e sua filha homônima da avó, Ana Marques. Era um período em que ainda não vigia a Lei de Liberdades nem o Diretório dos Índio. A instituição da administração de indígenas por particulares ainda se fazia notar em Rio Grande. Não há nos registros nada que as vincule ao estado de escravidão, mas bem provável fossem usadas para suprir mão de obra nas unidades domésticas em troca da educação religiosa administrada por quem lhes recebia. O tema da incorporação dos indígenas à sociedade lusa nas terras sulinas já foi objeto da dissertação de mestrado35. Mas o que se discute aqui é que esse apropriar-se da mão de obra provavelmente não era nem o único ou tampouco o maior benefício que se poderiam obter as boas famílias estabelecendo esses compadrios com 35

GARCIA, Elisa Frühauf. A Integração das Populações Indígenas nos Povoados Coloniais no Rio Grande de São Pedro: legislação, etnicidade e trabalho. Niterói: UFF, 2003. [dissertação de mestrado]

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índios – uma categoria social colonial que coloca populações autóctones diferentes entre si em um mesmo locus social inferiorizado em relação aos colonizadores da América36. De todo o modo, se as moças minuano foram deixadas sob a guarda de Maria Quitéria e Ana Marques como era recomendado, não há como comprovar com os registros batismais. Se a recomendação foi seguida, as duas tinham um séquito feminino a dever-lhes respeito e elas, por sua vez, deveriam estar ocupadas em alimentar, vestir e educar as índias minuano. Se computadas como força de trabalho, a família saltaria de súbito para a primeira faixa de utilizadores de mão de obra sem obrigação de paga por serviços, ou fugindo dos eufemismos, detentores de cativos. Entretanto, se pensadas como moças que entravam em um processo de cristianização a ser levado a cabo por suas madrinhas, essa situação coloca a família de Maria Quitéria também como um dos maiores repositório de moças solteiras e livres, educadas como cristãs na comunidade. Mais salta aos olhos quando percebe-se que é do ano de 1749 o último registro de batismo de crianças indígenas batizadas pela família, ano em que começam chegar as famílias vindas dos Açores. Um repositório de esposas para uma localidade que fora fundada com objetivos militares e, portanto, com uma presença masculina muito marcada. As estratégias matrimoniais para os filhos e filhas dessa família pode ser atestada pelas qualidades dos matrimônios obtidos e que já renderam muitas páginas para genealogistas como Carlos Rheingantz. Mas o destino dessas moças indígenas raramente é investigado. Não o será aqui, pois a documentação não apresenta qualidades para essa investigação, sendo esse um de seus limites. Sugere-se então um dos possíveis destinos. Destaca-se que, em uma região de fronteira, sujeita a guerras e necessitada de gente para o seu povoamento, ter autoridade sobre tantas moças que estão recebendo uma 36 BONFIL BATALLA, Guillermo. “El concepto de indio en América: una categoria de la situación colonial”. In: Guillermo BONFIL BATALLA. Identidad y Pluralismo Cultural en América Latina. Buenos Aires: Fondo Editorial del CEHASS/Editorial de la Universidad de Puerto Rico, 1992.

