Notas do Curso de Psicopatologia da Infância e Adolescência: Noções de Psicologia do Desenvolvimento

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Notas do Curso de Psicopatologia da Infância1 Hélio Tonelli Introdução Os sinais e sintomas de transtornos mentais e comportamentais na infância e na adolescência podem ser muito distintos dos encontrados em adultos. Por exemplo, crianças deprimidas tendem a apresentar mais sintomas de irritabilidade do que de apatia, quando comparadas a adultos deprimidos. Da mesma forma, crianças hiperativas podem apresentar sinais de hiperatividade motora muito mais proeminentes que adultos hiperativos, os quais tendem a ser mais mentalmente hiperativos. Durante muito tempo tais diferenças não foram levadas em conta pelos clínicos, e somente a partir da década de 80, quando questões relativas ao desenvolvimento ao longo do ciclo da vida passaram a ser mais valorizadas, esta tendência se modificou. Crianças e adolescentes devem ser avaliados levando-se em conta os estágios do desenvolvimento físico, emocional e cognitivo em que se encontram; uma perspectiva da psicologia do desenvolvimento, cujos principais aspectos discutiremos em seguida. Além da perspectiva da psicologia do desenvolvimento, o clínico precisa levar em conta o contexto familiar, social, educacional e cultural da criança que avalia. Por exemplo, “birras” podem ser uma forma normal de expressão da frustração em crianças de três anos de idade (portanto, fenômenos esperados nesta faixa etária), mas a intensidade e morbidez das birras podem ser maiores em uma criança de três anos cujo pai ou a mãe sofrem de alcoolismo. Nove a 22% das crianças e 18 a 22% dos adolescentes apresentam problemas emocionais ou do comportamento em algum momento de suas vidas. Além disso, 50% 1

Estas notas foram redigidas a partir de textos reunidos na organização da disciplina de

Psicopatologia da Infância do Curso de Psicologia da FAE, os quais estão discriminados no final deste documento. Não se trata de uma monografia ou de uma produção acadêmica propriamente dita, mas sim de material de apoio. Elas auxiliam no estudo da disciplina, mas não esgotam o assunto ou podem ser a única fonte de informações para o estudante da matéria, devendo ser de mais valia para o estudante que assistir às aulas semanais. Para os interessados em aprofundar seus conhecimentos a respeito de psicopatologia infantil e psicologia do desenvolvimento, a bibliografia comentada nas páginas finais deve ser útil, uma vez que procurei selecionar textos cientificamente orientados e de leitura acessível.

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dos transtornos do adulto iniciam-se antes dos catorze anos. Meninas e meninos parecem ser afetados diferencialmente de acordo com sua idade. Na idade pré-escolar, os meninos são mais diagnosticados do que as meninas, um padrão que muda na adolescência, com alguns estudos mostrando que as diferenças entre sexo desaparecem e outros até mesmo sugerindo um aumento do diagnóstico entre meninas. Todavia, este padrão é mais característico para determinadas condições clínicas, como a depressão e os transtornos de conduta. Diferentes técnicas são empregadas no estudo dos transtornos emocionais e comportamentais de crianças e adolescentes. Técnicas dimensionais baseiam-se na utilização de escalas de avaliação em determinadas populações, cujos escores são interpretados estatisticamente. Estas estratégias mostram duas dimensões clínicas: uma dimensão externalizante (ou descontrolada), caracterizada por comportamentos agressivos, disruptivos, hiperativos ou delinquenciais; e uma dimensão internalizante (ou hipercontrolada), caracterizada por isolamento social, ansiedade e depressão. O paradigma clínico, mais categorial, baseia-se na ideia de categorias diagnósticas ditadas pelos manuais diagnósticos, como a Classificação Internacional de Doenças (CID) ou o Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (DSM). Ambos são frequentemente empregados no estudo e no reconhecimento dos transtornos da infância e da adolescência. Propósitos da avaliação psicopatológica Estudar psicopatologia da infância e da adolescência é fundamental para a elaboração de um diagnóstico. “Diagnóstico” é um termo com muitos significados, e que não se restringe exclusivamente a diagnóstico clínico, psicológico ou psiquiátrico, na medida em que profissionais de saúde mental atendendo crianças e adolescentes também precisam saber como elaborar outras hipóteses diagnósticas, por exemplo, sobre o contexto familiar em que seus pacientes estão inseridos, bem como sobre seus relacionamentos interpessoais e desempenho escolar. Além do diagnóstico, a avaliação psicopatológica permite que se calcule um prognóstico (de fato, uma avaliação psicopatológica precisa torna o diagnóstico mais apurado, o que também permite algumas previsões acerca da possível evolução daquele quadro; algumas condições têm melhor evolução, outras infelizmente nem tanto), assim como favorece o planejamento do tratamento (algumas técnicas psicoterápicas são mais 2

indicadas para determinadas condições psicopatológicas, enquanto alguns transtornos exigem tratamento farmacológico além de psicoterapia) e a avaliação do sucesso do tratamento adotado (o profissional consegue observar a evolução da expressão sintomática ou comportamental de seus pacientes e suas relações com a terapêutica empregada). Na avaliação psicológica, o clínico deve estar atento a sinais e sintomas que habitualmente se agrupam e afetam as emoções, cognições e comportamentos, originando síndromes clínicas. Por exemplo, síndromes depressivas se caracterizam emocionalmente por anedonia, apatia, irritabilidade (comum em crianças) e/ou tristeza. Do ponto de vista cognitivo síndromes depressivas causam falta de concentração, diminuição do rendimento escolar e preocupações específicas e, comportamentalmente, diminuição ou aumento da atividade motora. Síndromes psicóticas, por sua vez, causam alucinações e delírios, os quais geram muita ansiedade e comportamentos correlatos, como isolamento ou agressividade. Noções de psicologia do desenvolvimento A psicologia do desenvolvimento propõe que o comportamento atípico seja observado à luz do grau de desvio das rotas normais do desenvolvimento. Determinar se um comportamento é ou não “normal” ou saudável requer uma compreensão da normalidade e dos limites daquilo que se tem como “variação da normalidade”. Um artifício que nos auxilia nesta árdua tarefa é o uso dos quatro “Ds”: desvio, disfunção, estresse (distress) e perigo (danger). A avaliação do grau de desvio de um comportamento pode ser realizada através da aferição de sua intensidade, frequência e duração. Levando-se em conta as já mencionadas birras, normais em crianças de três anos de idade, do ponto de vista da psicologia do desenvolvimento é possível dizer que uma criança desta idade pode estar apresentando uma condição psicopatológica dedutível através das birras quando elas forem mais frequentes e intensas que a média apresentada pelas crianças da mesma idade, em contextos semelhantes. Quando um comportamento afeta algum domínio da vida da criança, como as relações entre pares ou o desempenho escolar, dizemos que ele gera disfunção e também estresse. Por exemplo, uma criança muito agressiva pode causar intenso estresse em seu ambiente e passar a ser ostensivamente evitada, e até mesmo hostilizada por seus pares, o que piora ainda mais sua agressividade, isolamento e rendimento escolar. Na dependência da 3

intensidade da agressividade, esta criança pode oferecer perigo a seus colegas, professores e familiares. A psicologia do desenvolvimento é o campo da psicologia que estuda tanto a constância quanto a mudança do comportamento humano ao longo da vida, desde o nascimento até a morte. É possível aplicar a perspectiva do desenvolvimento em diferentes áreas da psicologia, como a psicologia cognitiva, a neuropsicologia, a psicologia do aprendizado, a psicologia clínica, a psicologia social e a psicologia comparada. Isso porque mudanças associadas ao desenvolvimento acontecem em diferentes domínios, como o físico (ou biológico), o psicológico, que compreende a cognição e as emoções, e o social. O psicólogo do desenvolvimento Heinz Werner propõe que o desenvolvimento consiste de dois processos, integração e diferenciação. Por integração subentende-se que comportamentos mais básicos e previamente adquiridos se integrem, dando origem a comportamentos mais sofisticados. Por exemplo, o aprendizado de como alcançar um objeto presume outras capacidades, como manter-se em pé, coordenar a visão entre o braço e o objeto e conseguir agarrá-lo. Levando-se em conta o mesmo exemplo, a diferenciação diz respeito a estabelecer distinções entre as coisas a serem alcançadas, a ponto de conseguir manipular tanto objetos maiores quanto menores, os quais exigem um ajuste mais fino do esquema corporal. Para Werner, integração e diferenciação crescentes caracterizam o desenvolvimento. Outro psicólogo do desenvolvimento, o alemão Paul Baltes, propôs alguns princípios do desenvolvimento. Baltes sugeriu que o desenvolvimento é um processo que envolve toda a vida e que nem todos os seus processos têm origem no nascimento, mas vão surgindo ao longo do ciclo. Trata-se de um processo multidimensional, isto é, que não pode ser descrito apenas em termos quantitativos (ou de aumento ou diminuição da quantidade de comportamentos); e multidirecional, ou seja, o desenvolvimento não se dá em uma única via (veremos adiante que o aprendizado da linguagem e o da compreensão do mundo físico ocorrem em íntima sintonia, de forma que aprender aspectos do mundo físico auxilia na compreensão do significado linguístico das coisas). Baltes sugere, ainda, que o desenvolvimento sempre envolve perdas e ganhos (é verdade que ao longo de nossas vidas perdemos as conexões 4

neuronais não mais utilizadas, um fenômeno denominado pruning ou “poda” sináptica) e é plástico (existe grande variabilidade interpessoal, na medida em que muitas influências ambientais são vividas individualmente). O desenvolvimento é, ainda, altamente contextual e um modelo trifatorial de suas influências contextuais sugere que elas se relacionem à idade, à história e a eventos particulares. As influências relacionadas à idade abrangem fatores biológicos e ambientais que são semelhantes para indivíduos da mesma faixa etária. Puberdade e início da fase escolar são exemplos deste tipo de influência. Influências associadas à história têm impacto em indivíduos que viveram em determinados períodos de tempo e que acabaram por influenciar uma geração em particular. Influências desta modalidade incluem, por exemplo, ter vivido no período da segunda guerra mundial, ou em uma comunidade carente na baixada fluminense. Por fim, existem as influências de eventos particulares, as quais abrangem ocorrências não usuais causando impacto no indivíduo exposto a elas. São únicas por indivíduo e não tem ligação a nenhum período de tempo. Alguns exemplos incluem ter tido câncer na infância ou perder um dos pais precocemente. A variável mais estudada em psicologia do desenvolvimento é a idade cronológica (o tempo decorrido desde o nascimento). Contudo, é importante salientar que não é a idade que causa o desenvolvimento; ela simplesmente reflete nossa existência por um período de tempo ao longo do qual acontece o desenvolvimento. As tabelas a seguir descrevem algumas etapas do desenvolvimento e incluem as expectativas normais de aquisições desde a infância até a adolescência, bem como algumas informações sobre possíveis efeitos de maus tratos. Desenvolvimento nos primeiros dois anos Físico

Cognitivo

Social

Emocional

Possíveis efeitos de maus tratos

Recém-nascidos:

Exploram o

Configuração

Até 1 ano de

Desnutrição e

movimentação

ambiente para

da ligação com

idade

seus possíveis

reflexa,

aprender com ele:

os pais:

sentimentos de

efeitos: retardo

5

descoordenada.

repetição de

acalmam-se e

confiança se

no crescimento,

movimentos para

buscam

desenvolvem nas

dano cerebral,

dominá-los, o que

conforto no

crianças, as quais

possível

também estimula

colo da mãe e

aprendem muito

retardamento

o

do pai.

sobre o mundo

mental.

físico e social.

Traumatismo

desenvolvimento neuronal.

crânio

3 meses: cabeça

encefálico e seus

em ângulo de 90º,

possíveis

usam braços

efeitos:

como suporte,

4 a 5 meses:

retardamento

seguem

balbucios,

mental,

visualmente

curiosidade e

cegueira, surdez,

através da linha

intenso interesse

paralisia

média.

no ambiente.

cerebral.

5 meses:

5 meses:

Traumatismo

tentam alcançar

respondem

físico: fraturas,

objetos, agarram

intensamente a

injúrias a

a propósito,

estímulos

órgãos.

transferem

sociais,

Atrasos na

objetos de uma

expressões

aquisição de

mão para a outra,

faciais de

habilidades

brincam com os

emoções.

motoras finas e

pés, rolam.

6 meses:

no

Imitam sons.

desenvolvimento

7 meses:

da linguagem.

conseguem

Vinculação

permanecer

problemática ou

sentados,

insegura aos

empurram a

pais.

cabeça e o torso

Ansiedade,

para a frente no

medos, apatia,

chão, conseguem

falta de

suportar o peso

responsividade

com as pernas.

social.

9 meses:

9 meses:

9 meses: maior

6

Não conseguem

Conseguem

Discriminam os

interação

brincar e

sentar

pais de outras

social, já

interagir com

voluntariamente,

pessoas, resolvem

conseguem

outras crianças

bem como sair da

problemas por

brincar com os

ou adultos.

posição sentada,

tentativa e erro.

cuidadores.

rastejam, inclinam-se, coordenam olhos e mãos, mas ainda sem

11 meses:

preferência por

ansiedade

mão.

frente a estranhos e ansiedade de separação.

