Nomear e ser nomeado A onomástica dos muçulmanos portugueses no processo identitário
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14/09/2016
Minorias étnicoreligiosas na Península Ibérica Nomear e ser nomeado Publicações do Cidehus
Publicações do Cidehus Minorias étnicoreligiosas na Península Ibérica | Maria Filomena Lopes de Barros, José Hinojosa Montalvo
Nomear e ser nomeado A onomástica dos muçulmanos portugueses no processo identitário
Maria Filomena Lopes de Barros p. 309322
Texte intégral 1
O estudo da onomástica dos mudéjares peninsulares encontrase, ainda, nas suas primícias, remetendo para vários níveis de complexidade inerentes à própria temática.
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Um primeiro problema situase na própria questão das fontes arquivísticas, cuja produção, maioritariamente cristã, necessariamente transmite uma visão de exterioridade face aos indivíduos nomeados. A selecção dos arquivos conservados perpetua, pois, uma perspectiva cristianocêntrica, com a eliminação de uma documentação excedentária porque supérflua, como o é a produção interna das comunidades religiosas minoritárias. Os vários éditos de expulsão/conversão forçada dos reinos peninsulares determinam um silêncio, apenas parcialmente superado através da sobrevivência de alguma produção escrita, em árabe (como é o caso do reino de Valência) ou nas diversas línguas peninsulares (como se verifica, por exemplo, em catalão, em castelhano ou em português). E, neste sentido, é normal que se coloquem reservas quanto à interpretação dos níveis de auto e hetero nomeação dos indivíduos muçulmanos e à cabal decifração do sistema onomástico da minoria muçulmana. O espaço e o temo suscitam igualmente questões pertinentes. De facto, a evolução que pressupõe o processo identitário necessariamente afectará os parâmetros antroponímicos dos muçulmanos numa perspectiva diacónica, como também a sua inserção em contextos específicos, suscitará diferentes níveis de adscrição cultural, em termos sincrónicos. Longe de se ter uma perspectiva imobilista e global do feito islâmico, o nomear e ser nomeado pressuporá, necessariamente, variáveis significativas em função do espaço e tempo analisados. O que não obsta, contudo, à necessidade de um esforço comparativo entre as diversas formações políticas peninsulares, como a única forma de se superar algumas das complexidades da temática e cabalmente tentar a decifração desta complexa realidade. 1. Neste sentido, a necessidade de encontrar metodologias comuns de análise postulase como um aspecto incontornável (e extremamente discutível) da questão. Alguns estudos remetem já nesse sentido, como é o caso do de Carlos Laliena Corbera, “La antroponímia de los mudéjares: resistencia y aculturacion de una minoría étnico religiosa”1, ou os da autora deste trabalho2. De resto, esta análise antroponímica não apenas se engloba em numerosos
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estudos sobre a temática mudéjar, como se constitui de per se como objecto de investigação. Para referir um exemplo recente, citese o artigo de Germán Navarro Espinach e de Concepción Villanueva Morte, intitulado “Por un estudio prosopográfico y genealógico de los mudéjares de Aragón en la Edad Media: las tierras turolenses y dos ejemplos concretos del Valle del Ebro”, publicada em 20043. O estudo, que se insere num projecto mais vasto4, inclui um amplo apêndice onomástico, constituído por uma lista de “apelidos” dos mudéjares aragoneses, segundo dados de 1495. Problemática revelase, contudo, esta opção pelo “apelido”. Problemático, desde logo, quando aplicado acriticamente a uma realidade mais familiar, como o é o universo da maioria cristã e, portanto, com mais razão, aos membros desta minoria. De facto, a onomástica árabeislâmica estruturase em função de um conjunto variado de elementos: o ism ou ism calam, nome próprio recebido à nascença; o nasab, cadeia genealógica, introduzida por ibn (no caso masculino) e bint (no feminino); a kunya, elemento composto com Abū, no caso dos homens e de Umm no das mulheres (com o significado de “pai de” e “mãe de”, mas também de “possuidor/a de”); o laqab, sobrenome que pode envolver referentes vários (nomeadamente a profissão, o cargo, peculiaridades físicas ou morais), geralmente complementado pelo nome de relação, expresso por um adjectivo, a nīsba, que marca o vínculo da personagem mormente a um lugar ou a uma tribo5. No caso da presente listagem são detectáveis vários desses elementos. O ism calam, em formas masculinas como Audadalla (cAbd Allāh), Brahem (Ibrāhīm) ou Focen (Ḥusayn) e femininas como Axa (cĀ’iša) ou Jamila (Ǧamīla); o nasab, em fórmulas como Abenyesa (Ibn cIsà), Abenzeyt ou Banizeyt (ambos, possivelmente, correspondendo a Ibn Zayd); a kunya em nomes iniciados por “Abo/Abu”, ou “Bo/Bu” como é o caso de Abulcaci (Abū lQāsim?) ou Bolaçan (Abūl Ḥasan); o laqab de cargo (como em Alamin, Alcayde ou Alfaqui), o de profissão (Çapatero, Carpentero ou Herrero), ou ainda de origem geográfica, como em Castellano, Catalán ou Deceupta (que deverá corresponder a “de Ceuta”).
