Nossa América: a utopia de um novo mundo

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EUGÊNIO REZENDE DE CARVALHO

NOSSA AMÉRICA A UTOPIA DE UM NOVO MUNDO

NOSSA AMÉRICA A utopia de um Novo Mundo

EUGÊNIO REZENDE DE CARVALHO

NOSSA AMÉRICA A utopia de um Novo Mundo

São Paulo 2014

Copyright © 2014 Eugênio Rezende de Carvalho [email protected] Diretos Reservados para esta edição: do autor. Editora e Livraria Anita Garibaldi Ltda. Endereço: Rua Amaral Gurgel, 447 – conjunto 31 – Vila Buarque CEP 01221-001 – São Paulo/SP – Brasil Fone/Fax: (11) 3129.3438 E-mail: [email protected] http://www.anitagaribaldi.com.br/ Conselho Editorial: Adalberto Monteiro, Augusto Buonicore, Fábio Palácio e José Carlos Ruy Ilustração da capa Gerardo Gómez, 2011 Editoração Eletrônica da Capa Editora Kiron Produção Digital Editora Kiron (61) 3563.5048 - www.editorakiron.com.br

C3311n Carvalho, Eugênio Rezende de Nossa américa: a utopia de um novo mundo; Eugênio Rezende de Carvalho. São Paulo: Editora Anita Garibaldi / Fundação Maurício Grabois, 2014. 121 p. : 21 cm ISBN 978-85-8113-275-4 1. Ciência Política. 2. Sociografia. 3.América Latina. 4. José Martí. CDU 308 (8)

Este livro recebeu o apoio da Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação da Universidade Federal de Goiás – UFG

À minha querida Sávia Diniz.

¡Porque ya suena el himno unánime; la generación actual lleva a cuestas, por el camino abonado por los padres sublimes, la América trabajadora; del Bravo a Magallanes, sentado en el lomo del cóndor, regó el Gran Semí, por las naciones románticas del continente y por las islas dolorosas del mar, la semilla de la América nueva! José Martí

Sumário Apresentação................................................................... 8 Nota Biográfica.............................................................. 11 Prefácio.......................................................................... 14 Introdução...................................................................... 18 Capítulo I - O diagnóstico.............................................. 24 Os tigres externos.................................................................. 26 Diferença de origens, métodos e interesses entre os dois fatores continentais.................................. 26 A ameaça externa e a ideologia expansionista........... 32 Os tigres internos................................................................... 38 O espírito aldeão............................................................... 38 A herança da fragmentação........................................... 41 A falta de raízes................................................................ 43 A importação excessiva de ideias e fórmulas alheias............................................................ 45 Os letrados artificiais....................................................... 49

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Capítulo II - A proposta.................................................. 55 Revelação, sacudimento e fundação.................................. 55 A nossa América.................................................................... 59 O orgulho de ser americano................................................. 63 A biblioteca alternativa......................................................... 67 O exercício ordenador............................................................ 72 A modernidade martiana..................................................... 78

Capítulo III - O sujeito.................................................... 85 O contato com o elemento autóctone americano............ 85 Os sujeitos preteridos............................................................ 88 A matéria excluída................................................................. 92 O homem natural................................................................... 95 O sujeito mediado................................................................101

Considerações finais...................................................105 Referências bibliográficas..........................................108 Sobre o autor................................................................121

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Apresentação

U

ma lenda dos antigos índios tamanacos, da região da atual Venezuela, evoca a figura mítica de Amalivaca, considerado por eles o Gran Semí ou o Grande Espírito. Segundo a narrativa, um dilúvio teria destruído a primeira raça humana e os dois únicos sobreviventes, Amalivaca e sua mulher, começaram a lançar por suas cabeças os frutos da palma moriche, de cujas sementes teriam surgido os novos povoadores da terra. A reiterada apropriação e ressignificação simbólica e metafórica desse mito do Gran Semí por um dos mais eminentes intelectuais hispano-americanos do século XIX, o escritor e líder político cubano José Julián Martí y Pérez (1853-1895), é ilustrativa de seu profundo sentimento americanista. No texto que serve de epígrafe a este livro, Martí afirma, em tom prescritivo, que o Gran Semí, sentado sobre o lombo do condor – ave símbolo dos Andes –, teria lançado pelo continente e pelas ilhas americanas, a semente1 de uma 1  Martí fez referência à palma moriche em um verso de um de seus poemas, publicado no livro Versos Sencillos (1891), que foi eternizado por meio de uma famosa canção do artista cubano Pablo Milanés: “Yo soy un hombre sincero / de donde

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Nossa América: a utopia de um Novo Mundo

Nova América. Eis aqui a expressão do esforço utópico desse pensador cubano por atribuir uma identidade à América. Tal representação revela a junção de um conteúdo telúrico e autóctone à ideia de uma força supra-humana universal, que determinaria um referencial de valores que deveriam guiar a conduta do novo homem americano. Assim, com tais imagens, Martí expressava seus propósitos semeadores de uma nova América, de uma nova humanidade, com a qual sonhou e pela qual lutou, sacrificando a sua própria vida. É precisamente dessa ideia utópica martiana de edificação de um Novo Mundo, sintetizado em seu conceito de Nossa América, que trata o presente livro. A escrita deste texto foi concluída originalmente em 1996, ainda no calor dos debates acadêmico-intelectuais remanescentes em torno das celebrações da efeméride dos 500 anos da conquista europeia da América. Um momento em que, sobretudo nos meios acadêmicos latino-americanos, reacendiam as discussões sobre os temas, desafios e problemas relacionados com a unidade, integração e identidade cultural da América Latina. O presente texto é, fundamentalmente, fruto desse ambiente acadêmico e intelectual em que me encontrava inserido2. Com o esgotamento da primeira edição impressa de Nossa América: a utopia de um novo mundo (São Paulo: Anita crece la palma / y antes de morirme quiero / echar mis versos del alma.” [Eu sou um homem sincero / De onde cresce a palma / E antes de morrer quero / Lançar meus versos da alma.]

2  Este texto é uma versão adaptada para livro de minha dissertação de mestrado, defendida em 1996 junto ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Goiás. Mais tarde, a continuidade e o aprofundamento dessa pesquisa sobre o americanismo martiano, em nível de doutorado – tese defendida em 2000 na Universidade de Brasília –, resultaram na publicação do livro América para a humanidade: o americanismo universalista de José Martí (Goiânia: Editora UFG, 2003), que foi traduzido ao espanhol e publicado no México (UNAM/ CIALC/FMG) em 2012.

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Eugênio Rezende de Carvalho

Garibaldi, 2001) – o primeiro estudo publicado em português, no Brasil, sobre José Martí –, surgiu então a ideia, ora concretizada, de se lançar uma segunda edição em formato digital, de forma a garantir maiores possibilidades e facilidades de acesso à obra. Reitero aqui meus agradecimentos, já assinalados na primeira edição impressa desse livro, a todos aqueles que contribuíram direta ou indiretamente com a publicação daquela obra e com a pesquisa da qual ela foi resultado, registrando ainda minha profunda gratidão à Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação da Universidade Federal de Goiás, pelo apoio concedido à publicação desta edição digital. Por fim, é com grande satisfação que oferecemos aos leitores essa breve introdução às ideias desse grande utopista do século XIX latino-americano – que preservam ainda, após mais de um século da sua morte, uma notável atualidade e vigência. Esperamos que este livro possa contribuir para semear novos interesses, reflexões e debates sobre o sentido e o legado das ideias martianas para a Nossa América do século XXI. Eugênio R. de Carvalho Goiânia, fevereiro de 2014.

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Nota Biográfica José Julián Martí y Pérez (1853-1895)

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m 1853, nascia na cidade de Havana, Cuba, José Julián Martí y Pérez, num momento em que essa ilha era, junto com Porto Rico, a última colônia espanhola na América. Marcado por um profundo sentimento nacionalista e anticolonialista, o adolescente Martí já escrevia seus primeiros versos. Durante a guerra cubana contra a Espanha (18681878), em 1869, com apenas 16 anos, foi detido por sua propaganda independentista e condenado a seis anos de prisão, sendo deportado, em 1871, para a Espanha, onde viveu de 1871 a 1874. Enquanto ganhava a vida dando aulas, Martí estudou, ainda que irregularmente, o restante de seu colegial, Direito, Filosofia e Letras nas universidades de Madri e Saragoça. Em fins de 1874, conhece de passagem a França e viaja para o México. Entre 1875 e 1881, viveu no México, na Guatemala e na Venezuela – onde teve um contato profundo com as raízes autóctones americanas –, com ocasionais 11

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estadas na Espanha, para onde foi deportado novamente por conspiração (1879), em Nova York (1880) e mesmo em Cuba. Uma vez fixado em Nova York, a partir de 1881, graças à sua colaboração em jornais de língua espanhola, cresce sua fama pela América espanhola: ao final dos anos oitenta, mais de vinte jornais do continente (entre os quais, La Nación, de Buenos Aires, El Partido Liberal, do México, La Opinión Nacional, de Caracas, La Opinión Pública, de Montevidéu) divulgavam seus trabalhos. Embora seja mais conhecido pelas suas colaborações jornalísticas, publicou também uma vasta obra poética, além de inúmeras traduções. Em 1887, foi designado cônsul do Uruguai em Nova York. Em 1888, foi nomeado representante da Associação de Imprensa de Buenos Aires, nos Estados Unidos e Canadá. Participou em 18891891 das duas Conferências Interamericanas de Washington – na última como representante do governo do Uruguai –, nas quais denunciou veementemente a política expansionista dos Estados Unidos sobre o continente americano. Em fins de 1890, Martí foi também eleito cônsul em Nova York da Argentina e do Paraguai, além de presidente da Sociedade Literária Hispano-Americana. Nos anos noventa, favorecido pelo amadurecimento das condições internas em Cuba, Martí se dedicou inteiramente à tarefa revolucionária, buscando aglutinar e organizar forças pela independência – quando então funda o Partido Revolucionário Cubano. Nesses anos, intensificam-se suas viagens e contatos visando à libertação de sua Cuba: Haiti, Jamaica, Flórida e a costa Atlântica dos Estados Unidos, São Domingos, Costa Rica e México. Juntamente com os generais Máximo Gomez e Antonio Maceo – ex-participantes da Guerra de 1868-1878 – prepara a luta de independência e desembarcam em Cuba em 1895. Já em plena guerra, no dia 12

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19 de maio daquele ano, Martí foi surpreendido e caiu morto por uma coluna espanhola, aos 42 anos de idade. Em sua curta e agitada vida, Martí conseguiu produzir uma vasta obra, infelizmente pouco conhecida no Brasil, de marcado conteúdo americanista, que o transformou, indubitavelmente, numa das figuras mais proeminentes do pensamento latino-americano de fins do século XIX.

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Prefácio Maria Ligia Coelho Prado Universidade de São Paulo

É

com prazer que vejo a publicação deste livro sobre o pensamento do grande poeta e revolucionário cubano, José Martí. O autor, Eugênio Rezende de Carvalho, tem se dedicado, nos últimos anos, ao estudo da obra martiana. Assim, demonstrando familiaridade com seu objeto de estudo, oferece ao leitor interessante análise com uma visão abrangente e, ao mesmo tempo, refinada, das ideias desse escritor cubano. Muito já se repetiu que o Brasil está de costas para a América Latina e com os olhos postos na Europa – e, mais recentemente, nos Estados Unidos. Talvez isso explique o generalizado desconhecimento dos trabalhos de José Martí em nosso país, ainda que esse autor seja uma das grandes figuras das letras latino-americanas contemporâneas. Há mais de um século, em 1891, já afirmava Martí que “a universidade europeia deve dar lugar à universidade americana; a história da América, dos incas ao presente, deve ser ensinada minuciosamente, mesmo que não se ensine a dos arcontes da Grécia. 14

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A nossa Grécia é preferível à Grécia que não é nossa. A nós é mais necessária”. Entretanto, passado tanto tempo, continuamos a esperar que essa “nossa Grécia” seja valorizada e ensinada aos nossos alunos desde o ensino médio. Segundo Martí, se faz fundamental olhar para dentro de nossas sociedades, com suas qualidades e seus problemas, e sentir orgulho dessas “nossas doloridas repúblicas”. Aos políticos caberia, antes de tudo, “conhecer o país e governá-lo conforme tal conhecimento”. Esse seria “o único modo de livrá-lo de tiranias”. A leitura de Martí é sedutora. Seus textos políticos comovem e persuadem, sua poesia encanta. A história de sua vida, de seu total compromisso e dedicação à causa da independência cubana faz com que suas palavras ganhem um significado profundo e traduzam sua coragem e coerência. Suas ações e decisões políticas corresponderam às ideias que defendia em seus escritos. O caminho escolhido levou-o à morte em combate pela independência. Filho de pais espanhóis imigrados, aos 17 anos, Martí já vivia no exílio, na Espanha, por ter participado da primeira guerra pela independência cubana (1868-1878). Voltou à América, vivendo no México, na Guatemala, na Venezuela e nos Estados Unidos, onde residiu por mais tempo. Assim, teve uma experiência de vida mais universal que lhe permitiu olhar para sua pequena ilha de forma absolutamente inovadora. Dizia: “enxerte-se em nossas repúblicas o mundo; mas o tronco terá que ser o de nossas repúblicas”. Na América Latina do fim do século XIX, em que as interpretações racialistas para explicar o “atraso” do continente eram hegemônicas, Martí ousava afirmar que “não existem raças: existem apenas diversas modificações do homem, em detalhes de hábitos e de formas, que não lhes mudam o idên15

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tico e essencial, de acordo com as condições de clima e de história em que vivam”. Seria preciso aceitar nossas nações tais como são, com seus pobres, seus índios, seus negros e seus mestiços. Nunca foi socialista, mas sentiu-se identificado com “los pobres de la tierra”, injustiçados e oprimidos. Para ele, o encontro original “de gentes tão diversas” é a base de uma cultura latino-americana rica e criadora, dispensando os anseios equivocados, das elites, de imitar e de copiar. Martí, como herói nacional, incendiou com seu exemplo gerações de cubanos, entre as quais a de Fidel Castro. Suas ideias e suas propostas fizeram dele o maior símbolo da resistência ao poder de intervenção dos Estados Unidos na ilha e na América Latina. Sua frase mais conhecida talvez seja: “Vivi no monstro [os Estados Unidos] e conheço as suas entranhas: e minha funda é a de Davi”. Este livro de Eugenio de Carvalho é uma homenagem à riqueza da obra de Martí, fugindo das armadilhas de uma leitura simplificadora de seus textos. A divisão dos capítulos do livro foi muito bem idealizada. No primeiro, o diagnóstico, analisa, apropriando-se das lindas metáforas do próprio Martí – los tigres de adentro e los tigres de afuera –, suas explicações para os problemas de nossa formação histórica e cultural. No segundo, a proposta, indica temas centrais, como o da modernidade e o dos significados da Nuestra América. No terceiro, o sujeito, trabalha o tema das identidades latino-americanas e desenvolve a questão da visão martiana do homem natural. O leitor, assim, poderá acompanhar as premissas básicas do pensamento do poeta cubano, num texto que flui agradavelmente e que apresenta uma linguagem densa, porém acessível. Finalmente, cabe lembrar a atualidade deste livro, pois as questões aqui discutidas são absolutamente contemporâneas. Neste começo do século XXI, em que o poder dos Esta16

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dos Unidos é maior do que nunca e sua expansão permanece ameaçadora, podendo reduzir a América Latina a mera peça de auxílio de uma enorme engrenagem, é fundamental entrar em contato com o sempre inspirador poeta da utopia. Nada melhor, para uma bela introdução às suas ideias, do que este estimulante texto do historiador Eugênio de Carvalho.

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Introdução

C

om o presente trabalho, propusemo-nos a identificar e analisar os traços básicos do conteúdo americanista presente na obra de um dos mais eminentes intelectuais hispano -americanos do século XIX, o escritor e líder político cubano José Julián Martí y Pérez (1853-1895). Um de nossos propósitos básicos é demonstrar como o discurso martiano pela transformação da sociedade americana de sua época incorporou uma essência eminentemente utópica, forma privilegiada pela qual expressou sua visão geral da América. Trata-se de uma perspectiva que, longe de estar inserida no reino do fantástico, do sonho impossível, irrealizável, ao contrário, encontra-se assentada em bases bastante reais e dotada de um elevado sentido crítico, o que transforma o estudo de sua extensa obra num meio fértil de aproximação do rico debate de ideias que marcou a conjuntura intelectual americana de fins do século XIX. Tal essência utópica terminou por constituirse na forma singular de expressão do seu projeto de identidade continental, consubstanciado em sua ideia da Nossa América. Nesse sentido, o projeto utópico de José Martí apresenta uma estrutura que se aproxima do gênero utópico dis18

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cursivo característico das obras de inúmeros membros da intelectualidade hispano-americana do século XIX, conforme bem observou Horácio Cerutti-Guldberg (1991, p. 67). Tais seriam, segundo Cerutti-Guldberg, as linhas gerais que compõem a estrutura desse gênero utópico: 1) caracteriza-se por ser obra de um autor individual, integrante da intelligentzia da sociedade; 2) a proposta tem um forte apelo moral de regeneração social: trata-se de moralizar uma sociedade corrompida, enferma, exibindo suas lacras e mostrando-a em contraste no espelho de uma sociedade alternativa desejável; 3) dois grandes momentos integram essa estrutura: o da crítica e o da proposta; 4) o momento da crítica constitui o diagnóstico de uma situação social dada; 5) o momento da proposta, a apresentação da sociedade alternativa: inclui a postulação do fim desejado e a explicitação dos meios que devem implantar-se para alcançar tal fim; 6) verifica-se, ainda, a postulação de um determinado sujeito social encarregado de realizar a grande tarefa. Geralmente, esse sujeito é evocado em detrimento de outros sujeitos considerados incapazes de lográ-lo (Cerutti-Guldberg, 1991, p. 67-68). Esse gênero utópico aponta assim na direção de uma realidade social desejável, necessária; todavia, inexistente. Anuncia um programa de transformações, um modelo do que se quer ser, obviamente bastante distinto do que se é, indicando os caminhos possíveis para consegui-lo. Busca apresentar um diagnóstico dos problemas, abrindo um campo de crítica sobre a realidade social vivida. E, por fim, elege um sujeito social considerado capaz de levar a cabo a tarefa, visando a atingir o fim desejado. Indiscutivelmente, no entanto, o projeto utópico martiano – embora compartilhe dessa mesma estrutura formal –, diverge em vários aspectos dos projetos utópicos de parte 19

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considerável da intelectualidade hispano-americana de sua época; diferenças essas evidenciadas sobretudo no plano de seus conteúdos – diagnóstico, proposta e sujeito. Entre essa intelectualidade predominava a prática de uma retórica modernizadora, de tendência eurocêntrica, que buscava representar o ser americano sob a ótica da dicotomia civilização e barbárie3. Buscando denunciar o caráter universal dessa perspectiva, Martí apontou, embora não isoladamente mas com uma abordagem peculiar, para a necessidade de sua própria superação. Sua originalidade repousa no esforço de definição de um campo de identidade idealizado em seu conceito de Nossa América – a sociedade alternativa, o ou topos americano –, a partir de uma via cultural e, num sentido mais amplo, espiritualista – quando fala, por exemplo, de um novo espírito americano ou de uma alma americana. Isso lhe permitiu reconhecer e contrastar distintos sujeitos, modos de vida e valores culturais entre as representações em pugna, bem como definir a especificidade do ser americano, o homem natural autóctone, a quem buscou mediar e representar por meio de seu discurso. A forma deste livro coincide, assim, com os três momentos básicos em que se divide a estrutura do projeto utópico martiano. No primeiro capítulo, abordamos o momento da crítica, do diagnóstico dos males e perigos dos quais padecia a América de Martí. É o momento da análise das causas atribuídas ao caos americano. No segundo capítulo, desenvolvemos o momento da proposta, da descrição da sociedade alternativa desejável, bem como dos meios para se alcançar 3  O principal representante dessa tendência foi, indubitavelmente, aquele que propiciou maior divulgação de tal dicotomia no âmbito americano: o escritor e político argentino Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), por meio de seu livro Facundo: civilização e barbárie nos pampas argentinos, escrito durante seu exílio no Chile, em 1845