12 meses:

12 meses: início

Dos 12 aos 18

Andam.

do pensamento

meses: “terríveis

simbólico:

dois” estão

apontam para

começando:

figuras em

teimosia, birras e

respostas a

caprichos

estímulos verbais,

começam a se

alguns usam

manifestar.

palavras isoladas, linguagem receptiva mais adiantada que a expressiva. 15 meses:

15 meses:

aumento da

aprendem através

complexidade das

da imitação de

habilidades

comportamentos

motoras.

complexos, sabem que determinados objetos são

7

usados para determinados propósitos. 2 anos:

2 anos: constroem

Imitação, jogos

18 a 36 meses:

Aprendem

frases com duas

simbólicos.

sentem-se

primeiro a subir

palavras;

orgulhosos

escadas, depois a

conseguem

quando se

descê-las.

brincar com

comportam bem

brinquedos mais

e vergonha

complexos e

quando não.

compreendem

Conseguem

sequências para

reconhecer

determinados

sentimentos

jogos.

como angústia em terceiros (rudimentos de empatia), são emocionalmente ligados a brinquedos ou objetos que lhes dão segurança. Desde os primeiros 12 meses, até os 3 anos de idade, dominam o corpo e esboçam alguma tentativa de domínio do ambiente, por exemplo, conseguem obter cuidados de outras pessoas.

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Desenvolvimento dos dois aos quatro anos Físico

Cognitivo

Social

Emocional

Possíveis efeitos de maus tratos

Fisicamente são

Egocêntricos,

Cooperativos,

A autoestima é

Baixo tônus

muito ativos,

ilógicos e com

imaginativos,

baseada no que os

muscular.

não

pensamento

com importante

outros dizem a seu

Pronúncia

permanecem

mágico.

desenvolvimento

respeito.

pobre, sentenças

quietos por

Explosão de

de habilidades

A habilidade de

incompletas.

muito tempo.

vocabulário:

sociais. Desejam

controlar as

Atrasos

Intenso ganho

aprendem

agradar os

emoções aumenta

cognitivos,

de peso e de

sintaxe e

adultos.

significativamente,

inabilidade para

altura.

gramática.

Desenvolvimento

bem como a

se concentrar.

Algo

Têm, ainda,

da consciência:

capacidade de

Imaturidade

desajeitados

pobre

incorporam

tolerar frustrações.

social: falta de

para jogar bola.

compreensão do

proibições

Maior capacidade

habilidade para

Em fase de

tempo, valor e

parentais, sentem

de retardar a

negociar e

refinamento de

de sequências

culpa e já tem

gratificação.

repartir,

habilidades

de eventos.

uma ideia

Senso de self

autoritarismo,

mais complexas

Imaginações

simplista de

rudimentar.

agressividade.

como pular,

vívidas;

comportamentos

Entende os

Dificuldades em

escalar, correr e

algumas

“bons” e “maus”.

conceitos de certo

estabelecer

andar de

crianças têm

Curiosos a

e errado.

vínculos (pouco

triciclos.

mais dificuldade

respeito do

Curiosidade.

ou

Refinamento de

de separar

corpo, mas sem

exageradamente

habilidades

imaginação de

um sentido para

estressados

motoras como a

realidade.

privacidade.

quando

coordenação

Memória

Sentido também

separados dos

mão-olhos:

acurada.

primitivo de

pais).

cortam com

Desenham de

papéis

Baixo peso e

tesouras,

forma mais

masculinos e

estatura.

desenham

primitiva.

femininos.

Ansiedade e

algumas

Ainda não

terrores

formas.

conseguem

noturnos.

Até os 3 anos e

perceber a

Descontrole de

9

meio a maioria

perspectiva de

impulsos, baixa

está treinada

outros.

habilidade para

para usar o

Podem

retardar

banheiro.

interpretar

gratificação.

erroneamente

Birras,

algumas pistas

violência.

emocionais de

Apatia.

outros.

Doenças não

Até a idade dos

tratadas.

4 anos a

Enurese,

linguagem

encoprese.

perceptiva é melhor que a expressiva.

Desenvolvimento dos quatro aos doze anos Físico

Cognitivo

Social

Emocional

Possíveis efeitos de maus tratos

Crescimento é

Usam a

Entendem

A autoestima é

Pobre

mantido, mas de

linguagem

conceitos de

baseada em sua

ajustamento

forma um pouco

habilmente.

certo e errado.

habilidade de

social e

mais lenta.

Melhora da

Entre os 5 e 6

desempenhar

acadêmico.

Usam as

tomada de

anos acreditam

alguma tarefa ou

Preocupação

atividades físicas

perspectiva:

que as regras

de produzir.

excessiva, crises

para aprimorar

reconhecem a

podem ser

Começam a

emocionais,

habilidades

perspectiva dos

modificadas;

desenvolver

dificuldade para

motoras

outros; entre 8 e

entre 7 e 8 anos

estratégias

se concentrar,

grosseiras e

10 anos

aderem

alternativas para

podem se sentir

finas.

começam a

rigidamente a

lidar com

ameaçados pelos

Competências

diferenciar

elas e entre 9 e

frustração.

desafios

motoras e

comportamentos

10 anos

Sensíveis às

acadêmicos.

sensoriais bem

intencionais e, a

percebem que as

opiniões de

Baixo controle

mais integradas.

partir dos 11

regras podem ser

outros.

de impulsos,

Algumas

anos

negociadas.

Entre 6 e 9

excessos ou

crianças entram

reconhecem e

Começam a

meses começam

insuficiências

10

na puberdade

consideram o

entender os

as perguntas

emocionais.

entre 10 e 12

ponto de vista

papéis sociais.

sobre gravidez,

Raiva, mentiras,

anos.

dos outros.

Assumem mais

sexo e o

roubos, danos a

A percepção dos

responsabilidades

interesse por

objetos, uso de

eventos é

em casa.

erotismo.

palavrões.

acurada, há

Menos jogos de

Dos 10 aos 12

Ansiedade

melhora do

fantasia, maior

anos iniciam-se

patológica.

pensamento

participação em

os jogos sexuais,

Manipulação dos

racional e

atividades

flertes e

adultos.

lógico,

esportivas.

preocupações

Fácil desistência

entendem

com as relações

de atividades

conceitos de

entre garotos e

que exigem

espaço, tempo e

garotas.

algum esforço.

dimensão.

Não conseguem

Conseguem se

confiar ou

lembrar de

trocam de papéis

eventos passados

com seus pais.

há meses ou

Problemas de

anos.

conduta,

Conseguem

depressão.

entender como seu comportamento pode afetar os outros.

Desenvolvimento na adolescência Físico

Cognitivo

Social

Emocional

Possíveis efeitos de maus tratos

“Estirão” do

Operações

Os mais jovens

A formação da

Problemas de

crescimento:

cognitivas

(dos 12 aos 14

identidade está

identidade, baixa

meninas, dos 11

iniciam um

anos) se

intimamente

autoestima,

aos 14 anos;

processo de

distanciam dos

relacionada ao

narcisismo,

meninos, dos 13

aperfeiçoamento

pais e passam a

papel social. Os

agressividade,

aos 17 anos.

no início da

se identificar

adolescentes

comportamentos

11

Puberdade:

adolescência e

mais com seu

mais jovens já

antissociais,

meninas, dos 11

estão bem mais

grupo social. O

são conscientes a

impulsividade

aos 14 anos;

desenvolvidas

status social é

respeito de sua

exacerbada,

meninos, dos 12

no meio e no

altamente

aparência física,

isolamento

aos 15 anos.

final desta fase.

relacionado ao

que pode,

social, mudanças

Pensamento

grau de afiliação

contudo, ser

de humor,

hipotético:

ao grupo.

avaliada de

depressão,

consideram

Precisam ser

forma pouco

transtornos de

diferentes

independentes

objetiva. Podem

conduta.

hipóteses e

dos adultos.

reagir de forma

Todos os

podem planejar

Entre 15 e 17

excessiva no

problemas

o

anos as

relacionamento

listados na

comportamento

amizades se

com os pais,

tabela anterior

de acordo com

baseiam em

procuram intensa

também valem

esta habilidade.

lealdade,

experiência

aqui.

Pensamento

compreensão e

emocional, e

lógico, abstrato,

confiança,

podem se

introspecção,

primeiros passos

envolver em

metacognição.

para o

comportamento

Insight, tomada

desenvolvimento

de risco.

de perspectiva

de relações de

Suporte social é

em situações

intimidade.

esperado do

sociais está

Podem iniciar

grupo de amigos.

ainda mais

sua vida sexual

Os adolescentes

elaborada.

nesta fase.

mais velhos

O

começam a

desenvolvimento

examinar melhor

cognitivo sofre

os valores e

alto impacto das

crenças de outras

emoções.

pessoas, bem como organizar melhor suas percepções destes valores, atitudes e comportamentos.

12

Começam outras preocupações a respeito da formação da identidade, como adoção, status econômico e identidade sexual.

Outras mentes, mundo externo, linguagem e a importância do trabalho de Piaget e Vigotsky Três tipos de informação são particularmente importantes para nossa compreensão do ambiente e crianças muito pequenas já começam a aprendê-las. São informações a respeito de “outras mentes”, do mundo externo e da linguagem. Em relação às outras mentes, pode-se dizer que se trata da habilidade automática e espontânea que qualquer ser humano saudável tem de “decodificar” pessoas e entender que elas têm pensamentos, crenças, sentimentos e desejos. Desde muito cedo – para não dizer desde sempre – tratamos outras pessoas não como objetos, mas como um tipo diferente de “substância”. Veremos ao longo deste curso que esta habilidade espontânea está comprometida em indivíduos portadores de autismo e talvez também em outros transtornos psiquiátricos como a esquizofrenia e o transtorno bipolar. Informações a respeito do mundo externo referem-se ao conhecimento sobre objetos e suas propriedades; suas texturas, superfícies e descontinuidades, bem como sua independência de nossos próprios corpos; relações de causalidade e categorização. Na medida em que nos tornamos mais hábeis em interpretar estas informações, deixamos de ver o mundo externo como um fluxo caótico e desordenado de sensações. A linguagem é a mais humana de todas nossas habilidades mentais e diz respeito à capacidade de ouvir os sons de nossa língua nativa experimentando-os como ideias de nossos interlocutores.

13

Para resolverem os problemas das outras mentes, do mundo externo e da linguagem os bebês parecem nascer equipados com algum tipo de conhecimento prévio a respeito de pessoas, objetos e linguagem. E também de mecanismos poderosos de aprendizagem que os permitam revisar, reformatar e reestruturar o que aprendem. Seres humanos têm um instinto para aprender. Os bebês nos mostram este instinto a todo o momento através de seu comportamento curioso e “investigativo”. Além disso, os adultos são desenhados para se comportarem de uma forma tal a facilitarem o aprendizado dos bebês. Nesta interação, adultos têm um instinto para ensinar. Um exemplo muito interessante é o fato de que, por volta dos 12 meses, os pais começam a conversar com seus bebês de um jeito muito peculiar, como se estivessem narrando cada comportamento da criança, uma atitude aparentemente sem sentido. O sentido por detrás deste comportamento dos adultos diz respeito à estruturação e organização do mundo por eles para seus bebês. É muito interessante que povos de diferentes idiomas organizam o mundo de forma diferente para seus bebês, em razão das diferenças gramaticais de seus idiomas. Por exemplo, mães falantes de inglês costumam utilizar mais substantivos e menos verbos ao se comunicarem com seus bebês do que mães coreanas, que têm maior probabilidade de falar sobre ações. Um reflexo disso podem ser diferenças nas aquisições de habilidades de decifrar o mundo que serão discutidas mais detalhadamente adiante: os bebês falantes de inglês parecem ser mais precocemente capazes de categorizar objetos do que os coreanos e estes aprendem mais cedo a executar ações como alcançar objetos distantes com auxílio de um rodinho. Esta não seria uma prova da polêmica hipótese de Benjamin Lee Whorf (ou Hipótese Whorfiana), a qual sugeria que a gramática de nossa linguagem tem uma forte influência sobre a maneira como pensamos. Em torno dos dois anos tanto bebês americanos quanto coreanos são capazes de entender ações e categorizar, o que seus idiomas fazem é apenas favorecer que desenvolvam estas habilidades com maior ou menor velocidade. É interessante que, por muito tempo, bebês e crianças foram definidos mais por aquilo que não sabem do que por aquilo que já vêm ao mundo sabendo. Evidentemente há muitas coisas que os bebês não sabem e precisam aprender, mas a ideia de que os bebês são “telas em branco” e que dependem dos adultos para aprenderem tudo o que sabem é equivocada.