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educação cristã significa deter um tanto mais de poder e influência no mercado matrimonial da Vila. Dar e reter fazem parte do jogo. Convém lembrar que os migrantes açorianos que se destinaram a Rio Grande com filhos e filhas ainda por casar somente começaram a chegar massivamente em finais de 1749 e início de 1750, justamente no período em que as mulheres Marques de Souza param de estabelecer relações de compadrio com os minuano. Os batismos forneceram afilhadas – filhas espirituais – a essa família que, por outro lado, formou compadrio com os minuano. Uma espécie de negociação feita entre a sociedade indígena que se buscava atrair para a localidade e os lusos que ali chegaram, utilizava-se do sacramento cristão do batismo como forma de aproximação, já que os pais das moças continuavam livres e vivendo nas proximidades da Vila ou em terras de alguma estância, inclusive a Estância Real de Torotama. Através de doze meninas batizadas e educadas como cristãs, acabavam por exercer influência em setores sociais aos quais não pertenciam. Faziam, portanto, ligações fortes, elos de reciprocidade com setores distintos do seu. Com isso, ainda que as moças tenham sido exploradas e usurpadas em sua força de trabalho como “retribuição” à educação que lhes seria dada por suas madrinhas, talvez não seja a mão de obra a maior contribuição das afilhadas indígenas para o engrandecimento e o prestígio da família que já tinha posses suficientes para adquirir não poucos escravos pelos padrões da vila. Um bom número de homens moradores da vila ou das fortificações em sua jurisdição tiveram, através da família de Antônio Simões, a possibilidade de matrimônio com moças cristãs, por ela tutelada. Dever-lhes-iam respeito e gratidão, colocando-se em sua área de influência. Não se esquece aqui que a esse tempo os bens, alguns deles os mais importantes para a vida, não eram todos obtidos no mercado. Esposas eram dadas em matrimônio, não eram compradas no mercado – ao menos não usualmente. A subserviência advinda dessa dádiva de haver fornecido uma esposa cristã demonstraria superioridade da família que a educou e sustentou ante outras pessoas livres. Possibilitavam a formação 112

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de uma família em um contexto em que não havia mulheres cristãs sobrando no mercado matrimonial. Existiam, pois, outros fatores que influenciam a vida política e econômica da Vila para além do comprar e vender, e uma boa família só conseguia manter-se no alto porque existem outras tantas situadas abaixo a lhe sustentar e apoiar. Os batismos das moças indígenas, pensa-se aqui, era uma das formas de gerar uma base social diversificada e cômoda. Cômoda pois amenizava a tensão social sempre existente quando se obriga alguém ao trabalho ou quando se lhes coloca no convívio em uma situação inferior. Para além da submissão ao trabalho, por ser espiritualmente subalterna uma afilhada ante sua madrinha, a primeira develhe respeito. Material e religiosamente subalterna. Respeito, cuidado e gratidão eram devidos à família que a acolhera, pois, de forma pia, as receberam em suas casas, alimentaram, educaram e as inseriram no corpo da cristandade. Os grilhões da reciprocidade com os quais as futuras famílias de suas afilhadas se vincularam a eles lhes valeriam bem mais que anos de jornal economizados. Muito mais porque, dentre as moças tornadas noivas e esposas, provavelmente, algumas seriam concedidas a pessoas que não pertenciam ao mesmo nicho social de suas madrinhas. Dos estratos inferiores da sociedade, Antônio Simões e Maria Quitéria dificilmente receberiam genros e noras. Mas forneciam esposas. Cediam um bem que não lhes seria retribuído na mesma paga. Para pensar esse tema, há que se remeter aos estudos sobre o dom entre desiguais37. Através das mulheres da família e de suas afilhadas, a influência, o prestígio e o aguardo do contradom – sempre esperado mas nunca exigido – eram estendidos em reciprocidades. Antônio Simões e Maria Quitéria, portanto, atuavam em um espectro social muito mais amplo do que as boas famílias que não trocaram favores com 37 MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas.”. In. Sociologia e Antropologia. v.2. São Paulo: EPU/EdUSP, 1974; WEINER, Annette B. The Paradox of Keeping-While-Given. Berkeley/Los Angeles/Oxford: University of California Press, 1992; GODELIER, Maurice. O Enigma do Dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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gente de estatuto social diferente do seu. Pelo costume do compadrio e do mercado matrimonial, seria impraticável trazer, por casamentos e batizados de seus filhos, gente dos estratos inferiores ou distintos para o seu círculo de relações. Através das afilhadas e afilhados de origem social diferente da sua podiam atrair aliados espalhados por toda a pirâmide social. Cabe ainda uma outra observação. Não é porque essas moças eram indígenas que sua situação social era necessariamente muito inferior à dos seus padrinhos nos grupos dos quais procediam. Destacam-se aqui a moça Faustina, afilhada de Maria Quitéria: era filha de Tacu, um dos chefes de grupos minuano que viviam ao modo nômade, em liberdade na região. Outras famílias de Rio Grande batizaram filhos de Dom Agostinho, que também chefiava outro grupo de índios minuano. A família se aliava com gente do topo da hierarquia dos minuano, garantindo sua própria segurança e minimizando o risco de ataques na nova povoação. Combinando essa sorte de relações com a cessão de moças ao matrimônio, tem-se que ampliavam a sua rede de relações e de influência. Horizontalmente, se comparados o prestígio e a posição social de chefes minuano em sua escala social com a posição na escala luso-brasileira da família que as recebia. Mas também ampliavam suas relações e influências verticalmente nessas sociedade quando cediam esposas àqueles que não lhes retribuiriam com suas filhas. A família, através de Maria Quitéria e Ana Marques de Souza, detinha um bem muito cobiçado nessa sociedade, que não passava pelo mercado, mas com valores e benefícios inestimáveis, tanto para quem recebia uma mulher cristã como para quem a concedia. Mas para isso era, no mínimo, necessário que os minuano desejassem participar dessa troca fazendo a oferta primeira de suas filhas para batizar. Recupera-se assim um tanto da agência desses indígenas na formação de suas alianças, como já foi feito por Garcia em análise de documentação distinta38. 38 GARCIA, Elisa Frühauf.”Quando os índios escolhem seus aliados: as relações de “amizade” entre os minuanos e os lusitanos no sul da América portuguesa