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Sem pretender uma análise nem pouco mais ou menos exaustiva desta listagem, estáse muito longe do que redutoramente se considera “apelidos” que, de facto, remetem para segundos elementos da nomeação. Indubitavelmente alguns serão adoptados como nomes familiares. Mas, como se constatou, outros corresponderão a distintas caracterizações do indivíduo, nomeadamente à filiação através do nasab, assimilável ao patronímico cristão, ou da mera utilização de nomes próprios, em que se omite a partícula ibn, como segundos elementos do nome. O caso português exemplifica cabalmente estas aplicações6. A necessidade de discussão e aprofundamento desta temática, numa perspectiva teórica e de revisão de metodologias, postulase, pois, como uma prioridade. Este artigo pretende constituirse como um veículo dessa mesma problematização, avançando sobre propostas já lançadas para debate, numa reflexão que parte e se centra na realidade mudéjar do reino português, propondose questionar um tempo diacrónico, de evolução identitária e o respectivo reflexo no nome próprio dos muçulmanos portugueses. 2. Os sécs. XII e a primeira metade do XIII revelamse parcos na detecção de elementos antroponímicos relativos a população muçulmana. O período envolve uma primeira apreensão do poder cristão, que se foca na definição dos parâmetros vivenciais do grupo como tal, enfatizandose, logicamente, a vertente fiscal e tributária. Definição que se materializa (como, de resto, para o conjunto da população do território), através de um registo discursivo que passa pela outorga dos diplomas foralengos. Os meus mouros forros, expressão adoptada na documentação régia, dimensiona uma reivindicação de poder7 que se projecta num muçulmano colectivo, abstracto, anónimo e, portanto, inominado. À tangibilidade do grupo contrapõese a intangibilidade do indivíduo. Vector significativo no que à definição dos moldes destas comunidades se refere: a ausência, na documentação, de toda a individualidade muçulmana pressupõe o afastamento absoluto do poder político, mas também da divisão da riqueza. O que contrasta veemente com outras realidades peninsulares, em que, pelo
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menos numa primeira fase, se documenta a sobrevivência de alguns senhores locais muçulmanos, integrados na nova ordem económica8. Com efeito, no caso português, a escrita reverte para uma realidade oposta. Nomeados são alguns senhores fugidos do território algarvio, em função da apreensão dos respectivos bens pela Coroa. A memória dessas personagens revelase, ainda, suficientemente presente para definir o património confiscado. É o caso, de Aben Falila, senhor de Tavira à data da sua conquista pelos cristãos9, cujas “casas” e “horta” se destacam suficientemente para merecer uma referência especial no foral de Tavira10. Das primeiras, o monarca abdica, em 1272 em favor da Ordem de Santiago, numa composição que as refere como casas de morada na referida cidade, “que foram de Abenfalira”, e cujas confrontações delimitavam com outras “casas” do bispo de Silves11. A zona palatina da urbe encontravase, pois, devidamente dividida entre os poderes monárquico e eclesiástico, aproveitandose os edifícios de prestígio do período muçulmano. Do mesmo modo se verifica, em 1250, a doação a Estêvão Anes, de todos os bens que haviam sido de Abozaale (Abū Ṣāliḥ), mouro, e de sua mulher, Zaforona (Zuhrūna), mais sugeridos do que propriamente descritos12, mas que deveriam constituir, no seu conjunto, um fundo apreciável para serem objecto de doação ao próprio chanceler do reino. Em Lisboa detectase, igualmente, uma situação similar, na doação de Afonso Henriques dos bens de Absech, filho de Asubli, ao deão do cabido da Sé13. A memória de alguns vencidos subsiste, pois, após a conquista cristã. Memória, contudo, intimamente ligada não aos indivíduos (dos quais nada se sabe) mas a uma definição patrimonial, prioritária na perspectiva dos conquistadores e a que, naturalmente, se subordinam os elementos antroponímicos. O nome define o património, não o sujeito. Há que esperar uma mudança nesta perspectiva, naturalmente decorrente das necessidades de exercício do poder. E, uma primeira prioridade recai sobre a exploração do património dominial do monarca, convocando os indivíduos, ou melhor, o par conjugal, como unidade básica de produção. Desta transformação da exterioridade em interioridade decorre, naturalmente, uma
