Nos meandros da história do rio Purus: problemáticas de alteridade e os mundos do trabalho no século XIX

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Nos meandros da história do rio Purus: Problemáticas de alteridade e os mundos do trabalho no século XIX1 Antonio Alexandre Isidio Cardoso Barra do rio Negro, 18 de julho de 1854 O Vapor Rio Negro trouxe grande número de passageiros, e entre eles alguns que tencionam fixar a sua residência nesta Província, abrindo casas de comércio, ou aplicando-se à extração de borracha, que é abundantíssima, como se sabe, em muitos lugares dela, e alcança hoje um elevado preço. (Estrella do Amazonas, 18 de julho de 1854)

Cidade da Barra do rio Negro, 1854. O clima era de um verdadeiro frenesi. A recémcriada unidade provincial do Amazonas começava a tomar parte do avanço rumo ao oeste, em direção aos altos rios. As páginas do Estrella do Amazonas, periódico entusiasta da frente de expansão, tornavam públicos os formatos do crescente movimento portuário. As morosas viagens de igarités, canoas, embarcações a vela, paulatinamente davam espaço para os velozes vapores, símbolos dos novos ritmos que se concretizavam no cotidiano, e que atingiam de maneira significativa a população amazônica (Machado, 2005). Havia uma séria preocupação em conhecer e em dar a conhecer o território com o objetivo de torná-lo efetivamente conquistado, no sentido de incorporá-lo como fronteira econômica e como depositário dos interesses velozes do capitalismo internacional que grassavam pelos rios e matas à época. Foi nesse fito que em 1862 o presidente da província do Amazonas, Manoel Clementino Carneiro da Cunha, organizou uma expedição ao rio Purus, afluente da margem direita do Solimões. Havia a intenção de mapear suas riquezas, habitantes e costumes, de devassá-lo em todos os seus meandros. Foram convocados para liderar tal empreendimento o engenheiro militar João Martins da Silva Coutinho e o prático de embarcações Manoel Urbano da Encarnação, que deixaram suas impressões sobre a viagem registradas num relatório anexado à documentação da Província (Coutinho, 1862).2 O intento foi de cunho oficial, afeito aos interesses da recém-criada unidade político-administrativa do Amazonas,3 cujas ações permitem observar um direcionamento muito claro. Existia uma exasperada pressa, acoplada à intenção de esquadrinhar rios e matas, de modo a qualificá-los, quantificá-los e aproveitá-los economicamente. Nesse contexto, os compassos fugidios do desenvolvimento econômico dos oitocentos se confundiam diuturnamente com um ideal civilizatório. Era preciso avançar, e essa progressão também buscava abrir varadouros pelo Purus. A marcha devia ser meticulosa, e a expedição de exploração capitaneada por Coutinho e Urbano não deixara a desejar ante a largueza do desafio. Embarcaram no vapor Pirajá no dia 16 de fevereiro de 1862 e empreenderam uma viagem de 49 dias,

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Artigo publicado no livro “Paisagens Ameríndias: lugares, circuitos e modos de vida na Amazônia” em 2014, organizado por Marta Rosa Amoroso (USP) e Gilton Mendes dos Santos (UFAM). 2 Além de Coutinho e Urbano, também figuravam na expedição outros membros, como o naturalista alemão Gustav Wallis e o médico H. Strauss, que dividiam os encargos de esquadrinhamento do Purus com o restante dos tripulantes do Vapor Pirajá. 3 Implementada em 1852.

que transcorreu sem “sinistros”, desdobrando-se num testemunho/experiência sobre o século XIX no Amazonas.

