NOTAS SOBRE A CONCEPÇÃO NARRATIVA DE PROVA: A SÍNTESE DO DEBATE ENTRE JACKSON E MACCORMICK

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NOTAS SOBRE A CONCEPÇÃO NARRATIVA DE PROVA: A SÍNTESE DO DEBATE ENTRE JACKSON E MACCORMICK. SOUZA, Rubens Hess Marins de (Direito/UNIBRASIL)

A prova como objeto da teoria do direito abrange uma diversidade muito grande de perspectivas, ocasionando muitas vezes a incomparabilidade das diversas perspectivas teóricas. Diante disso, o objetivo do trabalho é estabelecer o diálogo entre a proposta de Bernard Jackson e a proposta de Neil MacCormick a partir de dois arquétipos de prova: o retórico-argumentativo e o moderno. Assim sendo, a problemática envolve o seguinte questionamento: é possível comparar e articular os modelos teóricos da prova de Jackson e MacCormick? O desenvolvimento do trabalho está constituído em quatro etapas: Em primeiro lugar, são delineados os arquétipos retórico-argumentativo e moderno de prova. Em segundo lugar, é realizada uma breve explanação do fundamento teórico dos pensamentos de Jackson e MacCormick.Em terceiro lugar, há um juízo de comparabilidade entre os modelos de Jackson e MacCormick, salientando suas semelhanças e suas diferenças. Em quarto lugar, é apresentada uma análise crítica do debate ou diálogo envolvendo os dois modelos. Por último, são apresentadas as principais conclusões: os pressupostos de MacCormick e Jackson são diferentes; o modelo de MacCormick se aproxima do arquétipo moderno de prova; o modelo de Jackson se aproxima do arquétipo retórico-argumentativo de prova; apesar das diferenças há algumas aproximações importantes, em especial o papel do raciocínio dedutivo na prova. Palavras-chave: prova; narrativa; argumentação; semiótica.

Sumário: 1. Introdução. 2. O arquétipo retórico-argumentativo e o arquétipo moderno de prova: algumas distinções. 2.1 O arquétipo retórico-argumentativo de prova. 2.2. O arquétipo moderno de prova. 2.3 A concepção narrativa de prova. 3. Notas sobre o pensamento de Neil MacCormick. 4. Notas sobre o pensamento de Bernard Jackson. 5. Síntese do debate entre MacCormick e Jackson: aproximações e diferenças. 6. Análise e crítica. 7. Conclusão. 8. Referências bibliográficas.

1 1. INTRODUÇÃO

O trabalho aborda a temática da concepção narrativa de prova, especialmente a partir do confronto de duas linhas de pensamento: Neil MacCormick e Bernard Jackson. A problemática envolve a caracterização do pensamento dos autores, bem como o delineamento das principais divergências e convergências de pensamento a respeito da prova como narrativa. Para tanto, o desenvolvimento do trabalho está constituído em seis etapas. Em primeiro lugar, são arquitetados dois arquétipos de prova: a) o retórico-argumentativo e; b) o moderno. Os arquétipos são tipos ideais, dos quais os modelos teóricos de prova se aproximam em maior ou menor grau, oferecendo critérios para diferenciação entre os modelos de MacCormick e Jackson. Também, é apresentado um panorama geral da concepção narrativa de prova e suas distinções internas, o que facilita a comparação entre as linhas de pensamento em estudo. Em segundo lugar, é realizada uma síntese do pensamento de MacCormick no que diz respeito à sua concepção narrativa de prova, especialmente do conceito de coerência narrativa como critério de superação dos problemas de prova e de classificação. Em terceiro lugar, é realizada uma síntese do pensamento de Jackson a respeito de sua concepção narrativa de prova, enfatizando a composição entre uma perspectiva semântica e uma perspectiva pragmática do problema da prova. Em quarto lugar, são apresentados os principais pontos de desacordo entre as concepções de MacCormick e Jackson, especialmente o alcance da concepção narrativa e a validade do silogismo normativo na aplicação do direito. Em quinto lugar, é realizada uma análise

que relaciona os

pensamentos de MacCormick e Jackson aos arquétipos de prova e às caracterizações

das

concepções

de

narrativa,

bem

como

algumas

aproximações e críticas a concepção narrativa de prova. Em sexto lugar, são sintetizadas as principais conclusões do trabalho.

2 2. ARQUÉTIPO

RETÓRICO-ARGUMENTATIVO

E

O

ARQUÉTIPO

MODERNO DE PROVA: ALGUMAS DISTINÇÕES

Os arquétipos retórico-argumentativo e moderno de prova são tipos ideais que auxiliam a compreensão da racionalidade subjacente às várias concepções narrativas de prova, assim como suas principais caracterizações.

