\"Noções de minha precariedade\"

September 30, 2017 | Autor: Ieda Magri | Categoria: Literatura brasileira
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“NOÇÕES DE MINHA PRECARIEDADE” João Antônio desdentado, João Antônio engravatado

A imagem de boêmio que João Antônio propagou desde o início de sua carreira, acrescida de um ar de desleixo com o próprio texto, reiterado sistematicamente na década de 70, tem muito pouco a ver com uma imagem de arquivista zeloso que se verificou depois de sua morte. No Acervo João Antônio – localizado na Unesp de Assis – encontramos centenas de matérias de jornais escritas pelo autor e por críticos e jornalistas de todo o país, tudo devidamente separado em pastas, por ano ou pelo nome do veículo de publicação. Além disso, há um caderno de protocolo no qual o autor anotava a correspondência recebida com índices para data de recebimento, assunto, data de resposta; e uma agenda de telefone, que passou a ser usada como uma espécie de dicionário de gírias, além de inúmeras cadernetas feitas à mão com papel de maço de cigarros que contém anotações para contos, nomes de personagens, listas de escritores a serem citados em entrevistas etc. João Antônio produziu e cultivou a imagem de escritor que ele queria que fosse vista pelo público, e isso, desde seu primeiro livro, que contou, no lançamento, com a presença de várias prostitutas suas amigas. Nessa época, apesar do investimento na imagem de homem que frequenta prostíbulos, afeito à boemia e à malandragem, vestia-se como um escritor bem-sucedido ou como um homem de negócios, como o atesta o depoimento de Caio Porfírio Carneiro escrito para o livro que apresenta a correspondência de João Antônio a Caio e a Fábio Lucas: “Tudo o que rompia com os padrões estabelecidos, com a falsa moral burguesa, lhe agradava, embora andasse sempre bem vestido e engravatado” (Antônio, 2004, p. 81). Investindo numa imagem que condiz com a foto de divulgação usada no início da carreira, João Antônio escreveu um texto de apresentação para Malagueta, Perus e Bacanaço em que se definia como um fracassado em sua comunicação com as pessoas: Tudo o que tenho feito em minha vida apenas tem me dado noções de minha precariedade. Um sentimento de falência, certo nojo pela condição dos homens e até ternura, às vezes; quase sempre – pena.

Mesmo nas etapas nas quais saio vitorioso, nunca se afasta o gosto da frustração. (...) A alquimia literária me esgota. Qualquer página me custa, a mim, que para outras redações tenho facilidade. Escrever é outra dimensão e é a única comunicação de verdade com o mundo, porque falando com pessoas eu não consigo me transmitir. Estranhamente, esse texto não foi publicado nas primeiras edições do livro e veio a público somente na terceira edição, já na década de 80, pelo Círculo do Livro, e a edição da Cosac Naify, de 2004, a mantém. Essa confissão do escritor, tanto de sua relação com a literatura como consigo mesmo no seu sentimento de fracasso – aos 26 anos –, não parece ter interessado ao editor em 1963, e a preferência recaiu, logo em seguida à publicação, na imagem de malandro e não na de perdedor. Essa identidade afim com o malandro ficou colada à imagem de João Antônio e, ainda em 1964, ele queria se separar dela como fica dito em uma carta à Ilka Brunhilde Laurito, datada de 8 de junho de 1964: “Vou lhe fazer uma confissão, Ilka. Cá entre nós, fique claro. Eu não sou o escritor dos malandros. Já estou cansado desse slogan que alguns jornais, revistas e repórteres andaram pespegando por aí”. Mas a imagem acabou perdurando por toda a carreira literária do autor, apesar de, na década de 70, essa ligação ao universo da malandragem ter sido ampliada para ao de povo. Vemos em inúmeras entrevistas e depoimentos a afirmação de uma identidade de pobre, de humilde, de quem “cheira a povo”. Também não interessava nessa época a confissão de literatura como uma via de compreensão de si mesmo e como elo de ligação com o mundo, sendo ela um canal de aproximação entre o escritor e os outros, como forma privilegiada de tentativa de comunicação. Ficou a imagem de verdade e de sinceridade, mas o homem sentimental presente no texto de apresentação do primeiro livro só viria à tona na década de 80, quando João Antônio estava interessado em recuperar a imagem de escritor que preza um estilo literário próprio, de ficcionalização, de criação e de investimento fabulatório, quando investe no autobiográfico e faz as pazes com essa sua imagem de início de carreira, somando-a com a de polemista, afinada com uma estética do feio amplamente divulgada em 70. Contudo, como se pode ver pelas fotos de divulgação usadas nas contracapas de seus livros, a publicidade em torno de seu nome sempre jogou com a figura de malandro ou outsider.