vasto

e

importante

É interessante notar que a narrativa da expedição presente no relatório foi elaborada pelo Engenheiro militar, mas a maior parte das informações teve como fonte as palavras de Manoel Urbano, que vinha singrando as águas do rio desde antes da criação da unidade provincial. O prático já havia composto o quadro da Diretoria de Índios como “encarregado” na localidade de Arimã no Purus, relacionando-se diretamente com alguns dos povos indígenas que viviam pela calha do rio.4 O olhar oficial, desse modo, enxergava Urbano como um sujeito de confiança, como alguém que guardava experiências que poderiam ser proveitosas nos possíveis desafios dos tripulantes do Pirajá. Esse fator emprestou cores mais vivas ao relato de Coutinho, que, aproveitando os conhecimentos prévios de Urbano, foi muito além do sentido cartesiano da empreitada expedicionária, responsável por uma descrição pormenorizada do rio. Através do relato é possível analisar ricos detalhes alusivos ao cotidiano e aos mundos do trabalho que se desdobravam no Purus. Povos indígenas, regatões e exploradores de drogas da floresta aparecem numa perspectiva relacional, trocando experiências e tecendo redes de contato. Esses habitantes do Purus na segunda metade do século XIX estavam vivenciando um vertiginoso e progressivo avanço extrativista, que buscava gêneros da natureza apreciados pelo mercado. Salsa, copaíba, borracha, castanha, madeiras, entre outros produtos, ganhavam valor monetário, colocando no mesmo palco culturas e trajetórias dispares em seus percursos exploratórios. Segundo Coutinho, “240 casas cobertas de palha espalhadas desde o Berury até o sítio Boa Vista, na extensão de 237,77 milhas” serviam de base para as atividades extrativas (Coutinho, 1862, p. 93). Essas unidades funcionavam em sua maioria como postos avançados de exploração de gêneros extrativos, relacionando-se diretamente com os esforços do governo em mapear as potencialidades do Purus. Podem ser citados, por exemplo, o sítio de Francisco José Rodrigues de Souza, próximo ao canal do Berury, onde viviam quatro famílias mura atuando na exploração da salsa, ou ainda a feitoria de João Gabriel de Carvalho e Mello, com grandes seringais e cacoais, nas proximidades da foz do Jacaré, vizinha a uma maloca paumari. Diante desse contexto, é importante destacar a presença de povos indígenas, que também interferia nos contornos do processo em questão. Eles deveriam comportar-se, segundo as expectativas de Coutinho, como potenciais trabalhadores e colaboradores da empreitada exploratória. Para tanto, deveriam ser disciplinados através do cotidiano de trabalho nos sítios e feitorias. Contudo, muito distante desta perspectiva – vista como a ideal para o comportamento indígena – o que havia era uma grande complexidade relacional e uma pluralidade de matizes de posicionamentos sociais que não se encaixavam em tais parâmetros. Coutinho calculou a população indígena do Purus dividindo-a entre os que habitavam as proximidades do rio e os que viviam pelas florestas, valendo-se das informações que coletou junto a seus interlocutores, principalmente Manoel Urbano. Foi, assim, uma estimativa sem preocupação censitária que definiu entre doze ou treze mil o número de indígenas da área, entre os quais estavam situados os povos Mura, 4

Arquivo Público do Amazonas. Livro da Diretoria de índios - 1854. A Diretoria de Índios foi estabelecida no contexto político do governo imperial de D. Pedro II, funcionando a partir da elaboração do decreto nº 426, intitulado Regulamento das Missões de Catequese e Civilização dos Índios, validado em 1845.