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Duas

personalidades

foram

muito

decisivas

para

a

psicologia

do

desenvolvimento: o suíço Jean Piaget e o russo Lev Vigotsky. Piaget foi um brilhante biólogo e naturalista, que publicou seu primeiro artigo científico precocemente. Ele procurou explicações ligando grandes questões filosóficas, como o aprendizado, à biologia, e acreditava que estudando psicologia do desenvolvimento conseguiria atingir este objetivo. Nos anos trinta Piaget e sua esposa, Valentine, começaram a fazer anotações diárias extremamente detalhadas e precisas a respeito do comportamento aparentemente sem forma e fluído de seus filhos muito pequenos, Jacqueline, Lucienne e Laurent, concluindo que bebês têm uma “visão de mundo” complexa, mas qualitativamente diferente daquela dos adultos. Por exemplo, para Piaget, bebês parecem acreditar que objetos deixam de existir quando estão escondidos, bem como que não há limites entre os selfs deles e de outras pessoas. Piaget concluiu que os bebês nascem com um tipo de conhecimento, além de poderosos mecanismos de aprendizado que permitem que eles construam e revisem constantemente suas visões de mundo. Ele propunha que o aprendizado está fortemente enraizado na biologia em sua famosa metáfora: “as mentes dos bebês assimilam informação da mesma forma que seus corpos assimilam leite”. Como Piaget, Vigotsky também desejava reconciliar a psicologia com a biologia, além de se interessar pelo estudo da linguagem e do pensamento. Sua importância em psicologia do desenvolvimento está no destaque que deu ao papel crucial que adultos desempenham no aprendizado infantil. Ele afirmava que os adultos, especialmente os pais, seriam uma espécie de ferramenta que as crianças utilizam para resolver seus problemas de aprendizado e notou o quanto os adultos acabam ajustando o seu comportamento para fornecer às crianças as informações exatas para que elas resolvam estes problemas. Vigotsky acreditava que a influência que os adultos exercem nas crianças tem um caráter biológico, algo que faz parte de nossa natureza humana, enfatizando o papel da linguagem, um aspecto distinto, natural e biológico de nossa cultura, além do meio através do qual a transmitimos. Portanto, para Piaget, aprender é inato e para Vigotsky, a cultura é inata. Juntos, Piaget e Vigostky desenvolveram um método envolvendo observação próxima e detalhada de bebês e crianças muito pequenas em seus ambientes naturais, frequentemente por um longo período de tempo. A sistemática de suas observações determinaram seu valor, apesar de terem sido ignoradas por 30 anos. 15

O Aprendizado sobre as outras mentes A habilidade que seres humanos têm de atribuir, automática e espontaneamente, estados mentais a si mesmos e a terceiros foi extensivamente estudada por neurocientistas cognitivos nos últimos trinta anos, os quais lhe deram diferentes denominações, entre elas, “processamento cognitivo Teoria da Mente (ou ToM)”, “mentalização” e “adoção da postura intencional”. Tal habilidade tem como principal função prever o comportamento de outros seres humanos; contudo, outras capacidades mentais parecem recrutar circuitos cerebrais ToM. Por exemplo, a comunicação verbal envolve mentalização, seja no rastreamento de intenções, desejos, objetivos e emoções de um interlocutor – fundamental para a adequada apreensão das informações que são continuamente veiculadas oralmente –, seja na compreensão da linguagem pragmática, na qual recursos linguísticos como a metáfora e a ironia conduzem importante informação não acessível através do uso exclusivo de conhecimento lexical, gramatical ou semântico. A expressão “Teoria da Mente” (ToM) (que será empregada neste texto como sinônimo de habilidade cognitiva de inferência de estados mentais) deriva de um importante artigo publicado em 1978 por Premack e Woodruff, cujo título questionava se o chimpanzé teria uma “teoria da mente”, isto é, se da mesma forma que os humanos, aquela espécie seria capaz de prever os comportamentos de co-específicos através da inferência de seus estados mentais. Embora ainda haja algum debate a respeito desta capacidade em primatas antropoides, em relação à espécie humana não é difícil demonstrar o quanto temos de mobilizar este tipo de processamento cognitivo cotidianamente. De fato, nosso discurso é impregnado de expressões relativas a estados mentais (ou, como também são chamadas na literatura, expressões “mentalísticas”): sentenças como “João pensou estar agindo da maneira apropriada” e “ele achou que aquele homem fosse um ladrão” costumam ser compreendidas instantaneamente e sem nenhuma dificuldade e são utilizadas frequentemente pelas pessoas ao se referirem ao comportamento de outras pessoas. Um exemplo de um cenário que, para ser adequadamente compreendido, exige o recrutamento de habilidades ToM envolve a seguinte cena: “o casal se olha fixamente de frente, de mãos dadas, em uma das plataformas de uma estação de trem. Junto do homem há uma mala. O trem chega, os dois se abraçam fortemente. A mulher está 16

chorando. O homem limpa-lhe as lágrimas e os dois hesitantemente soltam-se as mãos. O homem pega a mala e dirige-se à entrada do trem, dando as costas à mulher. Antes de entrar no trem, vira-se para trás, olha-a nos olhos e embarca definitivamente”. Embora a interação entre os dois personagens seja absolutamente não verbal, indivíduos saudáveis do ponto de vista da integridade de suas estruturas cerebrais associadas ao processamento ToM não terão nenhuma dificuldade em compreender exatamente o que ocorre. Os personagens se gostam muito e estão tristes por terem de se separar. Antes de embarcar, o homem deseja ver por um último instante sua mulher. A intensidade com que a olha desta última vez comunica-lhe a profundidade de seus sentimentos. Os negritos referem-se a expressões relativas a estados mentais ou expressões mentalísticas. Seriam possíveis interpretações não mentalísticas deste cenário? O psicólogo e estudioso dos transtornos do espectro do autismo Baron Cohen afirma que sim, mas acrescenta que, invariavelmente, estas interpretações não nos parecem naturais. Por exemplo, um indivíduo portador de autismo, um transtorno do desenvolvimento em que existe prejuízo do processamento ToM, poderia descrever a situação acima de forma a não utilizar expressões relativas a estados mentais, como no trecho a seguir: “decerto que todos os dias este casal vai àquela plataforma de trem e repete este comportamento. Abraçam-se, ela chora, ele limpa-lhe as lágrimas, embarca no trem, mas antes dá mais uma olhadinha para ela”. Esta interpretação, embora plausível do ponto de vista puramente físico, não nos parece razoável, uma vez que concebemos o comportamento de terceiros como motivado por desejos, intenções e crenças; isto é, percebemos as pessoas como agentes. O conceito filosófico de agência foi desenvolvido pelo filósofo alemão Franz Brentano, que se referia à propriedade de alguém (ou algo) causar uma ação intencional em um objeto. Um agente tem, portanto, uma atitude proposicional em relação a coisas no mundo, isto é, dirige-se (física ou mentalmente) a estas coisas e não exclusivamente a si mesmos; seus atos possuem, então, um alvo. Crenças, intenções e desejos, configuram-se, portanto, como atitudes proposicionais. Como será descrito a seguir, o desenvolvimento da capacidade de gerar representações mentais a respeito de mentes se apoia no amadurecimento e na sofisticação do reconhecimento de agentes, sejam eles simplesmente objetos dotados de movimentação própria (direção essencialmente física em relação a um alvo), sejam eles indivíduos complexamente organizados e possuidores de desejos, crenças e intenções (direção essencialmente mental em relação a um alvo).

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Abordaremos a seguir os passos para a aquisição das habilidades ToM e da representação de “mente” no desenvolvimento mental normal, enfocando os processos cognitivos a partir dos quais estas habilidades acabaram por se configurar no cérebro e na mente humana. Do ponto de vista evolutivo as habilidades ToM não se desenvolveram para desempenhar especificamente estas tarefas, as quais podem ser melhor compreendidas como especializações de processos cognitivos pré-existentes. Os processos a que são mais comumente atribuídas as origens da mentalização são a percepção visual de movimento, a capacidade de atenção visual compartilhada, a detecção de intencionalidade, a imitação e a habilidade de representar ações objetivodirigidas. Conforme será visto, estes processos amadurecem em fases distintas do desenvolvimento, até que, entre os quatro e os cinco anos de idade, a maioria das crianças saudáveis terá um bom desempenho em tarefas especificas para mensuração do processamento ToM. Estas tarefas são utilizadas tanto na avaliação da maturidade da circuitaria cerebral envolvida no processamento ToM em crianças saudáveis ou não, quanto no estudo do comprometimento destes circuitos em transtornos mentais como o autismo, a esquizofrenia e o transtorno bipolar. A aferição da integridade do processamento ToM em crianças e adultos pode ser feita empregando-se tarefas verbais ou não verbais (ou compostas), as quais recrutam circuitos cerebrais envolvidos no processo de mentalização. Estas tarefas devem ser administradas conjuntamente com tarefas-controle (que não exigem mentalização), a fim de se eliminar a possibilidade de que baixas pontuações nas tarefas ToM decorram da não compreensão geral dos testes aplicados. As tarefas ToM constituem-se, de maneira geral, de pequenas vinhetas versando sobre a localização enganosa de determinados objetos ou do conteúdo de recipientes, bem como de cenários que, para serem adequadamente compreendidos, exigem habilidade de reconhecimento de emoções e de compreensão de linguagem pragmática e de falsas crenças. As referências bibliográficas de todas as tarefas ToM que serão discutidas a seguir, bem como as referências dos autores citados nesta sessão podem ser encontradas em meu artigo “Etapas da aquisição da capacidade de inferir estados mentais no desenvolvimento da psique infantil”, publicado na revista PsicoFAE (referência nº 13). Wimmer e Perner, em 1983, propuseram o Sally - Anne Task (SAT), que se popularizou inicialmente entre os pesquisadores por sua simplicidade em avaliar a capacidade de detecção de uma falsa crença. O cenário descrito pelo SAT consiste de 18

uma pequena vinheta, apresentada na forma de desenhos, envolvendo duas personagens, Sally e Anne. A vinheta é apresentada a seguir: “Sally possui uma bola e uma cesta e Anne possui uma caixa. Sally coloca sua bola dentro de sua cesta e sai de cena. Enquanto está fora, Anne pega a bola dentro da cesta de Sally e a coloca em sua caixa. Sally volta”. É, então, perguntado ao examinado onde ele acha que Sally irá procurar por sua bola: em seu cesto ou na caixa de Anne? A situação ilustra de maneira simples a falsa crença sustentada por Sally, ou seja, a de que a sua bola se encontra ainda dentro de sua cesta, pois ela não viu Anne trocar o brinquedo de lugar. A maior parte das crianças com mais de quatro anos de idade e indivíduos sem problemas no processamento ToM responderão que Sally deverá procurar por sua bola no cesto. Crianças menores de quatro anos e indivíduos com problemas no processamento ToM não conseguirão representar mentalmente de forma adequada a situação mental de Sally e tenderão a responder que ela deverá procurar por sua bola na caixa de Anne, na medida em que terão problemas para representar o estado mental de Sally, a qual não sabe que sua bola foi trocada de lugar durante o tempo em que esteve ausente. Outro teste visual bastante popular para avaliação de uma falsa crença é o Smarties Test (ST), que apresenta a situação em que uma embalagem muito conhecida de doces é mostrada a um personagem, a quem é perguntado sobre seu conteúdo, supostamente doces. Em seguida, a embalagem é aberta e é mostrado ao personagem que, na realidade, ela contém vários lápis, ao invés de doces. Pergunta-se à criança, então, o que ela acha que outra criança (para a qual nada foi dito a respeito do conteúdo da embalagem) responderá sobre o que há naquela caixa de doces. O John and Mary Test (JMT), por sua vez, avalia a compreensão de falsas crenças de segunda ordem, isto é, falsas crenças que alguém pode ter em relação às crenças de outra pessoa. O JMT compreende uma história em que os personagens John e Mary são informados independentemente sobre a mudança de lugar em que deverá haver um sorveteiro. Tanto John quanto Mary sabem desta mudança de lugar, mas John não sabe que Mary também sabe de tal mudança. John, portanto, sustenta uma falsa crença de segunda ordem acerca da crença de Mary, isto é, ele pensa que Mary ainda acredita que o sorveteiro está no antigo lugar. A compreensão da falsa crença de segunda ordem é acessada através da pergunta “Onde John acha que Mary vai se dirigir para comprar o sorvete?”.

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Alguns autores têm utilizado vinhetas compostas por cartoons ou desenhos de cenários ToM mais complexos na avaliação do processamento ToM de suas amostras. Tais cenários envolvem cooperação, sabotagem e traição entre os protagonistas, associadas ou não a outras tarefas ToM verbais, como o Hinting Task (HT), o Eyes Test (ET) e o Faux Pas Test (FPT). O HT é composto por dez vinhetas apresentadas na forma de texto, descrevendo a interação entre dois personagens, juntamente de um extrato de seu diálogo, onde um deles faz uma sugestão ao outro que, para ser compreendida, exige inferência de estados mentais. O FPT, da mesma forma que o HT, consiste de uma tarefa puramente verbal, composta por 10 histórias em que um dos personagens diz alguma coisa que não deveria ter dito, cometendo um faux pas (ou, em linguagem corriqueira, uma “gafe”). A história deve ser lida em voz alta ao examinado, que deverá identificar se algum dos personagens disse algo que não deveria ter dito e qual deles o fez. O ET é uma tarefa composta (verbal e não verbal) baseada na avaliação da capacidade de descrição de estados mentais a partir da observação de fotografias das regiões em torno dos olhos de pessoas desconhecidas. A descrição de estado mental é feita através da melhor opção de descritor dentre quatro possibilidades apresentadas por fotografia. De maneira geral, todas as tarefas empregadas na avaliação da capacidade de inferência de estados mentais em diversas populações, podem ser criticadas seja por terem sido desenvolvidas tendo em vista o estudo de um determinado transtorno em particular, seja por serem puramente verbais ou puramente não verbais; ou, ainda, por não permitirem uma avaliação precisa do processo de inferência de estados mentais de forma semelhante ao que ocorre na realidade. Isto é, por permitirem, de certa forma, algum tipo de reflexão, estas tarefas não simulariam o processamento ToM on line – automático e espontâneo (ou ToM implícito) – recrutando circuitos envolvidos no processamento da informação social baseados em aprendizado de regras sociais (ou ToM explícito). Para contornar este problema, têm sido desenvolvidas tarefas compostas por filmes gravados contendo interações entre pessoas. Estas tarefas visam simular melhor as condições naturais em que o processamento da mentalização ocorre. Muitas das críticas dirigidas aos trabalhos envolvendo a investigação do processamento ToM dizem respeito à não utilização de tarefas cognitivas gerais – como 20