2.1 O ARQUÉTIPO RETÓRICO-ARGUMENTATIVO DE PROVA

O arquétipo retórico-argumentativo de prova pressupõe o contexto do mundo prático da vida humana e se desenvolve com base na razão prática. Esse mundo prático da vida não é o mundo da certeza, da exatidão e da verdade, trata-se, antes, do mundo do contingente, do provável e do verossímil. Importante destacar que não se trata de um provável estatístico – vinculado à frequência de eventos ou série de eventos –, mas de um provável ligado ao normal e ao mundo ético. Adota-se aqui a noção de provável ligada a eventos únicos cuja avalição se dá pela por um juízo 1 sobre a relação entre conjectura e comprovação, ou seja, trata-se do grau de comprovação de uma conjectura considerando determinados indícios2. A partir do momento em que se considera que provável está ligado ao mundo humano – ao mundo ético –, pode-se dizer que essa noção de provável “em termos subjetivos implica uma escala de valores, e é eticamente comprometida; e a opinião que é fundamento do argumento de probabilidade acabará por ser identificada na sua relação com o entendimento comum compartilhado3".

1

Juízo é um termo utilizado para designar o poder de tomada de decisão, de discernimento, de escolha. Refere-se à capacidade de identificar e avaliar um acontecimento único e particular, assim como, agir em resposta a ele (PASTORE. Giudizio, prova, ragion practica: um aprroccio ermeneutico. Milano: Giuffrè, 1996. p. 1-3). 2 GIULIANI. Il concetto di prova: contributo alla logica giuridica. Milano: Giuffrè, 1961. p.14, 159 e 177. 3 Tradução do autor. No original: “Una concezione del probabile in termini soggettivi implica il riferimento ad una scala di valori, ed è eticamente impegnata; e la opinio che è a fondamento della ‘argumentatio probabilis’ sarà in definitiva individuata ‘in communi omnium intellectu’” (Ibidem. p. 67).

3 Nessa esteira, as opiniões sobre o normal e o provável não estão todas no mesmo patamar, há graus entre as diversas opiniões. À guisa de exemplo: Aristóteles aponta que “são verdadeiras e primordiais aquelas proposições que merecem crédito, não por recurso a outras proposições, mas sim por si mesmas [...]; são fundadas na opinião comum aquelas proposições que parecem credíveis a todos, ou à maioria, ou aos sábios; ou ainda, de entre estes, a todos, à maioria ou aos mais conhecedores e reputados4”. Na concepção retórico-argumentativa, os fatos são construídos intersubjetivamente (relação sujeito – sujeito) em uma conjuntura dialógicocontroversial e, ao final, estabelecidos por um juízo prático-prudencial de caráter avaliatório-construtivo5. Como bem aponta Giuliani, essa construção intersubjetiva dos fatos se apresenta como uma espécie de processo de reconstrução mental e argumentativa dos fatos imagináveis, mediada pela oposição de valores. Portanto, nessa perspectiva, a prova é um argumento 6, um raciocínio na edificação de conjecturas, não sendo dotada de fisicalidade e não se confundindo com um dado empírico externo7. Ora, o caráter controversial alude à concorrência de conjecturas para a constituição de uma verdade provável8. 4

ARISTÓTELES. Tópica. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2007. p. 233-234 [100, b]. 5 GIULIANI. Op. cit.. p.224 e 231. 6 A prova como argumento remonta às concepções clássicas. Por exemplo, Irnerius: probatio quidem est rei dubiae et per argumenta iudis faciens fidem – a prova é tornar clara a coisa duvidosa ao juiz por meio de argumentos – (IRNERIUS. Summa codicis.p. 90 [IV, 19]. Disponível em: https://archive.org/details/summacodicisdes00fittgoog. Acesso em 19/06/2015). Também, Cícero: argumentum est ratio quae dubiae faciat fidem – argumento é a razão que torna clara a coisa duvidosa – (CÍCERO. Tópica. [2,8]. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A2008.01.0546%3Achapter %3D2%3Asection%3D8. Aceso em 19/06/2015.) 7 GIULIANI. Op. Cit. p.14-16 e 65. 8 Verdade provável não significa uma verdade fraca ou carente de indícios, mas sim a verdade construída racional e adequadamente no mundo contingente humano (Ibidem. p.167). Nas palavras de PASTORE: “Trata-se, portanto, de uma verdade do provável, de um provável que, no entanto, não pode ser identificada com uma dimensão lógica, matemático-estatística: mas sim do provável, mais exatamente, que pode ser conseguido em um contexto de finitude próprio da prática. A verdade que opera dentro do horizonte da prática, e, que nos interessa aqui, a verdade procurada judicialmente, é relacional. Ela tem um caráter prático, relativo, dialético, resolutivo, normativo. Sua determinação é feita, enquanto projectada na acção, através de um juízo que é singularizado e historicamente situado em relação às pessoas, às circunstâncias particulares, ao tempo e ao espaço”. Tradução do autor. No original: Si tratta, dunque, di una verità delprobabile, di un probabile, comunque, non identificabile com una dimensione logica, matematico-statistica: di quel probabile, più esattamente, che è possibile conseguire in un contesto di finitezza quale quello proprio della prassi. La verità che opera