Paumari, Catauixi, Apurinã, Pammaná, Quaruná, Jamamadi, Canamary e Manetenery. Para cada grupo identificado foram feitas observações quanto aos seus comportamentos, feições e características físicas, além de referências às inclinações para algumas atividades, como a pesca, a agricultura ou a guerra. Os Mura, por exemplo, foram classificados como andarilhos ou vagabundos, os Apurinã como ferozes guerreiros, os Catauixi como dóceis e grandes agricultores, os Paumari como habilidosos pescadores. Todos eram vistos em suas especificidades, mas enxergados dentro de uma ótica disciplinadora e homogeneizante, que buscava moldá-los ante as feições dos mundos do trabalho. As habilidades dos dóceis, nesse sentido, deveriam ser aproveitadas, e os comportamentos transgressores deveriam ser extirpados entre os indômitos. Todavia, a multiplicidade de posições e condutas indígenas extrapolava as idealizações para além do plano das intenções do engenheiro militar. Eles se relacionavam de maneira ativa com as possibilidades da zona de contato (Pratt, 1999) no Purus oitocentista, transitando, barganhando, apropriando-se ou mesmo burlando as imposições advindas com a frente de expansão. O relatório de Coutinho abre várias brechas analíticas e tópicos que contemplam importantes problemáticas das atividades indígenas em questão. Em sua passagem pelo sítio de Francisco José Rodrigues de Souza, por exemplo, foi detectado que os Mura abandonaram a dita exploração sem dar satisfações, prejudicando a coleta de salsa e quebrando os acordos feitos com Souza previamente. Na foz do Paraná-Pixuna, localidade onde terminavam as malocas mura, Coutinho avistou algumas construções de palha sem moradores, que serviam de base, segundo ele, para dar abrigo aos indígenas que se deslocavam continuamente. Ele salienta que alguns Mura tinham o hábito de fugir do trabalho após receberem o pagamento adiantado, desertando dos serviços contratados por donos de sítios, feitorias ou regatões, utilizando como refúgio as casas de palha provisórias espalhadas pela floresta. Em outra ocasião, com base num relato de H. Strauss (também membro da expedição), é alentado o caso do tuxaua Uauassú, que segundo Strauss não seguia o comportamento dos seus congêneres, caracterizados como vadios. Ao contrário de uma vida errante, Uauassú tinha o hábito da previdência, guardando “cuidadosamente” 830$000 réis em moedas de cobre, resultado de seus negócios e alianças com os exploradores e regatões na venda de “drogas do país”. Semelhante à referida liderança mura, o tuxaua Apucahan, liderança paumari, também empreendia seus negócios com os regatões, mas enganando-os diversas vezes. Ele adquiria preciosas fazendas e instrumentos de trabalho em troca de “tartarugas magras”, que não valiam quase nada, prejudicando os lucros dos comerciantes, que não conseguiam reaver suas mercadorias. O filho de Apucahan, um jovem de 25 anos contatado pela expedição na ocasião da ausência de seu pai (que estava doente e tinha ido buscar o auxílio de um pajé para tratar sua enfermidade) já conhecia em 1862 as cidades de Belém e Manaus (através de viagens nas quais acompanhara Manoel Urbano), apresentando-se aos membros da expedição “de calça e camisa de riscado fino e chapéu à moda, mostrando-se muito satisfeito” com a visita dos citadinos (Coutinho, 1862, p. 62). Pode-se observar através dessas referências que o relacionamento entre indígenas e não indígenas era bastante diversificado em suas facetas, o que nos permite evitar armadilhas reducionistas ou deterministas no âmbito das relações sociais em

geral, e das relações de trabalho em particular. Não é possível enxergar a dualidade das dimensões de conflito/aliança nesse cenário somente de modo simplista, pois estas apresentavam muitas nuances, gradações e especificidades na tessitura das experiências enredadas no cotidiano. Percebe-se, na leitura da fonte, que índios, regatões, donos de sítios, entre outros que habitavam o Purus não viviam de maneira compartimentada, isolados entre si, mas travando contatos, negociando e trocando experiências em ocasiões diversas. Cumpre destacar entre os sujeitos enumerados acima um grupo social que pode traduzir de maneira mais clara a perspectiva relacional ora esboçada. Os regatões eram pequenos mercadores que conheciam muitos dos meandrosos rios amazônicos e faziam comércio com base em trocas nos lugares mais longínquos (Goulart, 1968). Carregavam roupas, ferramentas, bebidas e alimentos em pequenas embarcações cobertas de palha, e seguiam pelas calhas de rios e igarapés empreendendo seus negócios, trocando suas mercadorias por produtos das matas, como tartarugas, castanha, salsa, copaíba, entre outros gêneros, que eram vendidos nos centros urbanos, como Manaus. Estes sujeitos atuavam nos subterrâneos do chamado sistema de aviamento, levando a cabo trocas entre mercadorias e drogas da floresta.5 Os regatões eram comerciantes de pequeno porte, muito distantes da escala grandiloquente dos grandes fregueses das casas aviadoras. Suas atividades não eram tão significativas do ponto de vista econômico se comparadas às dos donos de sítios e feitorias, principais reprodutores do aviamento (que arregimentavam trabalhadores, fornecendo-lhes mercadorias e, em tese, retirando seus lucros tanto da dívida destes quanto do comércio com a casa aviadora). Mesmo assim, não se pode deixar de salientar que seus negócios estavam envolvidos num dos braços da cadeia, instrumentalizando-a nos lugares mais distantes, reproduzindo o sistema através de seus contatos com os moradores do interior amazônico. Eles mercadejavam a retalho, vendendo ou trocando seus produtos em pequenas quantidades, e também auferindo seus lucros com base na exploração dos seus fregueses. No entanto, além da questão comercial, havia dimensões que extrapolavam o caráter eminentemente econômico de seu trabalho. Em suas longas viagens os regatões não carregavam somente produtos destinados ao comércio; também transportavam ideias e leituras de mundo, empreendendo trocas com seus interlocutores e fregueses num sentido plural, para além do econômico. Eles se relacionavam com pessoas que viviam nos altos cursos dos rios, incluindo vários habitantes indígenas, tecendo vínculos e improvisando estratégias de sobrevivência enredadas em suas práticas comerciais. Conheciam os lugarejos, os hábitos e os costumes de vários povos que estavam em seus percursos, o que facilitava o desencadeamento de seu trabalho. Recorrendo mais uma vez ao relato de Silva Coutinho, é interessante notar a relação dos regatões com os habitantes do Purus no século XIX. Em certas ocasiões, aproveitando-se dos conflitos entre alguns Mura e Paumari nas proximidades do ParanáPixuna, os comerciantes faziam uso da situação de contenda para conseguir indígenas dispostos a auxiliá-los em suas atividades. Alguns regatões tinham conhecimento sobre o cotidiano de relações entre os ditos povos, sabendo, no caso do Purus, que os Mura 5