medidas de atenção, controle inibitório, flexibilidade cognitiva e velocidade de processamento – e QI. Tais críticas se devem ao fato de que tarefas ToM também recrutam circuitos não relacionados especificamente ao processamento ToM para serem adequadamente realizadas. Muitos estudos bem conduzidos têm, contudo, demonstrado situações em que ocorrem prejuízos no desempenho em tarefas ToM, a despeito de escores normais em tarefas cognitivas gerais ou QI. Teorias sobre o desenvolvimento do conhecimento infantil acerca de mentes A ciência cognitiva baseia-se na hipótese de que a interação do indivíduo com o ambiente se faz através do trabalho de circuitos cerebrais que computam a informação conduzida pelos órgãos do sentido. Estes circuitos criam representações mentais daquilo que ocorre à nossa volta, a partir das quais comportamentos podem ser planejados. O termo “representação” pode ser compreendido como o produto final da percepção, em que o produto perceptual “bruto” é integrado a informações e conhecimento previamente armazenados na memória semântica e a informações provenientes de estruturas límbicas, onde é processado material de conteúdo emocional. Por conseguinte, qualquer coisa é passível de ser mentalmente representada, seja algo tão objetivo quanto “porta” ou tão subjetivo quanto “mente”. A vantagem do planejamento de comportamentos a partir de representações mentais é que elas permitem uma manipulação mental estratégica do ambiente, isto é, sem que se perca tempo e se corra os riscos de fazê-lo de forma concreta. Atualmente, uma série de hipóteses cognitivas que têm como principal foco descrever os processos de formação de representações mentais a respeito de mentes gozam de maior ou menor popularidade entre pesquisadores de diferentes escolas. Todas apresentam seus pontos altos e baixos, o que faz com que costumem ser apresentadas em conjunto nos textos de neurociência do desenvolvimento. As principais hipóteses são chamadas de “Teoria-teoria”, “Teoria da modularidade” e “Teoria da simulação”. Teóricos “Teoria-teoria” (TT) propõem que os seres humanos configuram gradativamente uma teoria informal a respeito de mentes (uma folk psychology ou psicologia intuitiva), utilizada como modelo de trabalho na tarefa diária de inferir estados mentais de terceiros e que, portanto, a experiência – e possivelmente a cultura– teria um papel formativo no desenvolvimento ToM infantil, na medida em que provê o input para a revisão, reelaboração e reorganização dos conceitos pré-existentes nesta 21

teoria. O modelo TT implica em que sejam formados gradativamente conceitos como os de “desejo” e “crença” – além de regras de como estes conceitos interagem – a partir dos quais inferências de estados mentais serão feitas. O estatuto deste repertório de conceitos e princípios é variável, podendo existir tanto na forma puramente simbólica quanto como um conjunto de noções e hipóteses acessíveis à exploração objetiva. Para os teóricos TT, uma “psicologia do desejo” é configurada inicialmente na mente da criança a partir de dois anos de idade, quando conceitos elementares de desejos e emoções são formados. Além disso, as crianças começam a entender que pessoas são subjetivamente conectadas às coisas que desejam; no entanto, inicialmente não há uma compreensão de que pessoas representem estas coisas mentalmente. Somente aos 3 anos de idade é que esta compreensão parece começar a existir na mente infantil, até que se forme, aos 4 anos de idade, uma “psicologia da crença e do desejo”, quando é possível uma representação mental das representações mentais de terceiros, incluindo, até mesmo a detecção de falsas crenças (que indicam que estas representações podem não coincidir com a realidade). Estes pequenos “psicólogos da crença e do desejo” são, portanto, capazes de estabelecer uma conexão entre aquilo em que alguém acredita ou que deseja e o modo como este alguém se comporta. Os teóricos modulares, por sua vez, propõem que o processamento ToM é realizado por módulos cerebrais especificamente desenvolvidos para lidar com a informação social e que dependem do apropriado amadurecimento do sistema nervoso central a fim de desempenharem suas funções adequadamente. Teóricos modulares como Alan Leslie e Simon Baron-Cohen assumem que estes módulos são inatos e que a experiência apenas faz com que comecem a funcionar, não determinando como irão funcionar, ao contrário do que pensam os teóricos TT. Módulos cerebrais ToM abrangeriam funções como percepção visual de movimento – particularmente o reconhecimento de agentes dotados de movimento autopropulsionado, consideradas formas mais primitivas de agência –, atenção visual compartilhada, detecção de intencionalidade e representação de ações objetivo-dirigidas. A percepção visual de movimento é uma importante fonte de informação sensorial, particularmente nos humanos e primatas antropoides, que são capazes de, sem dificuldade, distinguir entre movimento biológico (executado por seres vivos) e não biológico. Esta distinção permite um aumento na precisão da detecção de presas e 22

potenciais predadores, além de oportunidades de acasalamento. Bebês de apenas três meses de idade estão aptos a discriminar movimentação biológica de não biológica em experimentos nos quais movimentos de seres humanos são registrados apenas por luzes acopladas às suas principais articulações em registros feitos no escuro. Esta habilidade, presente em tão tenra idade, parece ser um dos ingredientes fundamentais para a posterior configuração de um sistema “detector de intencionalidade”. O desenvolvimento de um módulo de atenção visual compartilhada em crianças muito pequenas também parece ser fundamental para a configuração de capacidades sócio-cognitivas saudáveis. De fato, o olhar de outras pessoas é uma importante fonte de informação a respeito dos seus estados mentais, além de ter a propriedade de influenciar as representações mentais de objetos cujas representações seriam muito distintas, caso não tivessem sido olhados por terceiros, um fenômeno chamado de imposição intencional. Portanto, módulos cerebrais implicados no processamento de informação essencialmente visual (movimentação biológica e não biológica e direção do olhar de terceiros) poderiam servir como matriz para a compreensão de como as outras pessoas (e também outros seres animados) se relacionam subjetivamente a objetos, isto é, na elaboração de representações mentais objetivo-dirigidas ou de intencionalidade. Baron-Cohen afirma que, além dos mecanismos de detecção de movimentação autopropulsionada ou biológica e atenção visual compartilhada, mais um sistema neural seria necessário para o pleno desenvolvimento ToM. Este sistema foi denominado “Mecanismo Teoria da Mente” ou ToMM e se correlaciona especificamente à inferência de estados mentais a partir de comportamentos. Assim, os circuitos cerebrais detectores de

movimentos

autopropulsionados

ou

biológicos

processam

a

leitura

de

comportamentos a partir de estados mentais volitivos (desejo e objetivo), a atenção compartilhada o faz através de estados mentais perceptuais e o módulo ToMM, por meio da criação de representações de estados mentais epistêmicos (fingir, pensar, saber, imaginar, acreditar, etc.). Além da geração deste tipo de representação, o módulo ToMM permite a integração das tarefas dos três módulos em questão. Da mesma forma que as representações de estados volitivos e perceptuais, as representações epistêmicas são geradas a partir do rastreamento do agente. A distinção entre o rastreamento puramente perceptual e motor e o rastreamento epistêmico está na forma como eles são 23

realizados: no primeiro caso, ele se dá por meio do acompanhamento direto do agente através do emprego de um sistema sensório-motor; no segundo, em virtude do agente não poder ser rastreado por métodos puramente perceptivos, faz-se necessário o uso de informações indiretas a respeito deste, como a reflexão e a memória. Teóricos da “Teoria da Simulação” (TS) argumentam que, desde crianças, estamos conscientes de nossos próprios estados mentais e usamos esta consciência para inferirmos os estados mentais de terceiros através de um processo que envolve simulação, ou seja, de nos colocarmos no lugar do outro. Para alguns autores nossa própria mente pode ser utilizada como modelo para simular o funcionamento de outras mentes, uma vez que estas obedecem às mesmas leis. Da mesma forma que os teóricos TT, os teóricos TS valorizam o papel da experiência na modelagem da mentalização. Os simulacionistas sugerem, ainda, que o amadurecimento do sistema nervoso assegura que nossas mentes serão capazes de lidar com conceitos mentalísticos e com a semelhança com que estes conceitos são regidos também nas mentes de terceiros. O desenvolvimento de processos cognitivos relacionados ao processamento ToM passoa-passo Um mês de idade Bebês com poucas semanas de vida têm comportamentos que revelam seu maior interesse por pessoas do que por outros objetos. De fato, bebês com menos de 30 dias de vida dirigem mais suas vocalizações para pessoas do que para outros objetos com que se deparam. Neonatos já parecem ser capazes de reconhecer faces e sons humanos, bem como de se interessarem mais por movimentos executados por pessoas do que movimentos executados randomicamente. De fato, os bebês atraem-se tanto por pessoas quanto estas por eles, o que fecharia um círculo virtuoso em que, ao cativarem a atenção de seres humanos mais velhos, propiciam a aproximação daqueles que lhes fornecerão o input de informação fundamental para a configuração de suas habilidades ToM, por exemplo, através do exercício de suas primitivas capacidades de imitação. Desta forma, bebês com uma a três semanas de idade são capazes de imitar a protrusão da língua e a abertura de boca encenados por adultos com quem interagem. O psicólogo do desenvolvimento Alan Meltzoff propõe que, ao imitarem gestos daqueles com quem interagem, bebês começam a modular comparativamente sua produção comportamental com a de outros humanos, detectando as coincidências entre elas, em um processo 24

denominado pareamento intermodal ativo (PIA). No PIA, movimentos percebidos e movimentos executados seriam registrados em um único sistema representacional, um passo inicial para a posterior compreensão de estados mentais de terceiros propiciado pela possibilidade de conexão cognitiva entre o mundo visível dos outros e os estados internos do bebê. Mais tarde o PIA favorecerá o desenvolvimento de habilidades empáticas naquele indivíduo. Outro foco de atenção de bebês ainda muito pequenos é a movimentação autopropulsionada: objetos que parecem se movimentar por si mesmos despertam maior atenção destas crianças do que os que receberam algum tipo de auxílio para se movimentarem. Objetos dotados de movimento próprio parecem gerar representações iniciais de agência na mente infantil. As representações primitivas de agência parecem ser o substrato para a elaboração mais tardia de representações de estados mentais volitivos, como desejo e objetivo, e intencionalidade. Três meses de idade A partir do segundo mês de idade, os bebês passam a explorar mais ativamente o ambiente, aumentando sua competência no rastreamento de faces humanas. A partir da sexta semana de vida começam a sorrir e então enriquecem ainda mais suas trocas interpessoais, que se baseiam em mecanismos de imitação progressivamente mais desenvolvidos. Estes culminam com o espelhamento afetivo, possível constituinte primordial de uma protoconversação, que, em última análise, lança os alicerces para o desenvolvimento das perspectivas de primeira e terceira pessoas. Também a partir dos três meses torna-se evidente a propensão dos bebês de prestarem atenção à direção do olhar de outras pessoas. Embora mecanismos de atenção compartilhada estejam envolvidos na configuração de habilidades de inferência de estados mentais não se sabe ao certo se nesta idade tal propensão já tenha funções mentalísticas ou se apenas seja um fenômeno estímulo dirigido. No último caso, tanto a orientação da cabeça quanto o contraste das diferentes cores da esclera e da íris do olho de outro ser humano poderiam chamar a atenção dos bebês e não especificamente a direção do olhar. Contudo, estudos de neuroimagem funcional demonstraram a ativação do sulco temporal superior (STS) quando sujeitos experimentais olham para faces mudando a direção do olhar e até mesmo para imagens estáticas de pessoas com olhar dirigido. Além disso, indivíduos com lesão no STS demonstram prejuízos na percepção 25

da direção do olhar de terceiros, o que parece reforçar a hipótese de que o STS constitua a sede neural de um mecanismo primitivo de rastreamento intencional. Seis meses de idade Nesta fase, amadurecem ainda mais os circuitos cerebrais subjacentes à detecção de agência e à representação de intencionalidade, bem como à distinção entre movimento produzido mecanicamente e movimento biológico. Por exemplo, os bebês desta idade surpreendem-se com a movimentação de brinquedos ou objetos dotados de autopropulsão, mas não com a de seres humanos, o que pode ser sugestivo de que movimento biológico (e, particularmente, movimentação de seres humanos) e movimento não biológico seriam processados em circuitos distintos, cuja maturação ocorre em diferentes etapas do desenvolvimento. Sofistica-se ainda mais a capacidade de acompanhar o olhar de terceiros, que mais tarde será uma importante pista a respeito dos estados mentais das outras pessoas. No sexto mês de vida, os bebês são capazes de seguir o olhar de outro ser humano quando um alvo é diretamente observável; contudo, apenas aos nove meses serão capazes de fazê-lo sem um alvo. Em relação à identificação de emoções em outros seres humanos, experimentos mostram que bebês de seis meses são hábeis em parear expressões faciais de felicidade com registros vocais correlacionados. Nove meses de idade Entre nove meses e um ano de idade, amadurecem circuitos neurais subjacentes ao chamado “princípio da racionalidade”, o qual prevê que agentes sempre atingirão seus objetivos através da maneira mais econômica, chegando a demonstrarem surpresa quando isso não ocorre. O filósofo Daniel Dennett sugere que a adoção de uma atitude mental de pressuposição de racionalidade teria sido favorecida pela evolução por ser mais econômica em termos de tempo gasto no processamento da informação relacionada à compreensão e previsão do “comportamento” de elementos complexos, do que seria uma atitude mental de apreensão deste comportamento a partir da análise do funcionamento de suas partes. A primeira atitude mental foi denominada por aquele autor de “postura intencional” e a segunda, de “postura de projeto”. De fato, ao lidarmos com um computador, fazemo-lo mais frequentemente adotando a postura intencional do que a postura de projeto, ou seja, tratando-o preferencialmente como um agente cujo comportamento é mais economicamente compreendido através da pressuposição de 26

