NOTA SOBRE UMA FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA: O CORPO DA IMAGEM: OCUPAÇÕES

September 12, 2017 | Autor: Nicole Lima | Categoria: Photography, Photography Theory, Visual Arts
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NOTA SOBRE UMA FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA: O CORPO DA IMAGEM: OCUPAÇÕES

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Nicole Chagas Lima*

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Quando escrevi a primeira versão do meu projeto de mestrado, em 2009, suspeitava que poderia haver, na fotografia contemporânea, algum movimento de ruptura com o espaço representacional semelhante aos que ocorreram na pintura e na escultura ao longo do século XX. Acreditava que seria relativamente simples encontrar tais indícios modernos no espaço fotográfico. Comecei por estudar o campo e o fora de campo da fotografia, observando as escolhas técnicas e estéticas de fotógrafos como Helena Almeida e Geraldo de Barros, mas fazendo-o literalmente pelas beiradas, como quem sabe que está preso à superfície, mas tem medo de se queimar. O mergulho nesse caldo espesso, no entanto, foi inevitável. Logo percebi que não encontraria respostas satisfatórias apenas nas questões formais, mas sim na complexidade da fotografia. Precisava entender os regimes de luz1 de cada dispositivo  

e seus efeitos, que então chamei de descontinuidades2. Ao longo desse estudo  

desenvolvi três caminhos possíveis, os quais desenvolvi, ainda que de forma relativamente sucinta, em três capítulos. No primeiro, que chamei de “corpo da imagem: ocupações”, estabeleci que a fotografia oscila entre ver e ser vista, ora 1

A expressão “regimes de luz” foi cunhada por Gilles Deleuze em seu ensaio “O que é um dispositivo?”, onde reflete sobre os conceitos de visibilidade e enunciação afirmando que cada dispositivo tem seu “regime de luz próprio o qual determina a forma como será distribuído o visível e o invisível.” (DELEUZE, 1996, p. 84) Deleuze também menciona os regimes de enunciados, que se constroem em linhas sobre as quais são distribuídas as posições dos elementos de um dispositivo. Os regimes de enunciados, no entanto, não são estáveis, pois não consideram apenas a posição do autor do dispositivo, mas também as posições de todos os outros elementos (tempo, lugar, distância, contexto histórico, e espectador, para citar alguns) que ocupam o espaço criado por ele e tensionam os extremos do que Deleuze chamou de linhas de enunciação. Ao artista cabe projetar a arquitetura das imagens, distribuir sobre elas e entre elas o visível e o invisível, revelar seus regimes de luz. 2

As descontinuidades seriam o resultado progressivo dessa equação: o que deixamos de ser e o que nos tornamos ao atravessar o espaço do dispositivo. O que ele (o dispositivo) deixa de ser e se torna ao sofrer os efeitos desse atravessamento. Para Foucault, em A ordem do discurso. (São Paulo: Loyola, 1996) a descontinuidade é uma cisão do instante, uma espécie de bombardeamento da subjetividade.!

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* Artista Visual e Doutoranda em Artes Visuais na UNICAMP!

fazendo-se objeto de seu espectador, ora fazendo dele seu próprio objeto. O segundo, intitulado “movimento: alteridades”, observava a construção de uma imagem-vetor, uma fotografia que existe em função do interesse em acessar e se deixar alterar pelo Outro, seja partindo em direção a ele ou ressurgindo da colisão. O terceiro capítulo, "a coisa real: lateralidade e deslocamento”, tratava de fotografias apropriadas e deslocadas de arquivos pessoais ou alheios – fotografias “do mundo” reapresentadas “ao mundo” numa operação que parecia confirmar: imagens não são criadas, mas repetidas. O que podemos alterar são suas combinações. O primeiro dos três caminhos traçados — o corpo da imagem: ocupações — que parte do espectador como premissa, tem se mostrado, desde então, o mais recorrente em diversos trabalhos fotográficos que tenho observado. Neste estudo, através da análise de obras de alguns artistas que recentemente vim a conhecer, buscarei testar, aprofundar e ampliar o alcance desse mesmo conceito. A discussão crítica consiste em de traçar paralelos entre as análises de algumas obras relativamente antigas, que já pertenciam à minha dissertação, sendo estas: Standing Margins (1969) e Blinks (1969), de Vitto Acconci; Sala de Espera (1998), Extensão do Reflexo (1992) e Turista Maluco (1991), de Gabriel Orozco, com trabalhos mais recentes de três artistas brasileiros contemporâneos: Pequeno gesto: ensaio em torno da experiência ordinária (2011), de Luciano Vinhosa; Lapso (2012), de Jessica Magaba e Janelas (2013), de Alan Oju. A pergunta central que deve permear essa reflexão será: de que forma a obra (corpo) agencia (ocupa) o espectador (corpo)? Para responder a essa pergunta, é preciso preliminarmente definir o que chamo de “corpo” da imagem e do que se tratam essas “ocupações”. O uso que aqui proponho para a palavra corpo está dissociado dos significados convencionados ao corpo na arte, relacionados principalmente não à condição de ser corpo, mas à sua representação, seja em retratos — que não costumam ser pensados como corpos, e sim indivíduos, como se um estranhamente ignorasse o outro — ou nus — que, ao contrário, são vistos como objetos desprovidos de sujeito — ou ainda do uso do corpo do artista diretamente na performance e na body-art.