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mudança dos moldes antroponímicos a aplicar à população muçulmana do Reino. Um exemplo sugestivo concentrase na cidade de Elvas. De facto, em 1270, Afonso III faz doação de um campo sito entre a estrada que sai pela Porta Nova “et vadit per ad balnea” e a que se dirige para Badajoz, para aí fazer casas, contra o pagamento de 30 soldos de terrádigo14. O objectivo deveria ser, como se regista noutros casos da Península Ibérica, o de concentrar os muçulmanos no exterior das muralhas da cidade, num paralelismo evidente com o que se verifica, por exemplo, em Tudela ou em Tortosa. Em ambas as circunstâncias é dado um período de um ano, especificando se, no último diploma, que esse constituiria o tempo necessário para a construção de um bairro extramuros e para a consequente mudança de todos os muçulmanos para fora da cidade15. No entanto, o caso de Elvas escapa a este condicionalismo absoluto. A dificuldade de colonizar a urbe deve ter impossibilitado a exclusão dos muçulmanos de intramuros, registandose, entre 1262 e 1277, a exploração da propriedade urbana régia através do aforamento de tendas na paróquia de Santa Maria dos Açougues, dentro do perímetro da antiga medina, em espaços justamente partilhados com cristãos. Particularidade que, de resto, se reflecte na tipologia única desta mouraria16 que, em período mais tardio, claramente se delineia como um bairro misto, com uma parte dentro das muralhas e outra fora17, ambas, contudo unificadas pela administração da respectiva comuna muçulmana. São sete os contratos enfitêuticos celebrados, nesse período, com muçulmanos (cf. Quadro 1). As indicações antroponímicas veiculam uma primeira característica na identificação destes enfiteutas: a adopção apenas do nome próprio, no caso do homem, e, em alguns casos no da mulher, que, contudo, pode recair no anonimato, referindo se apenas a sua existência em função do marido. De facto, em quatro desses contratos, é o par conjugal que se invoca, sendo os restantes celebrados com um indivíduo de sexo masculino. No seu conjunto, são referenciados quatro Maffomades, um Braffome, um Ali e um Adela, e,
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relativamente ao sexo feminino, uma Mariame, mulher de Brafome, e uma Ayxa, mulher de um dos Maffomades. É impossível precisar da funcionalidade deste referente no contexto comunitário da urbe, ou seja, se a exiguidade do número destes indivíduos justificaria, por si própria, o simples referente onomástico. Com efeito, os elementos não permitem precisar se Maffomede corresponde a uma ou mais personagens com o mesmo nome. A última hipótese revelase a mais provável, pois três dos contratos são realizados com o par conjugal (embora apenas num deles se indique expressamente o nome da mulher) e um tão somente com um indivíduo. Esta adopção de um elemento da antroponímia árabe islâmica, comum ao mundo cristão (o nome próprio), contrasta com as nomeações dos muçulmanos fugidos, em que se regista, respectivamente, o nasab (no caso de Abenfalira), a kunya (no de Abozaale) e o que parece ser a combinação desses dois elementos no caso do muçulmano de Lisboa. Tratase, pois, de um processo de normalização conscientemente empreendido pelos escribas cristãos, na apreensão de uma realidade social que, desde logo, consigna a interioridade do grupo no contexto populacional do Reino. Os marcos comuns de nomeação enquadram, pois, as comunidades cristã, judia e muçulmana, escapando, ou pretendendo escapar, aos critérios aleatórios de nomeação do sistema árabeislâmico. Recriação da ordem social, em que, não obstante, a nomeação dos indivíduos necessariamente veicula os parâmetros identitários dos diferentes grupos em presença – o nome remete, automaticamente, para uma pertença comunitária. Noutro aspecto se diferencia esta nomeação da referente à população cristã de Elvas, envolvida na mesma tipologia contratual. Com efeito, os parâmetros antroponímicos aplicados a esta última complexificamse num esquema binário, cujo primeiro elemento é constituído pelo nome próprio. Para os muçulmanos, também se regista uma situação similar, mas apenas quando são referidos os termos das propriedades aforadas. Assim, em dois contratos de 126718, surge a referência a Braffome Azeytane (Ibrāhīm Abū Zaydān), muito provavelmente o mesmo Braffome que, em