racionalidade. Assim sendo, não é incomum o uso de expressões mentalísticas ao nos referirmos ao “comportamento” de um computador, que não quer funcionar ou resolveu quebrar, por exemplo. Em relação à capacidade de imitação, nesta idade os bebês demonstram habilidade de imitarem comportamentos observados anteriormente, deixando de imitarem comportamentos que observem simultaneamente, em um mecanismo mimético baseado na memória, fundamental para o aprendizado. A capacidade de compartilhamento de atenção segue evoluindo intensamente até os dois anos de idade e, aos nove, iniciam-se processos relacionados à coordenação da atenção entre parceiros sociais com base em resposta a objetos ou eventos ambientais, época em que é possível a compreensão do apontamento protodeclarativo. Doze meses de idade Entre doze e dezoito meses de idade completa-se o desenvolvimento da habilidade de seguir a direção do olhar de um adulto, quando a criança passa a aprender que o olhar mantém uma relação importante entre a pessoa que olha e o objeto observado. Nesta fase, as crianças passam a fazer uso da informação sobre a direção do olhar de outro humano a fim de predizer seu comportamento: elas esperam que agentes intencionais “alcancem” ou “peguem” objetos para os quais estão olhando, assim como que apresentem um afeto positivo ao alcançarem um alvo para o qual olhavam e, portanto, com o qual tinham algum tipo de intenção (aos quinze meses, as crianças parecem ser capazes de inferir intencionalidade a partir de tentativas frustradas de um agente). O fenômeno da imposição intencional, representado pela tendência das crianças olharem para aquilo que os adultos olham, é consequência do maior desenvolvimento da atenção visual compartilhada. Comportamentos baseados na imitação parecem mais desenvolvidos nesta fase da vida; assim, as crianças passam a se interessar mais por um adulto que a imite, assim como têm um interesse muito grande por jogos de imitação. Atividades de imitação recíproca são fontes inesgotáveis de informação a respeito de “como deve ser, ser outra pessoa?” e de “quanto esta outra pessoa é igual a mim?”. Dezoito meses de idade Nesta idade, as crianças apresentam uma importante aceleração no desenvolvimento das habilidades linguísticas, a qual se deve à melhora da capacidade 27

de rastreamento intencional de outros seres humanos, graças ao amadurecimento dos circuitos associados à percepção de agência. Estes circuitos, portanto, participam tanto da configuração de habilidades de compreensão da linguagem falada – na medida em que ela exige inferência de estados mentais – quanto na facilitação da aquisição da linguagem em si. Por exemplo, entre dezoito e vinte meses de idade as crianças aprendem que o rótulo verbal utilizado por um adulto que se expressa em relação a uma coisa, diz respeito diretamente à coisa a que este adulto (e não a criança) atende no momento e não a qualquer outra coisa no ambiente. Além disso, um pareamento entre a rotulagem conceitual e o referencial intencional dos adultos (além da resultante em termos de resposta emocional associada à aquisição ou à não aquisição destes objetivos em relação ao objeto intencional) constitui um importante processo no desenvolvimento tanto de habilidades linguísticas quanto de inferência de estados mentais. Portanto, o aprendizado da linguagem pela mente infantil dar-se-ia via pareamento entre a rotulagem conceitual e o referencial intencional de um adulto, em um processo que exige uma quebra com o modo de pensamento predominantemente egocêntrico experimentado até então. Esta quebra permitirá que a criança passe a observar a valoração emocional aferida por um interlocutor a um determinado objeto. A partir dos dezoito meses até os dois anos de idade, as crianças começam a empregar com maior frequência verbos com significado sensorial, particularmente o verbo “ver”, parecendo não apenas entender que os adultos são capazes de enxergar as mesmas coisas que elas enxergam, mas também outras coisas não obrigatoriamente acessíveis a seu próprio campo visual, o que decorre da progressiva sofisticação de sua capacidade de tomada de perspectiva visual. O processo de desenvolvimento da compreensão do olhar como instrumento de comunicação deriva da aquisição de maior complexidade dos mecanismos de atenção compartilhada, que favorecem a criação de representações mentais de estados mentais perceptuais (por exemplo, “alguém vê”) da mesma forma que os circuitos de detecção de movimento autopropulsionado favorecem a criação de representações de estados mentais volitivos (por exemplo, “alguém deseja”). Aos dezoito meses as crianças entretêm-se em jogos de “faz-de-conta”, muito importantes no aprendizado sobre a diferença entre realidade e fantasia. Para isso, precisam de amadurecimento adicional dos circuitos cerebrais associados à 28

compreensão do ato de fingir. Um exemplo clássico da literatura é a reação provocada nas crianças pela brincadeira de fingir que uma banana é um telefone. Para o teórico modular Alan Leslie, a compreensão deste cenário só é possível após o amadurecimento da capacidade de “decoupling”, isto é, da diferenciação entre representações de eventos ambientais

(banana

e

telefone)

e

representações

de

metarepresentações (“pensar” que a banana é um telefone).

eventos

mentais

ou

Leslie acredita que o

mesmo módulo cognitivo processa o “fingir” e as “falsas crenças”, no entanto, as duas habilidades desenvolvem-se com dois anos de intervalo nos seres humanos, pois apenas crianças a partir dos quatro anos de idade são capazes de entender falsas crenças. Dois anos de idade Graças ao amadurecimento da habilidade de detecção de agência, a partir dos dois anos, as crianças parecem entender bem que pessoas – mas não objetos inanimados – são providas de objetivos e intenções, bem como já desenvolveram um léxico descritivo de estados mentais, incluindo termos relacionados a “desejo”. Por estarem mais aptas na detecção de estados mentais de outras pessoas, crianças nesta faixa etária são sensíveis ao estado de ciência de seus pais sobre a localização de objetos, assim como direcionam o olhar deles a fim de informá-los sobre a localização de objetos que foram trocados de lugar. Também nesta idade, as crianças começam a tentar manipular a resposta emocional de outras pessoas, por exemplo, ao provocarem irritação nos seus irmãos ou ao tentarem confortá-los através de abraços e beijos. No entanto, aos dois anos as crianças ainda não estão aptas a entenderem que pessoas podem ter falsas crenças e que a aparência é diferente da realidade. Entre três e quatro anos de idade A sofisticação das habilidades ToM nesta fase reflete-se através da ampliação do vocabulário específico para descrição de estados mentais. Por exemplo, as crianças começam a compreender a diferença entre achar, pensar e saber. Apesar desta evolução, crianças de três anos apenas acompanham a lógica de um cenário falsa crença como o Smarties Test sem, contudo, acertar a resposta. Além disso, estas crianças são competentes na compreensão de relações causais simples entre desejos, emoções e ações, conseguindo entender, por exemplo, que as pessoas se sentem bem ao conseguirem o que desejam. Todavia, somente nos anos subsequentes será adquirido aprendizado mais complexo sobre as emoções de terceiros, como, por exemplo, que 29

nem sempre as pessoas sentem o que aparentam estar sentindo. Somente aos quatro anos de idade será possível o entendimento de falsas crenças de primeira ordem. A partir dos três anos também se desenvolve a habilidade de entender que um comportamento pode ser determinado tanto por estados psicológicos (desejos, intenções e crenças), quanto por processos biológicos (como os reflexos) e físicos (como a gravidade), fazendo com que se torne mais fácil a diferenciação entre atos intencionais e acidentais. Entre cinco e seis anos de idade A grande maioria das crianças nesta fase do desenvolvimento já é capaz de entender falsas crenças de primeira ordem; ao final dos seis anos todas estarão aptas a compreender falsas crenças de segunda ordem. Elas também já distinguem a diferença entre desejos, preferências e intenções. Entendem, também, que a aquisição de conhecimento a respeito de algo se dá, nas pessoas e em si mesma, através da exposição à informação perceptual. O desenvolvimento da habilidade humana de inferir estados mentais de si mesmo e de outras pessoas inicia-se muito precocemente, talvez a partir das primeiras horas de vida, completando-se aproximadamente no sexto ano de idade, quando praticamente todas as crianças saudáveis saem-se bem em tarefas desenvolvidas especificamente para aferição desta capacidade cognitiva social. Processos cognitivos básicos como a percepção visual de movimento, a capacidade discriminatória entre movimento mecânico e biológico, as habilidades de compartilhamento atencional, de detecção de agentes intencionais, de imitação e de representação de ações objetivodirigidas parecem servir de matriz para a posterior configuração de funções cognitivas ToM, a qual, todavia, somente acontecerá em um contexto de intensa interação da criança com outros seres humanos. O aprendizado sobre coisas e o mundo externo Habitamos um mundo tridimensional, onde objetos tridimensionais se movem no espaço de maneiras mais ou menos regulares; estes objetos se localizam fora de nossos corpos e continuam a estar no mundo nos momentos em que não podemos enxergá-los. Alguns destes objetos são pessoas, outros são animais, outros são plantas, outros são simplesmente “coisas”. Alguns objetos são parecidos entre si, outros são 30

completamente diferentes. Muitas vezes estes objetos são muito semelhantes, mas fazem parte de categorias diferentes (por exemplo, um bebê de verdade e um boneco, ou peixes e baleias), outras vezes são muito diferentes, mas fazem parte da mesma categoria (por exemplo, cães e galinhas; bicicletas e caminhões). Estamos tão acostumados com nossa capacidade inata, automática e espontânea de apreciar, compreender e categorizar o mundo físico, que nem paramos para pensar o quanto ela é complexa, do ponto de vista neuropsicológico. Como já foi discutido acima, temos um tipo especial de conhecimento que nos permite traduzir a informação que chega a nossos órgãos do sentido em representações mentais de objetos. Nosso cérebro processa toda a informação sensorial que chega a ele através de nossos órgãos do sentido e gera representações mentais do mundo. Representações mentais derivam, portanto, de uma propriedade do cérebro humano, de produzir “mapas” a respeito de tudo o que nos rodeia e até mesmo daquilo que está dentro de nossos corpos. A elaboração contínua de mapas mentais é uma das principais atividades cerebrais e tem íntima relação com o fenômeno da consciência. Diversos tipos de mapas são elaborados pelo cérebro: por exemplo, os “mapas internos” dizem respeito às funções fisiológicas do organismo e geram representações sobre aquilo que está acontecendo “ali dentro” em um determinado momento. A fome e algumas emoções elementares, como o medo, podem ser consideradas diferentes formas de experimentar subjetivamente as representações mentais resultantes do mapeamento do meio interno. Os “mapas externos”, por sua vez, são produzidos a partir de nossas experiências sensoriais e, por exemplo, das relações espaciais que mantemos com outros objetos do meio externo, gerando imagens mentais a respeito do ambiente, das coisas que nos rodeiam e de como elas nos afetam. É muito interessante que nosso cérebro também elabora mapas a respeito de sua atividade de fazer mapas, o que, em um nível subjetivo, está por trás da habilidade humana de observar os próprios estados mentais, inclusive os pensamentos. Quem nunca se flagrou pensando a respeito dos próprios pensamentos? Ou pensando coisas que acredita que não deveria estar pensando? Pessoas sofrendo de transtorno obsessivo compulsivo sofrem de extremos desta terrível experiência de se observarem pensando coisas que não gostariam ou não deveriam estar pensando, pensamentos que parecem não ser gerados por sua própria vontade, cuja temática pode envolver violência, pornografia ou preocupações inexplicáveis a respeito de higiene, simetria, perda do 31

controle, dentre inúmeras outras possibilidades. Imagens mentais podem ser de qualquer modalidade sensorial e também podem ser mais concretas ou mais abstratas. Nossas memórias têm, também, um caráter “imagético” (são vivenciadas subjetivamente como imagens mentais), mas, diferentemente das imagens mentais, são “reservatórios” de informações obtidas a partir da experiência passada e que são postos em ação para orientar nosso comportamento no futuro. A ideia de memórias como “reservatórios” é, no entanto, falha do ponto de vista neurocientífico, pois parece que não “gravamos” ou “salvamos” as coisas que vivenciamos de forma literal em nossas mentes, como câmeras e gravadores o fazem. Às vezes nos “lembramos” de coisas que não aconteceram. É o caso das confabulações, mais discutidas no curso de psicopatologia do adulto e que podem, inclusive, fazer parte do repertório de estratégias que a mente usa para construir uma narrativa coerente da realidade. Grosso modo, representações mentais e memórias originam sistemas de crenças a respeito do mundo, que funcionam como “bússolas” em nossa navegação por ele. O cérebro, desta maneira, elabora uma figura mental que é muito semelhante ao mundo real. Pelo menos ela é muito mais semelhante que a informação “crua”, do ponto de vista sensorial, que chega à nossa mente. Adultos conseguem prontamente decodificar os padrões caóticos de luzes, sons e cheiros emanados do ambiente, mas, como toda esta informação é configurada em nossas mentes desde a infância? O que a ciência nos diz é que já chegamos ao mundo com uma boa quantidade de informação “pré-instalada” em nossos cérebros, embora tenhamos muito que aprender com os adultos. Por exemplo, recém-nascidos sabem que vivemos em um mundo tridimensional, bem como que alguma coisa vista como curva será também sentida como curva. No entanto, de início os bebês não sabem como alguns objetos podem ser “escondidos” por outros, por exemplo, quando um está à frente do outro. Vejamos alguns exemplos de coisas que mesmo bebês muito pequenos sabem: da mesma forma que recém nascidos são extremamente ligados a quaisquer estímulos humanos, como vozes e faces, eles parecem adorar listras e cantos. Cientistas sabem disso porque percebem que, quando lhes são mostradas listras eles olham para elas por muito mais tempo do que olham para outros estímulos visuais, mesmo que sejam brinquedos extremamente caros e interessantes (ao menos do ponto de vista dos adultos). Os bebês olham por muito mais tempo para padrões de alto contraste – como 32