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esse fim. É o momento da apresentação e da delimitação do campo de identidade condensado no conceito Nossa América. É o momento da profissão de fé por uma nova sociedade, por um novo futuro para as “dolorosas repúblicas” americanas. E, por fim, no terceiro capítulo, apresentamos, segundo o projeto martiano, o sujeito social – o homem natural – evocado para realizar essa grande tarefa. Esclarecemos que este pequeno livro não se constitui num estudo com características de biografia nem cronologia, ou mesmo de classificação ou busca de filiação do pensamento de Martí – o que nos parece uma espécie de obsessão de vários historiadores e cientistas sociais que trabalham esse tema. Propomo-nos a uma mera análise de um discurso reflexivo acerca da realidade hispano-americana de fins do século XIX, discurso esse que chama a atenção, como já dissemos, por manter certos níveis de independência em relação ao pensamento predominante na época, lançando inclusive as bases para sua superação. Instrumentalizamos tal análise a partir principalmente do conceito de utopia, por entender que a dimensão utópica tem uma grande capacidade de abrigar elementos reveladores privilegiados da ideia que os intelectuais têm de si próprios e do contexto social e cultural de sua época, o que consideramos bastante significativo para a compreensão da história hispano-americana, sobretudo no período analisado. Ressaltamos, ainda, que, considerando a evolução – e mesmo a reorientação – do pensamento de Martí, conforme o acúmulo de suas riquíssimas experiências vividas, este livro trata com destaque a obra do período em que o próprio conceito Nossa América se encontra já bastante amadurecido; algo entre os idos de 1889-1891. Isso não significa que a abordagem desse tema se restrinja a esse período, mas apenas 21

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que o objeto principal da nossa investigação não é a evolução do pensamento de Martí, mas, sim, a análise do seu projeto utópico, já com caráter de síntese. Há que se ressaltar ainda as inúmeras limitações e peculiaridades relacionadas ao tipo das fontes constituídas pela obra martiana. Martí não produziu um único livro que se pudesse considerar “orgânico”, não escreveu qualquer trabalho onde apresentasse sistematicamente suas ideias. No entanto, sua vasta obra condensada em 27 tomos – referentes à última edição de suas Obras Completas – se constitui num rico conjunto de trabalhos leves, soltos, compostos de artigos, resenhas, ensaios para revistas e jornais, discursos, correspondências pessoais e oficiais-diplomáticas, além dos escritos literários. Destacam-se, sobremaneira, os artigos de imprensa, os discursos e as cartas. A experiência do exílio em certas metrópoles europeias, em algumas repúblicas hispano-americanas e, posteriormente, nos Estados Unidos, permitiu a Martí profissionalizar-se como escritor. Seu trabalho jornalístico esteve voltado principalmente para o intercâmbio entre Europa e América Espanhola (e mais tarde os Estados Unidos). O fato é que, ao final dos anos 80 do século XIX, podemos identificar cerca de 20 periódicos americanos publicando seus escritos. Tal diversidade, pontualidade e caráter fragmentário das fontes exigiu uma leitura integral e minuciosa dessa obra, a fim de estabelecer fios condutores, elementos e traços de homogeneidade que, com certeza, são inumeráveis. Esperamos que este livro possa contribuir para o debate acerca do fenômeno das identidades, sobretudo no contexto americano, afastando-o do veio das análises e perspectivas a-históricas predominantes; sobre os possíveis sentidos, e múltiplas dimensões, para os conceitos de cultura, desenvolvimento e progresso social, e finalmente, que possa contribuir 22

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igualmente para a discussão acerca do papel desempenhado pela dimensão utópica, sobre sua efetiva influência no desenvolvimento da História. Definitivamente, o projeto da Nossa América de José Martí nos oferece um riquíssimo campo e instrumental para tais reflexões. Por fim, não poderíamos terminar esta apresentação sem deixar aqui registrado nossos sinceros agradecimentos àqueles que tanto contribuíram direta ou indiretamente para a elaboração deste livro e da pesquisa da qual ele é fruto. Referimo-nos em particular ao CNPq, pela bolsa de estudos. Ao Centro de Estudos Martianos de Havana, pela disponibilização de seus acervos. Aos cubanos Pedro Pablo Rodríguez, Jorge Ibarra e René Valdés Cabrera, pelas orientações e o apoio durante nossas pesquisas em Cuba. Aos professores, incentivadores e amigos, Jaime de Almeida, Olga Cabrera, Maria Ligia Prado, Raquel Figueiredo Teixeira, José Antônio de Souza e Nilton Mário Fiorio, pelas preciosas contribuições; bem como aos amigos Adalberto Monteiro, Edival Lourenço e Gilvane Felipe. Eugênio R. de Carvalho Goiânia, 2000.

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Capítulo I

O diagnóstico

É

no contexto de uma realidade hispano-americana em crise, imperfeita e sem passaporte cultural definido, num momento de ressaca dos movimentos de independência do início do século XIX, que se criou um ambiente favorável ao aparecimento de ideias e ideais, sob o gênero de projetos utópicos discursivos, que visaram a diagnosticar e a apresentar soluções e alternativas para os problemas da América. O primeiro grande desafio de José Martí foi identificar as reais causas desses males de que padecia, sobretudo a América espanhola, real e concreta, pois estava em jogo a preservação de sua autonomia e identidade culturais. Tinha consciência de que aqueles povos, que não se preocupavam com o conhecimento de seu passado, com o aprofundamento de suas raízes históricas e culturais, que não se preocupavam em assumir e defender sua própria identidade, estariam condenados, de uma ou outra forma, a desaparecer num curto espaço de tem24

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po ou, quando muito, a se tornarem depositários e reprodutores fiéis de tradições e valores culturais alheios4. Foi exatamente no campo dos discursos e das retóricas, predominantemente – embora não exclusivamente –, que se travaram grandes lutas entre as interpretações e as representações sobre a identidade cultural do povo americano e, especificamente, hispano-americano. Inserido nesse grande debate de ideias, o discurso martiano buscou resolver o que ele mesmo denominou de enigma hispano-americano, reconhecendo a América como um campo conflitivo de identidade. Porém, mais do que isso, buscou compreender ainda as raízes e a dinâmica própria desses conflitos. Mergulhou no universo de representações e discursos em busca daquele que melhor pudesse representar essa realidade, que necessitava ser profundamente conhecida desde as suas entranhas, como condição para um diagnóstico preciso dos males de que padecia: tal diagnóstico se concentrava principalmente na identificação e na análise dos perigos que ameaçavam, em última instância, sua existência enquanto entidade cultural peculiar e autônoma. Desse modo, em seu ensaio Nuestra América5 José Martí recorreu a uma descrição metafórica desses perigos, utilizando-se das imagens dos tigres que “esperam, atrás de cada árvore, o momento de entrar pelas frestas, o momento 4  Esse tipo de preocupação com o resgate das raízes histórico-culturais, com a afirmação de determinadas “tradições”, foi bastante recorrente entre a intelectualidade de alguns países da Europa nas últimas décadas do século XIX. O contato com sua obra nos faz crer que, por ser informado, e interessado, sobre tudo o que se passava na Europa de sua época, Martí teria conhecido e partilhado desse tipo de preocupação. 5  Publicado pela primeira vez na Revista Ilustrada, de Nova York, em 1º de janeiro de 1891, no mesmo mês é apresentado no México numa publicação do jornal El Partido Liberal. Embora com apenas oito páginas, esse ensaio tornou-se o mais importante e mais conhecido texto de Martí, exatamente por condensar numa síntese algumas das ideias basilares que deram sustentação ao seu ideário americanista.

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do ataque final”. Refere-se aos tigres de afuera (tigres externos) e aos tigres de adentro (tigres internos). Os primeiros, estariam claramente identificados com as ameaças expansionistas e com o modelo representado pelos Estados Unidos da América do Norte – a outra América, que não a nossa. Já os segundos, estariam representados por vários fatores que ameaçavam o restante da América, tais como a herança colonial, o localismo, a falta de raízes, a excessiva importação de modelos e fórmulas alheias, os redentores bibliógenos6, etc. Os tigres externos Diferença de origens, métodos e interesses entre os dois fatores continentais Transcorridos já cerca de dez anos de exílio nos Estados Unidos7, José Martí havia adquirido plena consciência do que representava aquela nação para a América e para o mundo no final de século XIX. O rápido desenvolvimento que começava a apresentar esse país norte-americano e o seu modelo político-institucional despertava grande atenção e admiração por parte de ilustres representantes dos meios intelectuais e políticos das outras nações americanas. Num momento em que nesta outra América predominava a ideia 6  Trata-se de um neologismo, significando “nascido ou filho dos livros”. Martí emprega também o termo como sinônimo de “letrado artificial”, para definir aqueles que buscavam a solução dos problemas e a própria identidade do ser americano pela via do livro importado, em fórmulas, filosofias e modelos alheios à realidade americana. 7  Após passar boa parte do ano de 1880 nesse país da América do Norte, Martí se dirige à Venezuela (Caracas) no início de 1881, onde viveu por pouco mais de seis meses, regressando aos Estados Unidos para aí viver até 1895, ano de sua morte.

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de que o colonialismo teria sido responsável por quase todos os problemas que enfrentavam as novas repúblicas, como a falta de desenvolvimento, de democracia, de liberdade etc., os Estados Unidos do Norte se apresentavam como aquela jovem nação que, após mais de um século de conquista da sua independência frente à Inglaterra, conseguia enfim trilhar com sucesso um caminho próprio, à margem da Europa. Seria inescapável a tentação de considerar que as demais nações do continente também pudessem lograr tal façanha. O alegado caráter democrático de suas instituições, bem como da sua constituição, o espírito empreendedor de seu povo, a manutenção de um regime de liberdades conferiam a esse país o status de mais novo modelo de civilização e progresso, ao lado dos modelos franceses e ingleses. Tornava-se bastante difícil, para qualquer membro da intelectualidade da época, escapar dessa análise. O próprio José Martí, inclusive, não ficou imune a tal influência. Quando chegou a Nova York pela primeira vez, em 1880, fez questão de ressaltar sua admiração pelo que considerou a “casa da liberdade”. Declarou admirar o fundamento democrático de suas instituições e a pujança daquela sociedade norte-americana. Porém, com o passar dos anos, percebe-se em seus escritos uma clara evolução de seu juízo acerca do panorama político e social daquele país. Já em 1881, quando regressa a Nova York, oriundo de Caracas, inicia de imediato sua ação de denúncia e crítica de alguns aspectos da vida estadunidense, principalmente por meio das denominadas “Cartas de Nueva York”, escritas para inúmeras publicações, tais como La Opinión Nacional, de Caracas, La Republica, de Honduras, La Nación, de Buenos Aires e El Partido Liberal, do México. Mais tarde, diria Martí: “Eu vivi no interior do monstro e conheço suas entranhas”. Embora monstro não signifique exclusi27

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vamente perversidade, como bem ponderou Medardo Vitier (1954, p. 58), pode também expressar uma enormidade quantitativa; para Martí, talvez tenha significado ambas as coisas. Não obstante tenha manifestado opiniões tanto favoráveis quanto desfavoráveis sobre inúmeros aspectos da vida social dos Estados Unidos, no geral percebe-se claramente uma radicalização de sua opinião em relação aos valores daquela nação – uma opinião cada vez mais crítica e negativa. Na medida em que se aprofundava no conhecimento de tais entranhas, percebia as evidências de um distanciamento cada vez maior entre a realidade social estadunidense e os ideais fundamentados na sua constituição. Considerava que os sucessivos governos traíam esses ideais democráticos. Percebeu aos poucos algumas degenerescências no seio daquela sociedade: desigualdades sociais, discriminação racial, bem como a sua forma de Estado, o caráter monopolista e protecionista de sua economia, que iria entrar em confronto inevitável com os interesses e a soberania das demais nações do continente americano. A primeira conclusão a que chegou foi que já não se poderia considerar o continente americano como um bloco monolítico, homogêneo. Uma realidade dual havia se firmado e se cristalizado por razões de ordem histórica. Em um discurso de 1889, conhecido como “Madre América”8, Martí visou a colocar em relevo a existência de duas realidades diferentes que apresentavam duas evoluções históricas distintas. Apesar de não ter sido essa circunstância histórica o único fator de demarcação entre os dois fatores continentais, como trataremos adiante. Tal evolução no pensamento de Martí significou um passo importante na tomada de consciência da especificidade do que ele denominou Nossa América. A expe8  Discurso pronunciado na velada artístico-literária da Sociedad Literaria Hispanoamericana, em 19 de dezembro de 1889, em Nova York, na qual estavam presentes os delegados à Conferência Internacional Americana de Washington.

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riência desses anos de exílio em terras norte-americanas possibilitou um desenvolvimento de seu pensamento, a evolução e o aprimoramento desse conceito, a partir da compreensão, já em 1894, de que Na América há dois povos, e não mais que dois, de alma bastante diversa por suas origens, antecedentes e costumes, semelhantes somente na identidade fundamental humana (VIII, p. 35).9

É importante observar aqui a consciência clara de Martí acerca dos elementos dessa heterogeneidade americana, que resultou na ideia de a sua América ser algo diferente, específico, que abrigava um modo de vida distinto dos padrões vigentes nos mundos europeu e estadunidense. Ao lado de outras denominações – como Hispano-América, América do Sul, etc. –, durante muito tempo Martí empregou simplesmente América para se referir à região da América Espanhola ou ao que hoje poderíamos denominar mais amplamente como Ibero-América ou América Latina10. Em seus textos, a partir principalmente de 1889, percebe-se, no entanto, uma intensificação sutil do emprego do pronome nossa – precedendo América –, para se referir a essa mesma região. Isso representa nada mais que a demonstração do seu 9  Como a ampla maioria das citações de José Martí aqui empregadas dizem respeito à última edição das suas Obras Completas, de 1975, utilizaremos como padrão de referência, no âmbito desse trabalho, entre parênteses, respectivamente, o volume e a página da citação, exceto obviamente nos casos em que a fonte se referir a outra publicação. Embora tais referências bibliográficas remetam aos textos originais de Martí, as citações ao longo deste livro foram traduzidas ao português pelo autor. 10  Certamente teria irritado muito a Martí o fato de os Estados Unidos apropriarem para si o qualificativo de americanos. Talvez insistisse às vezes no emprego do termo América, isoladamente, como resistência à prática comum no seio de seus compatriotas de reconhecer os estadunidenses como os americanos por antonomásia.

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esforço para diferenciar duas realidades presentes no continente americano. A afirmação do pronome nossa representa a busca de uma personalidade própria, a consciência de uma especificidade; mas também a distinção, a diferenciação em relação a uma outra América, que não a nossa. Se nos aportássemos a uma definição geográfica, poderíamos dizer que essa outra América seria aquela porção do continente que não estivesse entre o limite demarcado por Martí, qual seja, entre o Rio Bravo (México) e o Estreito de Magalhães (extremo sul do continente americano). No entanto, a diferenciação não se restringia a essas bases puramente geográficas. Mais do que propriamente pelos Estados Unidos em si, essa outra América era representada mais pela sua política, pelos seus interesses e propósitos ameaçadores, que não permitiam uma unidade e uma identidade em nível continental; e mais, que comprometiam a própria existência dessa América nossa, enquanto unidade pautada numa autonomia política e cultural. Portanto, mais do que uma fronteira física, que separava ambas as porções do continente americano, tratava-se de uma fronteira cultural. Assim, entre todos os perigos que intimidavam a Nossa América, Martí identificou aquele que considerou como a ameaça maior, de natureza externa, decorrente (...) da diferença de origens, métodos e interesses entre os dois fatores continentais; é chegada a hora de se aproximar dela, demandando relações íntimas, um povo empreendedor e pujante que a desconhece e desdenha (VI, p. 21).

Cabe ressaltar que Martí teria consciência, mais tarde, e o declararia por várias vezes, de que a cobiça não era um problema de mero desconhecimento da Nossa América, por 30

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parte dos Estados Unidos. Sabia já muito bem da “grandeza de destino” daquela nação vizinha. Os anos de 1889 a 1891 serão decisivos nessa tomada de consciência martiana acerca do real perigo que representava a política estadunidense para o continente. Foram os anos em que ocorreram em Washington as duas Conferências Internacionais Americanas, convocadas pelos Estados Unidos.11 Os debates travados em ambos os eventos iriam deixar claro os reais interesses e ambições do vizinho do norte sobre o continente americano, bem como quais as bases dessas relações íntimas reivindicadas por esse povo empreendedor e pujante. O próprio Martí sintetizou assim seu ceticismo e sua preocupação com o significado desse convite dos Estados Unidos às demais nações da América: Jamais houve na América, desde a independência, assunto que requeira maior sensatez, que obrigue a maior vigilância e peça exame mais claro e minucioso que o convite que os Estados Unidos, potentes, repletos de produtos invendáveis e determinados a estender seus domínios pela América, fazem às nações americanas de menor poder, ligadas pelo comércio livre com os povos europeus, para ajustar uma aliança contra a Europa e eliminar tratados com o resto do mundo (VI, p. 46-47).

Era preciso estar atento ao conteúdo, às reais intenções que estavam por detrás dos tratados comerciais propostos, de forma a não comprometer os interesses e a soberania das na11  Martí acompanha ativamente ambas as Conferências. A primeira, 18891990, na qualidade de correspondente do jornal argentino La Nación, para o qual produz inúmeros artigos sobre os andamentos e debates da Conferência. Da segunda, a Conferência Monetária de 1891, participa na qualidade de representante nomeado pelo governo do Uruguai.

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ções americanas de “menor poder”. Se o intelectual cubano já conhecia a diferença de origens, diferenças de evolução histórica, nesse momento, toma plena consciência dos propósitos e interesses escusos da política dos Estados Unidos frente às demais nações do continente. Uma política que ameaçava, agora sob novas formas – por meio do “veneno dos empréstimos, dos canais e das linhas férreas” (VI, p. 61) –, sua independência, sua existência como um conjunto de nações livres. Esse convite a uma união pan-americanista estava muito distante do ideal americanista martiano. Na verdade, eram antagônicos, na medida em que o projeto americanista de Martí se aproximava cada vez mais de um projeto essencialmente anticolonialista, fosse de novo ou velho tipo. A ameaça externa e a ideologia expansionista Mas, por trás das propostas dos Estados Unidos de união econômica do continente, não havia apenas tratados comerciais quase sempre desfavoráveis às demais nações da América. Havia interesses maiores de caráter geopolítico e estratégico visando ao amplo domínio da região. Vale lembrar que Martí viveu nos Estados Unidos numa época em que esse país atravessava transformações profundas em sua economia e política continental, no momento da inauguração de uma nova etapa do capitalismo monopolista e imperialista que o levaria, inexoravelmente, a galgar novas posições sobre o mundo e, em particular, sobre o continente americano. Os fatos históricos de um passado recente, ligados à política expansionista estadunidense, reforçavam o temor de Martí. Tal assombrosa expansão havia começado já no primeiro terço do século XIX com a conquista do Texas. Na 32

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metade do século, em 1848, com a guerra do México completa-se o desmembramento deste último: metade do território mexicano, dois milhões de quilômetros quadrados, passaria para as mãos dos Estados Unidos. As violências sobre o México terminaram por assumir uma dimensão continental, na medida em que se dirigiam ao sul, com o objetivo de conquistar a região do istmo. Ameaçaram o restante do continente, particularmente a região da América Central e do Caribe. Os interesses se estendiam para a conquista de novos territórios que pudessem possibilitar sua grandeza. A década de 50 marca os primeiros trunfos de Walker em suas incursões centro-americanas. Já não se tratava de uma mera usurpação territorial ou uma simples disputa fronteiriça entre dois países, isoladamente. Tais episódios assumiam um caráter já de enfrentamento, também fronteiriço, entre duas Américas. Durante a década de 80, Martí não se cansou de denunciar o intento por parte dos Estados Unidos de anexar vários territórios do continente, ampliando seus domínios. Analisa vários episódios, como a intervenção armada no Haiti em 1888 – país este que se negava a ceder a península de San Nicolás12 –, a ação sobre Samoa em 1889, sobre o Havaí em 1890, a compra do Alaska visando a dominar a navegação na região do mar de Bering, e tantas outras. Sem contar o caso de sua própria Cuba, que vivia constantemente sob a ameaça anexionista. Martí ressaltava a necessidade tempestiva de uma resposta “unânime e viril” dos povos hispano-americanos a fim de libertá-los da inquietude e da perturbação, fatais em seu processo de desenvolvimento, causadas pela 12  Exatamente em protesto a esse episódio, o governo do Haiti se recusou a participar da Conferência de Washington de 1889/1890. Igualmente o governo de Santo Domingo não aceitou o convite em função das intenções e da disputa com os Estados Unidos pela baía de Samaná.