O aviamento significava uma prática econômica baseada no endividamento ou crédito que mantinha a cadeia de produtores das “drogas do sertão amazônico”, “aviando-os”, ou seja, fornecendo-lhes alimentos, armas, roupas, entre outros gêneros, em troca dos produtos conseguidos na floresta. Esse sistema também estava atrelado ao transporte de trabalhadores para a floresta, a quem posteriormente eram cobrados os encargos da viagem, pagos em trabalho. Ver Weinstein (1993).

tinham o hábito de atacar as habitações paumari no fito de conseguirem ubás e utensílios de pesca. Assim, na interpretação da situação de conflito, ao chegarem à malocas paumari aproveitavam o temor que estes tinham do encontro com os Mura, e alardeavam a iminência de um confronto, divulgando que os inimigos estavam próximos. Muitos Paumari, receando o embate, seguiam os regatões, passando a servilos (Coutinho, 1862, p. 71). Portanto, tudo leva a crer que os regatões travavam contatos de muita proximidade com os indígenas, pois sem uma relação estreita com esses povos não seria possível fazer uma leitura tão acurada do seu campo de relações. Eles improvisavam, nesse sentido, estratégias para obter sucesso em seus negócios, que envolviam também seus conhecimentos das dinâmicas sociais dos habitantes do interior amazônico nos oitocentos. Ao perceber esse indicativo relacional é possível pensar a história do Purus oitocentista através de um viés mais amplo, contemplando os sujeitos históricos em sua pluralidade de origens e interesses, em suas dinâmicas de contato, experiências e estranhamentos. É fundamental levar em conta, no entendimento dessas relações, os vários sentidos, dimensões e desafios de alteridade enfrentados por todos esses sujeitos. O lugar do Outro deve ser analisado em sintonia com as redes de sociabilidades que lhes atribuía sentido, que compreendiam conflitos velados, mas também espaços de entendimento e de negociação. Havia a possibilidade de indígenas se apropriarem de facetas da cultura do Outro, ressignificando-as, como no caso do chefe mura Uauassú, que juntou uma pequena fortuna em seu trato comercial com os regatões e donos de sítios do Purus, fortalecendo as relações de seu povo com os não indígenas. Ou mesmo como fez o principal paumari Apucahan, que conhecendo as estratégias dos regatões (que muitas vezes trocavam mercadorias de valor ínfimo por outras valorizadas, obtendo imenso lucro), fornecia tartarugas magras em troca de mercadorias caras, deixando o comerciante prejudicado. Os regatões, por sua vez, ao entenderem algumas das relações sociais indígenas, como no caso ilustrativo dos conflitos entre os Mura e os Paumari no Paraná-Pixuna, aplicavam também suas estratégias, fazendo uma releitura da situação e convertendo-a aos seus interesses. Havia, portanto, incrustada nos vários desafios de alteridade, uma substantiva interlocução entre mundos, embutida numa apropriação social de experiências de contato acionadas pelos sujeitos históricos em suas lutas diárias. Diante da complexidade desse cenário, não é viável reduzir ou engessar a vivência dessas pessoas numa análise que defina uma estrutura de relações-modelo, buscando adequar o processo histórico a um molde teórico pré-concebido. Assim, ressaltando a perspectiva multifatorial e plurirrelacional do processo histórico em questão, outro ponto de destaque, ainda tendo como fonte o relato de Silva Coutinho, diz respeito à presença de “brancos” morando no Purus. Em algumas malocas foram vistos sujeitos não índios que seguiam os costumes e trabalhavam de acordo com os preceitos locais. Estes não eram arrolados como regatões ou donos de feitorias, mas como moradores de terras indígenas. Tais referências colocam em questão uma ótica eminentemente homogeneizadora que tenta explicar a frente extrativista do século XIX somente a partir de um viés de desagregação cultural, da qual os indígenas sempre teriam sido vítimas, tendo seu modo de vida destruído quando em contato com a cultura dos “brancos”. Com isso, não é nossa intenção silenciar a gravidade dos conflitos, que existiram de modo bastante significativo entre não indígenas e indígenas, e também entre os próprios índios em sua multiplicidade. Entretanto, é essencial enxergar as