listras, tabuleiros de xadrez ou alvos de dardos – do que para padrões de baixo contraste. O maior interesse por listras, tabuleiros e alvos e outros padrões de alto contraste é justificado porque eles indicam onde coisas começam e onde coisas terminam. Os cantos, pelos quais recém-natos também se interessam, refletem as regiões limítrofes de objetos. Prestar atenção a cantos e listras é a melhor forma de iniciar um processo de divisão de uma figura estática e uniforme em objetos separados (pela observação dos limites entre eles). O mundo não é estático. Já na enfermaria o recém-nascido é confrontado por inúmeros objetos em movimento. O movimento dos objetos também desperta a atenção dos bebês e é uma pista sobre onde estes objetos começam e terminam. Quando um brinquedo articulado é apresentado a uma criança, por exemplo, um brinquedo composto por múltiplas partes (e, portanto, por diferentes cantos), e este brinquedo se move em frente à criança, ela vai observar o movimento de vários cantos acontecendo simultaneamente e, consequentemente, vai entender que, apesar de composto por partes distintas, trata-se de um único objeto. Este exemplo ilustra o princípio do destino comum, o qual propõe que coisas que se movem juntamente por um mesmo caminho devem ser parte de um mesmo objeto. Ainda em relação aos movimentos, bebês muito pequenos sabem muito a respeito de como objetos caracteristicamente se movem. Eles não apenas seguem os movimentos de um objeto à sua frente, mas também parecem conseguir prever como este objeto vai continuar se movendo no futuro. Se apresentarmos uma bolinha se deslocando por uma determinada trajetória, os bebês ficarão impressionados se houver qualquer contradição na sequência desta trajetória. Suponha que nesta trajetória haja um anteparo atrás do qual a bolinha deva passar. Crianças pequenas não se surpreendem se, após passarem por este anteparo, a bolinha seguir por uma trajetória previsível a uma velocidade previsível, mas ficarão perplexos se houver uma trajetória ou uma velocidade atípica, como se, após passar pelo anteparo, a bolinha mudar o sentido do deslocamento ou diminuir abruptamente de velocidade. A tridimensionalidade dos objetos também é um aspecto fundamental do mundo físico. Embora antigamente se achasse que o sentido de tridimensionalidade fosse obtido através da coordenação da visão com a experiência de movimento pelo mundo (e, consequentemente, da distância), hoje em dia se sabe que bebês muito novinhos, e que ainda não conseguem se deslocar sozinhos, já são capazes de entender o que é distância. Por exemplo, eles parecem se defender de objetos que se aproximem deles e 33

tentam alcançar, embora de forma desajeitada, objetos distantes que lhes interessam. Bebês também parecem compreender o que é chamado de constância de tamanho, isto é, se você mostrá-los uma bola e depois mostrar a mesma bola a uma distância duas vezes maior, eles saberão que é a mesma bola, apesar da imagem em suas retinas mostrar um objeto com metade da dimensão inicial. De outra forma, se você mostrar uma bola e depois mostrar uma bola semelhante a uma distância duas vezes maior, sem alteração de suas dimensões, eles acharão que a bola foi substituída por uma maior, apesar da imagem em suas retinas mostrar um objeto com as mesmas dimensões. Existem outros experimentos que elucidam muito a respeito do conhecimento prévio de bebês a respeito do mundo. Por exemplo, se bebês são postos a sugar duas chupetas de qualidades tácteis diferentes, isto é, uma mais dura e outra mais macia, sem, no entanto, enxergá-las, eles são depois capazes de identificá-las visualmente sem ter de sugá-las primeiro. Outro experimento mostra a bebês objetos balançando de um lado para outro em diferentes tempos, acompanhados de uma gravação de boing boing sincronizada com apenas um destes objetos. Os bebês parecem discriminar quais são os objetos sincronizados com a gravação e estranham os dessincronizados. Um dos problemas a serem resolvidos por bebês é: como aprender que objetos que não estão ao alcance da visão permanecem lá, nos locais onde foram originalmente vistos, e não deixaram de existir? De fato, bebês aprendem lentamente a respeito de objetos escondidos. Quando têm menos de nove meses, se você mostrar a eles um objeto interessante, como um molho de chaves barulhento, eles vão ficar bem excitados. Mas se esta novidade for coberta por uma toalha, toda a excitação desaparece e reaparece somente após o objeto ter sido “descoberto”. Mas estas crianças não tomariam a iniciativa de tirar a toalha de cima destes objetos. Por que elas simplesmente não poderiam descobrir as chaves para vê-las de novo? Supostamente porque não entendem que as chaves continuam ali quando cobertas pela toalha. É como se pensassem que, quando os objetos não podem ser vistos, eles deixam de existir. Após os nove meses as crianças conseguem encontrar facilmente objetos escondidos, apesar de haver outros jogos de esconder que eles ainda não serão capazes de decifrar. Por exemplo, você poderá deixar uma criança de quinze meses de idade atônita se primeiramente mostrar o molho de chaves em sua mão, depois, escondê-lo em suas mãos, levá-las abaixo de uma toalha onde as chaves são deixadas, e abrir as mãos, mostrando-as sem as chaves para ela. Uma criança nesta idade não parece conseguir 34

decifrar que as chaves foram deixadas em baixo da toalha, elas parecem se surpreender diante do “desaparecimento” das chaves de suas mãos. O paradeiro de objetos “desaparecidos” é algo a ser aprendido com os adultos e com a experiência. O filósofo David Hume já propunha que, ao vermos um evento sucedendo outro, é bem provável concluirmos que o primeiro evento tenha causado o segundo. Certamente, a todo o momento temos conclusões de causalidade e elas desempenham um papel fundamental em nossas vidas. Hume se perguntava por que entendemos como causalidade processos cujos mecanismos de causalidade não são testemunhados, mas apenas percebemos que um evento antecedeu o outro? Em suma, ele perguntava por que concluímos que um evento causa o outro se não testemunhamos o suposto processo de causa e efeito? É verdade que bebês muito novinhos assumem algumas relações de causa e efeito; por exemplo, bebês de três meses já sabem que suas ações podem influenciar eventos no mundo. Ao amarrarmos a extremidade de uma fita no pé de um bebê e a outra em um móbile, de modo que, à movimentação da perna do bebê o móbile se move, perceberemos que o bebê aprende rapidamente a chutar e a se mexer freneticamente para fazer o móbile se mover. Uma semana depois, o bebê se lembra de chutar a fim de movimentar o mesmo móbile, mas não vai fazer o mesmo se lhe for mostrado um móbile diferente. Adicionalmente, se desconectarmos a fita que liga o pé ao móbile, o bebê continuará chutando, como que pensando que sua própria vontade fará o móbile mexer. Portanto, bebês desta idade parecem entender que fazer alguma coisa pode fazer outras coisas acontecerem, mas não entendem ainda que esta “mágica” exige processos físicos intermediários. Piaget chamou este tipo de comportamento de procedimentos mágicos. A causalidade psicológica é uma importante ferramenta usada por humanos – bebês e adultos – para conseguirem o que querem e diz muito respeito à nossa capacidade de manipulação da mente dos outros (no bom e no mau sentido). Em relação ao experimento do móbile descrito acima, os bebês não apenas mexem suas perninhas para fazerem o brinquedo se mexer, mas dão gritinhos e risadinhas, parecendo querer “seduzir” o móbile a se mexer, como costumam fazer para provocar reações em seus pais e outros adultos. Crianças muito pequenas frequentemente cometem o erro de tentar usar de meios psicológicos para influenciarem o mundo físico. Mas, ao longo do tempo elas ficam melhores em sua compreensão de causas e efeitos. Quando têm um ano de idade, por exemplo, os bebês começam a compreender que só conseguirão trazer um brinquedo em sua direção com o auxílio de um pedaço de pano se o brinquedo 35

estiver em cima do pano. Antes disso, quando conseguem este feito, podem achar que a simples movimentação do pano pode deslocar um brinquedo, mesmo que eles estejam fisicamente distantes um do outro. Crianças também têm de aprender a categorizar, discriminando diferentes objetos e fazendo generalizações sobre eles. Categorias podem incluir diferentes tipos de “coisas”; pense nas categorias “animais”, “alimentos” ou “profissionais liberais” e perceba o que facilmente cabe em uma ou outra e o quanto pode ser difícil categorizar outras (por exemplo, baleias parecem peixes, mas são mamíferos). O aprendizado sobre categorias é bastante intenso nos primeiros três anos de vida. Por exemplo, se mostrarmos a um bebê de menos de um ano um carrinho azul se deslocando por uma determinada trajetória, passando por detrás de um anteparo após o qual continua se deslocando um patinho de borracha amarelo ao invés do carrinho, ele não se surpreenderá com a mudança e se comportará como se algum tipo de mágica tivesse transformado o carrinho no patinho. Isso acontece apesar destas crianças já conseguirem diferenciar azul de amarelo. Somente a partir dos doze meses os bebês começam a estranhar esta “súbita transformação”, o que indica que estão começando a elaborar processos de categorização. Da mesma forma, quando damos objetos de duas categorias distintas para crianças com menos de um ano, elas brincam com eles aleatoriamente e os devolvem também de forma aleatória, isto é, sem separá-los. A partir dos doze meses, a devolução é feita por categoria (por exemplo, bolinhas são devolvidas juntas e separadas de cavalinhos). O processo de categorização se sofistica muito até os três anos de idade. Existem muitos experimentos demonstrando que crianças de dois a três anos já são capazes de categorizações complexas. Por exemplo, blocos de brinquedo muito parecidos podem ser dados a crianças desta idade e pedir para que elas os coloquem, um a um, em um dispositivo que acende uma luz para alguns blocos e não acende para outros. Pesquisadores dizem a estas crianças que um bloco que não acendeu a luz no dispositivo é um “blicket” e pedem que elas lhe deem outro “blicket”. Elas vão lhe mostrar outro bloco que não acendeu a luz no dispositivo e não um que acendeu, não importa a semelhança entre eles. Aos quatro anos, as crianças já olham para as coisas de forma muito menos superficial e conseguem categorizações tão complexas quanto serem capazes de afirmar que duas coisas cujo interior é idêntico fazem parte da mesma categoria, mesmo que externamente sejam muito diferentes, bem como que objetos com similaridade externa não são da mesma categoria quando têm interiores diferentes. Eles 36

sabem, por exemplo, que o interior de seres vivos é muito mais complexo e heterogêneo que o interior mais homogêneo de pedras; também sabem que filhotes são da mesma categoria que seus pais e podem até mesmo saber que se um filhotinho de porco for criado por vacas, isso não o tornará uma vaca. Uma síndrome rara, a Síndrome de Williams, parece nos colocar diante de um dilema oposto ao autismo: crianças com esta condição são altamente sensíveis a pessoas (a outras mentes, portanto), mas têm muita dificuldade na compreensão do mundo físico; por exemplo, não compreendendo objetos escondidos e não dominando o uso de algumas ferramentas como a maioria das crianças com desenvolvimento normal. Embora muitas tenham habilidades linguísticas surpreendentes, conseguindo divagar fluentemente sobre diferentes temas, elas podem ter extrema dificuldade em compreender processos biológicos como crescimento, herança e morte. A síndrome de Williams sugere que exista alguma base genética para nossa habilidade de ir além da superfície das coisas e compreender o mundo físico de forma mais profunda. As crianças parecem ter um impulso ou um instinto para explicar as coisas, algo incontrolável, como a fome ou a sede. Crianças precisam explorar objetos, são muito curiosas e estão sempre mexendo nas coisas. Muitas vezes correm perigo, mas parece que os benefícios do aprendizado superam os riscos de se machucarem. Desde o berço, nossas crianças mostram-se profundamente interessadas por jogos de esconder, por desaparecimentos e aparecimentos “misteriosos”. Os psicólogos do desenvolvimento veem este interesse como um elemento essencial de seu trabalho de desvendamento do mundo físico. A exploração dos objetos pelas crianças de seis ou sete meses é feita com todos os sentidos; mais tarde, aos doze meses, elas brincarão com um objeto de forma variada: no começo, gentilmente, depois podem bater este objeto contra a parede ou um sofá de forma destrutiva, a fim de ouvirem os sons que este ato emite e observando se o objeto vai fazer coisas inesperadas. De forma muitas vezes incompreensível para nossas mentes adultas, estes comportamentos refletem “experimentos” que as crianças fazem com as coisas a fim de aprenderem mais a respeito do mundo físico. O aprendizado da linguagem O pensamento e a linguagem são elementos que distinguem a mente humana das mentes de outros animais, inclusive dos chimpanzés, nossos descendentes mais próximos e com os quais compartilhamos praticamente 98% de carga genética. Através 37

da linguagem não só comunicamos o que pensamos e compreendemos o que pensam as outras pessoas. Além de possibilitar que comuniquemos nossas ideias com alta fidelidade, a linguagem favorece algo muito interessante: a manipulação de ideias entre seres humanos. A linguagem tem a propriedade de alterar nosso pensamento, através da “inoculação” de novas ideias a sistemas de crenças já existentes, o que muda de forma radical o modo como contemplamos o mundo e também como nos comportamos. O gradual desenvolvimento de uma aptidão mental para a simbolização em nossos antepassados foi o alicerce a partir do qual se estabeleceu nossa disposição para pensar e, em seguida, comunicar nossas ideias. Grosso modo, a simbolização é um recurso mental em que alguma coisa visível representa outra coisa, que, ao menos naquele momento, encontra-se invisível ou inacessível aos sentidos. Um exemplo banal utilizado por autores de histórias em quadrinhos é o da lâmpada acesa acima da cabeça de um personagem, simbolizando que ele acaba de ter uma ideia. O pensamento simbólico e a linguagem foram determinantes para a configuração da cultura humana, que aos poucos foi se transformando numa poderosa estratégia de acúmulo de conhecimento. Uma cultura cuja essência é a acumulação e a transmissão de conhecimento foi a chave para que nossa espécie se capacitasse a ocupar praticamente e sobrevivesse em todas as extensões territoriais do planeta, um fato impensável para qualquer outro ser vivo. No entanto, nossas habilidades simbólicas e linguísticas e, em conseguinte, nossa propensão ao acúmulo de conhecimento, não surgiram repentinamente, mas foram sendo “instaladas” ao longo de milhões de anos, em nossos ancestrais. A linguagem também é algo tão corriqueiro em nossa mente que não nos damos conta de quão complexos são os passos que ela tem de dar ente a chegada de ondas sonoras em nossos ouvidos e sua decodificação em palavras e em sentidos, um tipo de representação mental. Por exemplo, os sons que ouvimos são contínuos e temos de fazer um trabalho de dividi-los em unidades. Isto é, ao contrário da linguagem escrita, em que as palavras são separadas por espaços, a linguagem falada e ouvida não tem estes intervalos bem sinalizados. Além disso, as vozes de nossos interlocutores são diferentes, pois suas cavidades bucais têm configurações anatômicas muito distintas, o que produz uma significativa diferença em como eles dizem as mesmas coisas. É interessante que pessoas que falam idiomas diferentes ouvem sons completamente diferentes. Um 38