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(...) política secular e confessa do predomínio de um vizinho pujante e ambicioso, que jamais os quis fomentar, nem a eles se dirigir a não ser para impedir sua expansão, como no Panamá, ou apoderar-se de seu território, como no México, Nicarágua, São Domingos, Haiti e Cuba, ou para cancelamento – pela intimidação – de seus tratados com o restante do universo, como na Colômbia, ou para obrigá-los, como agora, a comprar, o que não pode vender, e a confederar-se para melhor dominá-los (VI, p. 46).

Assim, conhecedor e crítico do significado desses episódios que marcaram o passado recente dessas nações americanas, Martí adquiriu plena consciência do perigo que representava a ameaça da intervenção estrangeira. Na Conferência de Washington de 1889-1890, um ponto em particular tornou evidente que as intenções e a política dos Estados Unidos, neste plano, não haviam mudado de rumo. Quando a Conferência sugeriu que a conquista ficasse eliminada para sempre do direito público americano, que as cessões territoriais fossem anuladas se realizadas sob a ameaça da guerra ou pressão armada, os representantes dos Estados Unidos, numa atitude isolada, se negaram a assinar tal projeto, apenas consentindo, ao final, após longos debates, em declarar eliminada a conquista “por vinte anos”. O temor dos Estados Unidos não residia apenas na possibilidade de serem limitadas suas possíveis ações anexionistas futuras, mas no fato de que pudesse também colocar em xeque o seu direito sobre os territórios já conquistados, principalmente sobre o México. Tal episódio acabou por colocar frente a frente, em posições antagônicas, os Estados Unidos e as demais nações do continente americano, selando a diferença de propósitos entre os dois fatores continentais. Desmascarou os objetivos escusos da Conferência convocada pelo governo desse país: 34

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reduzi-la a um conjunto de recomendações que pudessem fundar o direito eminente que os Estados Unidos se arrogavam sobre toda a América, (...) um povo que proclama seu direito, por autoproclamação, a reger, pela moralidade geográfica, o continente, e que anuncia, pela boca de seus estadistas, na imprensa e no púlpito, no banquete e no congresso, enquanto põe a mão sobre uma ilha e tenta comprar outra, que todo o norte da América há de ser seu, e que se deve reconhecer-lhe o direito imperial do istmo para baixo (VI, p. 56).

Segundo Martí, essa Conferência representou para as nações da América Espanhola, por um lado, a antessala de uma grande concórdia, uma demonstração de que interesses comuns aproximavam seus países, ainda que no momento limitados e condicionados pela necessidade de defesa ante uma ameaça comum. A questão da unidade de seus países constituía, na verdade, um imperativo de sobrevivência. Mas a Conferência deixou claro também para Martí, por outro lado, que a “visita” desse vizinho pujante e ambicioso estava próxima. De certa forma, considerava esse fato quase inevitável. Logo – advertia – chegaria o dia da expansão sobre as demais nações do continente americano. Por isso era chegada a hora de declarar, segundo Martí, a segunda independência da Nossa América. Os dois fatores continentais se excluíam e se afastavam em função não só de seu passado, de suas diferentes origens e evoluções históricas, mas particularmente de suas perspectivas de futuro. Porém, essa política expansionista necessitava de uma base de legitimação. Por isso, nos Estados Unidos dessa época mantinha-se viva, mais do que nunca, a filosofia da Doutrina 35

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Monroe, agora empunhada por novos agentes da política estadunidense, que reivindicavam a América para os americanos – entenda-se, aqui, americanos do norte. Martí condenou veementemente as bases dessa ideologia expansionista. Denunciou uma verdadeira campanha armada nos meios de imprensa norte-americanos. Não se cansava de citar uma sequência de manifestações e artigos de norte-americanos “ilustres”, que corriam de jornal em jornal, carregados da ideologia do destino manifesto e outras do gênero expansionista. Não faltou quem propusesse constantemente que tais ideias ou tais ideologias se materializassem em projetos e planos políticos concretos. Trata-se de um momento, enfim, em que estavam em evidência vários teóricos e ideólogos expansionistas. Um exemplo é Frederick Turner, que ficaria conhecido como o “teórico da fronteira”. Com base nesse mais novo mito, os Estados Unidos ampliavam seu conceito de fronteira, no intento de prolongar a saga da conquista do oeste em direção às terras ao sul do continente americano. Essa nova doutrina geopolítica se encaixava perfeitamente em suas aspirações imperialistas e anexionistas. Tamanha era a ânsia por uma justificativa para tais práticas expansionistas que até se buscava a aplicação de princípios e leis da física à História. Segundo, por exemplo, a tese do físico norte-americano Brooks Adams, a energia acumulada não poderia liberar-se senão mediante a expansão. Qualquer argumento que pudesse justificar essa empresa expansionista, ou o direito “natural” dos Estados Unidos sobre o continente americano, particularmente sobre o istmo e o Caribe, seria propagandeado inescrupulosamente. Mas a onda expansionista não tinha como causa apenas aqueles imperativos de ordem econômica e estratégica. Nesse momento, se encontrava bastante difundida nos Estados Unidos a ideia da existência de duas Américas, bastante distintas. Martí também, como já nos referimos anteriormente, 36

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tinha plena consciência dessa realidade dual. O que contrapunha ambas as análises era a origem alegada para tal diferença. Enquanto para Martí as origens dessas diferenças se assentavam em raízes históricas e culturais, para a civilização da América do Norte, as mesmas existiam pelo fato de se autocompreender como a nação mais desenvolvida, superior, e, por isso, distinta. Tal concepção permitiu, assim, a entrada em cena de um ingrediente novo: a questão racial. Acreditavam e difundiam a ideia de o sul do continente americano estar contaminado pela impureza racial e, consequentemente, impossibilitado de trilhar os caminhos do progresso e da civilização. Buscavam justificar com argumentos de ordem biológica a inferioridade da América do Sul. Martí, por inúmeras vezes, fez referências ao “desdém do vizinho do norte” em relação aos povos dessa América. E foi contra esse conjunto de valores e crenças, bastante difundido no seio da sociedade estadunidense, que se debateu Martí em seus escritos de Nova York. Dirigia-se contra aqueles que Creem na necessidade, no direito bárbaro, como único direito: “isto será nosso, porque nos é necessário”. Creem na superioridade incontrastável da “raça anglosaxã contra a raça latina”. Creem na inferioridade da raça negra, que escravizaram ontem e maltratam hoje, bem como da índia, que exterminam (VI, p. 160).

Esta era, em síntese, a imagem dos tigres externos, o perigo maior que corria a Nossa América. E exatamente contra esse perigo maior deveria ser declarada a segunda independência dessa América. Uma independência que, na concepção de Martí, ia além do político; uma “independência de espírito”, que visasse à conquista de uma autonomia na gestão de seus próprios destinos. 37

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Até aqui poderíamos falar, portanto, de uma unidade ou identidade pela resistência contra um inimigo comum. Realmente, a necessidade de afirmação dessa autoctonia frente aos Estados Unidos foi, indubitavelmente, uma das dimensões básicas do projeto identitário martiano. E nesse ponto o projeto utópico de Martí se afasta da retórica modernizadora inerente aos projetos idealizados pelos pensadores liberais e positivistas de sua época. Os diagnósticos eram distintos porque distintas eram as visões acerca do verdadeiro papel desempenhado pela política dos Estados Unidos e suas consequências para as demais nações da América. Enquanto o argentino Domingo Sarmiento, principal interlocutor e então representante máximo do pensamento liberal em terras hispano-americanas, declamava “Sejamos como os Estados Unidos!”, Martí denunciava a ação imperial norte-americana, suas práticas expansionistas, bem como os reflexos das mesmas junto às dolorosas repúblicas americanas. Mas a dimensão da outra América, que não a nossa, não se limitava ao “colosso do norte”. Tinha ainda suas ramificações ou representantes nos territórios da Nossa América. Assim, este nós-outros estava também carregado de tigres, os tigres internos, que igualmente significavam ameaças e perigos reais aos intentos pela definição de uma identidade americana, segundo o projeto martiano. Os tigres internos O espírito aldeão A primeira grande crítica que empreendeu Martí nesse campo foi contra o espírito aldeão. Desde 1884, já afirmava: “Oh! O dia que comece a brilhar, brilhará perto do Sol; o 38

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dia em que dermos por aniquilada nossa atual condição de aldeia.” (VI, p. 25). E, em 1891, no ensaio Nuestra América sintetizou uma vez mais seu sonho de ver a América livre do espírito da acomodação: “o que reste desse sentimento de aldeia na América há de despertar.” (VI, p. 15). Da própria expressão invocativa de uma realidade sonhada, desejada, que haveria de brilhar, se pode extrair a crítica à realidade presente: os elementos que ofuscam o seu brilho e a mantêm na condição de sono eterno. Acreditava no espírito localista como um dos grandes males da América, estritamente provincial e típico dos povos que não se preocupam em se conhecer mutuamente. Dessa forma, Martí criticava o povo dormido da América, impregnado pelo espírito típico do aldeão vaidoso que reduz o mundo inteiro à sua aldeia e que, não tendo afetado seus interesses imediatos, acredita na ordem universal como piamente certa. Sob a influência de tal espírito, esse povo não conseguia ver além da própria aldeia, e seu mundo e a sua pátria se resumiam no quarteirão rural onde vive e havia nascido. Martí não se conformava com essa postura passiva diante da história. E em certo momento, afirmou: (...) já não podemos ser o povo de folhas que vive no ar, com a copa carregada em flor, esvoaçando e zumbindo, conforme sejam acariciadas pelo capricho da luz ou açoitadas pelas tempestades (VI, p. 15).

Compreendia José Martí que tal espírito impedia uma tomada de consciência em relação à inserção desses povos no contexto de uma nova ordem universal. Com isso, não restringia seu conceito de identidade a uma perspectiva estreita, aldeã, provincial, muito menos individual, que tendesse a negar uma vinculação, com influências mútuas, a um contexto ou a 39

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uma realidade universal. Acreditava que tal espírito localista levava a uma miopia crônica que impedia qualquer iniciativa de unidade ou qualquer intento de construção coletiva de um campo de identidade em âmbito regional. Nesse sentido, Martí deixou claro o alcance e a abrangência do seu conceito de identidade cultural. Não se tratava de uma individualidade cega, destituída de qualquer pretensão à universalidade. Sua concepção de identidade aspirava à universalidade. A identidade era vista como caminho até a individualidade de uma cultura e como caminho até a integração a uma coletividade, quer dizer, como autoconsciência de pertencer a uma totalidade. Em outras palavras, encarava uma totalidade desde a particularidade, que parte do específico, do particular. Dessa forma é que compreendia a relação entre identidade e universalidade. Por fim, tinha consciência de que a manutenção dessa postura passiva, desse espírito aldeão, era um obstáculo para colocar esses americanos em condições de enfrentar desafios maiores, que ameaçavam sua existência enquanto povos livres. Por outro lado, a crítica a essa postura aldeã não era um privilégio de Martí. Em certa medida, também seria abraçada por várias outras tendências e representações do pensamento hispano-americano, inclusive aquelas ligadas à modernidade europeia. No entanto, diferentemente de Martí, a retórica modernizadora com certeza não chegou, exatamente, a afirmar que esses povos estariam apenas “dormidos”, mas sim, que tal estado era inerente a eles, parte de sua própria natureza. Segundo essa representação, por esses povos não se interessarem em assumir o veio do processo civilizador e muito menos contestá-lo – pelo menos enquanto esse processo não afetasse seus interesses mais imediatos –, eram então considerados como matéria exótica, preguiçosa, incapaz de realizar o progresso.

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A herança da fragmentação Obviamente, qualquer intento de se construir um campo de identidade pressupõe um mínimo de integração, conhecimento e relações mútuas entre os diversos elementos que o compõem. No entanto, o espírito localista e aldeão desses homens, e povos, que dormem descuidados sob a sombra, constitui-se num obstáculo real aos intentos de unidade desses povos e contribui para a cristalização da dispersão e da compartimentação da realidade americana. Como decorrência disso, outro tigre martiano poderia ser representado pelo caráter fragmentado dessa América. Todo discurso de Martí se colocou diante de uma realidade dispersa, desconjuntada, composta de “elementos discordantes e hostis que herdou de um colonizador despótico e adverso” (VI, 19). Desde 1878, Martí já ressaltava a importância da unidade para a sobrevivência dos povos da América e também o fato de a desunião ter contribuído, através da história, para inúmeras derrotas: Pizarro conquistou o Peru quando Atahualpa guerreava com Huáscar; Cortés venceu Cuauhtémoc porque Xicotencatl o ajudou em tal empresa; entrou Alvarado na Guatemala porque os quichés rodeavam os zutujiles. Posto que a desunião foi nossa morte (...), é mister afirmar que da união depende nossa vida? (VII, p. 118).

Martí chega a afirmar que considerava um lamentável erro de política internacional o fato de as repúblicas hispano -americanas, lamentavelmente, ainda não se conhecerem entre si mesmas; embora também fossem pouco conhecidas na Europa. Reconhecia isso, evidentemente, como um problema de longa herança histórica dos tempos da colônia. Despertar 41

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a sua América de um sono tão profundo não seria tarefa fácil. Afinal, ao longo de séculos, tais sociedades se relacionaram cada uma diretamente com sua metrópole, coexistindo sem convivência efetiva. As relações verticais impostas entre esses povos, enquanto colonizados, com suas metrópoles econômicas e culturais, não permitiram a formação de sociedades autônomas, com liberdade para cultivar relações horizontais que pudessem constituir a base de uma unidade e de uma identidade cultural mais sólida. Martí vislumbrava, assim, uma “unidade de espírito” que pudesse cimentar e se colocar por cima dos inevitáveis elementos de desigualdade e discórdia. O sonho martiano de recomposição dessa realidade fragmentada não se pautava, no entanto, num projeto de unidade que pudesse ocultar as diferenças – as quais, segundo Martí, eram úteis à liberdade e tornavam impossível uma unidade de formas. Sobre as propostas de união das nações americanas ao longo da história, ele ressaltou (...) o desacordo patente entre Bolívar – empenhado em unir os países revolucionários sob um governo central e distante – e a revolução americana, nascida com múltiplas cabeças, da ânsia do governo local [grifo nosso] e com a gente da própria casa! (VIII, p. 247).

Por isso, os resultados dessa luta independentista terse-iam convertido em uma grande contradição. Prevaleceu o espírito localista, a ânsia do governo local. As nacionalidades, os nacionalismos estreitos afloraram e se fortaleceram por toda a região das ex-colônias, ao longo de séculos de relações verticais da época colonial. Desde então, essa América viveu o dilema da fragmentação. Segundo a constatação de Martí, portanto, estava-se diante de uma realidade fragmentada, em retalhos. Uma realidade decomposta, compartimentada, for42

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mada por povos que não se conhecem. Via como responsável por esse quadro a permanência do espírito aldeão. Desse perigo a América precisava se salvar. Embora também a retórica modernizadora reconhecesse esse quadro de fragmentação verificado na Hispano-América, atribuía à miscigenação racial a responsabilidade principal pelas hostilidades entre os grupos em pugna, pouco desejosos de uma unidade mais ampla e sólida. A falta de raízes Um outro tigre vinha ainda a espreitar esses povos. Trata-se do fenômeno do desarraigo. Essa falta de raízes, de identificação com o que é da terra, de identificação com um passado e presente históricos era, para Martí, outro grande perigo que ameaçava a sua América. Tal fenômeno tinha um vasto leque de origens e causas. Tinha a ver fundamentalmente com a aceitação de um modelo universal de cultura: a cultura da civilização e do progresso. Era fruto de um sentimento de inferioridade, gerado pela constatação de não pertencer ao conjunto de culturas representativas do modelo de civilização ocidental, mas também pela constatação de sua condição de pobreza material em relação às nações ricas e desenvolvidas; de decepção por não se encontrar no mesmo ritmo de seu desenvolvimento. Uma vez que, em geral, os vácuos tendem a ser preenchidos e as raízes histórico-culturais de um povo não permanecem no ar por muito tempo, seria natural então que a primeira e óbvia consequência dessa postura fosse uma tendência a vislumbrar e considerar como modelos próprios realidades alheias, exógenas. Enquanto negação e falta de 43

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vinculação com as origens próprias, como bem observou o historiador cubano Cintio Vitier (1982, p. 82), o sentimento de desarraigo constitui-se num terreno fértil à traição às próprias raízes, ao florescimento e à postulação de identidades pouco originais. Em geral, tal sentimento é acompanhado por um desejo de mudança de identidade, que pudesse remediar um outro sentimento: frustração, inferioridade. Dessa forma, o desarraigo, enquanto sentimento de vergonha, de negação de si próprio, de suas origens, é o oposto da identidade. Tal postura fere de morte a personalidade e a autoestima desses povos. Reforça um sentimento preconceituoso e uma prática de desdém em relação àqueles elementos naturais, autóctones. José Martí foi bastante duro na crítica aos representantes desse sentimento, particularmente no ensaio Nuestra América de 1891, aos quais considerava como desertores (...) que não têm fé em sua terra. (...) Esses filhos de carpinteiro, que se envergonham de que seus pais sejam carpinteiros! Estes nascidos na América que se envergonham de levar a indumentária indígena da mãe que os criou e que renegam – vagabundos! – a mãe doente, deixando-a sozinha no leito das enfermidades (VI, p. 16).

Em relação aos sujeitos sociais invocados por Martí para realizar a grande tarefa colocada em seu projeto utópico de construção da Nossa América, tanto os aldeões quanto esses renegados desertores – “insetos daninhos”, segundo Martí – constituíam em seu conjunto uma espécie de antítese, de anti-sujeitos de tal projeto. Eram exatamente a negação de tudo o que se queria construir. Não só abandonavam a mãe enferma na solidão, como também, diante de tal postura, 44

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contribuíam para a própria enfermidade. Eram os tigres internos, que espreitavam atrás de cada árvore, traiçoeiros, que atacavam à noite, pelas costas. A América havia de se salvar de mais esse perigo. A importação excessiva de ideias e fórmulas alheias Na época de Martí predominava entre os pensadores desta América a ideia da existência de um modelo sociocultural de caráter universal; um verdadeiro arquétipo, sintetizado na retórica modernizadora. A elite crioula contribuiu imensamente para difundir tal pensamento. Figura contraditória, o crioulo não conseguia transformar suas heranças e tradições no sentido de uma originalidade, à margem do modelo europeu que lhe deu vida. Vivia assim suas inquietações, características de um sentimento de inautenticidade. Suas manifestações culturais locais não passavam de meras representações e reproduções de tradições culturais metropolitanas. Essa elite crioula conseguiu influenciar, com tais inquietações, toda uma geração de pensadores que se seguiu à dos libertadores, ao colocar em relevo as questões de quem somos. Índios? Espanhóis? Americanos? Europeus? Vivendo o incômodo de se encontrar com suas raízes no ar, ávidas de passado, presente e futuro, buscava, essa intelectualidade hispano-americana do período pós-independência, um solo fértil onde pudesse fazer brotar sua identidade. Mas a prática da importação cega de modelos exógenos baseava-se no juízo predominante que se empreendia acerca do passado colonial da América. Havia um consenso entre os representantes da retórica modernizadora: atribuíam ao passado colonial – e a todas as suas mazelas – a responsabilidade 45

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principal pelo atraso das novas repúblicas, nele identificando a fonte de quase todos os seus problemas. Esse diagnóstico considerava que os elementos e as estruturas herdadas de três séculos de colonização impediam a realização plena da liberdade nas novas repúblicas americanas. A cultura hispânica perdia assim a legitimidade, era identificada com um passado imposto. Tudo o que havia sido legado por ela devia ser rechaçado. Era preciso romper definitivamente com a cultura da tutela. Tal geração pela primeira vez adquire consciência de si e elabora assim um discurso com características que poderíamos denominar propriamente americanistas. O que Martí colocava em questão era qual o tipo de americanismo, no entanto, conviria à Nossa América. Em Nossa América há muito mais sentido do que se pensa, e os povos que passam por menores – e o são mais em território ou habitantes do que em propósito e juízo –, vão se salvando, no rumo seguro, do sangue ruim da colônia de ontem, bem como da dependência e da servidão que os começava levar, pelo equivocado amor a formas alheias e superficiais de república, a um conceito falso e criminoso de americanismo (VIII, p. 35).