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conjunto com sua mulher, Mariame (Maryam), afora, em 1262, um campo na referida paróquia de Santa Maria dos Açougues, para aí construir tendas. Do mesmo modo se regista um Adela (cAbd Allāh) Alfaiate, num contrato de 1277, seguramente o mesmo Adela a quem, no diploma imediatamente subsequente, é aforada uma tenda (cf. Quadro 1). Os diplomas escritos, entregues aos respectivos enfiteutas, constituemse, pois, como prova suficiente de identidade e de usufruto do património, sendo, por isso, possível restringir o nome à sua expressão mais simples. Contrariamente, os contratos celebrados com outros foreiros veiculam uma maior precisão nas confrontações, relevando para uma identificação mais exacta das personagens referenciadas e, consequentemente, dos próprios limites da propriedade. E, neste sentido, impõese um esquema binário, similar ao da população cristã, que combina o nome próprio com um segundo elemento, neste caso concreto, uma kunya e um referente de profissão. A complexificação da vida urbana apela, necessariamente, para um progressivo rigor na identificação dos indivíduos. Cerca de um século mais tarde, outra série de contratos enfitêuticos (desta feita emprazamentos, em duas ou três vidas) num bairro específico, a Sapataria, de Beja, permite aferir da evolução dos parâmetros antroponímicos dos muçulmanos portugueses (cf. Quadro 2). Uma primeira constatação na análise destes elementos referese à uniformização dos referentes apostos ao registo identitário. Assim, se em Elvas se assinala, em duas ocasiões, a referência “mouro” depois do nome próprio, em Beja o contexto cronológico remete já para uma uniformização do estatuto jurídico dos indivíduos, referenciados sem excepção, como “mouro/a forro/a” após o respectivo indicador identitário. Esta precisão terminológica (que, de resto, caracteriza o devir sociológico da medievalidade peninsular), na tipificação do muçulmano (enquanto “mouro forro”)19, assim como do “judeu”, corresponde a um gradual processo de construção jurídica e, consequentemente, de apreensão dos grupos minoritários pelo poder.
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Além desta significativa precisão, outros elementos diferenciam as duas séries de contratos. Em Beja, verificase o desaparecimento quase completo da referência através do nome próprio isolado, que só se regista em dois casos, o de Brafome (Ibrāhīm) e de Jufez (Yūsuf), complementandose, nos restantes indivíduos com o mesmo nome, a respectiva identificação através da aposição de outros referentes. Assim, e ao contrário de Elvas, o contexto urbano exige já uma maior precisão na identificação dos sujeitos, subordinandoa a um esquema predominantemente binário, como o testemunha o Quadro 2 A. Num universo de 18 indivíduos (mencionados como enfiteutas ou nas confrontações das propriedades), dos quais duas mulheres, apenas em cinco do sexo masculino se detecta uma identificação reduzida a um único elemento: dois nomes próprios, como já referido, duas kunya/s – Aborrada e Borrada (Abū Riḍa’) – que, de resto, devem corresponder ao mesmo indivíduo, e um outro elemento não identificado (Runho ou Ruynho). De notar que, ao contrário do nome próprio, a kunya traduzse num referente mais personalizado dentro das comunidades muçulmanas, pelo que a sua adopção per se deve revelarse suficiente neste contexto para a imediata identificação do indivíduo. A duplicação dos nomes próprios é, de resto, evidente: três Brafome (Ibrāhīm), três