4 Com efeito, reconhece-se os limites da argumentação sobre o provável, assim como a falibilidade do raciocínio, razões pelas quais dois princípios são estruturantes da concepção retórico-argumentativa de prova: a isegoria e o contraditório. A isegoria reflete a igualdade em fazer uso da palavra, portanto igualdade no discurso, na construção da verdade. Ao passo que o contraditório induz a redução das chances de vícios e erros nas argumentações, pois incita as partes a uma mútua correção dos argumentos apresentados9. Além disso, o processo dialógico de constituição da verdade provável convoca o imbricamento entre retórica e dialética: a primeira centrada na persuasão; a segunda centrada na razão e justificação10. Este

processo

se

desenvolve

a

partir

de

um

“centro

de

argumentação11”: uma questão controvertida partilhada pelas partes, as quais assumem posições opostas em relação à questão. Será a partir desse centro de argumentação que o julgador poderá determinar as linhas argumentativas válidas e a seleção dos fatos juridicamente relevantes12. Portanto,

tanto

uma

teoria

do

erro



que

identifica

linhas

argumentativas viciadas ou enganosas13 – quanto uma teoria da relevância –

all'interno dell'orizzonte della prassi, e, per ciò che qui ci interessa, la verità ricercata giudizialmente, è di tipo relazionale. Essa ha un carattere pratico, relativo, dialettico, decidibile, normativo. La sua determinazione avviene, in quanto proiettata nell'azione, attraverso un giudizio che è individuato e storicamente collocato in relazione ai soggetti, alle circostanze particolari, al tempo, allo spazio (PASTORE. Op. Cit. p. 36). 9 GIULIANI. Op. Cit. p.52, 58, 65-66 e 169. 10 Em razão desse imbricamento, o pensamento aristotélico, por exemplo, irá exigir além de uma teoria da argumentação; uma teoria do caráter do orador; e uma teoria das emoções. De fato, a dialética aristotélica é o principal exemplo de uma lógica do provável e do verossímil. A dialética funciona como a contraparte da retórica, limitando o subjetivismo e o erro; e configurando-se a partir de emulações do pensamento teórico-formal: a estrutura do silogismo é aplicada ao entinema e a estrutura da indução é aplicada ao exemplo A própria distinção entre provas não-artificiais (lei, testemunho, contrato, tortura, juramento e provas artificiais (entinema e exemplo) atesta a interação constante entre retórica e dialética (Ibidem. p. 22 e 24-29). 11 Este centro ou núcleo de argumentação tem por função mapear o caso em julgamento, pontuando as divergências entre as partes, delineando o discurso. Delineamento esse que envolve o sistema clássico de quis, quid, quando, ubi, cur, quem ad modum, quibus adminiculis – quem, o quê, quando, onde, por que, de que forma, com que meios –. (KONCZOL. Law, fact and narratives in acient rhetoric: the case of the causa Curiana. International Journal for the Semiotics of Law. n. 21 (1), 2008, p. 21-33. p. 22 e 25. 12 GIULIANI. Op. Cit.. p. 50-55 e 58-62. 13 Ibidem. p. 15-16 e 71-72.

5 que estabelece os critérios de seleção e prova dos fatos relevantes14 – gravitam em torno desse centro de argumentação. Neste sentido, não se pode falar de irrelevância ou erro em abstrato, mas apenas em relação à questão em causa. De igual forma, há uma ligação necessária entre a questão de fato e a questão de direito, visto que a relevância da prova está sujeita e condicionada a suas repercussões jurídicas 15 – para esclarecimento da questão duvidosa em julgamento –. Há, assim, uma recíproca e progressiva determinação do fato e do direito no desenrolar do processo dialógico de constituição da verdade provável16. Por certo, será papel do julgador – um espectador imparcial –: a) impor os limites à admissibilidade na apresentação de linhas argumentativas e de determinação dos fatos relevantes; b) formar, ao fim do processo, um juízo decisório que resolve a questão duvidosa. Por último, ressalte-se que tanto na aplicação da teoria do erro e da teoria da relevância, quanto na fixação da verdade plausível, o julgador não age como um autômato, mas sim guiado por um pensamento práticoprudencial, consciente dos limites da razão no campo do provável 17.

2.2 O ARQUÉTIPO MODERNO DE PROVA

O arquétipo moderno de prova pressupõe o mundo dos fatos como uma realidade empírica objetiva, que pode ser compreendida a partir de uma racionalidade teorético-explicativa, quer-se dizer que a verdade dos fatos no processo judicial deve buscar o mesmo status de uma verdade científica 18. 14

Geralmente, os critérios de seleção dos fatos relevantes se exteriorizam em termos negativos, em outras palavras, por um raciocínio de exclusão. Os critérios clássicos de seleção de prova dos fatos relevantes são: a) supérfluas: em que se alega algo já estabelecido com outras provas ou já definido com precisão; b) impertinentes: em que não há contribuição direta ou indireta para esclarecer a questão duvidosa; c) obscura e incerta: em que não se consegue individualizar o que se pretende afirmar; d) gerais: em que a amplitude da alegação torna a alegação obscura; e) impossíveis: em que a alegação contraria a natureza e a ordem natural das coisas; f) múltiplas: em que há duas questões opostas em discussão, afastando a possibilidade de qualquer falso testemunho (Ibidem, 1961. p. 78-79 e 171-172). 15 Ibidem. p. 78-79, 84, 173, 216-217 e 232-234. 16 PASTORE. Op. Cit.. p. 14. 17 GIULIANI. Op. Cit. p. 183-184. 18 BEX. Arguments, stories and criminal evidence: a formal hybrid theory. Dordrecht: Springer, 2011. p. 2.