Em geral, essa tentativa de diferenciação cultural, empreendida por tal geração de pensadores americanistas, se assentava a partir de modelos não espanhóis, se apoiava na importação excessiva de fórmulas, na aceitação cega de modelos exógenos, que não levavam em conta a realidade local dessa América. Verificava-se uma atração pelos modelos oferecidos pelos ingleses, franceses e os Estados Unidos da América do Norte. Uma admiração frente ao colosso do norte e suas propostas de união continental. É nesse contexto que se insere a intensa e contundente crítica de Martí a esses 46

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modelos. Desde o início do século XIX, vários pensadores hispano-americanos já haviam criticado essa importação mecânica e excessiva de instituições, valores e modos de vida, sem qualquer modificação ou adaptação às realidades de cada país. Mas foi Martí quem colocou em relevo a necessidade de superação dessa prática de importação como uma etapa primordial do processo de busca de uma identidade a partir de bases autóctones. Desde 1875, num artigo para a Revista Universal, México, já se perguntava: Haverá vida, para os gênios pátrios, num cenário sempre ocupado por débeis ou repugnantes criações estrangeiras? Por que na terra nova americana se há de viver a velha vida europeia? (VI, p. 227)

Mais tarde, já em 1891, fará um balanço dessa época (...) ardente e louca, aquela de mocidade e de romance, em que povos e homens têm por belo tudo o que lhes aparece, e defendem, em sua ânsia de crescer, tudo o que vem de modelos já desenvolvidos. Aquela época constitucional rudimentar, em que a ignorância impaciente levou à imitação confusa, em que o desejo de romper os moldes que nos reduziam a vida levou à aceitação fácil dos moldes novos em que se haviam deixado ferver distintas civilizações (VII, p. 58).

Uma imitação realmente bastante confusa. Implicava, na prática, um silenciar e um encobrimento da própria originalidade: sinônimo de barbárie. Subordinavam-se, numa aceitação irrefletida, aos novos modelos já maduros, desenvolvidos, modernos. Daí, Martí pregou a necessidade de uma segunda independência, de sentido ontológico, ligada ao novo espírito americano. Conclui que “O problema da inde47

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pendência não era a mudança de formas, mas sim a mudança de espírito”. (VI, p. 19) Era chegada a hora de a América declarar sua segunda independência. A grande crítica martiana se dirigia ao fato de que as lutas pela independência da América Espanhola tiveram como pano de fundo uma revolta contra as práticas de tutelagem, e não contra o modelo cultural propriamente dito. Se a independência representou uma alteração na direção da busca não alterou, contudo, seu sentido profundo. Lamentava ainda Martí que, mesmo após a independência política das colônias e a instauração das repúblicas americanas, persistia na vida das repúblicas muitos vícios e resquícios do colonialismo. A hierarquia colonial resistia à organização democrática da república. A ênfase de Martí foi, assim, a crítica a todo tipo de modelo importado que pudesse ser responsável pelo surgimento de tiranias, de governos desvinculados da realidade local. Para ele, já que não havia universidades na América onde se ensinasse os rudimentos da arte do governo, o bom governante seria, portanto, aquele capaz de implantar o governo lógico, de governar segundo a razão, levando em conta as especificidades de cada país. Um dos grandes problemas dessa América não seria a incapacidade de os países nascentes poderem gerir seus próprios destinos; mas, ao contrário, seriam aqueles que quisessem governar povos originais com leis herdadas de realidades alheias, transplantadas e aplicadas mecanicamente ao contexto americano. Uma brutal distância separava o ser hispano-americano real daquilo que o desfigurava, no seu afã de simular o que não era. Sobre isso, Martí assinalou: Éramos uma visão. (...) Éramos uma máscara, com as calças da Inglaterra, o jaleco parisiense, o jaquetão da América do Norte e o gorro da Espanha (VI, p. 20). 48

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A pompa e a extravagância desse conjunto de trajes impediam, por fim, que se conhecesse a substância e o conteúdo que os mesmos encobriam. Por isso, Martí adquiriu a consciência de que essa aceitação cega dos modelos importados implicava consequências desastrosas para o futuro da Nossa América. Entrava em choque com qualquer projeto de construção de identidade em bases autóctones. Compreendia que os modelos importados impediam a interpretação autêntica da própria realidade, desestimulava a criatividade e a imaginação desses povos, tão necessárias para a superação de seus problemas e conflitos de identidade. Os letrados artificiais Martí viveu num tempo em que o pensamento americano buscava obsessivamente caminhos e soluções para os problemas ligados à crise de identidade gerada no seio da Nossa América. Era uma época de propagação e de grande influência das ideias e alternativas que visavam à salvação da América pela via do livro importado. Tais ideias tinham como agentes aqueles a quem Martí qualificou de letrados artificiais e também de “redentores bibliógenos” (VI, p. 19), aqueles que não conheciam a realidade americana e seus elementos verdadeiros. Embora vários caminhos tenham sido lançados como alternativas e soluções para os males de que padecia essa América, quase todas as perspectivas empunhadas pelo pensamento de então estavam limitadas pelo binômio civilização e barbárie. Tais interpretações não conseguiam fugir das influências do positivismo, que se apresentava como a justificativa ideológica capaz de romper com a barbárie do passado hispânico e de colocar definitivamente essa Améri49

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ca no caminho da civilização. O passado hispânico era uma realidade que, segundo esse pensamento, precisava ser negada. Realidade, essa, imposta pela colonização, que impedia o pleno desenvolvimento dessa América. É forte também a influência da teoria do darwinismo social, do britânico Herbert Spencer. Segundo tal teoria do evolucionismo spenceriano, na sua interpretação norte-americana, os indivíduos fortes – assim como as nações – triunfariam e os débeis seriam eliminados. O último quarto do século XIX é um momento de grande difusão dessas teses na América do Norte e do Sul, com destaque para México e Argentina. Com base nesse arcabouço doutrinário, enquadravam-se as causas dos males e das enfermidades dessa América dentro do binômio explicativo da civilização e barbárie. Dentre os vários pensadores do século XIX que assumiram tais ideias, um se destaca e, embora já referido, merece aqui uma análise à parte, na qualidade de um dos principais porta-vozes dessa tendência e desse pensamento, que iria influenciar inúmeros outros intelectuais da época. Trata-se do argentino Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888). Em uma publicação de 1848 – Facundo –, Sarmiento lança sua teoria dicotômica da Civilización y Barbarie. Para ele as diferenças de origens entre os dois fatores continentais americanos eram oriundas do fato de que (...) os anglo-saxões não admitiram as raças indígenas, nem como sócios, nem como servos em sua constituição social. Em que se distingue a colonização espanhola? No que a tornou em monopólio de sua própria raça, que não saía da idade média ao trasladar-se à América e que absorveu em seu sangue uma raça pré-histórica servil (Sarmiento, 1978, p. 12).

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A barbárie sarmientiana, fruto da colonização espanhola, era assim o resultado de uma síntese entre uma raça medieval e uma raça pré-histórica servil. Tais perspectivas levavam ao predomínio de uma representação da América como um corpo enfermo. Uma América contaminada por vários elementos, como a impureza racial e o vírus da barbárie, que a deixava em descompasso com o ritmo da civilização. Esse vírus era representado pela presença das etnias e culturas tradicionais, que dificultavam a incorporação da região à civilização. Se o espanhol, o indígena e o africano eram, por si só, a expressão máxima da barbárie, mais bárbaro ainda seria o resultado da sua mestiçagem. Vivia-se numa época em que muitos acreditavam, com supostos argumentos de ordem biológica, que a mestiçagem conduziria a humanidade à degeneração. Segundo tal interpretação, a raça e o fenômeno da mestiçagem eram as fontes das incapacidades, as causas da inferioridade do homem hispano-indígena. Essa explicação de cunho racista buscava no fundo justificar o suposto despreparo desses povos para a tarefa civilizatória. Neste quadro, é inevitável a emergência de conflitos íntimos, associados à rejeição de origem, a uma autodepreciação, à vergonha da cor, do nome e da terra natal. Partilhavam a infelicidade de haverem nascido assim na América, de possuir sangue ibero, índio, africano e mestiço. Seria natural esse quadro gerar uma situação de abatimento e de renúncia à própria identidade. Afinal, não se poderia aceitar como expressão legítima de identidade aquilo que mantinha aqueles povos na barbárie, no atraso, no leito das enfermidades. A identidade presente era imposta pela colônia e tinha, por isso mesmo, que ser negada. A solução seria renunciar ao que era para ser outro, descartando o espanhol e o indígena como possíveis fatores de identidade. 51

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Assim, o rechaço da herança hispânica traz consigo a necessidade de recorrer a outros modelos. A verdadeira identidade haveria que ser buscada no modelo daqueles povos que encabeçavam a modernidade, que marchavam rumo à civilização e ao progresso. A América Espanhola, na visão sarmientiana, era, em síntese, um repositório de barbárie. E bárbaro era todo aquele que se opusesse ao processo civilizador ou não contribuísse com ele, que não estivesse enquadrado na lógica desse processo. O projeto de Sarmiento visava a uma metamorfose do homem americano, que necessitava, para se salvar, deixar de ser bárbaro, pois Não coloniza nem funda nações o povo que não possua em seu sangue, sua indústria, ciência, cultura; e em suas instituições e seus costumes, todos os elementos sociais da vida moderna (Sarmiento, 1978, p. 15).

Por fim, pela conclusão de Sarmiento, A América do Sul ficará para trás e perderá sua missão providencial de sucursal da civilização moderna. Não detenhamos os Estados Unidos em sua marcha: é o que definitivamente propõe alguns. Alcancemos os Estamos Unidos. Sejamos a América, como o mar é o Oceano. Sejamos como os Estados Unidos (1978, p. 18).

Em decorrência disso, o grande sujeito do projeto sarmientiano, o agente social capaz de salvar a América de seus males, será o estrangeiro, o imigrante europeu a ser introduzido no continente americano, oriundo, naturalmente, da Europa transpirenaica. Esse sujeito terá a missão de promover uma lavagem de sangue e de cérebro nos elementos nativos, com vistas a purificá-los. Os imigrantes iriam oferecer, com seu sangue, “os elementos sociais da vida moderna”, os 52

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gérmens da civilização e do progresso. Já a lavagem cerebral, se daria mediante uma nova educação desses elementos autóctones, pautada nas novas filosofias e ciências que formaram os heróis e os homens práticos da civilização. Tal ideia ganha a consciência de inúmeros pensadores da Nossa América, contribuindo para a disseminação do sentimento de vergonha de suas próprias origens. Ficava patente, nesse pensamento predominante, o reconhecimento da inferioridade americana, a consciência de que a Hispano -América era dominada por um sentimento de imperfeição, de inadequação ao modelo. Lamentava-se a ausência de uma tradição, o atraso técnico-industrial, bem como a incapacidade de acompanhar as grandes nações no rumo do desenvolvimento e do progresso. Partilhavam assim da infelicidade de não pertencer ao mundo inglês, estadunidense ou francês, enfim, de estar fora da história, da cultura e da civilização. Essa incapacidade de incorporar-se ao progresso como parte ativa e não passiva da civilização tinha como consequência graves conflitos de identidade. Somente a modernidade poderia emancipar esses povos do pecado original de que eram portadores. Buscavam os civilizadores a redenção desses povos frente a uma situação de atraso, frente a uma condição de barbárie. Esses eram os “redentores bibliógenos”, os filhos do livro importado, da cartilha importada, que reduziam todas as análises e alternativas, para essa dolorosa realidade americana, a um permanente conflito entre civilização e barbárie. Martí pouco se referiu nominalmente aos representantes dessa corrente de pensamento predominante. No entanto, suas referências em seus textos, ao menos no âmbito das ideias, são mais do que explícitas. A América padecia, segundo ele, muito em função da má representação desses letrados artificiais; pois: “Não há batalha entre a civilização e a 53

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barbárie, mas sim entre a falsa erudição e a natureza” (VI, p. 17). Aqui, a referência implícita a Sarmiento é notória. Assim, essa falsa erudição, praticada pelos letrados artificiais, era outro tigre apontado por Martí, que ameaçava qualquer intento de definir uma interpretação genuína da própria realidade e comprometia qualquer propósito de construir uma identidade a partir de bases autóctones, a partir dos elementos naturais, a partir do homem natural. Por fim, tal era, em síntese, o diagnóstico martiano da realidade hispano-americana de sua época. Sobre esse diagnóstico repleto de obstáculos, problemas, lamentações, perigos, típico de uma realidade imperfeita, cheia de tigres, carente de reparações, é que repousava seu projeto utópico. Precisamente o conhecimento profundo dessa realidade imperfeita, com o incômodo que lhe proporcionava, conferia a ele esperança, fé e desejo de uma sociedade alternativa, de uma América nova. Com todos os seus problemas esta América imperfeita era a única que existia, a única realidade possível de ser transformada. Assim, a sua esperança, o seu projeto, deveria ter como lastro as possibilidades objetivas de sua própria realidade. E era esse realismo utópico que lhe conferia um grande otimismo, uma convicção de que a América, aos poucos, iria se salvando de todos esses perigos. Havia chegado a hora de revelar, sacudir e fundar a Nossa América, a América do homem real, dos novos homens americanos.

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Capítulo II

A proposta Revelação, sacudimento e fundação

V

imos anteriormente que o discurso americanista martiano esteve marcado pelas expressões revelação, sacudimento e fundação. Cabe aqui, de forma preliminar e sintética, uma análise da origem desses conceitos no pensamento de Martí. É inegável que tais concepções americanistas se deveram em muito às suas experiências durante os anos vividos no México, na Guatemala (1875-1878) e na Venezuela (1881). Segundo o martianista cubano Pedro Pablo Rodríguez (1992, p. 5), os anos dessa experiência mexicano-guatemalteca forneceram a Martí a compreensão da existência de uma entidade histórico-cultural distinta da Europa e dos Estados Unidos. Fruto dessa experiência, o jovem Martí teria chegado a três conclusões-chave, segundo Rodríguez: a Hispano-América estava formada por povos novos; existia uma natureza americana, 55

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quer dizer, traços particulares, de psicologia social, próprios e peculiares; e as particularidades e especificidades americanas exigiam análise e soluções próprias. Vários historiadores dedicados ao estudo dessa experiência martiana no México, na Guatemala e na Venezuela, costumam defini-la como um processo que se inicia com uma etapa de revelação da Nossa América, indo até uma etapa que culmina com a consciência da necessidade de sua fundação. Essa etapa da revelação seria constituída pelas experiências no México e na Guatemala, que representaram o encontro com a realidade autóctone americana e a revelação de uma identidade histórico-social da região. Já a experiência venezuelana significou uma decisiva evolução em seu pensamento: a consciência da necessidade de empreender as transformações sociais necessárias para a fundação da América nova. Ao mesmo tempo em que Martí reconhecia as dificuldades na concretização da Nossa América, manifestava em seus discursos uma consciência firme da necessidade de sua fundação. Tal consciência se colocava diante do quadro de uma América de “colossais e adormecidas forças” (VII, p. 198). Tais forças necessitavam ser primeiro conhecidas, reveladas; depois, sacudidas, despertadas; pois tratava-se de forças que se encontravam ocultas – ou encobertas –, em sono profundo, represadas e comprimidas. Tal análise justificou as imagens de que Martí fez uso em sua obra. E esse conjunto de imagens, constituído pelas metáforas martianas, corroborou e adornou o conteúdo utópico de seu projeto de construção de um campo de identidade para a Nossa América. O cubano Cintio Vitier empreendeu brilhantes estudos acerca dessas imagens martianas. Ressaltou uma constante na obra de Martí, qual seja a ideia de “erupção histórica” como traço essencial do hispano-americano (Vitier, 1982, p. 9-10). De fato, 56

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Martí elegeu a metáfora da erupção vulcânica, como a mais representativa e fiel, em sua opinião, ao processo libertário americano. Tal erupção consagrou-se como símbolo maior da autoctonia e da liberdade secularmente comprimidas. Desde 1875, no México, ele já afirmava: “a vida americana não se desenvolve, brota” (VI, p. 200). E o verbo brotar, e seus análogos, foram constantes na obra de Martí para expressar o fenômeno hispano-americano. A ideia de erupção denota aquilo que vem de si mesmo, o conteúdo nativo do ser. Assim, a América brota e se revela, de si mesma, como raiz que se alimenta de seu próprio subsolo. Tal era o significado para Martí da autoctonia do ser americano. Verifica-se, assim, em seu discurso, uma peculiar teluricidade histórica. Esse povo que ainda não construiu uma comunidade de interesses, uma fusão perfeita de seus elementos; enfim, que não conquistou todavia uma cultura própria, é um povo que brota, que emerge de si mesmo, que irrompe. Por isso, Martí via sua América como um fenômeno novo e original. É assim que, em uma carta de 1881, ao amigo Teodoro de Aldrey, Martí dizia que consagrava toda a sua vida à revelação, sacudimento e fundação da sua América (VII, p. 267). Essas três expressões serão por ele constantemente utilizadas em suas referências à Nossa América. Mas não seria uma contradição sacudir o que não existe e fundar o que já existe?13 Na verdade tal contradição não ultrapassa a aparência. A explicação é que nesse momento, por estes termos, se revela a essência verdadeiramente utópica do discurso martiano. Tratava-se de revelar e sacudir a América que era, tal como se encontrava, cheia de tigres, para fundar uma outra que não era, ou ainda não era, como se desejaria que fosse. 13  Luís Toledo Sande (1992: 46) já havia observado muito bem essa aparente contradição.