Nenhum desses é o corpo a que me refiro. O corpo que procuro descrever é um interstício3, algo que oscila entre o ser sujeito e o ser objeto, autor e espectador da  

imagem. Um corpo que se constrói a partir da imagem, expandindo suas bordas, construindo relevos e abismos em sua superfície — Um jogo de posições ou de ocupações, intrinsecamente conectadas a lugares específicos. A palavra corpo também remete a uma materialidade, densidade, consistência: a fotografia enquanto corpo tem território e peso próprios, tem espessura. Em uma primeira hipótese, o que procuro descrever poderia estar entre a fotografia enquanto corpo e o meu corpo, nesse embate em que somos sujeito e objeto cativos um do outro, alternadamente. Nesse espaço fronteiriço em que nossas bordas quase se tocam; a imagem do corpo, o corpo da imagem. Pensando essas fotografias então como corpos, não pude deixar me remeter às leis de Newton: corpos que ocupam um lugar no espaço4. Espaço que não se resume  

a uma configuração física de elementos e posições marcadas, mas que se refere justamente a esse interstício, essa abertura paralela onde determinadas práticas e relações são possíveis. Como a percepção desse espaço-interstício criado pelo artista

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Nicolas Bourriaud descreve o interstício como “um espaço de relações humanas que sugere outras possibilidades de troca além das vigentes nesse sistema. É exatamente esta a natureza da exposição de arte contemporânea no campo do comércio das representações: ela cria espaços livres, gera durações com um ritmo contrário ao das durações que ordenam a vida cotidiana, favorece um intercâmbio humano diferente das zonas de comunicação que nos são impostas. (...) No interior desse interstício social, o artista deve assumir os modelos simbólicos que expõe: toda representação (mas a arte contemporânea cria modelos, e não propriamente representações; ela se insere no tecido social sem propriamente se inspirar nele) remete a valores transferíveis para a sociedade. (...)A arte é um estado de encontro fortuito.” (BOURRIAUD, 2009, p. 22-24.)! 4

“Um lugar é a ordem segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. aí se acha, portanto, excluída a possibilidade de duas coisas ocuparem o mesmo lugar. Aí impera a lei do ‘próprio’: os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar ‘próprio’ e distinto que define. Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade. Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. (...) O espaço estaria para o lugar como a palavra quando falada, quando é percebida na ambiguidade de uma efetuação, mudada em um termo que depende de múltiplas convenções, colocada como o ato de um presente (ou de um tempo). Em suma, o espaço é um lugar praticado.” (DE CERTEAU, 1994, p. 202)

é ativada pelo espectador? Como se cruzam o tempo circular5 da imagem com o tempo  

linear do espectador? Que resíduos da imagem são esses que ocupam o corpo daquele que a partilha? São esses resíduos que certas imagens nos impõem que chamo de ocupações. Como se uma primeira experiência com determinada imagem agrupasse todas as outras sob ela. Essa força de ocupação tem o poder de gerar cópias, não reproduções técnicas (outras fotografias idênticas), mas cópias de suas repetições: a partir dela, toda outra será sua imitação. Ela foi a primeira, a única, e também a última. Eu nunca poderei fotografar essa imagem (isso foi6), e ninguém mais poderá. Mesmo as fotos  

que vieram antes dessa, melhores ou piores tecnicamente, de alguma forma são anuladas por seu efeito, pois também parecem estar tentando imitá-la. O mundo assim se configura em antes e depois desta determinada foto. Em sentido inverso, uma extensão do conceito de ocupação também trata do abismo entre o que damos a ver com uma fotografia e o que o espectador de fato vê. Nesse caso, é o espectador que ocupa a imagem com suas referências e desejos. Não é apenas a imagem que toma o corpo do espectador, mas ele que a povoa com seus verbos. Um exemplo do que me refiro poderia ser a série Blinks de Vito Aconcci. A rua completamente deserta tem ares de siesta. O trajeto é curto: uma linha reta em doze 5