6 Nesta perspectiva o mundo dos fatos é a realidade objetiva externa – dados empíricos brutos – que pode ser explicada por juízos de realidade19, ou seja, por juízos demonstrativos dotados de universalidade. A compreensão dos fatos se estabelece por meio de uma relação sujeito–objeto mediada por um método capaz de garantir a universalidade do conhecimento. Neste sentido, a verdade de um enunciado sobre os fatos se estabelece por correspondência: um enunciado é verdadeiro quando há correspondência com a realidade observada no mundo empírico. Portanto, o arquétipo moderno de prova se sustenta na racionalidade científica de matriz descritivo explicativa – dada pela observação de fenômenos e pela relação entre eles –. Por consequência, a prova dos fatos se assenta em alguns pressupostos: a) o mundo dos fatos é compreendido pela relação entre os fenômenos, cujas conclusões tem pretensão de universalidade em razão da consistência e regularidade20 com que ocorrem; b) tratando-se de um juízo de realidade, que se exterioriza por proposições certas e necessárias 21, o problema da prova é caracterizado como um problema empírico-explicativo, logo, não é um problema jurídico normativo22; c) provar significa estabelecer relações entre o conhecido e o desconhecido 23 por meio da análise lógicoformal dos indícios. Também, há a consolidação da autonomia do mundo dos fatos – objetivo e externo – em relação ao mundo jurídico24. Quer-se dizer que a questão de fato não se confunde com a questão de direito: a primeira vinculase a um juízo de realidade; a segunda vincula-se a um juízo de valor. Dentro dessa perspectiva, o processo de comprovação dos fatos não se refere diretamente à questão de direito. Assim sendo, a seleção dos fatos relevantes não se dá em consonância com as peculiaridades da questão em

19

O fato tem uma existência real, assim, o juízo sobre o fato se limite a avaliação de sua existência (GIULIANI. Op. Cit. p. 227). 20 A regularidade aqui invoca uma probabilidade de caráter objetivo-estatístico, portanto, de frequência de eventos ou de série de eventos (Ibidem. p. 14 e 215) 21 Ibidem. p. 115-116. 22 Isto significa dizer que a função do julgador se torna mais técnica e passiva, visto que valoração da prova se submete aos raciocínios lógico-formais da dedução e da indução. 23 Ibidem. p. 238. 24 Ibidem. p. 215 e 246.

7 discussão, mas são previamente determinados na forma de hipóteses nos textos das normas gerais e abstratas25. Por conseguinte, a prova relevante será aquela que, direta ou indiretamente, afirma o desconhecido por meio do conhecido, valendo-se de princípios científico-racionais – princípio da causalidade e princípio da motivação racional –26. Assim, o processo de prova envolve o raciocínio evidencial, construído a partir de etapas consecutivas, formando uma cadeia de raciocínios: inicia-se com um dado de evidência – oral ou tangível27 – raciocinando-se em direção a uma conclusão. Cada um dos passos dados tem uma estrutura subjacente na forma de – “e” é evidência para “p” – que justifica o passo da premissa para a conclusão28. Ao fim do processo de prova, a função do juiz se limita a reconhecer, por meio de um silogismo dedutivo, a correspondência entre a o fato comprovado e o fato hipotético da norma 29.

2.3 A CONCEPÇÃO NARRATIVA DE PROVA

A configuração do arquétipo moderno e do arquétipo argumentativo de prova auxiliam a compreensão da concepção narrativa de prova.

Os

arquétipos funcionam como tipos ideais que permitem uma aproximação maior ou menor frente às várias concepções narrativas de prova, seja situando o pensamento jurídico dos autores aqui tratados, seja relacionando as distinções entre as concepções narrativas a um ou outro arquétipo. Frise-se que as concepções de prova como narrativa no pensamento de Jackson e de MacCormick sustentam-se em pressupostos muito diferentes, razão pela qual algumas noções e distinções elementares acerca das narrativas são necessárias, visto estabelecerem alguns parâmetros de comparabilidade entre as duas visões. 25

Ibidem. p. 208. Cf. BEX. Op. Cit.. p. 27-29 e 29-31. 27 O dado de evidência oral compreende os testemunhos; as declarações dos peritos; o depoimento das partes etc; ao passo que o dado de evidência tangível compreende as coisas ou energias que contam como evidência para alguma coisa, por exemplo: documentos; vídeos; gravações de áudio; exames laboratoriais etc. (Ibidem. p. 33). 28 Ibidem. p. 36. 29 GIULIANI. Op. Cit. p. 226-227. 26