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Seu discurso compreende assim as dimensões descritivo-projetivas. Antes da atuação dessa dimensão projetiva, tratava-se de descrever a realidade material concreta, que necessitava ser profundamente conhecida, desde suas entranhas. Nesse suporte realista se assentava a coerência prática e histórica que sustentou e legitimou seu projeto utópico. No anúncio do projeto dessa sociedade alternativa desejável já estava implícito uma denúncia das imperfeições da sociedade presente e o reconhecimento de que não se havia logrado, pelo menos ainda, essa nova sociedade almejada. Para além da soma qualitativa dos elementos históricos e culturais imprescindíveis a qualquer processo de identificação, paradoxalmente, foi nesse projeto, ainda não conquistado – que se apoiava nos elementos da realidade que foram deixados de lado na construção das repúblicas hispano-americanas –, que a identidade da Nossa América encontrava sua plenitude. No entanto, embora José Martí tenha utilizado em vários de seus textos uma linguagem bíblica, com certos momentos de profetismo e até de messianismo, chama a atenção em seu projeto utópico, um suporte notadamente realista. Em sua obra não há uma oposição excludente entre realidade e utopia; pois seu projeto utópico não se construiu à margem dos espaços conflitivos de sua própria realidade. Martí reclamará um conhecimento profundo dos processos históricos de cada povo e dos componentes e características que o conformam culturalmente. Nossa opção preferencial, neste trabalho, pelos textos martianos que correspondem à etapa final de sua produção, não é fortuita. Significa exatamente nossa preocupação em resgatar o conteúdo amadurecido pela longa trajetória de reflexão de Martí sobre a realidade hispano-americana. Ao redigi-los, ele já havia acumulado grandes conhecimen58

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tos acerca das necessidades e dos problemas concretos dessa realidade, além de grandes experiências mediante suas lutas intermináveis contra interesses políticos que propugnavam soluções alheias aos problemas dessa América, sem levar em conta suas peculiaridades. A argentina Liliana Giorgis assinala que na obra martiana, não há propriamente contraposição entre realismo e utopia, mas sim entre o real e o dissimulo, o encobrimento e os disfarces (Giorgis, 1994, p. 10). Estes últimos, sim, formavam o instrumental utilizado na retórica modernizadora dos letrados artificiales para legitimar as imagens por eles mesmos construídas, em função de seus próprios interesses. Esse era o instrumental daquelas interpretações da realidade americana, pautadas pelo binômio civilização e barbárie. Os problemas, ou as causas da enfermidade dessa América, segundo tal explicação, eram decorrentes da sua própria condição de barbárie. Ao contrário, Martí explicava esse padecimento americano em função exatamente dessa perniciosa representação dos redentores bibliógenos. Para ele, esse discurso salvador modernizante, levado a cabo pela via do livro importado, teria encoberto e excluído do cenário americano aqueles projetos e perspectivas de bases autóctones. A nossa América Falamos muito até aqui acerca do termo martiano Nossa América. Pelo fato de este capítulo estar tratando exatamente do que o projeto utópico martiano propôs, em termos de parâmetros constitutivos da sua sociedade alternativa, acreditamos ser prudente, neste momento, aclarar melhor o real alcance de tal conceito. Por exemplo, há uma tendên59

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cia generalizada entre vários autores martianos – em nossa opinião equivocada –, em considerar o termo Nossa América como sinônimo de América Latina. Não há dúvidas de que o conceito América Latina, na atualidade, encerra um leque incomensurável de postulações e definições que abrangem várias dimensões, tanto geográficas quanto étnicas, culturais, históricas... Tanto, que inclusive é uma prática frequente introduzir qualquer estudo no âmbito da História da América Latina invocando a problemática, a imprecisão e falta de rigor que carrega esse conceito. Se há algum consenso entre esses estudos, este reside precisamente no caráter polêmico do epíteto latina. Embora se trate de uma intrigante e convidativa polêmica, não é nosso propósito aprofundar aqui a discussão acerca dos significados e alcances atuais do termo América Latina, mas sim, apenas confrontá-lo com o conceito martiano de Nossa América e, assim, demonstrar seus distintos alcances e significados. É evidente o anacronismo praticado quando se transpõe mecanicamente o conceito de América Latina, tal e qual o concebemos em pleno século XX, para nominar uma realidade histórica da segunda metade do século XIX e a ela se referir, numa época em que o próprio conceito, enquanto substantivo, passava ainda por um período de gestação e era utilizado com esse conteúdo apenas por setores restritos da intelectualidade hispano-americana. É inegável ainda que, desde quando o colombiano José María Torres Caicedo e o chileno Francisco Bilbao publicaram em Paris, no ano de 1856, ensaios onde aplicaram a essa América de forma pioneira o qualificativo de latina, até os dias atuais, esse conceito incorporou uma imensa e variada carga de significados. E mesmo aqueles pensadores do fim do século passado que se referiam à América Latina, unindo a ideia ao conceito, e 60

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não mais a uma América latina, como adjetivo, certamente não concebiam o termo com o mesmo significado que o concebemos nos dias de hoje. Segundo a tese do argentino Arturo Ardao (1993), na década de 70 do século XIX estaria já encerrada a etapa de criação, propagação e admissão do nome América Latina. No entanto, se torna difícil precisar até que ponto esse conceito se difundiu de forma generalizada entre os pensadores americanos dessa época. No caso de José Martí, mesmo no auge da sua produção, quando sua obra se encontra mais amadurecida – algo entre os idos de 18891891 –, ele não utilizou predominantemente o termo América Latina. Várias denominações foram empregadas, tais como Hispano-América, América Espanhola, América do Sul ou Nossa América Latina. Porém, a denominação mais significativa, ao lado do uso de América simplesmente, foi sem dúvida Nossa América, que nominou inclusive seu principal e mais conhecido ensaio, publicado em 1891. Por várias vezes, Martí tentou apresentar uma espécie de delimitação geográfica para a Nossa América, ao se referir à região que se estende “do Bravo ao estreito de Magalhães”. E em função disso, o leitor poderia perguntar sobre o espaço reservado por José Martí ao Brasil. O problema é que, em que pesem os louváveis esforços e iniciativas de alguns historiadores cubanos, tais como Rodolfo Sarracino e Ramón de Armas, para analisar a visão martiana do Brasil, acreditamos que tais perspectivas exageram talvez por um certo otimismo14. 14  Num breve artigo, Sarracino (1993) analisa essa relação entre Martí e o Brasil, basicamente em seus escritos durante a Conferência de Washington, e enumera 48 ocasiões em que Martí menciona o Brasil ao longo de toda a sua obra. No entanto, tais citações martianas, pelo seu contexto e conteúdo, pouco alteram o quadro de certa omissão na obra de Martí acerca do caso brasileiro, principalmente quando trabalhamos numa dimensão histórica e cultural. Desconhecimento? Barreira do idioma? Reservas naturais – até 1889 – de um republicano em relação a um país monárquico, por essência despótico e autoritário? Temor diante da de-

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Tudo nos faz crer que, embora Martí tenha empregado por vezes o epíteto latina, ainda que com pouca frequência; quando o fez, se referia mais a uma América adjetivada e menos como um termo substantivo. Quando sentia a necessidade de atribuir algum qualificativo para sua América, era nítida a preferência martiana por expressões tais como povos castelhanos, América Espanhola, Hispano-América, etc. As evidências indicam que as experiências de vida de Martí em Cuba, México, Guatemala, Venezuela e suas constantes viagens e contatos com vários países da região da América Central e do Caribe fizeram com que naturalmente suas atenções e preocupações estivessem voltadas de forma mais efetiva para esta parte da América espanhola. Martí talvez reconhecesse mesmo algumas limitações inerentes ao nome América Latina, muito provavelmente pelo fato do elemento latino não congregar para ele todas as características que o habilitassem a se constituir no cimento de uma identidade para essa América. Assim, o verdadeiro alcance do conceito de Nossa América transcende as delimitações geográficas, políticas, linguísticas e étnicas que constituem a base dos debates acerca da validade do conceito de América Latina. O verdadeiro cimento de uma unidade e de uma identidade estaria, no discurso de Martí, num plano que se aproxima mais do histórico, cultural e, mesmo, espiritualista. Falava constantemente em uma alma continental, um espírito novo, americano, que habitaria uma nova América. Na ótica martiana, o que caracterizava e definia a Nossa América seria, assim, a sua unidade de valores, propósitos e interesses, construída ao longo de sua história comum. Desse modo, o pendência comercial do Brasil em relação aos Estados Unidos e de uma possível aliança entre os dois países? Seja qual for o motivo, o fato é que não nos consideramos com elementos suficientes para oferecer ao Brasil um papel de destaque no projeto martiano da Nossa América.

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conceito Nossa América acaba por abranger um alcance bem mais amplo que aquelas interpretações dadas ao conceito de América Latina. Quisemos aqui, portanto, demarcar e delimitar tais conceitos – América Latina e Nossa América –, ainda que de forma sucinta e preliminar, para estabelecer as diferenças de alcance entre ambos. Em decorrência do reconhecimento de tais diferenças – em substituição à identidade latino-americana –, seria então até mais preciso e aconselhável falar do projeto martiano como a busca de uma identidade para a Nuestra América ou de uma identidade nuestramericana. O orgulho de ser americano Conforme já nos referimos por diversas vezes ao longo deste livro, Martí viveu numa época de predomínio de representações da Hispano-América como um corpo enfermo, numa época de predomínio de representações que se pautavam na inferioridade e na incapacidade do povo hispano-americano, pelo fato de o mesmo ser visto como a matéria-prima da barbárie. Tal sentimento de inferioridade, que tomava conta da quase totalidade do pensamento americano de fins do século XIX, feria de morte a autoestima desses povos, levando muitos a uma negação das próprias origens. Martí reconhecia que nenhum povo jamais poderia em sã consciência sentir vergonha de seu próprio passado, por mais doloroso que fosse. Todos esses sofrimentos deveriam, ao contrário, se constituir em elementos de identificação e de liberação desse ser americano, contra todo tipo de injustiça de que era vítima. Dizia Martí que todo esse veneno havia de ser trocado por seiva. Buscar as verdadeiras raízes, fossem quais 63

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fossem e onde quer que estivessem, era uma necessidade para quem se encontrava com o orgulho ferido. Essa América de Martí, com todos os seus problemas e desafios – essa América com tendências à fragmentação, de tantas más heranças do colonialismo –, era a única possível realidade com que se podia contar e a que deveria ser assumida e potencializada (Zea, 1990, p. 73). A formação dos povos americanos foi, para Martí, mais pitoresca, mais ingênua e muito mais heroica, inclusive, que a formação dos povos gregos, considerados como arquétipo da época. Sobre isso, afirmava que nunca havia nascido, de tamanha oposição e infelicidade, um povo tão precoce, generoso e firme (VI, p. 138). Um povo fruto da mestiçagem, da vitalidade brilhante da raça autóctone, que “pensa de uma maneira que tem mais luz, sente de uma maneira que tem mais amor.” (VI, p. 200). Assim, contra o sentimento predominante de inferioridade e desdém em relação ao ser americano, em particular à raça mestiça, Martí entoou um hino ressaltando o orgulho de ser americano. Advertia, porém, que esse orgulho da América não deveria ser um orgulho de futuros servos nem de aldeões deslumbrados, mas de quem deveria contribuir “para que a estime por seus méritos e a respeite por seus sacrifícios.” (VI, p. 140). Para Martí, portanto, em nenhuma outra pátria do mundo poderia o homem ter mais orgulho do que nas “repúblicas dolorosas da América”. Tratava-se de um povo que, apesar de todos os seus problemas e dificuldades – talvez até por isso mesmo –, buscava encontrar seu próprio caminho, com suas próprias forças, levando na bagagem a maturidade e a experiência de seus longos sofrimentos. Por isso, a América necessitava seguir só seu próprio caminho e, como um só povo, deveria se levantar, lutar e vencer, pois, a maior riqueza e a maior liberdade seriam aquelas criadas com suas próprias mãos. 64

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O verdadeiro americanismo, o americanismo são, não seria aquele reivindicado em nome de políticas continentais de fins nefastos às repúblicas americanas “de menor poder”, muito menos aquele elaborado a partir das receitas de um livro importado, que encaravam e buscavam interpretar a realidade americana com um instrumental criado e desenvolvido a partir de realidades alheias, esse falso americanismo que negava as próprias raízes, a própria identidade, vista como sinônimo de barbárie. O americanismo sadio pede que cada povo da América se desenvolva com arbítrio e exercício próprios, necessários à saúde – ainda que ao cruzar o rio molhe sua roupa e ao subir, tropece – sem prejudicar a liberdade de nenhum outro povo (VIII, p. 35).

Essa fé em suas próprias forças e o conhecimento das suas verdadeiras necessidades é que deveriam fazer despertar este gigante colossal e desconhecido: a América fabulosa de Martí. E desse gigante adormecido haveria de brotar tipos originais, novos. Não de cópias servis de naturezas esgotadas. Somente o genuíno é frutífero. Somente o direto é poderoso. O que o outro nos lega é como manjar requentado. Compete a cada homem reconstruir a vida: o pouco que mirar em si mesmo, a reconstruirá (VII, p. 230).

Dessa forma haveria de se conquistar o verdadeiro status de americano. A verdadeira independência seria aquela que libertasse o homem americano dessa vida legada, aquela que desse ao continente uma expressão própria. Martí perseguiu obstinadamente, em sua vasta obra, a valorização e divulgação de tudo aquilo que pudesse contribuir para a edi65

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ficação de um novo edifício americano15. Em seu trabalho como escritor e correspondente de vários periódicos, buscou o intercâmbio de informações entre a Hispano-América e a Europa e, mais tarde, os Estados Unidos. Buscou divulgar nessas nações estrangeiras os êxitos e as conquistas do povo de sua América. Seu intento foi propagandear o espírito novo americano e sua “nova modernidade”. Martí, seguramente, acreditava que o sonho dessa nova América já começava a cumprir-se: América, gigante feroz, coberto com farrapos de todas as bandeiras – das quais os gérmens das cores intoxicaram seu sangue –, vai livrando-se de suas vestimentas, vai desligando-se desses resíduos amalgamáveis, vai sacudindo a opressão moral que distintas dominações nela deixaram, vai redimindo-se de sua confusão e do servilismo das doutrinas importadas – para viver sua própria vida, atualmente vacilante, mas logo firme, sempre combatida, molestada e invejada –, caminha em direção a si mesma, criando instituições originais, reformando e acomodando suas estranhas, pondo seu cérebro sobre seu coração; e contando suas feridas, para sobre elas calcular a maneira de exercitar sua liberdade (VII, p. 348).

Embora muito “se havia arado no mar” – para usar sua expressão –, a Nossa América surgia dos desertos, coroada de cidades, levantava palácios, domava a selva, produzia seus próprios periódicos e livros. Esse espírito novo americano haveria de surgir; e já tomava forma com as academias de índios, com o intercâmbio útil com as economias mais adian15  Um exemplo de sua preocupação com as coisas da terra foi o esboço que realizou de um pequeno dicionário americano, onde pretendia “reunir as vozes nascidas na América para denotar coisas próprias de suas terras.” (VIII, p. 119).

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tadas, com o progresso técnico e científico, com a consagração e o respeito ao pensamento alheio (VI, p. 25). Mas essa prosperidade em perspectiva, ainda que uma possibilidade, se deveu à custa de muito sangue, de muito sofrimento, de muitos embates. Assim se moldaria esse povo americano, como “a pedra bruta chega a brilhante depois de rudes golpes.” (VII, p. 349). A biblioteca alternativa Tal confiança repousava num profundo conhecimento de causa, pois seu realismo utópico só seria viável a partir de um conhecimento amplo da realidade americana. Por isso, é importante levar em conta o significado do processo do conhecimento para Martí. Em seus cadernos de apontamentos, encontramos algumas passagens em que apresenta algumas divagações teóricas e filosóficas sobre esse assunto. Para ele, a fonte mais confiável da verdade seria o próprio exame: para conhecer se fazia necessário examinar, pela observação; pois, só se conhece, só se entende uma coisa, examinando-a. No entanto, acreditava não podermos conhecer as causas das coisas em si mesmas, já que as mesmas não nos são reveladas diretamente. Então, que devemos fazer para saber? A quem devemos perguntar? A Deus? À fé? Aos livros? Sua resposta será contundente: perguntem à natureza. Como? Independentemente de qual fosse o critério adotado, para Martí, mais seguro que observar o exame que faz o critério alheio, seria examinar, por nós mesmos, com nosso próprio critério. Perguntar diretamente à natureza. É mais fácil resolver os problemas conhecendo-os previamente. E a fonte do conhecimento – portanto, a solução dos problemas –, deveria ser 67

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buscada na própria natureza, numa palavra, na própria realidade material e social americana. Em certa medida, o discurso martiano não ficou imune às fortes influências do positivismo de Augusto Comte, Herbert Spencer e outros, tão marcantes entre os pensadores de sua época, muito embora não tenha assimilado com rigor as concepções mais anticientíficas do positivismo. Abraçou, sim, o postulado positivista da prova da verdade pela comparação com a experiência. Acreditava ser possível prever cientificamente os acontecimentos por meio do conhecimento teórico. Martí via com bons olhos o progresso técnico e científico, analisava atentamente a evolução e as inúmeras descobertas das ciências de sua época. Acreditava num futuro grandioso para a humanidade, a partir do conhecimento de determinadas leis gerais que regiam os fenômenos naturais e humanos. Mas considerava o instrumental teórico, até então utilizado para explicar a realidade americana, como insuficiente, impróprio para essa tarefa. Exatamente porque esse instrumental não levava em conta a própria “natureza”, a própria realidade americana. Era um instrumental de análise elaborado e surgido em uma realidade alheia, por isso duvidoso, inadequado ao contexto americano. Daí que Martí, negando esse modelo da importação, empunhado pelos redentores bibliógenos, reivindicava um arquivo da tradição, um saber americano, alternativo, uma universidade americana, uma biblioteca alternativa (Ramos, 1989, p. 234). A universidade europeia há de ceder à universidade americana. A história da América, dos incas para cá, há de ser ensinada em detalhe, ainda que não se ensine a dos arcontes da Grécia. Nossa Grécia é preferível à Grécia que não é nossa. Para nós, é mais necessária (VI, p. 18). 68

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Essa era a chave para o que Martí denominou enigma hispano-americano. As respostas às perguntas: quem éramos? quem somos? quem poderemos ser? não poderiam ser buscadas nem no livro europeu, nem no livro estadunidense. Havia que se estabelecer uma grande cruzada de estudo de seus próprios problemas. O futuro da Nossa América não poderia estar nas ideias vindas de fora, muito menos nas amizades artificiais, nem tampouco na crença na suposta superioridade alheia. Em vários momentos, Martí não se cansava de denunciar a incapacidade e ineficiência desses modelos externos para resolver os problemas dessa América. Será alimento suficiente para um povo forte, digno de sua alta estirpe e de seus magníficos destinos, a admiração servil a estranhos rimadores e a aplicação cômoda e perniciosa de indagações de outros mundos? (VII, p. 209).

Em outro momento Martí afirma: “Que o mundo seja enxertado em nossas repúblicas; o tronco, contudo, há de ser o de nossas repúblicas.” (VI, p. 18). Fica aqui claro o alcance do conceito de identidade para Martí. Por um lado, ao proclamar tal “enxerto”, estava, obviamente, muito distante de propor qualquer tipo de isolacionismo. Não negava, inclusive, as possíveis contribuições da própria cultura espanhola, contrariando a maior parte da intelectualidade de sua época, que buscava retirar a legitimidade da cultura hispânica, identificando-a com um passado imposto, num verdadeiro movimento de negação da considerada “cultura da tutela”. A luta de Martí contra a Espanha, e não contra o povo espanhol, era uma luta contra a instituição do colonialismo. Sem dúvida, não alimentava um sentimento de hispanofobia, que, aliás, era incentivado exatamente por setores da sociedade estaduni69

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dense, ferreamente combatidos por Martí. Tais setores eram representados por aqueles que engrossavam campanhas pela anexação da ilha de Cuba, por parte dos Estados Unidos. Por outro lado, quando afirmava que “o tronco há de ser o de nossas repúblicas”, não aceitava a universalidade pretendida pela modernidade europeia e sua cultura de sustentação. A universalidade daquelas civilizações que se impuseram sobre o povo da América para destruí-lo. Também não aceitava que, em nome desses valores e ideias, alheios, supostamente superiores, se pudesse perder a fisionomia própria, o rosto próprio. E tampouco há aqui qualquer redução de identidade a uma perspectiva estreita, aldeã, desconectada de uma realidade universal. Esse tronco americano haveria de ser bastante forte para que o mestiço autóctone seguisse alimentando-se de suas múltiplas raízes e enxertos (Retamar, 1991, p. 159). É nessa formulação martiana que verificamos sua noção de equilíbrio perfeito entre a individualidade de uma cultura e sua integração com uma totalidade. E mesmo quando afirma: “Nem de Rousseau nem de Washington vem Nossa América, mas sim dela mesma!” (VIII, p. 244), esse “dela mesma” não pretendeu necessariamente negar influências doutrinais, fossem europeias ou estadunidenses, muito embora a originalidade dessa nova cultura americana consistisse exatamente em comportar determinados valores culturais e estilos de vida que se diferenciavam das matrizes europeias e estadunidenses. A questão é que, segundo a perspectiva martiana, a originalidade da cultura da Nossa América consistiria precisamente no resultado da depuração de inúmeras contribuições alheias, a ser efetuada pelo tronco americano. Essa originalidade, enquanto tal, brotava, pois, a partir do solo americano, fosse qual fosse o enxerto utilizado.