mesmo som é ouvido de forma distinta por falantes de português, japonês, inglês ou polonês. Apesar de todos estes obstáculos, nossa mente, através do trabalho da linguagem, transforma ondas sonoras em representações mentais repletas de significados. Todas as etapas de processamento que fazem o tratamento de meras ondas sonoras até ricas imagens mentais têm de se desenvolver nas mentes das crianças ao longo do desenvolvimento e, de fato, isso ocorre rapidamente em crianças saudáveis. Veremos nesta seção alguns aspectos relacionados ao aprendizado de significados das palavras pelas crianças, como elas aprendem a juntar palavras gradativamente, até conseguirem formar sentenças complexas, bem como de que forma os bebês, que, ao que a ciência indica, já vêm equipados com uma habilidade ilimitada de identificação de sons, vão modificando e adaptando esta capacidade, na medida em que são expostos a um idioma, até que, a partir dos 12 meses, acabam por deixar de ouvir sons que são irrelevantes para sua língua nativa. É importante não nos esquecermos das teses de Piaget e Vigotsky, de que as crianças são equipadas para aprender, e que os adultos são essenciais neste processo de aprendizado. Portanto, ao longo de todo o desenvolvimento, as crianças precisam dos adultos para que aprendam o que precisam saber, apesar de seus poderosos recursos de aprendizado e do conhecimento com o qual já nascem equipadas. Como foi dito acima, a importância da linguagem para nossa espécie transcende a comunicação e a coordenação das ações entre os indivíduos de uma comunidade. Ela também permite a diferenciação entre grupos humanos e, através do acúmulo da cultura, a vantagem do acesso a toda informação que outras pessoas já descobriram, não sendo necessária, portanto, uma “reinvenção da roda”. Um dos primeiros passos que todos tivemos que dar em nosso processo de desenvolvimento foi o de decodificar o idioma a que estamos expostos, isto é, a identificar os fonemas a que estão mais frequentemente expostos em razão da língua falada em nossas comunidades. Afirmei logo acima que pessoas que falam idiomas diferentes ouvem sons completamente diferentes, isto é, que um mesmo som é ouvido de forma distinta por falantes de idiomas diferentes. Um exemplo anedótico é a incapacidade que japoneses têm de identificar a diferença entre o l e o r, e, portanto, de pronunciarem diferencialmente estes fonemas. O que parece ocorrer é que cada idioma 39

tem um jeito diferente de transformar as ondas sonoras em sons linguísticos, um fenômeno denominado percepção categorial. Com o tempo, fonemas infrequentes num idioma são desprezados, deixados de serem ouvidos, por serem desnecessários. Para resolver o problema de como as crianças passam a decodificar seu idioma nativo a ciência teve de pensar em desenhos experimentais bastante complexos. Como obter dos bebês respostas às perguntas que queremos lhes fazer? A ciência já conseguiu encontrar algumas maneiras de obter estas respostas, através de experimentos que identificam o que chama a atenção dos bebês. Sabemos que quando eles estão expostos a estímulos que os interessam, eles ficam bastante animados e, na medida em que o interesse vai diminuindo, este ânimo vai gradualmente desaparecendo, até que ele volta quando lhes são apresentados novos estímulos. Em relação à linguagem, existem trabalhos mostrando quais são os sons que estimulam os bebês. Através destes trabalhos é, também, possível identificar quais são os sons inicialmente reconhecidos pelos bebês. Será que bebês brasileiros, expostos desde o ventre ao português do Brasil já nascem “especializados” em ouvir português brasileiro ou eles nascem com uma propensão a ouvir quaisquer sons e vão se especializando na medida em que são expostos ao português? Um experimento muito engenhoso conecta chupetas a um dispositivo que emite sons, de tal modo que, ao serem sugadas, um som é tocado. Assim, ao ouvirem ba ba ba os bebês sugam ativamente até se habituarem ao som, quando passam a sugar de forma menos entusiástica. No momento em que o ba ba ba é trocado por pa pa pa, o entusiasmo volta e os bebês passam a sugar mais animadamente. Este desenho experimental permite identificar quais são os sons a que os bebês são sensíveis; portanto, ele nos ajuda a responder à pergunta acima, a respeito de que sons os bebês são capazes de identificar. Trabalhos utilizando esta metodologia permitem afirmar que, ao nascerem, os bebês são capazes de identificar muitos contrastes de sons, ou seja, podem discriminar sons de todos os idiomas, incluindo daqueles que nunca ouviram. O psicólogo Steven Pinker diz que os bebês com menos de dez meses são foneticistas universais. Isso porque, quando muito pequenos, mudanças muito discretas em sons chamam sua atenção, fazendo-os sugar com mais vontade. Dito de outra forma, estes estudos mostram que, se bebês brasileiros desta faixa etária forem testados de acordo com tais paradigmas experimentais, eles serão capazes de identificar quaisquer tipos de sons e não apenas os fonemas característicos do português falado no Brasil. Portanto, 40

quando vêm ao mundo, os bebês estão aptos a perceber fonemas que não são característicos de seu idioma nativo – este é um conhecimento com o qual as crianças já nascem – somente mais tarde, entre seis e doze meses, é que perdem esta capacidade e passam a deixar de perceberem fonemas que não existem em sua língua. Lembre-se da afirmação de Paul Baltes, de que o desenvolvimento envolve perdas e ganhos. Crianças mais velhas – entre seis e doze meses – são testadas em relação à sua capacidade de perceberem fonemas com um paradigma experimental diferente. Elas ficam sentadas no colo de um adulto enquanto outro adulto lhes apresenta alguns brinquedos para chamar sua atenção. Ao mesmo tempo, estas crianças ficam expostas a ba ba bas e pa pa pas que se alternam, emitidos por um dispositivo que as apresenta um ursinho dançando ou um palhacinho tocando tambor quando elas olham em sua direção. Isso ensina as crianças que, a cada vez que olharem naquela direção, uma coisa interessante acontece. E as crianças olham para aquela direção sempre que percebem uma mudança no padrão de som. Usando este modelo experimental, pesquisadores demonstraram que a partir dos dez meses, crianças japonesas já não fazem mais a distinção categorial entre sons de r e l (quando o som de um l é trocado pelo som de um r, estas crianças não olham para o dispositivo). Crianças deixam de perceber sons que não são usuais em sua língua nativa porque passam a armazenar sons prototípicos de sua língua, isto é, depois de ouvirem diversos rr, os bebês armazenam uma representação mental de um r prototípico de sua cultura linguística, a partir do qual comparam todos os demais rr. Novos sons são comparados aos prototípicos, e é possível que alguns sons mais atípicos sejam distorcidos para que, neste processo de comparação, possam ser percebidos como algo parecido ao protótipo. Os protótipos são formados entre seis e doze meses de idade. Tudo isso sugere que antes de aprender palavras e seus significados, as crianças têm de aprender a decodificar os sons que são críticos para a compreensão do idioma a que estão expostos. Ainda em relação à identificação das características sonoras do idioma natal, bebês devem identificar quais são os sons mais frequentes em sua língua. Por exemplo, a partir dos nove meses, falantes de inglês aprendem que palavras proparoxítonas são mais frequentes que palavras oxítonas em seu idioma – em português ocorre exatamente o contrário, com preferência pelas oxítonas – e passam a preferir a ouvir estas palavras, mesmo sem entender o que significam. Bebês também têm de aprender a distinguir – e 41

preferir – os sons possíveis em seus idiomas e quais são impossíveis; por exemplo, a combinação zb, comum na língua polonesa, é praticamente inexistente para americanos e brasileiros. A partir dos três meses os bebês começam a balbuciar. Através destes balbucios eles interagem ainda mais com os adultos e aperfeiçoam a recepção do input de informação que vem dos pais e de outros adultos. Os primeiros balbucios contêm apenas vogais (e são chamados pelos falantes de língua inglesa de cooing), mas, a partir dos sete ou oito meses eles passam a ser mais sofisticados em razão da combinação das vogais com consoantes (e são chamados de babbling). Os balbucios de bebês de 12 a 18 meses já são característicos de sua língua de origem, isto é, o balbuciar de crianças brasileiras desta idade é diferente do balbuciar de crianças suecas, japonesas ou finlandesas da mesma faixa etária. Assim, o início da segunda etapa dos balbucios marca o encerramento da fase universal de produção da linguagem, onde não existem diferenças devidas à língua nativa. Mama e papa são típicas combinações de vogais e consoantes utilizadas pelos bebês em seus balbucios. Se, de fato, eles significam mamãe e papai já foi motivo de pesquisa científica em psicologia do desenvolvimento. A investigação científica nesta área se beneficiou muito do vídeo, o qual permitiu não só que, depois de muitas horas assistindo a gravações de bebês em seus ambientes, pesquisadores constatassem que as crianças realmente se referem a seus pais quando empregam tais combinações, mas também que elas usam outras expressões como “foi” (gone), “lá” (there), “mais” (more) e “que” (that), como suas primeiras palavras, com significados não muito exatos, mas querendo se referir a coisas em seus ambientes. A expressão “foi” se referia às diversas maneiras através das quais objetos desaparecem de seu campo visual e outras expressões também têm seus significados peculiares, como “auau” para cachorro e quaisquer outros animais, “dada” para quaisquer outras pessoas e “lua” para lâmpada, laranja e a própria lua. Esta fase inicial de encontrar significados é seguida por outra, através da qual, com intensa ajuda dos adultos, as crianças começam a nomear objetos intensivamente através de um processo denominado mapeamento rápido, associado a uma explosão de alocação de significados. Mas este processo não pode ser compreendido como dependente exclusivamente daquilo que os adultos mostram, apontam ou ensinam às crianças. Ele também se serve das capacidades infantis de rastreamento intencional dos adultos, ou seja, as crianças conseguem assumir com certa 42

antecipação o que os seus interlocutores adultos desejam expressar, como já foi discutido no aprendizado sobre mentes. E esta capacidade os auxilia no aprendizado de novos significados. O aprendizado de significados também parece acontecer paralelamente ao aprendizado sobre outras coisas. Por exemplo, bebês parecem começar a usar expressões como “foi” na mesma época em que estão lidando com os problemas relacionados ao desaparecimento de objetos. Assim, o aprendizado sobre as coisas no mundo complementa o aprendizado de significados e vice-versa. O aprendizado em geral é acompanhado pela descoberta de que cada coisa tem um nome, o que gera a aquisição aguda e intensa de vocabulário, característica do mapeamento rápido. Crianças aprendem novas palavras da mesma forma que adultos aprendem novas palavras ou conceitos. No início, um termo novo pode parecer nebuloso, mas, a contínua exposição à área onde ele é mais utilizado acaba se seguindo de um “eureca!”, a partir do qual se tem a sensação de tê-lo, enfim, dominado. Você certamente já teve este tipo de experiência. Crianças têm de aprender desde muito cedo a juntar palavras, a fim de construírem frases de complexidade crescente. E esta habilidade parece também depender de alguns conhecimentos previamente existentes na mente infantil. Mesmo sentenças com duas palavras ditas por crianças pequenas podem expressar significados muito diferentes e as crianças as usam com muita destreza. Um bom exemplo é dado pelas sentenças beija papai e papai beija, as quais significam, respectivamente, que papai recebe um beijo e papai dá um beijo. Tais frases, mesmo muito simples, já encerram alguma sistemática, a qual, segundo Noam Chomsky, que nos anos 60 criou uma linguística moderna, envolve o conhecimento inconsciente de uma série de regras gramaticais. Chomsky afirma que as estruturas linguísticas são, pelo menos em parte, inatas e herdáveis, bem como que elas refletem uma gramática universal à qual estão subjacentes sistemas gramaticais humanos, obtidas através de um “dispositivo mental de aquisição de linguagem”, um módulo mental que apenas humanos possuem. Condições como dislexia e disfasia se caracterizam por dificuldades no aprendizado e no uso da linguagem e têm origem genética, reforçando a hipótese de que, de fato, haja um módulo mental especificamente relacionado à aquisição da linguagem. Isso porque crianças disléxicas e disfásicas não têm déficits intelectuais ou auditivos por trás de suas dificuldades, que normalmente aparecem quando começam a aprender a ler e a escrever. Estas crianças costumam ter problemas na codificação de determinados sons, não 43