dinâmicas de contato de maneira plural, entendendo sua complexidade, composta por relações que também estavam situadas para além das situações de conflito. Tendo em conta ainda a narrativa de Silva Coutinho, é possível entrever interlocuções de vários níveis entre os sujeitos, como, por exemplo, quando a expedição provincial desembarcou no lugar Campina, que correspondia à sétima maloca mura, local onde existiam apenas cinco edificações de palha. Embora fossem poucos os moradores do lugarejo, foi empreendido ali o trabalho de coleta de lenha para dar continuidade à viagem pelo rio. Nessa ocasião Coutinho detectou que entre os índios vivia um homem de Silves que já morava há muitos anos entre os Mura, estando “completamente amoldado ao sistema deles” (Coutinho, 1862, p. 66). O dito habitante vivia seguindo preceitos indígenas, convivendo e apreendendo seus códigos. Em outra ocasião, quando os membros da expedição chegaram nas proximidades da foz do rio Mary, onde mais uma vez foi preciso coletar lenha, encontraram, subindo o dito afluente do Purus, malocas dos Catauixi, que foram empregados no corte das madeiras. Para surpresa de todos, entre os Catauixi estava morando havia mais de três anos um homem chamado Daniel, sujeito que no passado participara de uma incursão de Urbano entre esses indígenas. Daniel, segundo Coutinho, ao invés de tentar “aprimorar” a cultura indígena, de modo a aproximá-la da civilização, pouco ou nada fez para “melhorar” os costumes dos Catauixi. Em outras palavras, ao invés de trabalhar para transformar os hábitos tidos como “desregrados” e “inadequados” dos indígenas, o habitante “branco” estava seguindo os costumes dos membros das malocas, causando muita estranheza entre Coutinho e companhia. Nesse sentido, seguir os hábitos indígenas, na interpretação oficial e dos expedicionários de 1862, não significava somente uma depreciação do ponto de vista cultural ou uma regressão dos hábitos civilizados, mas também uma transgressão perante os desafios dos mundos do trabalho. Não era aceito, ou mesmo tratado como legítimo, o comportamento de pessoas que não buscassem incrementar o desenvolvimento das explorações do território, tarefa que também incluía o dever de tornar a população indígena apta ao trabalho em bases disciplinadas. Era preciso incorporá-los como mão de obra, como serviçais do sistema de aviamento e consumidores dos produtos dos regatões, aceitando a lógica de relações oriunda do contato com os adventícios. Os indígenas, em contrapartida, não foram passivos diante desses apelos, apreendendo-os de acordo com seus interesses, e os “brancos”, por sua vez, ao contrário do que se desejava como um comportamento “padrão”, não foram em todo seu contingente pontas de lança do ideal civilizatório pelo Purus. Ao contrário, muitos dos “brancos” que se dirigiram ao interior foram indianizados, apreendendo aspectos da vivência dos povos que habitavam os rios e matas amazônicos. Esse aspecto torna-se ainda mais digno de nota quando é cruzado ao contexto do Amazonas nas décadas de 1860 e 1870, quando havia um crescente fluxo migratório para os altos rios, principalmente Purus, Juruá e Madeira. Homens e mulheres advindos em sua maioria de Províncias como Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte empreendiam uma longa travessia rumo ao território amazônico em busca de alternativas de sobrevivência. Muitos desses migrantes já possuíam vínculos de solidariedade e de parentesco nessa região no território amazônico e, na segunda metade do século XIX, com o aumento do fluxo migratório e a expansão rumo aos rios pouco conhecidos, houve um incremento da circulação de informações que ajudou a atribuir