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Para Antônio Simões, que se ocupara das atividades de preia de gado nas campanhas para sua posterior comercialização, a aliança com os minuano, aguerridos indígenas a dominar esta vasta área de campinas, era parte de sua fortuna, novamente dito aqui, imensurável e impossível de quantificar. Representava, no extremo, a segurança de sua vida ao transitar com suas tropas por território minuano. Antônio Simões e Maria Quitéria com suas relações de compadrio tinham, portanto, um patrimônio imaterial, intangível e não avaliável em termos financeiros, mas certamente fundamentais nos termos da economia do dom praticada nas sociedades de Antigo Regime e que eram importantes na aquisição de novos bens ou nas práticas de suas atividades econômicas propriamente ditas39. Seria apenas curioso se fosse específico da relação estabelecida entre essa família lusa e as chefias indígenas. Mas os compadrios também atingiam outros setores. A família de Antônio Simões e Maria Quitéria batizou filhos de pardos, forros, escravos, índios tape, capitães, soldados, peões, roceiros, oficiais da coroa, condutores de gado, estancieiros e tanta gente que mais aparecesse oferecendo-lhes essa aliança formalizada no batistério de uma igreja. A noção de que muito mais do que a mão de obra, Antônio e Maria Quitéria buscavam aproximar as moças indígenas ao convívio e possivelmente fornecer esposas em Rio Grande vem da observação de que o último batizado de índia minuano se deu em 1749, ano em que se inicia a chegada massiva de povoadores vindos dos Açores, com muitas mulheres cristãs e quebrando a hegemonia dessas famílias no fornecimento de esposas desejáveis no mercado matrimonial. Dos Açores é um outro grupo bem identificável nos registros, já que o pároco raramente esquece de anotar-lhes a origem, mesmo que em um vago “das Ilhas”. Tal grupo (c.1750-1800)”. In: Varia História.v. 24 (40). jul/dez 2008. disponível em http:// www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-87752008000200017&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt 39 XAVIER, Ângela Barreto and HESPANHA, António Manuel. “As Redes Clientelares”. In: António Manuel (coord.) HESPANHA. História de Portugal - O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, 1998. Revista de História Regional 15(2): 95-128, Inverno, 2010