Flusser, em Filosofia da Caixa Preta, traz reflexões sobre o tempo circular da imagem: “O vaguear do olhar é circular: tende a voltar para contemplar elementos já vistos. assim, o “antes” se torna “depois”, e o “depois”se torna o “antes”, O tempo projetado pelo olhar sobre a imagem é o eterno retorno.” (FLUSSER, 2002, p.8). 6

Na segunda parte de A Câmara Clara (1984), após a morte de sua mãe, Barthes deixa de lado sua análise arbitrária de “algumas fotografias” e parte em uma busca obstinada por “aquela foto” que poderia conter a essência de sua mãe. “Eu as percorria, mas nenhuma me parecia verdadeiramente ‘boa’: nem desempenho fotográfico, nem ressurreição viva da face amada.” (p. 96). Ele finalmente a encontra em uma foto na qual, curiosamente, sua mãe não está retratada. “A foto do Jardim de Inverno era minha Ariadne, (...) doravante seria preciso interrogar a evidência da Fotografia, não do ponto de vista do prazer, mas em relação ao que chamaríamos de amor e morte.” (p. 110) Nessa reestruturação do seu discurso, Barthes expande o conceito de punctum: “Sei que agora existe um outro punctum (um outro ‘estigma’) que não o ‘detalhe’. Esse novo punctum, que não é mais de forma, mas de intensidade, é o Tempo, é a ênfase dilaceradora do noema (‘isso foi’) sua representação pura.” (p. 141) No texto original, em Francês, a expressão “isso foi”, apresentada no verbo “être” tem três sentidos: ser, estar e existir. Dessa forma, o tempo a que Barthes se refere não é apenas o passado cronológico que deu origem à imagem, mas a uma compressão do tempo (presente passado e futuro lêem- se ciclicamente: o que se comprime se expande e torna a se comprimir): “isso está morto e isso vai morrer.” (p. 142).!

poses. Quanto tempo eu consigo caminhar sem ter que fechar os olhos? Conto seus passos (meus passos). Ouço o eco das galerias. Fecho os olhos para ver melhor cada foto. Desafio qualquer um a ver esta série sem fechar os olhos ao menos uma vez. Tomo seu corpo para mim. Vejo o que ele vê, estou onde ele está, fecho os meus olhos ao mesmo tempo que (aposto) você fecha os seus.

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Blinks — 23 de novembro, 1969; à tarde. Segurando uma câmera, apontada para longe de mim e pronta para disparar, enquanto caminho continuamente em linha reta por uma rua da cidade. Tento não piscar. Cada vez que pisco: tiro uma foto.

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Notas

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Mantendo em vista: tendo em vista, mantendo em vista (a câmera como um meio para ‘continuar vendo’- quando eu pisco, eu não posso ver - quando eu tiro uma fotografia, enquanto eu pisco, eu tenho um registro do que eu não pude ver – ver mais tarde, sentir agora). Reação tardia: adiamento: antecipação (quando eu pisco, eu sei que vou estar vendo, mais tarde, o que estou perdendo agora). Performance como ‘tempo duplo’: eu vejo o que está diante de mim no presente – agora e depois, eu sei que vou ver, no futuro, o que estava diante de mim no passado. O trabalho de arte como o resultado de processos corporais (meu piscar ‘causa’, produz, uma imagem). Câmera como armazenamento (ela me permite ver mais tarde). Câmera como prótese (permite-me ver o que eu não posso). Câmera como simulação (ela me permite lembrar mais tarde o que eu não posso ver agora). 