Mafomede (Muḥammad), três Azmede (Aḥmad), dois Jufez (Yūsuf) e um Focem (Ḥusayn). Embora o número de contratos não constitua, de facto, uma amostragem significativa da população de Beja, a adopção destes nomes próprios não se revela muito distinta das consignadas para Lisboa, Évora ou Loulé. Em todos os casos, Muḥammad, Ibrāhīm, Aḥmad e Yūsuf encontramse entre os sete nomes mais utilizados pelos muçulmanos das respectivas localidades20. Os segundos elementos dos nomes relevam para referências díspares (cf. Quadro 2 A). As ligações familiares reflectemse num patronímico (nasab) enunciado em romance (“filho de”) e numa referência a um irmão de, abrangendo ainda duas mulheres, definidas em função do respectivo cônjuge – uma com indicação de nome próprio (Aixa, mulher de Jufez) e outra reduzida apenas ao seu estatuto de casada (mulher
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de). Os referentes de profissão remetem para dois Oleiros (Jufez e Focem) e um Albardeiro. Difícil é precisar se, de facto, se trata de profissões efectivamente desempenhadas ou de referentes já fossilizados, caracterizadores da estruturas familiares. De facto, ambos os casos são detectados a nível da onomástica muçulmana portuguesa de quatrocentos21. A mesma observação se poderia, de resto, aplicar aos referentes geográficos. No entanto, em duas circunstâncias, esse elemento complementa, uma estrutura binária – Brafome Panos e Mafomede Chorria, ambos referidos como de Moura –, o que parece deverse a um precisão que, de facto, não participa da estrutura do nome, mas remete, antes, para uma efectiva indicação de mobilidade a partir desse centro urbano. Em contraponto, mais problemáticas se revelam as referências a Azmede de Elvas que, se poderá reflectir essa mesma realidade, é também possível que traduza um aposto familiar (indiciador de uma imigração em gerações anteriores22) ou, ainda, ao Mouro Galego. Esta última indicação revelase, de resto, extremamente sugestiva. De facto, não participa, como as demais, numa perspectiva centrada na identidade individual, mas remete antes para uma percepção definida pelo exterior, na classificação de um inominado forâneo, vindo algures de um Norte incerto. Estes parâmetros generalistas revelam, pois, um indivíduo ainda não totalmente integrado nas estruturas comunitárias, cuja subordinação do nome a referentes mais sugestivos revela uma maior funcionalidade para a sua imediata identificação. Elementos que, no seu conjunto, sugerem, de resto, uma significativa concentração de colonizadores muçulmanos na Beja do séc. XIV, cujas proveniências geográficas, com esta última excepção, parecem deverse a um recrutamento regional. 3. Os parâmetros antroponímicos da minoria muçulmana evoluem, pois, em função de uma padronização comum à da demais população do reino. De Elvas do segundo quartel do séc. XIII à Beja da centúria trecentista, a tendência passa por uma progressiva adopção de um esquema binário: o nome próprio, definidor da adscrição religiosa e, consequentemente, em consonância com o capital simbólico
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de cada comunidade, e um segundo elemento, extremamente variável, que, em alguns casos tenderá, tardiamente, a fixar se como nome de família. A esta apreensão do poder cristão, na normalização (ou numa normalização possível) da complexa estrutura onomástica árabeislâmica, configurase, paralelamente, uma objectivação de um estatuto jurídico, remetendo para a condição de mouro forro enunciada depois da identificação do personagem. Parâmetros que parecem, pois, corresponder a uma visão exterior do grupo, numa heteronomeação assente na assimilação possível da maioria cristã de uma realidade culturalmente estranha. No entanto, alguns dados permitem aferir da interiorização destes parâmetros por parte do grupo muçulmano português, convertendo o “ser nomeado” numa assumida autonomeação. Do reinado de D. João I subsiste a assinatura mais completa, a do tabelião da comuna muçulmana olisiponense, Yūsuf b. Ibrahīm b. Yūsuf alLaḥmī23, cujo nome remete, de facto, para uma estrutura árabe, com o nome