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ofereceu muitos afilhados a toda a gente já estabelecida no Rio Grande, mas priorizaram algumas famílias. Dentre os compadrios estabelecidos com casais nos quais ao menos um membro era migrante dos Açores, tem-se para a família (pais e filhos) de Antônio e Maria Quitéria, juntamente com as datas de sua estreia como padrinhos à pia batismal de Rio Grande: Quadro I – Família de Antônio Simões e Maria Quitéria- Batismos de filhos de Açorianos – 1741-1763 1º compadrio último compadrio na localidade na localidade

nome

p o s i ç ã o batismos de filhos na família de açorianos: marido 5

11/03/1743

10/04/1757

Antônio Simões*

06/08/1741

05/05/1761

Maria Quitéria Marques de Souza

esposa

20

18/05/1756

16/05/1759

Manuel Marques de Souza

filho

13

18/05/1756

14/01/1763

Escolástica Marques de Souza

filha

7

05/09/1762

14/01/1763

Antônio José de Moura

genro

5

18/05/1756

25/12/1758

Feliciano Marques de Souza

filho

1

18/05/1756

22/03/1763

Joaquina ou Maria Marques de Souza

filha

Total -

1 52

Fonte: ADPRG – 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG * Faleceu em 31/05/1758 – L1Obt-RG, Registro do óbito de Antônio Simões

Do particular para o geral Cerca de cinco famílias de Rio Grande tinham fortemente notada essa mesma característica: compadres de gente de diferentes estatutos sociais e de distintos grupos étnicos. Usando-se compadrios efetuados com famílias nas quais ao menos um dos membros do casal era natural dos Açores como “grupo teste”, já que essa procedência geralmente era anotada na ata batismal, pôde-se chegar a uma boa apreciação. Têm-se coletados dos quatro primeiros livros de registros batismais da Vila do Rio Grande, desde 1738 a 1763, 116

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um total de 1368 registros legíveis na íntegra ou parcialmente, haja vista os livros terem sofrido com ação do tempo, de agentes naturais como a umidade ou ataque de insetos. Desses registros, 97 não têm padrinhos registrados por motivos diversos ou não foi possível saber dado o estado de corrosão do documento. Um tanto distante desse número está aqueles em que não havia madrinha ou foi impossível saber, somando 227. Dos 1259 batismos que tinham padrinhos nominados, 648 compareceram apenas uma vez, 118 foram duas vezes à pia batismal, 52 apadrinharam por três vezes. Apenas 22 compareceram quatro vezes. O mesmo procedimento foi aplicado às madrinhas das crianças filhas de ilhéus, obtendo-se os seguintes números: 292 mulheres compareceram apenas uma vez como madrinhas nas cerimônias de batismo, em que pese, por exemplo, mulheres com nomes comuns e sem sobrenome que não puderam fornecer identificações positivas; 80 mulheres foram madrinhas por duas vezes; 34 o foram por três vezes; 37 por quatro vezes. Nos quadros abaixo, os padrinhos e madrinhas que compareceram 5 ou mais vezes.

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Quadro II –

Padrinhos de crianças filhas de ilhéus que batizaram 5 ou mais vezes

Padrinho Manuel da Costa de Carvalho Padre Manuel da Cruz Gomes Manuel de Souza Torino Manuel Marques de Souza Joaquim Manuel da Trindade João Martins da Costa João Martins Lima José Antônio de Brito Lucas Fernandes da Costa Bartolomeu Antônio Domingos de Lima Veiga Francisco Coelho Osório Inácio Osório Vieira Manuel Machado Fagundes Antônio Gonçalves Passos Domingos Martins Manuel de Oliveira Antônio Francisco dos Santos Antônio José Coimbra de Andrade Antônio Rodrigues Sardinha Domingos Fernandes de Oliveira Luís Gonçalves Viana Manuel Bento da Rocha Manuel Pinto Rabelo Antão Pereira Machado Antônio de Souza dos Reis Cardoso Antônio Francisco Domingos Simões Marques Padre Francisco de Lima Pinto João de Souza Rocha José Gonçalves Dias Manuel Jorge Tomé Teixeira André de Sá da Fonseca André de Souza Aguiar