Quando da publicação de seu segundo livro, sua imagem muda completamente em relação à década de 60. Na contracapa de Leão-de-chácara ele aparece de barba por fazer, cabelo mais longo e sem camisa. A frase de Sérgio Porto e Marques Rebelo – “o clássico velhaco” – é usada pela primeira vez para definir o autor e se mantém nos livros seguintes, mesmo que sua apresentação mude, como se verá na fotografia de 1982, em Dedo-duro. Essa mesma imagem, apesar de em outra pose fotográfica, também é veiculada na imprensa na década de 70. Na década de 80, João Antônio volta a usar camisa com colarinho e se apresenta mais a maneira de um escritor. Essa imagem, no entanto, é sempre posta em xeque, já que a fotografia e a apresentação do homem João Antônio nem sempre são correspondentes. Mylton Severiano, um de seus amigos mais assíduos, descreve como o encontrou no início de janeiro de 1980: “Chocante: João Antônio nos aparece desdentado, como seus personagens. Sinal da penúria que vivíamos. Levaria cinco anos para tratar a boca, com profissional sob medida” (Silva, 2005, p. 105). A imagem de homem pobre, sem dinheiro para arrumar os dentes, também seria uma pose, se for levado em conta o depoimento de seu filho e herdeiro, Daniel Pedro de Andrade, no III Encontro João Antônio, realizado no Rio de Janeiro em outubro de 2008: “meu pai me deixou um posto de gasolina”. Sua primeira mulher, Marília, mãe de Daniel, corrobora: “Não era rico, mas também não era do jeito que se publicou, que andava pedindo dinheiro. Haja vista que deixou propriedades rendendo, o Daniel recebe dinheiro daquilo” (Silva, 2005, p. 154). A frase de Marília “não era do jeito que se publicou” atesta mais uma vez o investimento de caráter performático assumido por João Antônio. Apesar de muito mais usado como designação de uma representação cênica – “a performance é antes de tudo uma expressão cênica” (Cohen, 2002, p. 28) – e estar muito ligada às artes plásticas e ao uso do próprio corpo do artista numa exibição ao vivo, o termo performance está sendo muito usado no estudo do comportamento dos escritores no manuseio e veiculação de sua imagem pública. As entrevistas de João Antônio, seus depoimentos, a escolha de suas imagens fotográficas, sua maneira de se apresentar vestido, seu comportamento e até mesmo seus textos publicados em livro podem ser considerados como momentos de atuação com vistas a fixar uma ou outra imagem de escritor, como convinha à época. Nesse sentido, considero essa sua atuação como uma ação política, investida de uma ou outra intenção consciente de um papel a desempenhar com determinado fim, seja ele a publicidade em torno de seus livros,