próprio, o nasab, englobando a referência ao pai e ao avô paterno e uma nisba tribal, conotada com a tribo iemenita de Laḥm. Algumas particularidades sobressaem, contudo, neste esquema. Uma primeira constatação remete para a omissão do elemento mais característico e particular do sistema onomástico árabe, a kunya. E, neste sentido, poderseá concluir por um paralelismo com a estrutura cristã de nomeação, em que se integram o nome próprio, o patronímico (neste caso alargado ao avô paterno), completados por um terceiro elemento de situação do indivíduo face ao grupo. De facto, este personagem é um membro da elite comunal de Lisboa e, como tal, é enfatizada uma nomeação que privilegia a cadeia geneológica e, neste caso concreto, também uma filiação tribal, justificando a aristocracia do seu detentor face aos parâmetros sociais internos do grupo. Mas mais curioso ainda, perfilase a outra parte desta assinatura (do lado direito da primeira), em que pontifica apenas o nome próprio em árabe (Yūsuf) e, por baixo, em romance, sob a forma de “Juffiz”. De facto, Jufiz e, posteriormente, Jufez, são as formas que, na documentação cristã, correspondem ao árabe Yūsuf24, o que permite
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concluir da efectiva transformação dos nomes clássicos árabes em fórmulas diferenciadas, possivelmente em função de um árabe dialectal, afectado por uma evolução fonética, a que o contexto cultural das próprias comunidades não será, logicamente, estranho. Comparando, de resto, com os elementos fornecidos no supra citado artigo de de Germán Navarro Espinach e de Concepción Villanueva Morte, sobre os mudéjares de Aragão (limitada ao facto de serem apenas apresentados os segundos elementos do nome) constatase, aliás, que a forma correspondente se parece cristalizar em “Juce”25, relevando para os diferentes âmbitos de inserção, até linguística, das comunidades muçulmanas peninsulares. Outra assinatura, mais tardia, datada de 1478, de Brafeme Azbala (ou Ibrāhīm b. Sacīd b. Ḥasab Allāh/Hisb Allāh), de Santarém inscrevese no verso de um contrato de emprazamento, apenas como “Brafeme”. Neste caso concreto, a forma sincopada é bastante aproximada do original, e registase já, em período anterior, no árabe dialectal de AlAndalus26. Mas, significativo é o facto de o muçulmano a escrever, substituindo a letra árabe “ ḥā” pelo “f”, numa tendência linguística que, de facto, caracteriza a língua portuguesa, na assimilação desse fonema. Aspecto tanto mais importante quanto uma vez mais, em Aragão, a forma paralela detectada é de “Brahen”27, optandose, portanto, pela manutenção de um “h”, que corresponderá a uma diferente formulação fonética. O mesmo fenómeno se detecta no nome de Muḥammad (desta feita com a transformação do “hā”), tal como é assumido, de resto, pelo último imam da comuna olisiponense, que se autodenomina Mafamede Láparo, num documento autógrafo de 147328 e numa carta sua, já posterior a 149629. Uma vez mais se contrasta esta opção com a realidade de Aragão, que postula a fórmula “Mahoma”30, revelando ambas a transformação da vogal inicial. De facto, o Ocidente medieval (pelo menos no que aos sécs. XIV e XV respeita) testemunha as variantes do nome do Profeta, quer como Maḥammad – como se regista no caso português – quer como Maḥummad – como no aragonês31. Mais significativa por isso mesmo, é a variável consonântica, que remete, uma vez mais, para as diferentes
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percepções linguísticas consonantes com as distintas matrizes culturais das duas comunidades. Estes exemplos permitem aferir a confluência – embora nem sempre linear ou total – entre o nomear e o ser nomeado, ou seja, entre a auto e a hetero identificação do grupo muçulmano. De facto, as fórmulas endógenas coincidem, neste aspecto, com as referenciadas na documentação cristã32, o que não será de estranhar, face à familiaridade do escrivão (mesmo se cristão) com o universo das comunidades muçulmanas dos centros urbanos meridionais. É certo que apenas numa perspectiva crítica e de constante dialéctica entre as produções escritas de