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Vito Aconcci — Blinks (1969)7  

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Esta e todas as imagens e citações de Vito Acconci ao longo deste artigo foram extraídas do livro Vito Acconci: Diary of a Body 1969 -1973 (ACCONCI, Vito e VOLK Gregory, Milão: Edizioni Charta, 2006)

“Holding a camera, aimed away from me and ready to shoot.”8  

A frase acima foi extraída das anotações de Vito Acconci. A tradução exata para o português não é possível, mas se aproxima de “segurando uma câmera, apontada para longe de mim e pronta para disparar.” Em inglês, a expressão “away from me” tem uma conotação mais abrangente do que a palavra “longe”, pois não tanto se refere a algo que está distante de mim, mas funciona, sobretudo, como um vetor de forças que irradiam a partir de mim (from me) em direção ao universo exterior (away). O verbo “shoot”, que em português significa “atirar, disparar um gatilho, estar pronto para um duelo”, também torna a frase na língua original muito mais potente do que a tradução que aqui posso oferecer. Essa frase de Acconci aparece com frequência em diversas anotações de suas proposições produzidas com fotografia, especificamente no ano de 1969. A partir de 1970, no entanto, a câmera mudou progressivamente de direção e passou a enquadrar o corpo do artista em ação. Aqui, poderia especular sobre que motivos levaram Acconci a voltar a câmera para (contra) si, mas, particularmente, me interessam justamente essas fotografias que antecederam essa mudança de direção, essas primeiras imagens que parecem personificar, tomar o lugar do próprio corpo do artista. Esses dois vetores que Acconci nos apresenta ao apontar a sua câmera “a partir de” ou “em direção a” seu corpo, talvez nos dêem também pistas da linha que separa a fotografia enquanto ação da fotografia enquanto registro de ação. Na fotografia enquanto ação o tempo habita o durante. O espectador da fotografia é também o sujeito da ação (o espectador incorpora o aparelho e enxerga não através da câmera, mas de um ponto privilegiado de visão, como se este conhecesse o interior da caixa

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Ver nota número 7.

preta9). A câmera é a consciência e o olho desse sujeito-espectador. Mais do que um  

registro de performances, são registros que performam, onde o lá é uma operação de subtração do lugar que originou a foto, substituído pelo lugar agora ocupado por seu espectador. Já na fotografia enquanto registro de ação, o tempo é póstumo, habita o depois. O espectador é observador da ação enquanto passado, ainda que esse passado seja constantemente renovado, presentificado pelo espectador que revive a ação: “isso está morto e isso vai morrer”. (BARTHES, 1984, p. 142) Essas fotografias trazem consigo um resíduo de um lá onde o fotógrafo esteve e a ação aconteceu, que impõe um distanciamento – físico e temporal – ao espectador. Suspeito que a maioria das fotografias se encaixe nessa segunda categoria, ainda que não necessariamente em registros de performances, mas em registros de ações e testemunhos de outrem. Um segundo exemplo em que Aconcci converte a câmera em sujeito (a fotografia enquanto ação) é Standing: Margins (1969). Aqui, a câmera que aponta para longe (away from my me) registra inversamente a menor distância, contornando suas proximidades, construindo quadro a quadro suas margens. Um mundo que o seu corpo, e não sua consciência, experiencia, uma alterconsciência da pele no lugar dos olhos. O sentir e o estar em estado bruto, distante do saber filtrado pelo olhar. A realidade do corpo é construída pelo aparelho que desliza pela extensão do espaço que ele ocupa. A câmera afere visão àquilo que era apenas tátil. A fotografia traduz em imagem o saber cego do corpo. Em Standing: Margins tenho a visão do corpo em três dimensões. Um ser oco construído pelo aparelho, uma carapaça vazia que pode ser ocupada pelo espectador. Acconci não está mais lá, mas o espaço ainda existe. Essa dimensão construída pela fotografia pode ser repetidamente ocupada por quem a vê.

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Em Filosofia da Caixa Preta, Flusser problematiza o que se passa no interior do aparelho como algo misterioso e de difícil alcance, pois só temos claro acesso ao input (desejo? realidade? experiência?) e output (fotografia? realidade? experiência?), mas nunca dominaremos o que se passa no interior da caixa preta: “Aparentemente, pois, imagem e mundo se encontram no mesmo nível do real: são unidos por cadeia ininterrupta de causa e efeito, de maneira que a imagem parece não ter símbolo e não precisar de deciframento. Quem vê imagem técnica parece ver seu significado, embora indiretamente. (...) O complexo ‘aparelho-operador’ é demasiadamente complicado para que possa ser penetrado, é caixa preta e o que se vê é apenas input e output. Quem vê input e output vê o canal e não o processo codificador que se passa no interior da caixa preta. Toda crítica da imagem técnica deve visar o branqueamento dessa caixa. Dada a dificuldade de tal tarefa, somos por enquanto analfabetos em relação às imagens técnicas. Não sabemos como decifrá-las.” (2002, p. 14-15)