conseguindo diferenciar rr de ll e bb de pp. Todos estes processos dizem respeito ao reconhecimento de padrões linguísticos, através das regularidades dos idiomas a que estão expostos (uma das funções da cognição é o reconhecimento de padrões). Embora a ciência tenha evoluído muito em relação ao estudo de como este processo é realizado, atualmente existem muito mais informações a respeito de quando estas capacidades são adquiridas. Outro aspecto interessante a respeito do aprendizado da linguagem é a observação de que a partir dos dezoito meses as crianças de diferentes nacionalidades produzem sons característicos de seu idioma nativo, o que, obviamente resulta de todo o processo de geração de representações mentais servindo-se de protótipos. Mas, a pergunta feita pelos cientistas do desenvolvimento é: como os bebês aprendem a imitar os sons produzidos pelos seus pais? Em outras palavras, como eles acabam desenvolvendo a capacidade de ajustar a língua e a cavidade oral a fim de produzirem um som em seu idioma? Pense que gerar o som associado ao ch na palavra alemã Buch é completamente diferente, do ponto de vista do ajuste necessário das estruturas anatômicas da fonação para produzir o som associado ao ch na palavra chá, em português. Os bebês brincam o tempo todo de emitir sons e têm um forte impulso de imitar os sons produzidos pelos adultos. De fato, já foi observado que após ouvirem um som novo, bebês ficam um bom tempo se aplicando a fim de aprenderem a gerar uma cópia daquela novidade. Além do mais, como já foi dito anteriormente, os bebês se interessam muito por faces humanas e prestam contínua atenção a elas, de forma a decodificarem os ajustes feitos pelos adultos em seus lábios quando produzem sua fala. O papel fundamental da interação com os adultos não é diferente no aprendizado da linguagem. Você já pensou como podemos parecer bobinhos ao nos comunicarmos com bebês, por conta do jeito emocional, melódico, exagerado, pausado e prolongando as vogais com o que o fazemos? E todos nós sabemos como eles se comportam quando nos dirigimos a eles deste jeito, chamado informalmente pelos pesquisadores de mamanhês (ou papaiês). Eles realmente gostam deste jeito de falarmos com eles. Os bebês não gostam de ouvir mamanhês apenas porque é falado por suas mães, mas também por suas características sonoras. O mamanhês é uma linguagem universal que parece ter diversas funções, não apenas chamar a atenção dos bebês e confortá-los, mas 44

também ajudá-los a resolver o problema da linguagem. Através das constantes repetições e das sentenças simples e curtas do mamanhês, ajudamos as crianças a descobrir as palavras e a gramática do seu idioma (de fato, o mamanhês sueco ressalta as características do sueco, o mamanhês chinês, as características do chinês). O cérebro adolescente Segundo a neurocientista especialista em adolescência Sarah-Jayne Blakemore, a importância do estudo do cérebro – e da mente – adolescente tem dois aspectos fundamentais. O primeiro diz respeito ao fato de grande parte dos transtornos psiquiátricos terem seu início nesta fase da vida. A esquizofrenia, os transtornos ansiosos, os transtornos por uso de substâncias e os transtornos alimentares, por exemplo, geralmente começam a se manifestar nos anos da adolescência. É possível que alguma coisa dê errado no desenvolvimento cerebral, “disparando” estes transtornos nesta faixa etária. O segundo aspecto refere-se ao fato de que na adolescência ocorrem as maiores taxas de mortes por acidentes. Os acidentes são causados por comportamentos de risco e sabidamente os comportamentos de risco são muito mais frequentes em adolescentes do que em crianças ou adultos (veja um motorista imprudente dirigindo na rua e aposte que ele tenha menos de 22 anos de idade, que suas chances de acertar são muitos altas. Infelizmente existem algumas possibilidades de você perder a aposta, principalmente quando o assunto é trânsito). Isso ocorre porque nesta fase da vida somos guiados para impressionar nossos amigos e tentar receber sua aprovação. É uma fase da vida em que começamos a nos desligar de nossos pais e darmos muito mais valor aos outros adolescentes. Também na adolescência sentimos uma modificação em nossa autoconsciência. Por isso é que sentimentos de vergonha por coisas aparentemente corriqueiras são tão comuns neste período do desenvolvimento. Boa parte dos modernos estudos em neurociência é realizada através da metodologia de neuroimagem funcional, onde, grosso modo, imagens do cérebro “funcionando” durante a execução de determinadas tarefas são registradas e comparadas com imagens em repouso, por exemplo. Um importante estudo do Instituto Nacional de Saúde Mental nos Estados Unidos abrangendo uma amostra de milhares de indivíduos, entre crianças, adultos e adolescentes, proporcionou uma expressiva quantidade de informações a respeito do desenvolvimento cerebral. Este estudo foi feito examinando45

se por ressonância magnética funcional os participantes ao longo de sua vida, de dois em dois anos. Um dos achados é que em muitas regiões do córtex cerebral (a região mais superficial do cérebro, rica em corpos de neurônios e sinapses neuronais), a substância cinzenta aumenta em quantidade durante a infância atingindo seu pico em algum momento ao longo do início da adolescência, quando começa a diminuir dramaticamente ao longo desta fase da vida até os 20 ou 30 anos. Falamos logo no início deste texto na “poda” sináptica, e é este fenômeno a que estamos aqui nos referindo. A diminuição observada na substância cinzenta a partir da adolescência corresponde a este processo, em que sinapses em excesso são eliminadas. Ao mesmo tempo, ocorre um aumento na quantidade de substância branca, devido à maior disponibilidade de mielina, uma proteína que aumenta a velocidade de transmissão do impulso nervoso e, portanto, da comunicação entre os neurônios. Já discutimos muito a respeito de cognição social, o nome para as operações cognitivas relacionadas à presença de outros seres humanos. Muito do que hoje se sabe a respeito da neurociência da adolescência deriva de estudos sobre cognição social nesta fase do desenvolvimento cerebral. As operações cognitivas sociais são desenvolvidas em áreas cerebrais bem determinadas e, às vezes, denominadas de “cérebro social”. Elas compreendem algumas regiões: o córtex pré-frontal medial, o sulco temporal pósterosuperior e o córtex temporal anterior. Estas três regiões encontram-se ativas quando adultos pensam em outras pessoas. Hoje se sabe que os adolescentes usam estas mesmas regiões ao pensarem em outras pessoas ou sobre relações sociais, mas o que parece ser diferente neles em relação aos adultos é que os adolescentes tendem a utilizar mais as regiões anteriores do cérebro social (isto é, o córtex pré-frontal medial) do que as posteriores. Os adultos tendem a recrutar mais as regiões temporais quando ativam seu cérebro social. Por que isso ocorreria? Uma das hipóteses é que adolescentes utilizam-se de estratégias cognitivas diferentes das dos adultos para resolverem os mesmos problemas cognitivos sociais e que estas estratégias mobilizam as regiões do cérebro social de forma distinta. Já vimos que os adolescentes tendem a se distanciar dos seus pais e desenvolvem um senso de identidade, dando maior importância ao que os outros – especialmente os outros adolescentes – pensam deles. Também existe um impulso para correr riscos, como que para se distanciar da proteção dos pais e da família e descobrir por si mesmo o que importa no mundo externo. Neste período as decisões acontecem de forma 46

progressivamente mais independente dos adultos, e adicionalmente, os amigos passam a ter um caráter decisivo nas tomada de decisão. Os processos cognitivos subjacentes às decisões dependem da interação de uma série de processos, que incluem as representações de valores, a seleção de resposta e o controle inibitório, o aprendizado e fatores sociais e emocionais. O elevado fator risco das decisões tomadas por adolescentes e sua impulsividade parecem derivar da lenta configuração de “forças” entre regiões cerebrais envolvidas tanto no controle cognitivo quanto no aprendizado e no processamento emocional, como o córtex pré-frontal e o estriado. É sabido que adolescentes preferem decisões associadas à gratificação imediata. A redução idade-dependente na tendência de tomar decisões impulsivamente é associada ao aumento linear na atividade do córtex préfrontal ventromedial e diminuição na atividade do estriado ventral, ao quais acontecem entre onze e trinta anos de idade. Adicionalmente, o contexto social é uma influência particularmente saliente nas tomadas de decisão de adolescentes, uma vez que uma importante fonte de gratificação para eles é a aprovação por seu grupo. Em pesquisas comparando tomadas de decisão em adultos e adolescentes na presença ou na ausência de amigos, os adolescentes tomam muito mais decisões arriscadas que os adultos quando na presença de amigos, enquanto adultos não sofrem tal impacto em suas decisões em condições semelhantes. Quando examinados em estudos de imagem por ressonância magnética, os adolescentes ativam mais áreas cerebrais associadas ao processamento da recompensa (como o estriado ventral) do que ao controle cognitivo (como o córtex pré-frontal) quando pensam que estão sendo observados por seus amigos, do que quando estão sozinhos. Este seria um exemplo prático de como acontecem as já citadas diferenças nas estratégias cognitivas adotadas pelo cérebro social de adultos e adolescentes no processamento da informação social. Conclusões A psicopatologia da infância e da adolescência deve ser estudada levando-se em conta as diferentes aquisições de habilidades físicas, cognitivas, emocionais e sociais ao longo do desenvolvimento. Nesta primeira parte do curso, estudamos alguns aspectos de psicologia do desenvolvimento enfatizando a configuração das habilidades cognitivas 47

sociais, particularmente as inferências de estados mentais de terceiros ou habilidades “Teoria da Mente”, e de nossa capacidade de decodificar o mundo físico e aprender uma linguagem. Veremos na segunda parte do curso o quanto este conhecimento é valioso na compreensão da origem de sintomas de muitos transtornos mentais das crianças e dos adolescentes. Vimos que portadores de transtornos do espectro do autismo têm déficits cognitivos sociais, apesar de ser possível que estes problemas sejam também encontrados em pacientes sofrendo de outras condições psiquiátricas e psicológicas como as psicoses e os transtornos do humor. Também vimos que crianças com Síndrome de Williams têm dificuldades em compreender aspectos físicos do mundo e que crianças com dislexia podem apresentar problemas específicos do processamento da linguagem. O estudo das alterações neuropsicológicas subjacentes às condições psicológicas e psiquiátricas afetando crianças e adolescentes não é importante apenas para sabermos mais sobre a origem das doenças, mas também para melhorar nossa capacidade de identificação de seus sinais e sintomas, além de ser extremamente útil na elaboração de tratamentos mais eficientes. Bibliografia: leituras complementares recomendadas para o curso de psicopatologia da infância 1. As tabelas do texto foram adaptadas das tabelas desenvolvidas pelo Institute for Human Services for the Ohio Child Welfare Training Program, elaboradas especificamente para equipes profissionais trabalhando com crianças e adolescentes e

podem

ser

encontradas

no

endereço

eletrônico

http://www.rsd.k12.pa.us/Downloads/Development_Chart_for_Booklet.pdf. 2. Baron-Cohen, S (1995). Mindblindness. An essay on autism and theory of mind. The MIT Press. Cambridge, Massachusetts. Uma obra clássica para os interessados na neurociência cognitiva do autismo. 3. Blakemore SJ & Robbins, TW. Decision-making in the adolescent brain. Nature Neuroscience 15 (9) 2012: 1184 – 1191. Um ótimo artigo em que os diversos domínios cognitivos envolvidos em processos de tomadas de decisão de adolescentes são detalhadamente discutidos. 4. Blakemore SJ. The Adolescent Brain. In: Brockman J. (ed.) Thinking. The New Science of Decision-Making, Problem-Solving and Prediction. Texto de uma especialista em adolescência, em uma coletânea de textos de vários pesquisadores

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importantes da atualidade falando sobre tomada de decisão sob diferentes perspectivas. 5. Blakemore, SJ. (2008). The social brain in adolescence. Nature Reviews Neuroscience 9 (4): 267 – 277. 6. Brüne, M. & Brüne-Cohrs, U. (2006). Theory of mind: evolution, ontogeny, brain mechanisms and psychopathology. Neurosciences and Biobehavioral Reviews, 30: 437 – 455. Uma boa revisão sobre habilidades “Teoria da Mente”. 7. Frith, C.D. & Frith, U. (1999). Interacting minds – a biological basis. Science, 286: 1692 – 1695. 8. Gopnik A, Meltzoff AN, Kuhl PK. The cientist in the crib: what early learning tells us about the mind. Livro essencial para aqueles que desejam se aprofundar em psicologia do desenvolvimento. Os autores descrevem, de forma bastante clara e fácil de compreender, como, através de uma postura ativa de procura por solução de problemas do dia a dia, bebês e crianças encontram respostas de como decifrar as mentes de outras pessoas – seus desejos, intenções e crenças –, compreender o mundo físico e aprenderem e compreender e utilizar uma linguagem. Para estes autores, os bebês se comportam como os cientistas. Boa parte destas notas foi extraída desta obra. 9. Malle, B. & Hodges, S.D. (ed.): Other minds. The Guilford Press. New York, NY. Uma publicação que reúne textos de diversos especialistas e pesquisadores em cognição social, tratando exclusivamente do problema das “outras mentes”. 10. Pinker, S. O instinto da linguagem. Como a mente cria a linguagem. Outro livro muito importante – e de leitura bastante agradável – para os que se interessarem por psicologia e neurociência da linguagem em geral. Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004. 11. Rutter M, Sroufe A. Developmental psychopathology: concepts and challenges. Development and Psychopathology, 12 (2000), 265–296. 12. Tonelli, H. Autismo, teoria da mente e o papel da cegueira mental na compreensão de transtornos psiquiátricos. Psicologia Reflexão e Crítica (2011) 24 (1): 126 – 134. Um trabalho de minha autoria cujo principal objetivo é argumentar a favor de alterações do processamento da cognição social subjacentes a sintomas de outros transtornos psiquiátricos como a esquizofrenia e o transtorno bipolar do humor, além do autismo. Para os que desejam compreender como déficits ToM podem estar por trás dos sintomas de outras condições psiquiátricas. 49

13. Tonelli, H. Etapas da aquisição da capacidade de inferir estados mentais no desenvolvimento da psique infantil. Um trabalho de minha autoria publicado na Revista PsicoFAE, que descreve passo a passo, as aquisições das habilidades ToM pelas crianças e que é praticamente reproduzido na íntegra neste texto.

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