8 Como acentua Taruffo, desde o chamado “giro narrativo”, a narração tem se destacado em uma multiplicidade de contextos de aplicação e, muitas vezes, com concepções muito diferentes30. No específico caso do direito, a narração assume o sentido geral de story-telling, ou seja, as histórias contadas em processos judiciais podem ser tratadas como narrativas31. É por meio das histórias que os juristas podem estruturar e organizar os fragmentos de informações e de eventos dispersos em um conjunto coerente de fatos32. A narrativa, portanto, visa estabelecer uma perspectiva possível dos fatos33, a partir de dados informativos. Em outras palavras, utilizando a metáfora de Taruffo: “as narrativas são como um desenho que forma um mosaico a partir de um acervo de peças de vidro coloridas”34. É de se observar que a narrativa como story-telling pode caracterizar tanto uma narrativa de ficção (e.g. obra literária) quanto uma narrativa sobre o mundo real (e.g. um processo judicial 35). Essas duas categorias de narrativas exigem posturas diferentes do destinatário da narrativa. No caso das narrativas de ficção pede-se ao destinatário uma postura crédula em relação à construção narrativa apresentada, ou seja, para o bem desenrolar da história deve o “leitor” entender como verdadeiros os eventos ali narrados. Já no caso das narrativas sobre o mundo real, deve imperar uma postura de incredulidade, quer-se dizer que a narrativa deve ter suporte – em maior ou menor grau, de acordo com a concepção de narrativa adotada – em dados informativos (e.g. meios de prova). Dessa forma, evita-se a manipulação 30

TARUFFO. Narrativas judiciales. Revista de derecho (Valdivia), n. 20(1), 2007, p. 231-270. Acesso em 27/05/2015. Disponível em: http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S071809502007000100010&lng=es&tlng=es. 10.4067/S0718-09502007000100010. p. 233. 31 Ibidem. p. 234. 32 Idem. 33 Na esteira de Taruffo é preciso reconhecer que “fato” não se refere aos fatos em sua existência material, mas sim a enunciados acerca de fatos. 34 Tradução do autor. No original: “[...] las narrativas son como el diseño que forma un mosaico a partir de un montón de piezas de vidrio de colores”. (Idem). 35 No caso da narrativa sobre o mundo real do processo judicial, é preciso acrescentar o elemento institucional que envolve o ato de contar uma história. Contar uma história incredível em uma roda de amigos pode gerar um momento de estranheza ou desconforto, ao passo que contar uma história incredível em um julgamento judicial pode significar a restrição da liberdade ou a afetação do patrimônio do sujeito (STRATTON. Courtroom narrative and finding of fact: reconstruct the past one (cinder) block at time. Quinnipiac Law Review. v. 22 (4), 2004, p. 923-946. p. 926)

9 na reconstrução dos fatos que poderia atender aos propósitos dos sujeitos que contam a história a partir de um determinado contexto e ponto de vista36. Ainda voltado ao cenário específico do direito, a concepção de narrativa pode: a) remeter ao problema jurídico como um todo inseparável, ou seja, sem distinções entre questões de fato e questões de direito; b) ou tratar as questões sobre fatos como diferentes das questões de direito, ainda que vinculados aos aspectos jurídicos do caso. Neste último caso, não se nega a que o direito do caso e a narrativa relativa aos fatos sejam dimensões intimamente conectadas, mas sim que devem ser concebidas como distinguíveis37. Com efeito, a adoção dessa segunda concepção de narrativa implica na diferença do critério de julgamento de cada uma das questões. A narrativa relativa aos fatos estaria sujeita a um juízo de verdade ou falsidade, ao passo que os aspectos jurídicos do caso estariam sujeitos a critérios justificativovalorativos de interpretação e de argumentação 38. Ademais, tratando-se na narrativa no processo judicial mister se faz questionar o recorte ou os limites das narrativas apresentadas. No mais das vezes, a própria especificidade da situação jurídica dos sujeitos envolvidos na controvérsia permite a identificação dos fatos (fragmentos de informações e de eventos) que são relevantes para aquela narrativa. Assim, a narrativa irá girar em torno de um recorte dos fatos da causa que serão selecionados e determinados de acordo com a sua relevância; relevância essa que, por sua vez, remete ao conteúdo das normas jurídicas invocadas para sustentar a demanda. Tais normas jurídicas retratam os fatostipo, que servirão de referência para determinação da relevância dos fatos concretos a eles correspondentes39. Importa destacar que a referência a fatos não se reduz ao sentido de eventos materiais ocorridos na realidade explicáveis pelo princípio da causalidade, mas também por elementos motivacionais ou psíquicos que revelam o estado de ânimo dos sujeitos40. 36

TARUFFO. Op. Cit. p. 234 Ibidem. p. 239-240. 38 Ibidem. p. 240. 39 Ibidem. p. 239. 40 Ibidem. p. 242 37

10 Ressalte-se ainda que, no contexto judicial, não se tem apenas uma única narrativa, há uma pluralidade de histórias que são contadas pelas partes, testemunhas, peritos, assistentes e magistrados. Histórias essas narradas por pessoas diferentes, com propósitos diferentes e com desenhos e estilos diferentes41-42. De resto, a própria caracterização do processo como uma situação de controvérsia – onde se encontram narrativas alternativas –, irá exigir do julgador a opção por uma delas ou a construção de uma terceira narrativa 43 com status de autoridade para definir os rumos do problema em discussão. Nos dizeres de Taruffo: “essa história é verdadeira, não somente no sentido de