sentido à possibilidade do deslocamento, compondo expectativas que alimentavam os anseios e as possibilidades de mais travessias.6 O apelo estava nas promessas de riqueza e de vida farta, que apresentavam o Amazonas como um mundo de opulência regado por imensos rios e florestas sem fim, onde não havia lugar para dificuldades, como pode se constatar dos primeiros relatórios dos Presidentes da Província dos anos 1850.7 Essas representações eram transmitidas através da imprensa, dos relatos oficiais e de cartas pelos viajantes e homens de Estado que visitavam o Amazonas, mas não somente através desses vetores. Com a abertura da navegação da bacia amazônica em 1853, houve também um aumento significativo da circulação de pessoas de outros locais do Império, que adentravam a calha do grande rio trocando informações. Tudo levar a crer que de “boca em boca” iam reproduzindo e construindo representações fora do universo letrado, e ao mesmo tempo em diálogo com este.8 Alguns dos exploradores do rio Purus já nos idos de 1862 eram cearenses, como João Gabriel de Carvalho e Mello, que foi localizado por Coutinho na foz do lago Jacaré explorando salsa, cacau e seringa. Este sujeito, após se estabelecer no Amazonas, retornou repetidas vezes ao Ceará para buscar seus familiares, que o seguiam rumo ao Purus (Bulcão, 1932). A maioria desses trabalhadores migrantes era submetida ao sistema de aviamento, vivenciando um significativo choque em seus referenciais de trabalho e subsistência, muito diferentes daqueles estabelecidos em seus locais de origem.9 Essas pessoas entravam em contato com a dinâmica das relações de trabalho na floresta, que não contemplava somente os vínculos patronais, pois passavam a dividir espaço com indígenas e regatões, entre outros. Nessas ocasiões é que entravam em contato, à semelhança dos outros casos já analisados, com as questões da alteridade, do entendimento do mundo do Outro e das interlocuções entre culturas. Diante desse processo, muitos migrantes não entravam em acordo com o projeto ideal dos mundos do trabalho, pois ao se depararem com os novos desafios de alteridade, não se comportavam em todo o seu contingente como o esperado, passando por isso a serem alvo de reclamações. O próprio João Gabriel teve problemas ao trazer seus patrícios para o Amazonas, pois alguns homens de sua comitiva desertaram, fugindo ao chegarem a Manaus e tendo destino ignorado. Esta ocasião pode ser observada por meio da “denúncia” feita pelo Correio de Manáos de 11 de outubro 1869,