ambos os grupos se poderão ir aferindo critérios de análise desta realidade. Critérios, de resto, apenas possíveis de complementar através de uma transversalidade que percorra as diferentes formações políticas da Península Ibérica. No reino português transmutamse os Muḥammad em Mafamede, os Yūsuf em Jufez, os Ibrāhīm em Brafeme, numa espécie de travestismo que remete para um efectivo aportuguesamento linguístico dos nomes próprios árabe islâmicos, traduzindo, para os sécs. XIV e XV, uma efectiva substituição da matriz cultural do grupo. Interessa cotejar esses referentes com os da demais realidade peninsular, para aferir os diferentes graus de aculturação dos vários mudejarismos ibérios. Quadro 1 – Elvas Aforamentos na Paróquia de Santa Maria dos Açougues
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Quadro 2 – Beja Emprazamentos na Sapataria
Quadro 2 A – Estrutura antroponímica
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Notes 1. L’Antroponymie document de l’Histoire Sociale des Mondes Méditerranéens Médiéveux, Roma, 1996, pp. 142166. 2. “The identificatio of Portuguese Muslims: Problems and Methodology”, Medieval Prosopography 23 (2002) Western Michigan University, pp. 203–228; Tempos e Espaços de Mouros. A Minoria Muçulmana no Reino Portuuês (séculos XII a XV), Lisboa, 2007, item 2.4. (“Antroponímia muçulmana”), pp. 251297. 3. Simposio Internacional de Mudejarismo. Mudéjares y moriscos. Cambios sociales y culturales. Actas, Teruel, 2004, pp. 61111. 4. Sobre a reconstrução prosopográfica das trajectórias sociais dos muçulmanos no sul de Aragão na Idade Média – Germán Navarro Espinach; Concepción Villanueva Morte “Por un estudio prosopográfico...”, p. 61. 5. Cf. Jacqueline Sublet, Le voile du nom. Essai sur le nom propre arabe, Paris, 1991, pp. 910; Manuela Marín, Individuo y sociedad en al Andalus, Madrid, 1982, pp. 178181. No entanto, como o refere Jacqueline Sublet, cada um dos componentes antroponímicos constitui, de facto, “um nome completo, pois uma personagem pode ser designada apenas por um elemento ou por uma combinação de alguns deles segundo os contextos.” – op. cit., p. 8. 6. Cf. M.a Filomena Lopes de Barros, Tempos e Espaços de Mouros. A Minoria Muçulmana no Reino Português (séculos XII a XV), Lisboa, 2007, item 2.4. (“Antroponímia muçulmana”), pp. 251297. A mesma crítica metodológica de fundo se aplica, de resto à obra destes dois autores Los mudéjares de Teruel y Albarracín, Teruel, 2003. http://books.openedition.org/cidehus/247
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7. Que, pelo menos até ao reinado de D. João I, não se concretiza, de facto, no conjunto do território, coexistindo comunas muçulmanas de jurisdição régia com outras sob jurisdição das Ordens Militares de Santiago e de Avis. 8. Como, por exemplo, é o caso Ibn Maḥfūẓ, de Niebla, a quem Afonso X outorga o direito de cobrar o dízimo procedente do azeite do Aljarafe, a Buhayra de Sevilha e a cobrança de certos impostos na judiaria de Sevilha – M. González Jiménez, “Andalucia en tiempos de Alfonso X – Estudio Historico”, in Diplomatario Andaluz de Alfonso X, ed. M. González Jiménez, Sevilha, 1991, pp. XLVIIXLVIII; F. Roldán Castro, Niebla Musulmana (siglos VIIIXIII), Huelva, 1993, p. 78. 9. Segundo testemunho da Crónica da Conquista do Algarve, que refere Abem Falila, designado como “moro senhor deste luguar [Tavira]” – Crónica da Conquista do Algarve (texto de 1792), comentário e notas de José Pedro Machado, separata de Anais do Município de Faro 8 (1978), p. 248. 10. Chancelaria de D. Afonso III, Livro I, vol. 1, ed. Leontina Ventura e António Resende de Oliveira, Coimbra, 2006, doc. 362, pp. 420421. 11. Chancelaria de D. Afonso III, Livro 1, vol. 2, doc. 720, pp. 295299. 12. Referemse os bens em Santa Maria de Faro e em todo o Algarve, enunciados como “casas e vinhas, almuinha, olivais, figueirais, salinas ou marinas” – Chancelaria de D. Afonso III, Livro 1, vol. 2, doc. 467, pp. 64 65. 13. Gérard Pradalié, Lisboa: da Reconquista ao fim do século XIII, Lisboa, 1975, p. 45. 14. Chancelaria de D. Afonso III, Livro I, vol. 2, ed. Leontina Vieira e António Resende Oliveira, Coimbra, 2006, doc. 426, p. 23. 