41

ALMOG. As I read, I weep: in praise of judicial narrative. Oklahoma City University Law Review. v. 26(2), 2001, p. 471-501. p. 475. 42 A estruturação do Poder Judiciário e as normas jurídicas processuais contribuem também para o delineamento e para a heterogeneidade das narrativas. Por exemplo: a) se se permite a pergunta direta do advogado para a testemunha; ou se há o direcionamento da pergunta para o juiz-presidente; b) se a testemunha deve responder “sim” ou “não” para uma pergunta sobre fragmentos específicos de fato ou se ela pode narrar uma história composta por uma sucessão de fatos; c) se o advogado tem o dever de dizer a verdade ou se tem apenas o dever de agir com boa-fé; d) se a narrativa das partes é construída e limitada pelos primeiros escritos das partes – petição inicial ou denúncia e resposta – ou se é construída durante o julgamento; e) se o magistrado deve escolher entre as narrativas apresentadas ou se ele pode construir a própria narrativa. (TARUFFO. Op. Cit..p. 242-250.) 43 Sobre a construção da narrativa, sintetiza-se o pensamento de Taruffo: A narrativa se constitui em uma história e a história constitui a versão dos fatos na perspectiva daquele sujeito. A construção da narrativa pode ser analiticamente compreendida pelo recurso aos modelos de construção: O primeiro deles, a construção de categorias: a classificação e organização de ideias e generalizações a partir de relações de sentido. A causalidade específica – relação direta de causa e efeito entre eventos – e a causalidade geral – relação de probabilidade entre eventos – são as principais categorias utilizadas na construção da narrativa judicial. O segundo deles, a construção linguística: implica o uso correto da linguagem, a observância das regras basilares da gramática, a precisão conceitual, a clareza, a ausência de contradições e omissões. O terceiro deles, a construção social ou institucional: várias das situações empíricas – dados empíricos brutos – ganham significado específico dentro de um determinado contexto social ou institucional. Por exemplo, o furto de um pedaço de papel com uma assinatura [dado empírico bruto] ganha sentido específico quando pelo contexto institucional tal papel é considerado um contrato ou uma folha de cheque, ganhando não apenas conteúdo econômico, mas especialmente significado jurídico. O quarto deles, a construção cultural: a narrativa se sustenta por um estoque de conhecimentos (vago, variável, indeterminado) que representa os conteúdos de uma cultura. Esse estoque seria formado pelo acúmulo de crenças, impressões, relatos, estereótipos, roteiros (práticas correntes), preconceitos, generalizações que, em um primeiro momento, permite distinguir o normal do anormal, o plausível do implausível, o que é compartilhado e o que sofre resistência. Em síntese, o recurso a tais modelos de construção, embora não garanta a veracidade da narrativa, sugere um mínimo de coerência acerca da história narrada. Destaque-se que, no contexto jurídico, esses modelos de construção devem ser acompanhados de modelos de construção próprios do direito – uma alusão aos meios de prova e à invocação de normas jurídicas –. (Ibidem. p. 251-261).

11 que tem a pretensão de veracidade, mas porque é verdadeira sobre a base do fundamento oferecido pelos elementos de prova apresentados e valorados 44”. Também, observe-se que a avaliação de coerência dessas narrativas será distinta de acordo com a perspectiva atomista ou holística a respeito da relação entre o todo e as partes da narrativa. Destarte, a relação entre o todo e as partes é o núcleo de coerência da narrativa. As partes ganham sentido com referência à história na sua totalidade e a história na sua totalidade só pode ser compreendida a partir das relações entre as várias partes. Retomando a metáfora de Taruffo: a peça de vidro colorida do mosaico só ganha sentido dentro do desenho completo do mosaico; e o desenho completo do mosaico depende das relações entre cada uma das peças de vidro colorido45. Na perspectiva holística avalia-se a história como uma totalidade, não exigindo para sua plausibilidade a prova de cada um dos fatos da narrativa isoladamente considerados, logo, os argumentos e as provas sustentam a narrativa como uma estrutura em teia – em que rompimentos menores não tem por consequência o desmoronamento da narrativa –46. Pelo contrário, na perspectiva atomista adota-se um raciocínio analítico, a avaliação da coerência exige que cada um dos fatos – individualmente considerado – que compõe a narrativa seja devidamente comprovado. Assim sendo, cada fato é analisado individualmente a partir dos elementos de prova que o sustentam, evitando assim assumir como verdadeiros fatos que não possuam relação imediata ou mediata com o mundo empírico47. Outrossim, esta narrativa decisória, atomista ou holística48,

é

constituída pela conjugação de duas narrativas: a narrativa interna e a narrativa

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Tradução do autor. No original: “[...] esa historia es verdadera, no solamente en el sentido de que tiene la pretensión de veracidad, sino porque es verdadera sobre la base del fundamento ofrecido por los elementos de prueba aportados y valorados” (Ibidem. p. 249). 45 Ibidem. p. 261. 46 Ibidem. p. 262-263. 47 Ibidem. p. 263-264. 48 GRIFFIN sugere a tendência de os juízes seguirem uma compreensão racional-objetiva da prova, voltada para a comprovação de cada fato relevante – perspectiva atomista –; ao passo que os jurados seguiriam uma compreensão de prova como plausibilidade da narrativa como um todo – perspectiva holística –. (GRIFFIN. Narrative, Truth and Trial. Georgetown Law Journal, v. 101 (2), 2012, p. 281-335. Acesso em: 13/04/2015. Disponível em: SSRN: http://ssrn.com/abstract=2190099. p.293).