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Essa argumentação coloca em questão a ideia fatalista e determinista que apregoa uma perspectiva migratória em consonância somente com as secas que atingiam as referidas Províncias periodicamente, colocando em jogo outras variáveis e fatores. Para maiores informações, ver Cardoso (2011). 7 Por exemplo, Aranha (1852): “Nesta província onde o portentoso Amazonas, com seus braços dilatados e infinitos, abrange uma superfície de 80 mil braças quadradas, há, além de rios caudalosos, os imensos lagos e canais, cujas margens e praias extensíssimas guarnecem ilhas, terras baixas e montanhosas, e altas serranias, sobre as quais se acham densas matas e campinas férteis cheias e produções as mais excellentes. Se nos rios e lagos, nas praias e nas margens há peixes e tartarugas de grande vulto e de sabor especial, em quantidade tal, que dão para o sustento de centenas de milhares de famílias íncolas; nas terras toda sorte de madeiras e produções tão variadas e espontâneas, que podem dar o necessário para os usos e gozos da vida a milhões de habitantes”. 8 Semelhante ao registrado por Carlo Ginzburg (1987), que articulou a categoria da “circularidade cultural” para o contexto da Inquisição no início da Era Moderna, cuja base está na ideia da circulação e troca/apropriações de conhecimentos entre o mundo letrado e o iletrado. 9 Onde havia uma forte ligação com a agricultura e estreitos vínculos com a pecuária, tudo isso ligado à lógica secular de exploração do trabalho em grandes propriedades de terra. Ver Girão (2000).

que publicou uma carta de João Gabriel em retaliação aos fugitivos.10 Ainda falando do âmbito de tais reclamações, nos jornais, especialmente, publicizava-se notícias sobre os deslocamentos de pessoas para o interior, particularmente sobre os que se dirigiam ao Purus, qualificando-os como atores de um “teatro de atrocidades”. O Estrella do Amazonas, por exemplo, alertava em 26 de junho de 1858 sobre a imensidade de pessoas que todos os anos ali [no Purus] se reúne em número de quase mil, vinda de diferentes pontos, para extração de castanha, estopa, óleo, salsa, faturação de manteiga e peixe, proporcionando ao mal toda a sorte de distúrbios contra a propriedade e a segurança do cidadão pacífico e laborioso”.11 Os periódicos, portanto, podem ser analisados como uma tipologia de fonte que permite uma visão mais ampla sobre as expectativas e temores dos que acompanhavam o avanço de outras dimensões da frente extrativista a partir de Manaus. Facetas estas que não estavam ligadas ao tão apregoado ideal civilizatório, colocando-o, inclusive, em dúvida, questionando suas bases e não entrando em acordo com seus projetos. Havia nas páginas dos jornais, nesse sentido, muitos anúncios e relatos de fugas e deserções de pessoas que se dirigiam para os altos rios, como no caso da “crioula de nome Joaquina, escrava de Antônio José Lopes Braga”, que fugira da casa de seu senhor pelas oito horas da noite em 21 de setembro de 1855, acompanhando um “índio de nome José Maria” e tomando destino ignorado pela floresta.12 Certamente, o Purus era o destino de muitos desses fugitivos, que em seus atos de deserção e desacordo com o status quo, como nos casos da escrava Joaquina ou dos desertores da comitiva de João Gabriel, não figuravam como trabalhadores ideais, colocando em risco, na visão de muitos, a segurança geral e a propriedade. A sociedade representada nas páginas dos jornais questionava os caminhos desses acontecimentos, cobrando uma intervenção sobre os deslocamentos dos sujeitos que ameaçavam os “bons costumes”, classificando-os, em algumas ocasiões, como nômades/desertores/fugitivos próximos dos “indesejáveis” hábitos indígenas. De maneira ligeiramente diversa aos jornais supracitados, podem ser apontados os comentários do maranhense Antônio Rodrigues Pereira Labre, fundador de uma povoação no Purus que tornou-se o que hoje é o município de Lábrea. Em 1872 foi publicado um pequeno estudo de sua autoria, intitulado Rio Purus, onde ele discorre sobre a geografia da bacia, apresentando uma relação das localidades e dos hábitos de vários povos indígenas, contemplando ainda a situação dos trabalhadores na floresta. Labre faz uma forte crítica ao extrativismo e às formas de exploração relacionadas a suas atividades, descrevendo as condições miseráveis e extenuantes de existência na labuta extrativa. No entanto, mesmo diante do tom grave de sua escrita, que condena as péssimas condições de trabalho, ele não deixa de salientar que o maior problema era a apreensão de hábitos de vida nômade por parte dos trabalhadores “brancos”, que possuíam assim “tendências bem pronunciadas para o estado selvagem” (Labre, 1872, p. 10