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Porque não vale tirar umas pedras e trazer outras, nem substituir uma nação depauperada por uma nação prostituída, nem tirar o coração e colocar outro em pedaços, com uma aurícula francesa e um ventrículo inglês, por onde corresse a contragosto, com seus glóbulos de sonho, o sangue espanhol; mas sim, o que é a caldeira da terra, que, com seus carvões, há de ferver os agregados estrangeiros, de modo que sorvam o sabor do país (...) (VII, p. 358).

Rechaçada assim essa perspectiva do “livro importado” e dos modelos externos; a alternativa seria, então, colocar em relevo a capacidade e imperiosidade de a Nossa América buscar seus próprios caminhos, a partir de seus próprios esforços e de suas próprias origens. Se as soluções dos problemas não estavam facilmente dadas, dever-se-ia estudar sua própria realidade a fim de encontrá-las. “À própria história, soluções próprias. À nossa vida, nossas leis.” (VI, p. 312). Essa tendência imitativa predominante nos meios intelectuais americanos significou para Martí um dos maiores problemas que enfrentava a Nossa América. O pior mal causado por esses modelos importados estava na sua capacidade de impedir uma autointerpretação de sua realidade. Essa perspectiva acabava por bloquear a criatividade e a imaginação desses povos, tão necessárias para a superação de seus problemas. Com bastante otimismo, característica de todo pensamento utópico, Martí via já surgindo um incipiente pensamento americano, que se libertava aos poucos dessa perversa via imitativa. Isto porque Entendem que se imita demasiado e que a salvação está em criar. Criar é a palavra-chave dessa geração. O vinho, de banana, se sai ácido, ao menos é nosso! (VI, p. 20). 71

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Contra a prática da importação excessiva de ideias e fórmulas alheias, a solução seria criar, edificar uma nova biblioteca; uma biblioteca da “natureza”, alternativa, da própria terra. O exercício ordenador Assim, a grande tarefa dessa biblioteca alternativa e o dever urgente da Nossa América seria “(...) mostrar-se como é, una, em alma e intento (...).” (VI, p. 22). Mas quais seriam as bases da unidade de que falava Martí? O fato é que o discurso martiano se colocava diante de uma realidade americana tomada pela fragmentação, uma realidade desconjuntada. Sua grande tarefa foi condensar e reunir o disperso, fazendo uma projeção do futuro. O que Júlio Ramos (1989: 232) denominou de “exercício ordenador”, necessário para defender a Hispano-América tanto dos tigres internos quanto dos externos. A unidade, aqui, compreendia dois níveis: um caracterizado pela necessidade de defesa ante as ameaças de intervenção estrangeira, uma unidade frente ao perigo comum e, outro, representado pelo que Martí denominou unidade de “alma e espírito”. Embora em determinado momento, em seus primeiros dias em Nova York, Martí tenha se declarado impressionado com o ar de liberdade que pairava sobre a sociedade norte-americana – como já mencionamos anteriormente –, na medida em que aprofunda seu conhecimento sobre aquela sociedade, percebe não só os elementos que a distinguiam do restante do continente, como também a real ameaça que representava a política expansionista dos Estados Unidos frente às outras nações da América. A liberdade, e prosperidade, dos 72

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povos da América seria – conforme chegou a afirmar mais tarde – tanto mais efetiva e viável quanto mais esses povos se apartassem dos Estados Unidos. Como Martí acreditava que o momento da “visita” estava próximo, que logo iria chegar o dia da expansão sobre a Nossa América, seu discurso será um hino em favor da unidade desses povos, como condição para se defender ante o agressor comum. Daí que esses povos deveriam rapidamente se preocupar em se conhecer, “como aqueles que juntos vão à luta.” (VI, p. 15): As árvores hão de se colocar em fila, para que não passe o gigante das sete léguas! É a hora da recontagem e da marcha unida, e haveremos de andar bem unidos, como a prata nas raízes dos Andes (VI, p. 15).

Por outro lado, a proposta martiana era de uma unidade que se opusesse às propostas de união dos Estados Unidos, como aquelas apresentadas por ocasião das Conferências de Washington. Uma proposta de unidade que combatesse os postulados do denominado “pan-americanismo”16. Tal proposta de união pan-americana era no fundo uma proposta de unidade sob a tutela dos Estados Unidos, inspirada na filosofia da Doutrina Monroe, que ameaçava a liberdade das nações da América, colocando em risco sua própria independência. Numa Carta a Gonzalo de Quesada em 1889, dizia Martí que trocar de dono não significava ser livre (VI, p. 120). Desse modo, considerava haver chegado o momento de declarar a segunda independência da Hispano-América. Rebatia a proposta de unidade artificial, anti-histórica, entre dois fatores continentais, marcados por suas diferenças de espírito, 16  Quando da realização das Conferências de Washington (1889-1891), nos Estados Unidos tornou-se comum denominar essa proposta de união dos países do continente americano de “Pan-América”.

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origens e interesses. Compreendia que o fato geográfico de viverem juntos em um mesmo continente não se mostrava suficiente nem obrigava a uma união política. Tinha consciência de que se duas nações não possuíssem interesses comuns, modos de vida comuns, não poderiam juntar-se. Caso contrário haveria um choque. Na vida comum, as ideias e os hábitos devem ser comuns. Não basta que o objeto da vida seja igual para os que hão de viver juntos, mas é preciso que a maneira de viver também seja igual; ou lutam, e se desdenham, e se odeiem – pelas diferenças de maneira –, como se odiariam pelas diferenças de objeto. Os países que não têm métodos comuns, mesmo se tivessem idênticos fins, não poderiam se unir para realizar seu fim comum com os mesmos métodos (VI, p. 159).

A questão é que a palavra de ordem de unidade lançada por Martí não se restringia à unidade no plano político. Jamais deixou claro qualquer projeto de integração dessa natureza. Mesmo diante da oportunidade criada com a Conferência de Washington, não chegou a propor nenhum congresso ou reunião política de países da Nossa América, a exemplo de outros, como o do Panamá. Falava, sim, de uma unidade que não se limitava às fronteiras administrativas criadas pelo colonialismo espanhol, muito menos àquelas criadas posteriormente pelos estados nacionais no período após a independência. Embora não tenha formulado na totalidade um conceito de nação, é como se tivesse adquirido uma espécie de consciência nacional num sentido bem mais amplo. Em realidade, seu conceito de Nossa América não tinha relação direta com os estados nacionais hispano-americanos, pois seu alcance não era determinado em função das fronteiras nacionais. A Pátria 74

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martiana assume, no fundo, uma característica supranacional, incorporando elementos culturais, valores e modos de vida peculiares, que constituem seu campo de identidade. Uma pátria, culturalmente falando, essencialmente, mestiça. Sua pátria era a própria imagem da América, da qual se considerava um filho. Referia-se à Mãe América como aquela que congregava todas as nações irmãs. Ao escrever em 1894 sobre a morte do jornalista e amigo Federico Proaño, Martí finalizou: “Durma o equatoriano em solo guatemalteco, onde o amou um poeta cubano. É una a América.” (VIII, p. 258). Segundo o cubano Roberto D. Agramonte (1984), a ideia de pátria em Martí encontrava-se determinada por sua ânsia fundadora. Sem dúvida, o longo exílio de Martí, o tornava um despatriado, um desenraizado, de forma que sua pátria era algo não somente desejado, mas que necessitava, sobretudo, ser buscado e conquistado. Por outro lado, sua ideia de pátria não se reduzia ao apego puro à terra, àquela manifestação típica do espírito aldeão. A pátria se revelaria, ainda, sobretudo quando houvesse necessidade de defendê-la ante o invasor e o opressor. Nesse sentido, a ameaça dos Estados Unidos jogou um considerável papel na evolução e no amadurecimento desse seu sentimento patriótico. Mas sua ideia de Pátria não se limitava apenas a tais conteúdos. Ia muito além. A tão propalada unidade em formas políticas, que, aliás, também não descartava em seu discurso –, talvez apenas a considerasse como um projeto em longo prazo –, deveria ser precedida de uma unidade de espírito que iria sedimentar a verdadeira união, com base em laços de solidariedade, que preponderassem sobre o espírito localista, regionalista, egoísta, que tantos ódios e disputas inúteis provocou no seio das sociedades hispano-americanas em toda sua história. É como se cada povo, ao longo de suas experiências históricas, prin75

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cipalmente das dolorosas experiências vividas, forjasse uma espécie de alma própria comum, que seria a garantia de uma convivência harmoniosa e fraterna. Todos estes elementos, enfim, iriam compor as bases de sua profissão de fé pela unidade da Nossa América. Esbarrando entre as fronteiras do é e do deve-ser, Martí buscou com seu discurso colocar em relevo aqueles elementos de identificação-diferenciação dos povos americanos. Se, por um lado, não se cansava de afirmar coisas do tipo: “Nossa América é una!” (VI, p. 102), “(...) do Bravo ao Prata não há mais que um só povo.” (VIII, p. 180), por outro, tinha consciência de o mero reconhecimento dessa unidade não ser suficiente para romper o estado real de fragmentação. Era preciso juntar. “Pela primeira vez me parece útil uma corrente para atar, dentro de um mesmo cerco, todos os povos da minha América!” (VII, p. 118). União, essa, não somente considerada desejável e viável, mas sobretudo necessária e urgente. Fazia-se necessário ir aproximando o que haveria de acabar por estar junto. Enquanto a razão apontava para uma realidade fragmentada, o coração demandava sua integração. Tal era a relação dialógica entre presente e futuro que permeava seu discurso em favor de uma América nova. Mas quais seriam os cimentos dessa nova unidade? Predominava no discurso martiano uma dimensão metafísica, no sentido da reivindicação de uma espécie de “alma continental”, que cimentava os laços de identidade desse ser hispano-americano. Assim, o discurso de Martí se encontrava carregado de expressões espiritualistas quando tratava da sua Pátria e da urgente e necessária unidade americana. São inumeráveis os usos de expressões, tais como unidade de alma, unidade de espírito, espírito novo, alma americana, alma da terra e outras do gênero. Por meio dessa unidade de alma e espíri76

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to, unidade da alma da terra, a Nossa América seria capaz de vencer a todos os seus desafios e problemas, de forma que tal unidade conferia a ela um enorme poder. Por toda a nossa América começa a mostrar-se o desejo – como se já houvesse começado a coalhar a alma continental – de conhecer, por suas raízes e desenvolvimento, a composição dos povos americanos (VII, p. 58).

O grande erro da perspectiva empunhada pelos redentores bibliógenos, segundo Martí, seria exatamente o fato de os mesmos jamais terem considerado essa “alma da terra”. Ou tê -la considerado enquanto barbárie, com marcado sentimento de desdém. É com tais cimentos e com tal instrumental que Martí se lançava ao seu exercício ordenador, tão necessário, em última instância, à construção desse campo de identidade em torno da Nossa América. Buscava apresentar uma alternativa para a superação desse estado de caos, a partir do conhecimento das causas desses desequilíbrios. Compreendia que a História americana não era um processo em que o ser, harmônica e progressivamente, acumulava os traços essenciais de sua identidade, ou seja, compreendia que a identidade não se representava como uma totalidade desde sempre constituída. O ser americano se representava, se identificava como efeito de uma violenta interação de fragmentos que tendiam, anarquicamente, à dispersão (Ramos, 1989, p. 232). É nessa interação, na tentativa de superação da tendência desagregadora, que se colocava a necessidade do exercício ordenador, como condição à conquista de uma personalidade própria, comum, como condição à conquista de um futuro comum; com certeza, a ser trilhado por caminhos distintos daqueles propugnados pela via do livro importado. 77

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A modernidade martiana Na base do projeto utópico martiano da sua sociedade alternativa esteve uma nova tomada de consciência da realidade americana, a partir de um conjunto de valores que se contrapunham à concepção geralmente aceita pelo pensamento de então. Representava um questionamento dos valores que faziam parte da visão de mundo propagada pelos civilizadores e baluartes da modernidade europeia. Uma das intenções deste livro é exatamente demonstrar que um dos objetivos do projeto utópico martiano foi, além de tentar colocar em relevo e denunciar o caráter eurocêntrica da perspectiva pautada na luta entre civilização e barbárie, buscar sua superação a partir da negação do seu caráter universal. Decorre daí a necessidade de nos determos um pouco mais sobre tais conceitos. Os termos civilização e barbárie estão intimamente ligados aos conceitos de modernidade, desenvolvimento, progresso e atraso. Todos esses conceitos aparecem num mesmo contexto, dentro de uma mesma perspectiva eurocêntrica de análise da História e das Ciências Sociais. Aceita-se a existência de um único modelo de desenvolvimento que é aquele representado pela evolução histórica e pelas conquistas da civilização europeia. Tal desenvolvimento advém do exercício consciente da razão. Essa transformação racional, necessária e desejável, se caracteriza por uma evolução, um progresso. Busca-se uma etapa final, de realização plena do progresso humano, através da descoberta das leis gerais que regem os fenômenos naturais e humanos. De forma que se torna possível prever cientificamente os acontecimentos através do conhecimento teórico. Toda a história é explicada, então, em função dessa ideia de progresso. Parte-se do pressuposto de 78

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o futuro já ser conhecido de antemão: é a própria civilização. Cabe desenvolver aquilo que toda sociedade já possui em forma embrionária, potencial, até o ponto final almejado. E, sendo este processo uma lei, tudo é justificado em nome do progresso e da civilização. Para se chegar ao fim desejado só há um caminho: o seguido pela Europa – ou pelos Estados Unidos do Norte, o modelo europeu vitorioso em terras americanas. Estes eram os modelos a serem seguidos. Aquilo que não seguisse esse caminho e que ainda não tivesse logrado o progresso, significaria atraso em relação ao modelo. Não havendo progresso, não há civilização, ou melhor, há não civilização, ou, o que seria o mesmo, barbárie. A partir destas polarizações entre progresso e atraso, entre civilização e barbárie é que se baseavam, predominantemente, as perspectivas explicativas da realidade americana à época de Martí. Sobre tais interpretações se centravam suas críticas, conforme veremos adiante. Dessa forma, segundo tal perspectiva, todas as análises das distintas realidades socioculturais estariam determinadas, em última instância, pelo contraponto civilização e barbárie. A única história – e com a história a cultura –, seria a história da conquista, da civilização expansiva e encobridora. A história da América seria encarada então como uma mera extensão da história europeia. As desigualdades se revelariam por trás da pretendida semelhança da cultura e do estilo de vida modernos. Segundo essa visão eurocêntrica, tudo aquilo que não se encaixasse na lógica do progresso e da civilização, de sentido único, que não se encaixasse nos valores e padrões de sua cultura, pertenceria ora ao campo do exotismo, ora ao campo das excrescências, do atraso – carente de progresso – ou da barbárie –, carente de civilização. Existiria uma história, uma lógica, uma razão, uma cultura: a da civilização. Era 79

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preciso maximizar o modelo social moderno, só ele capaz de um equilíbrio perfeito. Não estava em discussão uma análise dos valores distintos de cada povo, de cada cultura. Interessava apenas a funcionalidade do modelo. As disfuncionalidades necessitavam ser superadas por meio da maximização do modelo. Só restava aos civilizadores civilizar o que restasse de barbárie, em nome do progresso geral da própria civilização. Essa maximização do modelo partia do reconhecimento de um “custo social” necessário, que significava a superação dos particularismos em benefício da universalidade modernizadora, não numa desejável síntese superior da universalidade cultural dos valores, mas em benefício da mera funcionalidade do modelo. Tais eram os pressupostos que constituíam a base do pensamento predominante nos círculos intelectuais hispano-americanos do fim do século XIX. O que nos revela o discurso de Martí, ainda que de forma figurada e implícita, é sua preocupação em como se beneficiar da expansão moderna, dispondo-se, inclusive, a assumir a racionalidade técnica da produção mercantil, sem sacrificar sua própria identidade cultural, sem renunciar a seus valores próprios. Seria esse o único caminho para a pretensa modernidade? Se perder a fisionomia própria, o rosto próprio, fosse condição para o desenvolvimento, Martí deixava implícito que este não era o seu conceito de desenvolvimento. Quando afirmava que “uma tempestade é mais bela que uma locomotiva” (VII, p. 234), ele deixava claro seu ceticismo quanto ao caráter limitado desse progressismo, visto apenas como avanço técnico e científico. Não se tratava de uma negação do progresso, através de uma simples proposta de fim do progresso, mas uma negação “da religião do progresso, da crença no progresso.” (Ariès, 1990, p. 162). Martí empreendia uma crítica sutil àqueles que comungavam uma fé exagerada 80

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e cega no caráter benéfico irreversível e absoluto desse novo modelo de sociedade e seus valores culturais. Não concordava Martí que a vida dos povos americanos deveria resignar-se a uma melhor acomodação possível dentro dos limites e das circunstâncias objetivas impostas pela nova ordem mundial, ordem esta desenhada pelas grandes nações que encabeçavam a modernidade e a prosperidade material e econômica. A grandeza dos povos não está em seu tamanho, nem nas formas múltiplas de comodidade material, que em todos os povos aparecem segundo a necessidade delas e se acumulam nas nações prósperas, não pelo gênio especial de alguma raça, mas sim – e muito mais por isso! –, pelo fomento da ganância que há em satisfazê-las (VIII, p. 35).

Não era essa a dimensão martiana de prosperidade. Frente a uma prosperidade servil, preferia a cova independente17. Seu juízo, por exemplo, acerca dos Estados Unidos, não se restringia a uma visão temerosa de um país que ameaçava constantemente a soberania de sua Pátria e da sua América. Não condenava aquele país apenas pelas suas políticas expansionistas de dominação continental. Havia uma crítica contundente sobre os valores daquela sociedade do norte. Essa se afastava cada vez mais do modelo martiano. Como ter como modelo uma sociedade que coloca o pragmatismo e as razões de mercado acima de tudo? Uma sociedade que aceita a pregação da suposta superioridade de sua raça, que aceita a pregação da inferioridade da raça hispano-indígena-negra, como obstáculo para o desenvolvimento. Martí via 17  Assim se referiu ao mencionar os homens novos que fundaram a América do Norte, que, num grande anseio de liberdade, se recusavam veementemente a inclinar-se ante qualquer outra coroa (VI, p. 134).

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entre as duas Américas uma grande diferença de sensibilidade. Assim, não só condenava o “caminho” da imitação, como também o próprio arquétipo, o próprio modelo buscado e sonhado por tantos contemporâneos seus. Imitemos. Não! – Copiemos. Não! – É bom, nos dizem. É americano, dizemos. Cremos, porque temos necessidade de crer. Nossa vida não se assemelha à sua, nem deve em muitos pontos assemelhar-se. A sensibilidade entre nós é muito veemente. A inteligência é menos positiva, os costumes são mais puros. Como, com leis iguais, iremos reger povos diferentes? As leis americanas deram ao Norte alto grau de prosperidade e o elevaram também ao mais alto grau de corrupção. (...) Maldita seja a prosperidade a tanto custo! (XXI, p. 16).

Martí buscou desmentir as teses pregadas pelas doutrinas do darwinismo social e do evolucionismo spenceriano. Fez isso, segundo Noël Salomon18, em nome de um velho princípio da igualdade essencial dos homens. Acreditava Martí numa espécie de “igualdade original”, como uma lei natural, como algo imanente ao homem, numa palavra, a identidade fundamental da alma humana. No afã inclusive de condenar as explicações de caráter biologista, racista, que justificavam as desigualdades entre civilização e barbárie, Martí chegou inclusive a exagerar na aceitação de uma boa fé e boa vontade de todos, capaz de superar os antagonismos sociais. Onde o homem moderno via civilização e barbárie, ele via 18  O pensador francês Noël Salomon defende a tese de que, pelo fato de Martí ser filho de espanhóis, criado em tradições morais hispânicas, o mesmo estaria influenciado por essa ideia igualitária, muito arraigada na visão hispânica da sociedade, da ideia da existência de uma “nobreza da alma”, genuína, essencial, em cada indivíduo. Repete o autor um ditado Andaluz, segundo o qual “cada um tem sua alma em seu almario.” (Salomon, 1978, p. 45).