12 externa. A narrativa interna é resultado de um processo mental de cada consciência individual – influenciada pela personalidade; pelas experiências pessoais; pela ideologia; pelo acervo sócio-cultural etc –, ou seja, é uma narrativa interior do sujeito, portanto que não é enunciada, mas que subjaz à narrativa externa. De outro lado, a narrativa externa é aquela estruturada e externalizada pelo sujeito, narrativa essa concebida e organizada de forma consciente para atingir o objetivo do discurso frente aos auditórios-alvo49. Convém esclarecer, por último, que os vários pensamentos jurídicos a respeito da narrativa raramente se escoram totalmente em uma ou outra das várias distinções e categorizações apresentadas neste capítulo. Antes, as distinções e categorizações devem ser vistas como modelos aos quais as teorias jurídicas da narrativa se aproximam em maior ou menor grau. 3. NOTAS SOBRE O PENSAMENTO DE NEIL MACCORMICK

O pensamento jurídico de MacCormick, no que tange à teoria da decisão judicial, configura-se a partir da (re) aproximação entre o caráter retórico-argumentativo da prática jurídica e o Estado de Direito. Neste sentido, reconhece-se que o Direito na sua perspectiva prática implica a controvérsia e construção de argumentos e contra-argumentos tanto em relação às proposições sobre os fatos quanto sobre as questões de direito50. É de se ressaltar que esse caráter retórico-argumentativo assimilado por MacCormick não se resume à mera força persuasiva da argumentação, mas sim pela persuasão aliada à argumentação racional, exigindo-se razões justificatórias e estabelecendo-se limites normativos na construção do discurso jurídico51. Assim, o caráter retórico-argumentativo da prática jurídica se desenvolve dentro de um contexto normativo. Contexto esse submetido ao

49

ALMOG. As I read, I weep: in praise of judicial narrative. Oklahoma City University Law Review. v. 26(2), 2001, p. 471-501. p. 476-477 e 491. 50 MACCORMICK. Rhetoric and the rule of law: a theory of legal reasoning. New York: Oxford University Press, 2005. p. 14-15. 51 Ibidem. p. 17-20.

13 Estado de Direito52 (Rule of Law): um sistema coerente de normas universais e abstratas, apropriado para estabelecer padrões de comportamento e de gerar expectativas dotadas de certeza e segurança53. A conexão entre o caráter retórico-argumentativo e o Estado de Direito se torna mais explícita a partir do momento em que se compreende que o uso organizado do poder coercitivo só será legítimo se garantido por explícitas provisões legais e dentro de seus limites de discricionariedade 54 que, no presente estudo, se direciona à decisão judicial. Não por acaso, ao tratar da aplicação do direito, a ênfase de MacCormick será dedicada à reconstrução do raciocínio judicial por meio do silogismo dedutivo de matriz normativista, apenas face à insuficiência desta forma de justificação (nos casos problemáticos55) que se deverá recorrer a uma justificação de segunda ordem56. O raciocínio silogístico-dedutivo exige um teste de correlação entre particular e universal, pela subsunção da premissa menor (fatos institucionais) à premissa maior (norma jurídica57). Neste sentido, sempre que fatos relevantes58 se subsumirem aos fatos operativos previstos na norma jurídica, tal relação será seguida pelas consequências normativas ali previstas59. A adoção do quadro silogístico-dedutivo na justificação reforçaria o ideal de Estado de Direito (Rule of Law), pois, ao tomar em consideração a norma jurídica (regra ou precedente), o julgador estaria levando a sério as normas legitimamente estabelecidas da ordem normativa institucional 60. 52

Na concepção de MacCormick, o Estado de Direito pressupõe a equidade, a separação de poderes e o elemento democrático. 53 Ibidem. p. 15-16. 54 Ibidem. p. 24. 55 A distinção entre casos claros e casos problemáticos se dá no campo da pragmática, ou seja, não se considera um caso como claros ou problemáticos de antemão. Um caso claro seria aquele em que não foram levantados problemas a respeito do ajuste ou da ocorrência dos fatos operativos, assim como não foram levantadas questões a respeito das normas e interpretações invocadas. Ao passo, que um caso problemático seria aquele em que problemas de interpretação, relevância, prova e classificação são levantados. Cf. Ibidem. p. 51-52. 56 MACCORMICK. Legal reasoning and legal theory. Oxford: Claredon Press, 1978. p. 100. 57 Norma jurídica que assume a forma padrão: “Sempre que OF então NC”. Em outras palavras, sempre que certo estado de fatos operativos (OF) é obtido, seguem-se as consequências normativas (NC). Cf. MACCORMICK. Rhetoric.... p. 24-27. 58 Relevância essa determinada pelo próprio âmbito dos fatos operativos previstos na norma jurídica invocada para sustentar uma específica demanda. 59 MACCORMICK. Legal reasoning.... p. 43-47. 60 MACCORMICK. Rhetoric.... p. 80.