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Standing: Margins — (De pé em um ponto; tiro 12 fotografias do que me cerca)

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Identificação: Linha superior: 1. frente-centro (1) 2. esquerda-frente-centro (2) 3. esquerda (3) 4. esquerda-atrás’centro (4) 5. atrás-centro (5) 6. direita-atrás-centro (6)

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Linha inferior: 1. direita (7) 2. direita-frente-centro (8) 3. acima-frente (9) 4. acima-atrás (foto mal sucedida por causa do sol) (10) 5. abaixo-frente (11) 6. abaixo-atrás (12)

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(Vito Acconci, 1969)10  

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Ver nota número 7.

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Acconci converte a imagem fotográfica em sujeito do corpo do espectador, uma “imagem consciência” – que estranhamente não é a mesma consciência do artista, mas uma consciência atribuída à imagem pelo aparelho11. Nota-se que ambas as peças de  

Acconci têm em comum a presença do corpo (ou o lugar, carapaça do corpo) como um elemento fixamente posicionado no espaço. Mesmo em Blinks, onde o artista percorre um trajeto, a fotografia marca pontos fixos de ocupações a serem retomadas pelo espectador.

! Jessica Mangaba, Lapso (2012)

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Ver nota número 9.

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Fonte: http://www.jessicamangaba.com/

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A série Lapso, de Jessica Magaba, também marca territórios fixos e sugere que os (re)ocupemos.

Nesta série, após o término de um relacionamento, a artista se

apropria de diversas fotografias de seu ex-namorado e, através de softwares de edição, remove seus traços da imagem. Como ela mesma descreve: [Decidi] fazer o caminho inverso: fotografar para esquecer. Assim, comecei a construir o trabalho que depois foi intitulado lapso. (…) Selecionei algumas imagens que, em sua maioria, compõe os trabalhos sopro e bloco e notas, de Breno Rotatori, e passei a remover a minha figura e a de elementos ligados a mim.13  

Mais adiante, em sua monografia14, Mangaba pergunta a si própria: "Como lidar  

com o vazio que tornou tão potente a ausência de algo que eu mesma removi?" E propõe uma reflexão mais teórica acerca dessa operação: Assumindo uma postura autoral enquanto referente, proponho discutir aqui a possibilidade de ação e deslocamento dentro da imagem fotográfica na qual eu, como punctum, me retiro da imagem em um processo de apagamento e ressignificação. Transformando o que poderiam ser retratos subjetivos em paisagens esvaziadas.

Esse esvaziamento gerado pela ausência gera um vácuo, um oco — lugar que, em potência, buscamos repovoar com nossa própria presença. Traçando um paralelo com a frase de Vito Aconcci (Holding a camera, away from my body and ready to shoot), Jessica Mangaba dispara contra si com outra câmera: o software. A máscara de invisibilidade que ela se atribui não a deleta, mas a sobrepõe. O espectador é novamente convocado a descobrir a imagem sob a imagem. Assim como nos trabalhos de Aconcci, é convidado convidado a habitá-la. Dentro do conceito de ocupação no sentido de potência, da obra que ocupa seu lugar próprio e se estabelece enquanto tal, Lapso certamente provoca a sobreposição já mencionada, esse ato de ser a primeira e a última, mesmo não sendo, onde nenhuma operação semelhante deixará de ser associada a esta. Outro exemplo dessa operação é a série Janelas, de Alan Oju. O que ele dá a ver, novamente, não é o que está ali para ser visto concretamente, mas o que pode ser ativado visualmente, sob forma de provocação. Movido pelo desejo de tornar permeáveis certas barreiras visuais, Oju abre suas Janelas em muros onde instala fotografias do que está além. Mas o que está além? Seria o que ele dá a ver, o que 13 14

Fonte: http://www.dobrasvisuais.com.br/2013/06/jessica-mangaba-e-o-lapso/

Monografia apresentada por Jessica Mangaba à FAAP, como parte dos requisitos para a aprovação no Curso de Pós Graduação Lato-Sensu em Fotografia. São Paulo, 2012.