15. O acordo firmado por Afonso I com os muçulmanos de Tudela, em 1115, consigna “que stent illos moros in lures casas que habent de intro per unum annum: completo anno, quod exeant ad illos barrios de foras com lure mobile et cum lures mulieres et cum lures filios”. O de Tortosa, outorgado pelo conde de Barcelona, Ramón Berenguer em 1143, especifica ainda a manutenção da mesquita maior da cidade durante esse período de transição: “et totos illos alios moros quod stent in lures casas intra in ille civitate, de isto uno anno completo de ista carta; et infer tantum quod faciant et indreçent casas in illos arrabales de fora, et quod remaneat illa metzchida maiore in lurs manus usque ad isto anno completo” – F. Fernández y González, Estado social y político de los mudéjares de Castilla, prólogo de Mercedes Garcia Arenal, Madrid, 1985, doc. II, p. 296 e doc. V, p. 299. 16. De facto, embora caso único no território português, registamse mourarias bipolares noutras zonas da Península, como, por exemplo, em Catalayud, (Aragão) – Francisco Javier García Marco, Las comunidades mudéjares de la comarca de Calatayud en el siglo XV, Catalayud, pp. http://books.openedition.org/cidehus/247
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142143 – ou em Madrid – Juan C. de Miguel Rodriguéz, La Comunidad Mudéjar de Madrid, Madrid, 1989, pp. 113114. 17. Fernando Branco Correia, Elvas Na Idade Média (texto policopiado), Lisboa, 1999, vol. 1, p. 338. 18. Um dos quais celebrado com Maffomade e sua mulher, e outro com Marco Peres e sua mulher, Bona Joanes 19. Para a diferenciação entre “mouro” e “mouro forro” vide M.a Filomena Lopes de Barros “Mouros”, Dicionário de História Religiosa de Portugal [vol. III], Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, pp. 279284. 20. Para a comparação entre estes elementos vejase: M.a Filomena Lopes de Barros, Tempos e Espaços de Mouros, Quadro 6, p. 293. 21. Cf. M.a Filomena Lopes de Barros, Tempos e Espaços de Mouros, pp. 270272. 22. Cf. Idem, ibidem, pp. 268270. 23. Portugalia Monumenta Histórica. Leges et Consuetidinis, Lisboa, 1867, p. 100; reproduzido em M.a Filomena Lopes de Barros, Tempos e Espaços de Mouros, p. 253. 24. Cf. M.a Filomena Lopes de Barros, Tempos e Espaços de Mouros, p. 288. 25. Germán Navarro Espinach e Concepción Villanueva Morte, “Por un estudio prosopográfico y genealógico de los mudéjares de Aragón en la Edad Media: las tierras turolenses y dos ejemplos concretos del Valle del Ebro”, p. 92. 26. F. Corriente, A Grammatical Sketch of the Spanish Arabic Dialect Bundle, Madrid, 1977, p. 59. 27. Germán Navarro Espinach e Concepción Villanueva Morte, “Por un estudio prosopográfico...”, p. 77. 28. I.A.N./T.T., Mosteiro de S. Vicente de Fora (2.a incorporação), caixa 29, doc. 18 29. I.A.N./T.T., Cartas Missivas, maço 1, n° 272. 30. Germán Navarro Espinach e Concepción Villanueva Morte, “Por un estudio prosopográfico...”, p. 94. 31. Sobre esta polémica utilização vejase: Fernando de la Granja Santamaría, “A propósito del nombre Muḥammad y sus variantes en Occidente”, AlAndalus 33 (1969), pp. 231240. 32. Cf. sobe este aspecto as variantes dos nomes próprios consignadas em: M.a Filomena Lopes de Barros, Tempos e Espaços de Mouros, pp. 285290.
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Référence électronique du chapitre BARROS, Maria Filomena Lopes de. Nomear e ser nomeado : A onomástica dos muçulmanos portugueses no processo identitário In : Minorias étnicoreligiosas na Península Ibérica : Período Medieval e Moderno [en ligne]. Lisbonne : Publicações do Cidehus, 2008 (généré le 14 septembre 2016). Disponible sur Internet : . ISBN : 9782821869868.
Référence électronique du livre BARROS, Maria Filomena Lopes de (dir.) ; HINOJOSA MONTALVO, José (dir.). Minorias étnicoreligiosas na Península Ibérica : Período Medieval e Moderno. Nouvelle édition [en ligne]. Lisbonne : Publicações do Cidehus, 2008 (généré le 14 septembre 2016). Disponible sur Internet : . ISBN : 9782821869868. Compatible avec Zotero
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