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distintas culturas, igualmente interessantes, que integravam a grande identidade humana. Considerava a universalidade como uma unidade plural e, por isso, bastante rica. Esse conteúdo espiritualista e humanista de sua proposta representava uma visão alternativa, que contrariava uma tendência geral do pensamento americano de então, fortemente marcado pelas influências do pragmatismo e do utilitarismo. Sem ter usado a expressão modernidade, essa ideia para Martí estaria representada por um estágio onde se concretizasse a conquista de uma liberdade plena, de respeito e convivência mútua, pautada no reconhecimento das inúmeras diferenças culturais, cada qual com suas peculiaridades, com sua identidade própria. Mais que uma liberdade política, seria a garantia de uma liberdade no plano espiritual. Poderíamos arriscar que a modernidade martiana, em seu sentido múltiplo, seria a busca da própria identidade cultural de cada povo. E se revestia de grande importância o como se verificava essa busca. Martí almejava a conquista de uma modernidade sim, fruto de inovações próprias, enriquecidas com a apropriação de descobertas alheias. O grande problema seria como, em meio a tantas transformações e interações entre culturas e estilos de vida tão distintos, preservar a própria fisionomia, a própria identidade. Na verdade, nesse contexto só seria possível a preservação da identidade própria mediante algumas condições básicas. Não bastava um esforço de adaptação permanente às transformações históricas operadas no seio das sociedades. Era importante ressaltar o como se proceder às transfigurações necessárias à preservação da identidade própria19. 19  Essa identidade só se preserva se esse grupo “se transfigura autonomamente, alterando os conteúdos de sua cultura dentro das pautas dela própria e para servir a si mesma. Essa autonomia no comando de sua própria dinâmica cultural é que faz uma cultura genuína e autêntica – porque serve à sociedade que a detém e se guia por seus próprios valores – ou espúria –, porque se deixa avassalar e guiar por valores estranhos.” (Ribeiro, 1986, p. 118).

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Para Martí, o moderno contido na sua América não se restringia meramente à proposta de um bem-estar material e econômico para os povos americanos. Seu conceito de progresso incluía, nitidamente, uma dimensão espiritual. Tratava-se, como bem ressaltou Noël Salomon (1972, p. 25), de exaltar a riqueza humana frente a todos os desprezos e todas as declarações de insuficiência que acompanhavam a onda da modernidade europeia e suas ramificações no continente americano. A defesa desse espírito de dignidade e sacrifício humanos era uma característica do profundo sentimento humanista que marcava o pensamento martiano, contrastando com uma época em que os conceitos de progresso e bom êxito se restringiam às possibilidades de riqueza econômica e material. Sua pregação em defesa da nobreza do elemento humano e pela harmonia de todas as raças se colocava no momento em que as explicações do suposto atraso do homem americano era justificado por argumentos biologistas, por doutrinas evolucionistas; enfim, por argumentos racistas. Haveria que se ressaltar a grandeza desse novo homem americano, contra todas essas acusações de inferioridade. Exatamente por todos os seus sofrimentos e humilhações, seu destino haveria de ser grande. A Nossa América seria a nova “casa da liberdade” de Martí, lugar de realização do que denominava novo espírito americano. Um novo comportamento moral, uma nova ética, novos valores, enfim, seriam o passaporte para esse novo topos martiano.

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Capítulo III

O sujeito O contato com o elemento autóctone americano

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eguindo as características do gênero utópico, como parte essencial de seu projeto, Martí, ao apresentar a sua sociedade alternativa, a Nossa América, a América nova, se preocupou em estabelecer e precisar o que seria para ele a essência do novo ser americano, que buscou representar por intermédio de seu discurso, a quem ele denominou de homem natural, o sujeito da síntese cultural hispano-americana. Para melhor compreender esse sujeito do projeto utópico martiano, se faz necessário resgatar a influência das experiências vividas por Martí durante seu exílio no México e na Guatemala (1875 a 1878) e na Venezuela (1881), fundamentais para a sua descoberta do elemento autóctone americano. Foi o momento da aproximação e um contato efetivo e direto de Martí com as culturas nativas do continente, com o ele85

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mento indígena americano, que lhe teria proporcionado um profundo sentimento de autoctonia, que moldaria seu pensamento futuro de forma implacável. Na Guatemala (1877), adquiriu consciência e se declarou convicto de que esses aborígenes americanos teriam constituído uma grande civilização. Tal experiência teria possibilitado a ele, desde então, um reconhecimento e uma consciência dos efeitos da modernização sobre essas culturas. É nesse momento que elabora um juízo crítico acerca do passado desses povos americanos, do que representou o episódio da conquista e colonização, do que representou esse choque cultural e suas consequências devastadoras para essas culturas autóctones. É quando lamenta a “página da história roubada pelos conquistadores”, a interrupção pelo advento da conquista desta “majestosa obra” americana. Mas tal experiência ainda lhe rendeu outros dividendos além do conhecimento desse passado. Despertou-o para a preocupação com o futuro que estaria reservado a esses povos, diante das ameaças concretas de seu próprio extermínio ou, no mínimo, de descaracterização completa de suas tradições e de seus valores culturais, frente às agressões e violências dos agentes do processo colonizador, para quem aqueles povos não passavam de incômodos e indesejáveis obstáculos à modernização, eram os bárbaros do processo civilizador. Num momento em que a intelectualidade hispano-americana não conseguia pensar e encarar sua própria realidade com independência da visão de mundo europeia, Martí também não se encontrava até então imune a essa tendência geral. Encontrava-se igualmente influenciado pelos modelos de pensamento europeus. Teria sido, segundo Ottmar Ette, exatamente essa experiência do contato com as culturas indígenas autóctones na região centro-americana que teria transformado sua visão de mundo e estabelecido os funda86

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mentos para uma negação consciente de seu pensamento, que ainda permanecia centrado na Europa (Ette, 1987, p. 112). Torna-se visível nos textos martianos dessa época a transformação de sua visão de mundo, a presença de elementos que indicam uma sensível evolução do seu pensamento, fruto dessa rica experiência com as raízes mais profundas na terra americana20. Foi a experiência vivida nesses países que lhe teria proporcionado a descoberta de uma antiguidade própria, ou, como Martí chamou mais tarde, Nossa Grécia. A afirmação dessa Nossa Grécia, aniquilada pela conquista, implicaria uma nova valorização da importância da antiguidade greco-romana ou da “outra” Grécia, em relação à América Espanhola. Em decorrência disso, Ette (1987, p. 112) vê nesse momento uma transformação na concepção martiana da identidade hispano-americana, na medida em que Martí começa a questionar as reservas culturais europeias em relação a suas consequências e funções na Hispano-América. É inegável que esse momento da vida de Martí, dessa experiência e desse contato direto com a realidade e com o elemento autóctone americano, se constituiu num marco onde começaria a se gestar e tomar corpo em seu pensamento uma ideia profundamente americanista. No entanto, a evolução de seu pensamento até uma posição mais radical, verificada em seus últimos dias, atravessou inúmeras contradições e caminhos tortuosos. Deu-se por meio da incorporação gradual de novos elementos – tais como a consciência do papel jogado pela população negra, a experiência de vida nos Esta20  Um exemplo bastante interessante e significativo, e não menos sutil, muito bem observado por Otmar Ette (1987, p. 112), é a mudança do pseudônimo que Martí utilizava em seus textos. Constata-se ter sido exatamente na Guatemala (em 1879) que Martí teria abandonado o pseudônimo Orestes – tomado da mitologia grega, numa transposição do mito grego ao contexto americano – e eleito um novo, tomado das culturas autóctones: Anahuac.

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dos Unidos etc. –, até chegar à formulação já amadurecida e cristalizada no conceito Nossa América. No entanto, a consciência americanista, a consciência autóctone adquirida nessa época, foi a base fundamental para a elaboração e o amadurecimento de seu projeto de identidade. Por conseguinte, essa autoctonia americana foi um elemento decisivo para a construção futura do seu conceito de homem natural – identificado por Martí com o índio, o negro e o camponês (VI, p. 20) -, como sujeito da cultura hispano-americana. Os sujeitos preteridos O sujeito social eleito e encarregado de encarnar o espírito da nova sociedade alternativa de um projeto utópico – como já mencionamos anteriormente – é evocado, quase sempre, em detrimento de outros sujeitos, considerados incapazes de lográ-lo. No entanto, tal escolha não é arbitrariamente determinada em função somente da classe social ou do grupo étnico a que pertence esse sujeito. Na verdade, os incapazes o serão somente na medida em que não puderem ou não quiserem empreender uma espécie de autotransformação, no sentido de assimilar o conjunto de valores que compreende aquilo que Martí denominou “novo espírito americano”. Assim, na definição martiana de qual venha a ser o sujeito capaz, e o incapaz, está presente um juízo ético com base em um referencial de valores por ele mesmo preestabelecido. Tanto que o seu próprio sujeito evocado, o seu homem natural, não pertence a uma única classe social nem a uma cultura ou etnia específica; é mais uma soma, o resultado de uma mestiçagem física e cultural, no sentido de uma síntese superior de todos os elementos que o formam. 88

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Certamente aqueles que ostentaram o espírito aldeão, localista, qualquer que fosse sua origem social, não eram para Martí capazes de alcançar uma condição de sujeitos históricos e culturais. Tal pensamento provincial e individualista, típico desse espírito aldeão, não permitiria uma tomada de consciência do homem hispano-americano em relação à sua inserção no contexto de uma nova ordem universal. Por não se preocupar com a integração e o conhecimento mútuos, sua prática egoísta e individualista impedia a construção de uma identidade num âmbito que extrapolasse os limites da sua aldeia. Um outro elemento que não poderia ser considerado digno de sujeito, na ótica martiana, seria aquele tomado pelo sentimento de desarraigo em relação à terra natal americana. Como já nos referimos anteriormente, esse fenômeno da falta de raízes tem relações estreitas com uma postura baseada na aceitação de um modelo universal de cultura, de progresso e de civilização. É acompanhado em geral da aceitação de uma suposta inferioridade do ser hispano-americano, em particular do elemento mestiço. Esse sentimento de vergonha das raízes mestiças, das próprias origens, não poderia ser pior para descaracterizar e desqualificar qualquer sujeito da cultura hispano-americana. Na verdade, este seria para Martí precisamente o anti-sujeito, o desertor, o traidor. Aquele que queria “fazer da América tapete para nações que lhes são inferiores em grandeza e espírito.” (VII, p. 252-253). Martí mencionou por várias vezes a importante contribuição histórica dada pela elite crioula ao continente americano, principalmente nas lutas anticoloniais. No entanto, ressaltou o caráter contraditório da figura representada por ele denominada “crioulo exótico”, que sempre teve dificuldades em considerar os elementos naturais da América. Assim, para justificar sua dominação sobre o mestiço, o crioulo tentou 89

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projetar sobre ele a negatividade de sua própria origem, o que segundo Pedro Morandé (1984, p. 155), não leva a concluir que essa ideologia tivesse sido internalizada a ponto de o mestiço não ser mais capaz de reconstituir-se como sujeito. Entretanto, devido a essa postura contraditória, pela distância mantida em relação aos elementos da terra, os crioulos se afastavam cada vez mais do papel de verdadeiros sujeitos da cultura hispano-americana, aos olhos de Martí. Arriscaríamos a dizer que exatamente a partir da “ideologia crioula” é que se originaram várias práticas, pensamentos e posturas, levados a cabo por importantes segmentos sociais, mas principalmente pela maior parte da inteligência hispano-americana – aqui entram os letrados artificiais e os redentores bibliógenos –, tais como a importação excessiva de ideias e fórmulas alheias, o desarraigo em relação ao que era da terra americana, o sentimento de inferioridade, além do já mencionado desdém em relação ao elemento autóctone. Aqueles a quem Martí denominou de letrados artificiais, ou mesmo de redentores bibliógenos, apresentavam também o seu sujeito próprio, considerado capaz de salvar a América de seus males e de suas enfermidades. Para eles, os elementos naturais da América, representados pela fusão do índio, do espanhol e do negro, se constituíam em um obstáculo ao projeto modernizador e, obviamente, jamais poderiam transformar-se em sujeitos históricos na medida em que se encontravam na contramão do progresso e da civilização. A América somente se salvaria por uma purificação do sangue de seus povos, pela mescla com aqueles povos que traziam no sangue os elementos da vida moderna. Assim tornou-se necessário introduzir um novo elemento, exógeno, que cumpriria o papel de sujeito das transformações exigidas para que essa América não perdesse sua missão providencial de sucursal da 90

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civilização moderna, como pregava Sarmiento (1978, p. 18). Esse sujeito evocado seria o estrangeiro, o imigrante europeu. Para Martí, ao contrário, esse imigrante tampouco seria capaz de realizar a grande tarefa de construção da sociedade alternativa. Martí chega a saudar a chegada de trabalhadores imigrantes europeus à Hispano-América. Entretanto, embora entendesse que essa imigração de braços pudesse, às vezes, ser útil e necessária, manifestou em vários momentos certo temor pela imigração de costumes de uma raça estranha. Acreditava, ele, que tais elementos, frutos dessa imigração seleta e “saudável” – já que nem todos seriam bem-vindos – não passassem de meros coadjuvantes dos verdadeiros sujeitos da nova América. Tampouco conquistaria o status de sujeito da cultura hispano-americana aquele que não se libertasse de um sentimento e uma prática servil. Aqui se inclui – e merece uma análise à parte – o elemento indígena. Falando sobre os povos indígenas do México, Martí dizia: Irritam estas criaturas servis, estes homens bestiais que nos chamam de amo e nos veneram: é a escravidão que os degrada; é que esses homens morrem sem ter vivido; é que esses homens envergonham a espécie humana. Nada aflige tanto como um ser servil; parece que mancha; parece que faz constantemente dano. A dignidade própria se levanta contra a falta de dignidade alheia (VI, p. 265-266).

No entanto, essa raça esquecida, esse povo, necessitava ser despertado, ver reanimado seu espírito; por não se encontrar morto, mas sim, dormido. Tal estado de letargia teria paralisado a própria América, que para voltar ao seu ritmo de desenvolvimento normal dependia do despertar desse ele91

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mento indígena. Ou se fazia avançar o índio, despertando-o, transformando-o, ou seu peso impediria a marcha de toda a América. Desse fato, percebe-se, claramente, a importância que Martí atribuía a esse elemento indígena, esse sujeito dormido, de quem, estranha e contraditoriamente, no entanto, dependia o futuro da América. Se o sonho da Nossa América pressupunha a conquista da segunda e verdadeira independência, a conquista da liberdade política e espiritual, esse povo livre da América não poderia alimentar um povo escravo, pois “o servo envergonha o dono.” (VI, p. 265-266). Por fim, o elemento indígena poderia ou não ser sujeito da cultura latino-americana, a depender da sua capacidade de se libertar dos vícios da escravidão e da prática servil. Para Martí, a educação deveria cumprir decisivo papel nesse processo do despertar indígena. Um índio sem escola levaria perpetuamente em seu corpo raquítico um espírito inútil e dormido (VI, p. 352). Era preciso “estimular o índio”. Seus sentimentos primitivos, sua “natural bondade” teriam muito a oferecer ao novo espírito americano. Seria uma importante contribuição a uma existência de tipo novo, mesmo com todo benefício oferecido pela vida moderna, enriquecida com toda pureza de afetos e com toda simplicidade típica da raça aborígene. A matéria excluída Para os letrados artificiais, o caos, os males de que padecia a Hispano-América eram nada mais que um simples efeito direto da sua própria condição de barbárie, efeito da ausência de modernidade, de civilização. E, sob esse argumento da barbárie, vários sujeitos históricos, durante a conquista e a colonização da América, todo um conjunto de rostos opri92

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midos foram excluídos pela – e da – modernidade21. Já para Martí, esse caos americano, representado entre outras coisas pela sua fragmentação, carência de desenvolvimento e maiores liberdades, ao contrário, tinha suas raízes nessa própria interpretação eurocêntrica, pautada no binômio civilização e barbárie, bem como nas contingências da evolução história desse continente. Essa nova história inaugurada pela modernidade europeia excluiu as culturas tradicionais americanas, os elementos naturais, do espaço de representação política. Inibiu assim o papel desses povos como possíveis e potenciais sujeitos históricos e da cultura hispano-americana. De acordo com a cartilha da modernidade europeia, não haveria história – portanto, nem sujeitos históricos –, fora da história da civilização e do progresso do mundo europeu. Para Martí, somente esses elementos naturais, excluídos pela modernidade, seriam capazes de proporcionar um futuro melhor para si e para essa terra nova americana. Essas culturas eram a própria expressão da terra nova. A “vida continental” se encontrava encoberta e mutilada pela conquista, fato que inquietava e sufocava, no fundo do peito, o novo homem americano. Seria preciso (...) devolver ao concerto humano interrompido a voz americana, que se congelou em hora triste na garganta de Netzahualcoyotl y Chilam; (...) descongelar, com o calor do amor, montanhas de homens (...) (VI, p. 285).

Essa voz calada, interrompida, esses homens congelados, sem vida, seriam exatamente a matéria excluída pelo 21  Seriam os rostos ocultos à modernidade, como se referiu Enrique Dussel, os protagonistas da história hispano-americana posterior ao “choque cultural” de 1492. Para Dussel (1993, p. 165), esses rostos excluídos estariam representados pelo índio, negro, mestiço, crioulo, camponês, operário e, por fim, pelos que denominou de marginais.

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processo de invasão e subsequente colonização europeia em terras americanas. Aqui encontramos a “outra face” da Modernidade, os sujeitos históricos encobertos pelo descobrimento, as vítimas do “sacrifício salvador e inevitável” do processo civilizador. Em suma, tal era a imagem da barbárie. Os rostos ocultos pela Modernidade – índios negros, camponeses, mestiços –, negados e violentados pela conquista e colonização, eram considerados como meros “objetos”, como peças que deveriam se adaptar o melhor possível à engrenagem da máquina do progresso e da civilização europeia. Conforme já havíamos nos referido antes, esse processo de exclusão, levado a cabo à época de Martí por letrados artificiais, se apoiava numa base ideológica pautada nas teorias evolucionistas e biologistas, tão influentes no pensamento do século XIX. Essa postura ideológica excludente apontava para a inferioridade e incapacidade do homem americano, sob o argumento de uma suposta impureza racial, agravada ainda mais pelo fenômeno da mestiçagem. Essa inferioridade era alegada exatamente em função da dificuldade dessas raças em se incorporar e adaptar aos novos valores – considerados universais –, ao novo modo de vida imposto a elas pelos agentes da modernidade. Martí não aceitava a tese de a raça e o fenômeno da mestiçagem serem as causas das incapacidades, as causas dessa suposta inferioridade do homem americano. Tal tese originava-se, segundo ele, daqueles “pensadores menores”, que “refletem e requentam as raças de livraria” (VI, p. 22), que jamais seriam encontradas por qualquer observador honesto na “justiça da Natureza”, onde somente se encontraria a identidade universal do homem, pois A alma emana, igual e eterna, dos corpos diversos em forma e cor. Peca contra a Humanidade aquele que 94

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fomentar e propagar a oposição e o ódio entre as raças (VI, p. 22).

Assim, a pregação martiana pela primazia do nós-outros buscou exatamente o caminho inverso da retórica modernizadora e, ao contrário, considerou este “outro” não mais como objeto desdenhado, mas como sujeito, sujeito da cultura hispano-americana, sujeito de um novo futuro histórico para a Nossa América, à margem do modelo apresentado pela modernidade europeia. Será exatamente essa matéria excluída pelos discursos e os Estados modernizadores – à qual Martí identificou como índio mudo, negro marcado e camponês marginalizado –, que constituirá a essência do nós-outros martiano. O homem natural A trajetória pela qual Martí chega à sua definição de homem natural passa pela análise do significado da conquista europeia do continente americano, desse confronto entre duas civilizações e suas consequências para as populações americanas. Esse violento choque cultural obrigou a que cada uma dessas culturas envolvidas se readaptasse à nova realidade de convivência mútua. Daí um novo tipo de homem teria surgido dessa nova realidade social. Depois de a obra natural e majestosa da civilização americana ter sido interrompida pela conquista, criou-se, com o advento dos europeus, um povo estranho, não espanhol, porque a seiva rechaça o corpo velho; não indígena, porque sofreu a ingerência de uma civilização devastadora, duas palavras que, por serem antagônicas, constituem um processo; criou-se um povo mestiço de uma tal forma, que, o mesmo, com 95

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a reconquista de sua liberdade, desenvolve e restaura sua própria alma (VII, p. 98).