realmente está do outro lado? Pouco importa, pois o que ele ativa em nós é o desejo de ver, através da provocação do ter visto. Ele pulou, é uma convocação, um convite. A vontade de ver me impulsionou a transpor os muros das cidades, onde do outro lado quase sempre o ar parece ser mais fresco. Ver, respirar, sentir e estar, oxigena meus desejos e alimenta minha ânsia de ver os muros das cidades abaixo para não mais vê-los e poder transitar livremente esquecendo o que é de quem.15

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Pio Figueiroa16, em texto crítico desta série, também nos dá pistas de seus  

efeitos sobre o espectador: “O gesto de ver, nesse sentido mais poético do que fisiológico, é o que termina por nos definir. Recordo de todas as vezes que pulei muros.” O ver gestual a que ele se refere bem poderia ser o ver da memória, quando afirma recordar-se de seus próprios muros.

Alan Oju, Janelas (2013)17  

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Alan Oju. Fonte: http://oju.com.br/

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Pio Figueiroa. Fonte: http://www.dobrasvisuais.com.br/fotolabmis/sobre-o-muro/

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Fonte: http://oju.com.br/

O espaço que Oju cria, além das Janelas fixas, é um espaço móvel, um lugar praticado, ou ainda, praticável. Para melhor compreender essas afirmações, é importante esclarecer dois conceitos fundamentais: o de lugar e o de espaço. O espaço realiza-se enquanto vivenciado, ou seja, um determinado lugar só se torna espaço na medida em que indivíduos exercem dinâmicas de movimento nele através do uso, e assim o potencializam e o atualizam. Quando ocupado, o lugar é imediatamente ativado e transformado, passando à condição de espaço. (DE CERTEAU) Essa posição móvel também se evidencia nas fotografias de Gabriel Orozco, que têm em comum uma posição móvel, como o rastro de um corpo em ação (pretérita, mas também cíclica) em um espaço fixo. Orozco utiliza a fotografia enquanto índice de um movimento do corpo (do artista ou do espectador), vestígio de uma ocupação. Minhas fotos não somente se referem a um instante de movimento captado pela câmera. Pretendem algo mais total, tratam do movimento constante que também se torna estático, como as minhas marcas de bicicleta em movimento que imprimem vários círculos e se convertem em algo estático. (OROZCO, 2005, p. 76)

Nas fotografias de Orozco, essa operação se dá duplamente, pois há dois lugares a serem ocupados por duas ações distintas que, consequentemente, geram dois espaços também distintos. A primeira ação é sobre o lugar propriamente dito: uma praia, uma feira, um supermercado. Pode-se dizer que esse primeiro espaço é um espaço móvel, gerado pelo fluxo de sua atividade. A segunda ação é uma posição estratégica: o lugar em que ele se coloca para realizar a foto, o lugar que ele ocupa (o lugar do olho, mas também o da mão, ou do dedo18) e gera um espaço fixo.  

A ação e a obra estiveram ali em Cachoeira, Brasil, e a viram quatro pessoas, por acaso. Esta foi a ação. Mas penso que a obra começou a funcionar como signo quando circulou entre mais pessoas através da fotografia. Talvez devamos perguntar: estas quatro pessoas bastam para considerá-la uma obra? E quando milhares de pessoas vêem a fotografia, se converte em algo diferente? (OROZCO, 2005, p.88)

O que torna essas fotografias de ações, no entanto, enigmáticas, é a sua aparente banalidade: nada de grandioso em colocar uma laranja sobre uma mesa e fotografar. Nada grandioso em colocar várias laranjas sobre várias mesas e mesmo

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Para mim, o órgão do fotógrafo não é o olho (ele me terrifica), é o dedo (...) Gosto desses ruídos mecânicos de maneira quase voluptuosa, como se, da Fotografia eles fossem exatamente isso – e apenas isso – a que meu desejo se atém, quebrando com seu breve estalo a camada mortífera da Pose. (BARTHES, 1984, p. 30)!

assim, fotografar. Uma peça tão simples19 que se resume em um único ato, que quase  

não parece estar ali. O distraído poderia facilmente não vê-lo. Suponho que muitos de fato não o vejam – ao mesmo tempo em que afirmo, penso que essa suposição deve ser repetida por todos que o vêem, em comunhão e privilégio: eu vi, era tão pequeno, mas eu vi, poderia não ter visto, mas eu vi.

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Turista Maluco (1991), Gabriel Orozco.20!  