bat 18 16 16 13 13 12 10 10 10 9 9 9 9 9 8 8 8 7 7 7 7 7 7 7 6 6 6 6 6 6 6 6 6 5 5

continua

118

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conclusão Antônio Gomes Pacheco Antônio Goularte Antônio José de Moura 1 Antônio Pereira Antônio Simões Francisco Pires Casado João da Cunha Vale José da Corte José Luís de Queirós Manuel da Costa Pimentel Manuel da Silva Padre Manuel Francisco da Silva Manuel Leite Vieira

5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5

Fontes: ADPRG – 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG

Quadro III – Madrinhas de crianças filhas de ilhéus que batizaram 5 ou mais vezes Madrinha

#

Joana Maria da Purificação

36

Inês de Santo Antônio

23

Laureana Maria de Santo Antônio

20

Maria Quitéria Marques de Souza

20

Ana Maria

16

Ana Maria Pais

16

Maria Inácia

14

Maria Coelho

13

Maria Goularte [Maria do Rosário]

12

Margarida Luísa Rosa

11

Ana Maria Pinto [Ana Maria Pinta]

10

Joana Maria da Ressurreição

10

Maria Silveira

10

Rosa Maria

10

Rosa Maria [Rosa Francisca]

9

Helena do Espírito Santo

8

continua Revista de História Regional 15(2): 95-128, Inverno, 2010

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Isabel Francisca da Silveira

conclusão 8

Maria Rodrigues

8

Catarina Josefa

7

Escolástica Marques de Souza

7

Josefa Maria

7

Maria Lauerana [Maria Lourenço]

7

Angélica Teresa

6

Francisca Correia

6

Isabel Maria

6

Joana Rosa

6

Luzia da Conceição

6

Maria do Espírito Santo

6

Maria do Rosário

6

Maria Francisca

6

Rosa Maria Pires

6

Águeda Maria

5

Águeda Teixeira

5

Ana Francisca

5

Ana Maria da Silva

5

Antônia Maria

5

Catarina de Sene

5

Cipriana Gonçalves

5

Francisca Fagundes de Oliveira

5

Francisca Joaquina de Almeida Castelbranco

5

Inácia Xavier

5

Josefa de Jesus

5

Luzia Maria

5

Madalena do Rosário

5

Maria de São José

5

Maria Rosa

5

Mariana Rosa

5

Rosália Inácia do Sacramento

5

Fontes: ADPRG – 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LBat-RG

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É evidente a percepção de que, mesmo havendo menos mulheres comparecendo aos ritos de batismo, fenômeno já percebido por Renato Pinto Venâncio40, os afilhados eram mais concentrados em algumas mulheres do que o eram entre os homens, bastando para isso ver que o homem que mais batizou o fez a metade das vezes que a mulher que mais batizou. Parece paradoxal a ausência recorrente e a presença marcante, mas torna-se compreensível quando se avança na análise. O passo seguinte foi tentar perceber, através de cruzamento dos registros, quem eram tais padrinhos e madrinhas e qual a relação existente entre homens e mulheres constantes nas listagens de padrinhos de cinco ou mais afilhados. Manuel da Costa de Carvalho era Sargento-supra da Companhia das Ordenanças que atendia os casais. Inês de Santo Antônio era sua esposa e Laureana Maria sua filha. Não se achou relações familiares para o Padre Manuel da Cruz Gomes, mas vale constar que não deveria sequer estar na lista, já que as Constituições Primeiras impediam padres de serem padrinhos41. Manuel de Souza Torino fora vereador na única câmara que existia em todo o Continente do Rio Grande de São Pedro e era casado com Maria Coelho, que também consta na listagem. Manuel Marques de Souza era filho de Maria Quitéria. Joaquim Manuel da Trindade era filho de Lucas Fernandes, condutor de tropas, arrematador e fiador de contratos. Joana Maria da Purificação era sua esposa. Colocando em quadros o que está em texto para as famílias que mais batizaram filhos de ilhéus:

40 VENÂNCIO, Renato Pinto. “A Madrinha Ausente - condição feminina no Rio de Janeiro (1750-1800)”. In: COSTA, Iraci del Nero. BRASIL: História Econômica e Demográfica. São Paulo: IPE/USP, 1986. 41 Sílvia Brügger também observa recorrência de padres como padrinhos favoritos em seu estudo sobre Minas Gerais BRÜGGER, Sílvia Maria Jardim. Minas Patriarcal: família e sociedade (São João del Rei - séculos XVIII e XIX. São Paulo: AnnaBlume, 2007.

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Quadro IV – Batismos de filhos de ilhéus por famílias de padrinhos nome

posição na família

# comparecimentos à pia

Lucas Fernandes da Costa

marido

10

Joana Maria da Purificação

esposa

36

Joaquim Manuel da Trindade

filho

13

Inácia Maria de Lima

nora

1

Jacinto José Xavier

filho

2

Total de comparecimentos à pia

62

nome

posição na família

# comparecimentos à pia

Domingos de Lima Veiga

marido

9

Gertrudes Pais de Araújo

esposa

4

Marçal de Lima Veiga

pai do marido

2

Narciso de Lima Veiga* (falecido aos 8 anos)

filho

2

Ana Maria Pais/Ana Joaquina

filha

16

Total de comparecimentos à pia

33

nome

posição na família

# comparecimentos à pia

Manuel de Souza Torino

marido

16

Maria Coelho

esposa

13

Total de comparecimentos à pia

29

nome

posição na família

# comparecimentos à pia

Manuel da Costa de Carvalho

marido

18

Inês de Santo Antônio

esposa

23

Laureana Maria de Santo Antônio

filha

20

Total de comparecimentos à pia

61

Fonte: ADPRG – 1LBat-RG, 2LBat-RG, 3LBat-RG, 4LB

Em resumo: mais do que a uma pessoa em particular, os convites miravam um núcleo familiar. A soma dos batismos procedidos por mulheres extrapolava o número de 122

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batismos dos homens nessas famílias, excetuando Manuel de Souza Torino. Ainda assim, aponta-se um certo equilíbrio entre o número de afilhados de ambos e relembra-se uma quantidade significativa de registros parcialmente ilegíveis ou parcialmente corroídos. Talvez essa situação pudesse ser alterada se fossem localizados os livros específicos dos registros de escravos que estão desaparecidos. Entretanto, considerando os testes feitos para os períodos em que escravos e livres foram registrados nos mesmos livros, é pouco provável que isso ocorresse, pois a tendência a um maior comparecimento à pia batismal por parte das mulheres dessas boas famílias também se manteve no caso de afilhados escravos. Algumas famílias eram, então, eleitas como referência para a organização das relações sociais por gente de diferentes origens sociais, geográficas e econômicas. Dada a recorrência dessa predileção, tem-se disso um padrão de comportamento para essa localidade e não mero acaso como poderia parecer se apenas a família de Antônio Simões e Maria Quitéria Marques fosse focada. Essas mesmas famílias reconheciam essa qualidade, a de atrair compadrios e com isso demonstrar aos seus pares a capacidade de proceder alianças com gente de diferentes estatutos e condições sociais. Não parece acaso que no ano de 1774 Manuel Marques de Souza desposou Ana Maria Paes, também chamada de Ana Joaquina ou Joaquina, filha de Domingos de Lima Veiga e Gertrudes Paes de Araújo. No ano da tomada da Vila do Rio Grande pelos castelhanos, juntos somavam um mínimo de 29 afilhados. Aproximadamente o dobro em compadres e comadres. Para as famílias que por mais de uma vez foram obrigadas a reconstruir suas vidas, esse pecúlio invisível e não mensurável em relações, em prestígio e em respeito, acumulado com auxílio da trajetória familiar, poderia valer mais que os rebanhos, que as terras, que os tesouros guardados em baús que mais de uma vez foram perdidos em conquista e defesa das fronteiras do império de Sua Majestade Fidelíssima. Era um pecúlio construído que ataques indígenas ou de soldados inimigos, tomadas de terras e saques não poderiam Revista de História Regional 15(2): 95-128, Inverno, 2010