afinal precisava se manter no mercado, a abertura de espaço de discussão para ele e para outros escritores seus contemporâneos ou a exemplificação viva da cultura brasileira e das diferenças existentes entre classes sociais e modos de vida. RoseLee Goldberg (2006) diz que “a performance tem sido um meio de dirigirse diretamente a um grande público, bem como de chocar as plateias, levando-as a reavaliar suas concepções de arte e sua relação com a cultura” (p. 8) e tem sido praticada por artistas “impacientes com as limitações das formas mais estabelecidas e decididos a pôr sua arte em contato direto com o público” (p. 1). Para RoseLee, que parte do estudo dos futuristas, a performance futurista era mais manifesto que prática, mais propaganda do que produção efetiva, em seus primórdios. João Antônio também usou a estrutura, tanto de manifesto escrito como de apresentação performática ao vivo, em suas entrevistas e depoimentos, para chamar atenção sobre seu nome e, assim, conquistar um lugar para sua literatura. Alguns de seus textos, notadamente “Corpo-acorpo com a vida”, são autênticos manifestos e têm como função intervir no debate literário. Apesar de considerarmos consciente o uso que João Antônio faz de sua imagem pública, isso não descarta a falta de lugar, profundamente sentida e afirmada, desse sujeito que não pode se considerar nem malandro autêntico, nem escritor. A performance, assim, nasce do uso estratégico de suas diferentes personas. Como na arte da palhaçaria, o artista busca em si, naquilo que tem de essencial, traço de personalidade, a matéria para sua arte. À pergunta de Giovanni Ricciardi “Há momentos ideais ou felizes para escrever?”, João Antônio responde, em 1986: “Quando o escritor se aproxima dele mesmo e então encontra a sua personalidade de autor” (Ricciardi, 2008, p. 143). Assim, as diferentes poses assumidas por João Antônio nunca excluem a pessoa do escritor ou do narrador. Não há um ator em cena que se despe de sua personalidade anterior, mas a convivência amalgamada do homem que assume seu nervo exposto, do escritor que o doma e do narrador/enunciador que assume uma ou outra imagem que se superpõe ou se sucede em uma ou outra aparição. Todas essas personas entrevistas no percurso da carreira de João Antônio estão a serviço de seus projetos político-literários e dão conta do grau de consciência que o escritor tinha sobre seu papel na cultura brasileira e a condição, para ele obrigatória, de interferir nos problemas que cercam os universos social e literário. Chamando atenção para si, acaba por colocar na pauta os problemas que merecem discussão. É desse modo

que ele interfere amplamente no sistema editorial brasileiro, problema que atacou em toda sua correspondência, na imprensa e em seus livros. É aí que reside grande parte de sua decepção com o Brasil e o que faz com que conclua ter nascido no país errado: apesar de divulgar amplamente seus livros indo a todos os cantos do país, fazendo o papel de agente literário de sua própria carreira, não poucas vezes deparava-se com a ausência deles em cidades com livrarias que tinham condições de oferecê-los, ou mesmo tendo que brigar para que novas edições fossem lançadas. Apesar das diversas imagens públicas de João Antônio, apesar de a imagem de polemista, malandro e brigão ser a mais lembrada, há também uma imagem de homem sensível, que ficou mais restrita ao círculo dos íntimos, mas se lido com atenção, pode ser encontrada tanto em “Afinação da arte de chutar tampinhas” quanto em “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”, principalmente o segundo, uma boa mostra de como conviveram entre si o nervo exposto, o malandro e o escritor. Referências: ANTÔNIO, João. Abraçado ao meu rancor. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. ______. Cartas aos amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas. São Paulo: Ateliê Editorial; Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, 2004. ______. Dedo-duro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1982. ______. Leão-de-chácara. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1980. ______. Malagueta Perus e Bacanaço. 4ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2004. ______. Malhação do Judas Carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. ______. Ô, Copacabana! Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2002. GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance do Futurismo ao presente. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. RICCIARDI, Giovani. Escritores de São Paulo: entrevistas. Niterói, Rio de Janeiro: Nitpress, 2008. SILVA, Mylton Severiano da. Paixão de João Antônio. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2005.

IEDA MAGRI é autora do livro de ficção Tinha uma coisa aqui (7 Letras, 2007), doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ (2010). Possui graduação em Letras Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade Federal de SC (2002) e mestrado em Teoria da Literatura pela mesma universidade (2005) com o tema Arte e público: reflexões sobre a experiência estética. Faz parte do corpo editorial do Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea da UFRJ, é editora da Revista Anjos do Picadeiro e, juntamente com João Carlos Artigos, organizou o livro Teatro de Anônimo – sentidos de uma experiência.

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