Pois é no gesto mínimo — quase infantil — da criança que nos entrega o pequeno balde que acaba de encher com água do mar como sendo a prova viva do oceano inteiro, que se encontra a questão: o que faz essa foto aqui? Por que ele está me mostrando isso? Sem dúvida, uma das táticas de Orozco está nesse jogo de

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Turista Maluco, Gabriel Orozco, 1991.

20

Fonte: http://www.tate.org.uk/

conseguir o máximo de efeito com o que parece ser o mínimo de esforço (métis)21.  

Esse princípio de economia, no entanto, não é fruto do acaso, mas o resultado de uma experiência longamente adquirida: “a memória dos lances antigos é essencial a toda partida de xadrez”. (De CERTAU, 2008, p. 155). Luciano Vinhosa também nos remete ao conceito de métis aplicado a Orzoco, em sua série O pequeno gesto: ensaio em torno da experiência ordinária (2011), a qual constitui-se de fotografias de toda sorte de objetos ordinários, como garrafas de água mineral, latas de refrigerante, entre outros, que foram, depois de utilizados, abandonados de um modo preciso. “Quer dizer, foram deixados aqui ou ali, em cima de uma mureta, espetados em uma grade, abandonados nos cantos das calçadas, enfiados em frestas de construções, etc.”22 Essa coleção de gestos formou quinze  

classes poéticas, dispostas em ordem alfabética. Posteriormente, os gestos foram sublocados em outras três sub-categorias mais abrangentes, cada uma delas agrupando cinco dos quinze tipos: [Por associação] (Dádivas/ Imitação da arte/ Mallembradas/ Oportunidades/ Parassempre); [Por modo] (Assim!/ Assinaladas/ Enfiadas/ Guardadas/ Lançadas fora); [Por posição] (Lá/ Ali/ Aqui/ Do lado de cá/ Do lado de lá). Aparentemente banais, as fotografias de Vinhosa são construídas de tal forma que a importância dada a cada objeto (paradoxalmente sem a menor visibilidade, pois já haviam sido descartados) é máxima. Essa importância provoca o espectador em três níveis progressivos: 1) percebe o gesto; 2) percebe-se no gesto; 3) é invadido pelo gesto: nunca mais será capaz de torná-los novamente invisíveis. Dá-se novamente a ocupação. Esses três níveis são descritos de forma semelhante pelo próprio Vinhosa23:  

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A métis “É um princípio de economia: com o mínimo de força, obter o máximo de efeito. (...) A métis aponta para um tempo acumulado, que lhe é favorável, contra uma composição de lugar, que lhe é desfavorável. Mas a sua memória continua escondida (não tem lugar que se possa precisar), até o instante em que se revela, no “momento oportuno”, de maneira ainda temporal embora contraria ao ato de se refugiar na duração. O resplendor dessa memória brilha na ocasião. (DE CERTEAU, 1994, p. 155-158). 22

Fonte: http://www.youblisher.com/p/763822-POETICAS-DA-CRIACAO-ES-2013/ — Caderno de resumos do Seminário Poéticas da Criação ES 2013. 23

Idem.

As imagens, quando tomadas pela câmera fotográfica, obedecem, por suas estruturas visuais, a uma construção que se reporta aos termos (entradas) que as organiza. Em outras palavras, os termos se referem ao modo como as imagens são metodologicamente construídas no momento em que tais gestos são flagrados pela câmera. (…) o procedimento reconhece nos objetos/ situações fotografados um certo estado anímico (uma vida interior) coincidente com o gesto do sujeito anônimo que lhe engendrou e com o ato fotográfico — um modo de intencionalidade intrínseca que a imagem tenta reforçar.

Pequeno gesto/ Por modo/ Enfiadas

Pequeno gesto/ Por modo/ Assim!

Pequeno gesto/ Por associação/ Dádivas

Pequeno gesto/ Por associação/ Oportunidades

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Luciano Vinhosa, O pequeno gesto: ensaio em torno da experiência ordinária (2011)24  

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A proposta expositiva de Vinhosa em Brasília (Galeria de Bolso - CAL/UNB) em 2014, onde apresenta as imagens em painéis onde são recortadas pequenas aberturas também reforça o propósito do artista em gerar um campo para a ocupação desse

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Fonte: imagens cedidas por Luciano Vinhosa.

espaço fixo, como se pudéssemos incorporá-lo e nos puséssemos a observar pelo visor da câmera, ou através do olho (corpo) do próprio artista.