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levar tão facilmente. Era um dote que levavam como ponto de partida para sua vida conjugal e que, muito provavelmente, legariam a seus filhos os segredos de como proceder para gerá-lo e guardá-lo, assim como devem ter aprendido de seus pais e mães. À guisa de conclusão Com a certeza de que muito mais necessita ser visto sobre padrões de batismos antes que se possa concluir por algo, fazem-se algumas considerações que indicam a necessidade de continuidade nesse tipo de estudo para outras localidades e períodos. Primeiro, chama-se a atenção para o uso de atas batismais em análise qualitativa para além dos estudos em história demográfica dita clássica. Chamando a atenção para a metodologia do cruzamento de registros nominais, têm-se aqui uma tentativa de elucidar os mecanismos de tessitura de relações sociais de um povoado de fronteira em formação, bem como a geração de hierarquias sociais ou reiteração das já existentes através da utilização desse tipo de documentação. Para além dos números frios, é possível sentir o pulsar da vida, tensões de escolha, planos de futuro. Depois da constatação da riqueza de novas possibilidades de exploração de um tipo de fonte já muito utilizada com outras finalidades, têm-se algumas constatações mais pragmáticas para o futuro das pesquisas. Afirma-se que a reclusão de mulheres de boas famílias, às quais se refere Venâncio no já citado trabalho sobre ausência de madrinhas em registros batismais, não é válida para o contexto sulino, ao menos não em sua totalidade. As mulheres compareciam – e muito – aos ritos e eram importantes para captar e capitalizar as relações sociais do núcleo familiar do qual eram parte surgidas no âmbito da vida religiosa. Não significa que todas o faziam, dado o grande número de registros batismais em que as madrinhas não são 124

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registradas, mas certamente o faziam as mulheres dessas boas famílias. Sendo as famílias dependentes dessas relações para a reiteração de sua posição social, pode-se dizer que da boa atuação dessas mulheres – filhas e esposas – como madrinhas dependia o sucesso de algumas das estratégias sociais e econômicas. Seus maridos, em boa parte envolvidos no comércio de tropas ou nas campanhas militares, podiam ausentar-se da localidade, pois o tecido social estava sendo tramado por suas esposas e filhas. Remete, então, a papéis complementares e necessários para a atuação de homens e mulheres no interior das famílias e à necessidade dessa diferenciação para o bom funcionamento dessas famílias como corpo social que eram. Isso, de certo modo, vem a politizar as relações internas à família, deixando a perceber que a mulher da colônia não era uma mera serviçal de seus pais e maridos e passando a ter, de fato, um papel social muito mais amplo e importante, a ponto de colocar na sua dependência o futuro de algumas alianças. Esse tema demanda estudo mais aprofundado e, se possível, comparativo com outras áreas de fronteira e de posse consolidada, como também para outros períodos. Ao que tudo indica, essas unidades domésticas do Continente do Rio Grande pensavam-se como famílias e seus membros pensavam na consecução de projetos familiares antes de pensarem em seu prestígio próprio ou individual. Também pretende-se ressaltar aqui que, sendo os compadrios vínculos religiosos e espirituais inerentes ao catolicismo, por interpretações variadas de pessoas de outras religiões e crenças – em especial os minuano vistos nesse trabalho –, talvez também se prestassem a satisfazer necessidades suas em relação ao luso que se colocava no território. Chefes indígenas, sabe-se lá como interpretavam isso, davam suas filhas a batizar. Apesar dessas dúvidas quanto à interpretação do rito por parte dos minuano, tem-se a certeza de que reconheciam nele um rito de iniciação, que à semelhança dos seus próprios, incluíam os seus partícipes através de alguns elementos já conhecidos, tais como a atribuição de um nome social pelo qual seriam chamados. Não Revista de História Regional 15(2): 95-128, Inverno, 2010