Daí se depreende que essa “civilização devastadora” teria produzido em terras americanas um homem de tipo novo, essencialmente distinto e peculiar. Nem europeu, nem indígena. Embora europeu e indígena ao mesmo tempo, numa espécie de síntese superadora da mestiçagem, uma síntese do europeu e do indígena autóctone - síntese esta que mais tarde viria a englobar os elementos de origem africana. Esse novo americano, fruto de todas as miscigenações decorrentes da contingência histórica do choque entre duas civilizações, passaria ainda por um contínuo processo de maturação, enxertos e depurações, até atingir o perfil do homem natural martiano. Certamente, esse elemento constituía uma figura bastante contraditória, na medida em que sua condição de mestiço exigia a afirmação de suas múltiplas origens, seja ameríndia, europeia ou africana. Nesse sentido, a cultura mestiça tinha bastante dificuldade em se afirmar como a representativa da cultura hispano-americana. Sua força demográfica no continente americano fazia com que aos poucos, como bem observou Enrique Dussel (1993, p. 165), fosse exatamente em torno desse mestiço que a denominada América Espanhola se construísse, não já como geografia, mas como bloco cultural. Mas, para Martí, a questão não era somente o peso social e demográfico representado pela raça mestiça. O seu sujeito social não era definido somente em função desse critério. Isso por não ver o fenômeno da mestiçagem apenas em seu conteúdo biológico ou racial. Ao contrário das ideias racistas em voga na sua época, que consideravam a mestiçagem como um processo degenerador das raças originais, Martí via esse fenômeno como positivo. 96

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(...) não há coisa mais formosa que ver como os afluentes deságuam nos rios e como as suas ondas se mesclam e resvalam, até se difundirem em serena e magnífica corrente, no mar imenso (VIII, p. 384).

Assim, quando Martí emprega o termo “raça”, o faz no sentido de uma referência a uma comunidade cultural. Ainda que não houvesse mestiçagem biológica, poderia haver mestiçagem cultural. O que importava, e Martí colocava sempre em relevo, era especificamente o modo ou a maneira de atuar, de fazer. Enfim, compreendia que o que estava em jogo não era meramente um problema de raças, mas sim de valores e modos de vida distintos. Seu projeto era o de uma nação multirracial, harmônica, e, no sentido que aqui aportamos: mestiça. A esse povo mestiço Martí atribui uma nobre tarefa: a de não só “reconquistar” a sua própria liberdade, dilacerada por obra da conquista e da colonização, mas sobretudo reconquistar a liberdade como condição para “restaurar” e “desenvolver” sua alma própria. Mas não seria uma contradição falar em uma reconquista, uma restauração quando nos referimos a um elemento mestiço, um elemento, portanto, inédito? Recordamos uma vez mais que o conceito martiano de mestiçagem incorporava uma dimensão cultural. Esse mestiço martiano não era apenas fruto de uma mestiçagem física – podendo, inclusive, prescindir dela. Nesse sentido, haveria algo que não era tão inédito e que permeava essa figura. Se o mestiço não era índio, branco e, sequer negro; no entanto, era índio, branco e negro ao mesmo tempo, numa síntese cultural superadora de todos os elementos que lhe davam origem. A reconquista e restauração, às quais nos referimos, estão ligadas à necessidade, como afirmou o próprio Martí, de “devolver ao concerto humano interrompido a voz americana”, de devolver ao continente sua “alma própria”, enfim, de devolver 97

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aos novos americanos sua condição de sujeitos históricos e de cultura. Afirmava Martí que o grande espírito universal tinha uma face particular em cada continente. Toda nossa obra, da nossa América robusta, terá, pois, inevitavelmente o selo da civilização conquistadora; todavia, a melhorará, a adiantará e chegará a causar admiração com a energia e o enorme ímpeto criador de um povo em essência distinto, superior em nobres ambições, e, se momentaneamente ferido, ao menos não está morto (VII, p. 98).

Dessa forma, o conceito martiano de homem natural adquire uma dimensão muito mais ampla que a simples definição a partir exclusivamente dos vários estratos étnicos e de classe dos quais é formado, embora se referisse genericamente a um conjunto de classes sociais subordinadas, com destaque para o índio, o negro e o camponês. Esse homem natural é acima de tudo um mestiço, fruto de uma mestiçagem cultural. Enquanto tal, é superior, distinto, universal. Não que seja grande por uma superioridade racial, mas por levar consigo “nobres ambições”. Esse seria o verdadeiro sujeito que encarnaria o sentido do “novo espírito americano”. A raiz das diferenças do projeto de Martí para com a retórica modernizadora está, assim, no fato de que partem de referenciais e padrões éticos distintos, separados pela aceitação ou não da perspectiva explicativa e de análise pautada na luta entre civilização e barbárie. Separados pela aceitação ou não do caráter único e universal da modernidade e da sua cultura de sustentação. Separados pela aceitação ou não de um sentido único para o progresso. Separados pela aceitação ou não do conceito de progresso restrito aos avanços técnico-científicos, às conquistas materiais. 98

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Certamente, a ética martiana não seria aquela que se dobra, em última instância, às pura e simples determinações de mercado. O homem natural detinha outros níveis de demanda. E o projeto utópico martiano se desenvolve em função dos interesses desse sujeito social, assim delimitado. É sobre a projeção desse sujeito, e não na perspectiva do livro importado, que Martí elaborará o diagnóstico da sua América. É a partir desse referencial de análise que se depreende o homem natural como sujeito da cultura latino-americana. A falsa erudição dos letrados artificiais insistia na perspectiva do contraponto entre civilização e barbárie. Martí visava a colocar em relevo essa perspectiva de análise e julgá-la a partir do referencial do homem natural. Nessa perspectiva é que tal contraponto se revelava como uma ideia eminentemente eurocêntrica; e uma vez que, por não levar em conta as peculiaridades desse homem americano, o mesmo carecia de sentido, chocava-se com a própria natureza, com a própria realidade e sociedades americanas. Martí compreendeu que essa suposta luta entre civilização e barbárie era falsa, somente existia na cabeça daqueles partidários do modelo representado pela modernidade europeia, que acreditavam na inferioridade do homem americano. Não suportava a ideia de que esse homem pudesse carregar consigo uma espécie de pecado, uma culpa natural por não compartilhar dos mesmos valores e do mesmo estilo de vida daqueles povos que encabeçavam o processo civilizador europeu. Não suportava tampouco a suposta superioridade da civilização moderna, nem muito menos a tese de que o único caminho possível para o progresso e para o desenvolvimento tivesse que ser necessariamente aquele seguido pelas nações europeias. Martí compreendia que havia uma diferença profunda entre os meios e os sacrifícios reivindicados pelo homem natural e pelos letrados arti99

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ficiais para se atingir o desenvolvimento e o progresso. Uma divergência também não menos profunda quanto ao sentido do que vinha a ser o próprio progresso, a própria sociedade reivindicada. Por isso denunciará essa perspectiva eurocêntrica, embora de uma forma contraditória, naquilo que ela prejudicava e entrava em choque com o pleno desenvolvimento das forças autóctones da Nossa América; forças estas represadas, comprimidas por seculares injustiças e opressões. Urgia estimular o índio, redimir o negro e abrir novas vias de liberdade e desenvolvimento às forças comprimidas pelo crime histórico da conquista e colonização. No confronto entre “natureza” e “falsa erudição”, vence a natureza, o homem da natureza, o homem autóctone, o homem natural. A biblioteca de Martí era uma biblioteca alternativa, da terra, por ser a única via pela qual seria permitido conhecer o homem americano desde suas raízes. (...) os povos são como as árvores: é preciso conhecê-las bem e saber distinguir entre os enxertos que lhes possam convir ou prejudicar; e isso só pode fazer aquele que as conhecer desde as raízes (VII, p. 379).

Já a biblioteca importada, gestada a partir de experiências e realidades exógenas, impedia o conhecimento e a compreensão dos verdadeiros elementos naturais desta “terra híbrida e original”. Somente aquele que assim conhecesse esses povos poderia se alçar e propor uma depuração dos resíduos inamalgamáveis da grande árvore americana, extirpando-lhe as corruptas raízes, que impediam seu desenvolvimento pleno e sadio. Assim, nesse sentido, o homem natural martiano era filho da biblioteca alternativa, filho da própria natureza americana. Martí acreditava no valor e na altivez do homem mestiço americano, na sua capacidade de reger seus próprios des100

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tinos a partir de seus próprios esforços. Sem renunciar a seus valores e a sua cultura, tinha plenas possibilidades de buscar soluções próprias para os próprios problemas. Creditava inclusive as causas das revoluções dos povos americanos, além da luta pela afirmação do espírito novo, à falta de vias por onde fluir naturalmente a atividade ansiosa e o insaciável sonho de grandeza do homem hispano-americano (VII, p. 22). Não um sonho de grandeza de uma “Roma conquistadora”, mas de uma “nação latina hospitaleira” (VIII, p. 319). Uma nação latina surgida da fusão útil, do amálgama dos seus elementos naturais, formando esta grande nação espiritual. Tal seria o gênio e a grande missão histórica desse homem natural: colocar sua pátria no mundo das grandes nações, mas sem perder o rosto. Irmanar os elementos dessemelhantes e hostis, superar as desigualdades e discórdias, enfim, ajustar a liberdade ao corpo dos que se alçaram e venceram por ela. No processo de luta pela conquista dessa liberdade plena, inclusive espiritual, é que se juntavam as dimensões de missão histórica e de sujeito de cultura, definidoras desse sujeito do projeto utópico de José Martí. O sujeito mediado Já dissemos que a América Espanhola se apresenta historicamente como um campo de luta entre diversas postulações e perspectivas explicativas, que reivindicam cada qual um distinto alcance para o conceito de identidade hispano-americana, e por consequência reivindicam cada qual um sujeito distinto representativo de sua síntese cultural. Embora na maior parte dos casos tais perspectivas sejam contraditórias e até antagônicas, elas têm em comum o fato de estarem me101

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diadas pelo discurso de uma inteligência que fala em nome do sujeito social que se julga estar representando. O discurso de Martí, ao apresentar seu projeto de construção de uma identidade hispano-americana, o faz mediante a representação do ser eleito como sujeito da cultura da América nova, da Nossa América. Contudo vai além disso. Reflete obviamente sobre as condições e normas daquilo que ele considera uma boa representação. O critério martiano para essa boa representação, seja no discurso ou na esfera da ação política, que garantiria sua veracidade e eficácia, seria a inclusão ou a incorporação em seu discurso – ou em sua ação política – exatamente daquela matéria excluída pelo discurso da modernidade. Seriam aquelas zonas do mundo americano representadas pelas culturas tradicionais e subalternas. Considerando a ótica da retórica modernizadora, seria como se Martí falasse em nome da barbárie. Júlio Ramos (1989) analisa essa relação entre o que poderíamos denominar aqui como sendo, de um lado, o mediador – o que representa – e, por outro lado, o sujeito social – o próprio objeto da representação. Será natural a aceitação dessa mediação na medida em que se pressuponha a identidade hispano-americana não como algo preexistente ao discurso que a enuncia e busca representá-la, e este campo de identidade surgindo concomitantemente ao exercício discursivo. Não se trata, porém, de uma redução desta América e do seu ser às representações elaboradas pela intelectualidade, como bem frisou Ramos. Se o discurso de Martí buscava representar o outro excluído da modernidade, falar em seu nome, é porque considerava esse outro incapaz de sua autorepresentação, sem discurso e, portanto, carente de mediador, de interlocutor. Martí se refere, por exemplo, às massas mudas de índios. Mas qual 102

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a causa dessa suposta incapacidade do outro, que exige essa mediação? Segundo Martí, “a massa inculta é preguiçosa e tímida nas coisas da inteligência (...).” (VI, p. 17). Ou seja, esse objeto da representação não poderia ser sujeito da inteligência. Por ser despossuída de saber, por ser inculta, essa massa autoriza sua representação pelo elemento culto, aceita a mediação, a representação por uma “inteligência superior”; contudo, exige que seja uma “boa” representação. E aí se encontra, entre essa massa inculta, o nosso sujeito martiano, o homem natural, que é (...) bom, e acata e premia a inteligência superior, enquanto esta não se utiliza de sua submissão para prejudicá-lo, ou ofendê-lo, dele prescindindo; coisa que o homem natural não perdoa, disposto a retomar pela força o respeito de quem fere sua susceptibilidade ou prejudica seu interesse (VI, p. 17).

Entre essa massa, as culturas subalternas – objeto da representação – e essa inteligência superior, que detém autoridade para falar em seu nome, percebe-se uma relação de estrita dependência e subordinação. Assim como Martí acreditava que um homem revolucionário como o foi Bolívar pudesse incorporar o espírito de todo um povo, não tinha qualquer dúvida sobre sua própria autoridade literária, pois estava convicto de que essa autoridade advinha de sua estreita proximidade com o objeto de sua representação. Na falta de meios e instrumentos para que esses povos, excluídos pela – e da – retórica modernizadora, pudessem se fazer ouvir, certamente a literatura constituíase num meio privilegiado dessa representação. Nesse sentido, Martí tinha consciência de sua “missão” literária, que mantinha perfeita coerência com sua ação prática. 103

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Por fim, do que foi dito depreendem-se algumas questões que certamente permanecerão em aberto, mas que merecem alguma reflexão: Que autoridade social ou que legitimidade teria o escritor para falar em nome do “ser americano”, que se identificaria por meio desse discurso, a quem esse escritor contraditoriamente considera sujeito histórico e cultural? Até quando essa massa de sujeitos excluídos e de oprimidos estaria condenada a falar e a se fazer representar sempre por meio de um mediador, dotado de uma “inteligência superior” que lhe permitisse encarnar os seres, objeto de sua representação? Seria a triste sina dessa massa jamais poder falar por si mesma? Quiçá, o estudo e a descoberta de novas fontes históricas e documentais, aliados a novos recursos de ordem metodológica, possam contribuir fecundamente com novos elementos capazes de reaquecer ainda mais esse debate.

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Considerações finais

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m que pese o fato da crença na superioridade da modernidade – e da cultura a que lhe dá sustentação – se encontrar hoje debilitada – ainda que não morta –, não há dúvidas de que o homem ocidental do século XIX, da época do progresso industrial, ao contrário, estava certo não apenas sobre a permanência como também sobre a superioridade de sua cultura. Segundo Philippe Ariès (...) a historiografia positivista do século XIX e do início do século XX admitia desigualdades tecnológicas, econômicas, “atrasos” devidos à falta de conhecimentos, decadências, mas não diferenças em nível da percepção e da sensibilidade (1990, p. 172).

Assim, enquanto hoje podemos enxergar culturas distintas, igualmente interessantes, os pensadores de outrora, tentados pelo arquétipo de um modelo universal, raciocinavam dentro dos limites do binômio civilização e barbárie. Tal dicotomia definiu as fronteiras caracterizando e moldando o pensamento hispano-americano da segundo metade do sé105

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culo XIX, fosse qual fosse o enfoque e as forças sociais em questão. A ação desse projeto modernizador em terras hispano-americanas, com sua cultura hegemônica, expansiva e excludente, gerou inúmeros conflitos de identidade. Diante do avanço de sua história, uma angústia acompanhava este homem americano, traduzida pela ameaçadora possibilidade de se tornar órfão do passado, sem raízes. Superar tais angústias, provocadas pelas apropriações desiguais tanto dos bens materiais quanto da cultural em geral, era a grande função da dimensão utópica. O realismo utópico que caracterizou a essência do programa da Nossa América de José Martí o instrumentou para uma crítica contundente acerca do suposto caráter universal dos valores culturais que davam sustentação à modernidade europeia. A modernidade martiana e sua concepção de progresso e de desenvolvimento iam muito além da proposta de um simples bem-estar material e econômico que pudesse ser oferecido aos povos hispano-americanos. Uma nova liberdade, plena, espiritual, novos princípios de respeito e convivência mútua, pautada no reconhecimento das inúmeras diferenças culturais, uma nova ética, um novo comportamento, novos valores, enfim, seriam o passaporte para o novo topos martiano. Seguindo uma via autóctone, seu projeto utópico visou, em última instância, a descobrir o ser americano – o homem natural – das imagens oriundas de um pensamento exógeno e alheio, que buscavam representar-lhe. Abraçando uma modernidade própria, de bases autóctones, definiu a especificidade do ser da Nossa América, a quem fez causa comum, a quem buscou mediar e representar através de sua ação discursiva utópica. 106

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O ato de identificar e reconhecer, nos processos históricos, essa dimensão do imaginário, da imaginação utópica, permite ao historiador penetrar nas profundas entranhas das sociedades. Na afirmação de cada lugar e tempo imaginários específicos de cada povo, em suas ilhas de utopia, na afirmação dos seus lugares que não existem, não deixa de estar presente, implicitamente, uma crítica, ou mesmo uma impressão, uma ideia acerca do lugar que existe, do lugar real. Tal descoberta é essencial para o historiador. É assim que a reflexão sobre a utopia, como afirmou Cerruti-Guldberg (1991, p. 44), abre as portas para a virtualidade, para o possível e a impossibilidade, que transcende o real, mobilizando sua transformação. Quiçá, ao negar sua identificação com o sonho impossível e irrealizável, a utopia se apresente como aquela capaz de despertar, de seu sono eterno, aquelas massas que passam “dormidas” pela nossa história.

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Sobre o autor

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ugênio Rezende de Carvalho é doutor em História pela Universidade de Brasília e professor-pesquisador da Universidade Federal de Goiás, Brasil, na área de História da América Latina e Caribe. Dedica-se há vários anos ao estudo das ideias e dos projetos de identidade cultural formulados e/ou reivindicados pelos principais expoentes da intelectualidade latino-americana e caribenha nos séculos XIX e XX. Interessou-se, em particular, pela obra do cubano José Martí (1853-1895), um dos intelectuais de maior destaque no pensamento hispano-americano da segunda metade do século XIX. Entre as publicações de Eugênio de Carvalho nessa área, destacam-se os livros Nossa América: a utopia de um Novo Mundo (2001) – que deu origem a esta edição digital –; América para a humanidade: o americanismo universalista de José Martí (2003) – traduzido ao espanhol e publicado no México em 2012 –; e Pensadores da América Latina: o movimento latino-americano de história das ideias (2009). 121

A partir da análise do discurso americanista do pensador cubano José Julián Martí y Pérez (1853-1895), extrai-se que sua proposta de uma sociedade alternativa, condensada em seu conceito Nossa América, assume a forma e a essência de um projeto que se aproxima de um gênero utópico influente nas obras de inúmeros pensadores hispano-americanos do século XIX. Tal gênero apresentava três momentos claramente definidos: o diagnóstico e a crítica sobre a realidade social vivida, a apresentação da proposta da sociedade alternativa indicando os caminhos para sua concretização e, por fim, a definição do sujeito social eleito para levar a cabo tal tarefa. A originalidade do projeto martiano se assentaria na inversão das categorias de análise empregadas pela retórica modernizadora, praticada por parte da intelligentzia hispano-americana de sua época. Visando a colocar em relevo e a superar as perspectivas eurocêntricas de representação do ser americano, pautadas na polarização entre civilização e barbárie, Martí confrontou os diferentes diagnósticos, propostas e sujeitos das várias representações possíveis. Abraçando uma modernidade própria, de bases autóctones, define a especificidade do ser da Nossa América, a quem buscará mediar e representar através de sua ação discursiva utópica.

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