Luciano Vinhosa, O pequeno gesto: ensaio em torno da experiência ordinária: foto da instalação proposta para a Galeria de Bolso - CAL/UNB / Brasília, 2014.25  

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Tanto Orozco como Vinhosa jogam seus dados contrariando as expectativas (da instituição, do espectador), e com isso multiplicam o impacto de recepção de seus trabalhos quando nos surpreendem com o mínimo e o improvável: seja encontrando garrafas espremidas em furos de tijolos ou dando voltas de bicicleta sobre poças d’água, eles ativam a nossa percepção de coisas que, então, não são mais banais.

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Ver nota número 24.

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Extensão do Reflexo (1992), Gabriel Orozco.26!  

Se por um lado é a percepção atenta de Orozco e Vinhosa que os permite vislumbrar uma possibilidade de gerar uma descontinuidade num determinado lugar (oportunidade), é o enquadramento da fotografia, não como registro, mas como ato simultâneo, que permite a construção e posterior percepção do espaço criado. O enquadramento comprime, condensa a ação. Sem esse ato exigido pela fotografia, a percepção daquele espaço, rarefeito no todo, se dissolveria. Pense em como seria estar fisicamente diante dos objetos descartados que Vinhosa fotografou, ou mesmo caminhando na feira em que Orozco fotografou as laranjas sobre as mesas. Veríamos as coisas muito distantes umas das outras, ou muito pequenas, diluídas em relação ao todo que é o lugar “real” – a experiência de estar no espaço é diametralmente diferente da experiência de observar o espaço. Talvez, conforme o passo, nem víssemos que

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Fonte: http://www.tate.org.uk/

havia algo ali. Mesmo que os víssemos fazendo a foto, imagino que desejaríamos ver a foto, não pela promessa estética da composição, mas pelo significado que supostamente eles haviam guardado ali. Como seria então passar pelas marcas de bicicleta sobre o asfalto? Ainda que passássemos por elas a pé, considerando as chances de estarmos sozinhos, num dia receptivo ao acaso e com os olhos voltados para o chão, será que as veríamos da mesma forma que as vemos na fotografia? É importante observar que Orozco não fotografou a ação de dar voltas sobre as poças d’água, nem há registros de suas outras ações enquanto as realizava. O que ele nos dá a ver é o resultado, o efeito de sua ação. Só a fotografia é capaz de reunir todos os dados aqui necessários (o tempo, o recorte, a composição de elementos isolados do todo) à percepção dessas ações. Ouvir a respiração de um fantasma, atravessar paredes, perceber a qualidade óssea das cavidades de uma garrafa vazia, o corpo como continente, a pele de um corpo que toca outro corpo. Como ativar o espaço entre o signo e o espectador, entre o objeto e a pessoa que o vê? A resposta não é simples. A qualidade tátil e sinestésica dessas fotografias ativa uma memória que parece emanar não mais da fotografia, mas do corpo de quem as vê — seja com as mãos que apertaram copos plásticos, ou com a boca que mordeu suas bordas. O espaço que esses fotógrafos revelam a partir de suas imagens é ativado pela tensão entre o signo e o lugar onde as apresentam (o que isso faz aqui?), mas também pela fotografia, que é uma presença física. Um encontro sem hora marcada, ou ainda, um desencontro à espera do acaso: imagens sutis que não exigem que as vejamos, apenas estão ali, como estamos nós também, entre iguais. Um espaço, sobretudo ativado pela vontade do espectador. Obras que nos demandam tempo — não apenas o tempo de olhar para a elas, mas o tempo de olhar para dentro de si. Demandam também percepção aguçada, um estado de disponibilidade e prontidão, mas não nos fazem perguntas diretas, nem nos dão respostas prontas: isso é isso é isso. O que nos oferecem é a experiência, essa possibilidade de estar diante de algo e nada mais, para que geremos por nós mesmos esse espaço e o mundo se experimente em sua totalidade.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ACCONCI, Vito e VOLK, Gregory. Vito Acconci: Diary of a Body – 1969-1973. Milão: Edizioni Charta, 2006. AGAMBEN, Giorgio. Qu’est-ce qu’um dispositif? Paris: Payot & Rivages, 2007. BARTHES, Roland. A Câmara-clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009. DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
 ___________. “O que é um dispositivo?” In: DELEUZE, Gilles. O mistério de Ariana. Lisboa: Vega, 1996. DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. FLUSSER, Villem. Filosofia da Caixa Preta. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. RANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010.

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