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há, portanto, ignorância do significado mais básico de um rito de iniciação nem ingenuidade ao participar dele. Se não foram forçosamente compelidos a isso, tinham intenção de estabelecer relações com os invasores de suas terras ancestrais. Resta saber como isso se encaixava em sua concepção de convivência com o invasor em paralelo à mantença de sua autonomia. Por último e quase uma síntese do colocado acima, a trama e urdidura de uma sociedade em formação poderá ser melhor avaliada se o significado do termo relação for novamente utilizado em toda a sua riqueza: uma via de mão-dupla em na qual trocas são feitas e que não existem ad infinitum, necessitando o empenho, a negociação, a satisfação de um mínimo de necessidades, materiais ou não. Relações que tem de ser constantemente reinventadas e reiteradas. São tensas e são a expressão da correlação de forças e interesses distintos de setores sociais, famílias, grupos, etnias. O estudo de relações poderá vir a enriquecer a compreensão desses processos de ocupação das fronteiras, cuja ponta do iceberg pode ser vista através da análise intensiva dos registros batismais, da qual aqui se trouxe uma amostra.

“No princípio era o caos”: a formação de um povoado na fronteira americana dos Impérios Ibéricos através do estudo das relações de compadrio

Martha Daisson Hameister Resumo: O presente artigo visa discutir as relações subjacentes ao batismo no extremo-sul da América, tendo como principal documentação os registros batismais da Vila do Rio Grande no século XVIII. Tomando o núcleo familiar do casal Antônio Simões e Maria Quitéria Marques de Souza, buscase entender os benefícios advindos do estabelecimento de 126

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relações de apadrinhamento e de compadrio com setores sociais diferentes do seu, destacando os batismos de indígenas minuano e de filhos de açorianos. Para tanto, importante foi a utilização da metodologia de cruzamento de registros nominais e o diálogo com a antropologia. Tem-se como constatação a importância do estabelecimento das relações de apadrinhamento e compadrio com diferentes grupos étnicos, com pessoas e famílias de estatutos sociais distintos e de condições sociais diferentes, tanto superiores quanto inferiores às dos compadres e padrinhos de boas famílias lusas e luso-brasileiras. Tal recurso dá mostras de ter sido fundamental para a consecução de seus projetos sociais e familiares visando, na pior das hipóteses, a manutenção de suas posições e, na melhor, uma mobilidade social ascendente nessa fronteira, bem como ter contribuído no projeto de povoamento dos territórios meridionais da colônia e viabilizado a construção das hierarquias das sociedades locais, tanto a indígena quanto da luso-brasileira. Palavras-chave: Relações de compadrio; Índios minuano; Açorianos; Família e parentesco espirituais; Fronteira; Redes de parentesco fictício. Abstract: The present paper examines the social relations related to the creation of fictive kin networks through the analysis of baptismal records in 18th century Portuguese village of Rio Grande. Focusing on the family of Antônio Simões and Maria Quitéria Marques de Souza, this article explores the benefits of baptizing individuals from different social groups, such as Minuano Indians and children of Azorean immigrants. This study stresses the importance of baptism as important social strategy to create alliances in groups with different social and legal status in colonial society. The use of baptismal networks was deployed by colonists to maintain or improve their social status, as well as it represented a strategy that fostered the advance of colonialism in the Southern frontier of Portuguese America. The alliances built through baptism reflected the values and Revista de História Regional 15(2): 95-128, Inverno, 2010

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social hierarchies of both Indigenous and Luso-Brazilian agents interacting in the formation of this 18th century colonial society Keywords: Fictive kin networks; Godparenthood; Family and spiritual kinship; Minuano Indians; Frontier; Azorean. Recebido: 30/09/2010 Aprovado:01/11/2010

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