Universidade Federal do Amazonas – Laboratório de História da Imprensa do Amazonas, Correio de Manáos, 11 de outubro de 1869, n. 11, p. 03. rolo: jornais diversos 1867-1898. 11 Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), setor de periódicos e microfilmes. Estrella do Amazonas, 26 de junho de 1858. (sem número de rolo) 12 IGHA, setor de periódicos e microfilmes. Estrella do Amazonas, 13 de outubro de 1855. (sem numeração de rolo)

45). Labre aproximava, desse modo, os trabalhadores migrantes dos hábitos atribuídos aos povos indígenas, considerados muitas vezes indolentes e indômitos, muito distantes do padrão projetado na frente de expansão e seus ideais civilizatórios. Mais uma vez, após analisar tais testemunhos de época, é possível apontar que a sociedade amazônica dos meados do século XIX reconhecia a existência de outros projetos e leituras de mundo, que colocavam na berlinda seus próprios anseios e ideais hegemônicos. Essa era uma preocupação que já existia séculos antes, como no período colonial, momento em que transcorria uma forte intenção de lusitanização do território, que buscava impor a cultura dos colonizadores portugueses ao modo de vida indígena, tentando forçar o uso da língua portuguesa (proibindo o uso da “língua geral”), nomeando as vilas e demais localidades somente com nomes portugueses. Medidas como essa só podem ser entendidas se as percebemos a contrapelo, pois escondida nessas atitudes havia uma luta em torno da atribuição de sentidos ao território, e o reconhecimento por parte do Estado de que havia outros projetos e posicionamentos que ameaçavam a ordem desejada. Para o século XIX, nesse sentido, é possível afirmar que povos indígenas, regatões, migrantes, escravos fugidos, trabalhadores pobres livres, desertores e fugitivos, mesmo em sua heterogeneidade, se entrecruzaram nos meandros da história do rio Purus. Os desafios de alteridade e as composições de novas territorialidades estavam na ordem do dia, acompanhando o avanço vertiginoso das frentes extrativistas que penetravam pela bacia dos altos rios amazônicos. As experiências dessas pessoas serpenteavam e se articulavam entre si como os multicoloridos rios amazônicos. Apreendiam códigos, vivenciavam rusgas e alianças e negociavam sua sobrevivência diante de um cotidiano de disputas e alianças complexas. Eram sujeitos da História.

LOCAIS DE GUARDA DAS FONTES Arquivo Público do Amazonas. Livros da Diretoria de Índios. Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas – IGHA (Manaus): Setor de periódicos e microfilmes. Universidade Federal do Amazonas – Laboratório de História da Imprensa do Amazonas

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANHA, João Baptista de Figueiredo Tenreiro. Relatório de Presidente de Província do Amazonas, 1852. Disponível em: Acesso em: 14 jun. 2012. BULCÃO, Soares. O Comendador João Gabriel. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico e Antropológico do Ceará. Fortaleza: [s.n], 1932.

CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio. Nem sina, Nem acaso: a tessitura das migrações entre a Província do Ceará e o território amazônico. (1847-1877). Fortaleza, Dissertação de Mestrado em História Social, 2011. COUTINHO, João Martins da Silva. Relatório da Expedição do Rio Purús apresentado pelo Engenheiro João Martins da Silva Coutinho, 1862. GINZBURG, Calo. O queijo e os vermes: cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. GIRÃO, Raimundo. História Econômica do Ceará. Fortaleza. Casa de José de Alencar, 2000. GOULART, José Alípio. O Regatão (mascate fluvial da Amazônia). Rio de Janeiro: Secretária de Cultura do Acre, 1968. LABRE, Antonio Rodrigues Pereira. Rio Purus. Maranhão: Typ. do Paiz Imp. M. F. V. Pires, 1872. MACHADO, Maria Helena P. T. Brasil a vapor: raça, ciência e viagem no século XIX. Tese apresentada para o concurso de Livre Docência – USP, São Paulo, 2005. PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999. WEINSTEIN, Bárbara. A borracha na Amazônia: expansão e decadência, 1850-1920. São Paulo: HUCITEC; Editora da Universidade de São Paulo, 1993. WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007.

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