14 Com efeito, em grande parte das situações (nos casos claros), caberá ao julgador a tarefa de reconstruir o raciocínio jurídico por meio da dedução com base em uma regra jurídica que, para MacCormick significa dizer uma proposição normativa construída a partir de uma fonte jurídica reconhecida e que toma a forma de uma ligação entre determinadas consequências jurídicas a determinados fatos operativos61-62. Por sua vez, a justificação de segunda ordem será decisiva na identificação de problemas de justificação, decorrentes da textura aberta do texto legal; da controvérsia quanto à prova ou à qualificação dos fatos; ou da controvérsia quanto ao critério legal63. Assim sendo, a justificação de segunda ordem ganha destaque sempre em que há a possibilidade de “escolha” entre situações controversas. Contudo, esta escolha não é livre, a decisão deve ser justa e fazer sentido no contexto mundano e no contexto do sistema jurídico, assim, a escolha dentre as situações controvertidas será balizada pelo sentido do universo jurídico64. MacCormick identifica quatro tipos de problemas que exigem a justificação de segunda ordem: problemas de interpretação 65; problemas de relevância; problemas de prova; problemas de classificação. O problema de interpretação66 e o problema de relevância67 tratam de questões a respeito da regra jurídica. No primeiro caso – problemas de

61

Ibidem. p. 24. “Frequentemente pode se dar, ou isso ser aceito sem discussão pelas partes interessadas, que os fatos de uma dada situação sejam razoavelmente claros e que eles correspondam de uma forma descomplicada aos fatos tratados como operativos em alguma ou algumas regras jurídicas relevantes” [assumindo a estrutura de um silogismo dedutivo]. (MACCORMICK. Direito, interpretação e razoabilidade. p. 29-41. In. MACEDO JÚNIOR e BARBIERI (org.) Direito e interpretação: racionalidade e instituições. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 32.) 63 MACCORMICK. Legal reasoning... p. 100 64 Ibidem. p. 103. 65 MacCormick aqui utiliza o vocábulo “interpretação” em sentido estrito, quer-se dizer uma atenção consciente direcionada a alguma dúvida sobre o significado de um texto, bem como a resolução da dúvida, portanto, não se confundindo com a perspectiva da hermenêutica filosófica de interpretação (MACCORMICK. Argumentation and interpretation in Law. Argumentation. n. 9, 1995, p. 467-480. p. 471). 66 A título de exemplo: o artigo 155, III, da Constituição da República do Brasil estabelece: “Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir imposto sobre: propriedade de veículos automotores”. Um problema de intepretação envolveria o seguinte questionamento: a categoria “veículo automotor” inclui aeronaves ou se está limitada a veículos terrestres? 67 A título de exemplo: Na Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental n. 132 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito à união estável a casais homoafetivos. Um problema de relevância questionaria se o 62

15 interpretação –, está-se diante de uma regra jurídica que permite mais de uma interpretação razoável possível; no segundo caso – problemas de relevância –, está-se diante do questionamento a respeito da existência ou inexistência de uma regra jurídica que sustente a demanda da parte68. Já os problemas de prova69 e de problemas de classificação70 tratam de questões a respeito dos fatos. No primeiro caso – problemas de prova –, questiona-se a ocorrência ou inocorrência de fatos relevantes que se relacionam aos fatos operativos do texto legal. No segundo caso – problemas de classificação –, não se questiona a ocorrência dos fatos primários, mas sim até que ponto esses fatos primários podem considerados relevantes e qualificados como fatos operativos, tendo em vista a ocorrência de certos fatos secundários que podem alterar essa qualificação 71. Além de identificar os problemas, MacCormick estabelece os principais mecanismos de justificação de segunda ordem, garantidores de um discurso racional: requisito da universalidade; requisito consequencialista; requisito de consistência; requisito de coerência normativa e coerência narrativa. A universalidade72 como requisito de racionalidade é um pressuposto para a justiça formal – os casos essencialmente semelhantes devem ser precedente é ou não a norma relevante para o reconhecimento do direito ao casamento a casais homoafetivos. 68 MACCORMICK. Legal reasoning... p. 66 e ss. 69 A título de exemplo: suponha-se que em um marido tenha sido acusado pela prática de homicídio contra a esposa. Admita-se ainda que os seguintes fatos foram comprovados: a) a esposa foi encontrada morta na banheira; b) não se tratou de morte natural ou suicídio; c) dias antes o acusado teria feito uma consulta a um advogado a respeito dos seus direitos patrimoniais em caso da morte da esposa; d) em dois casamentos anteriores, as esposas do acusado foram encontradas mortas na banheira em circunstâncias similares. Ora, o questionamento recai justamente sobre um dos fatos operativos do crime de homicídio, a prova direta de que o ato foi praticado pelo acusado. Exemplo adaptado de MACCORMICK. Rhetoric ... p. 219-221. 70 A título de exemplo: o artigo 284 do Código Penal Brasileiro criminaliza a conduta de curandeirismo, compreendida como o agir doloso de prescrever, ministrar ou aplicar, habitualmente, qualquer substância; usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; fazendo diagnósticos. Suponha-se que o fato relevante principal esteja comprovado: O sujeito “A” ministrava substâncias, usando gestos e palavras, para curar as pessoas”. Todavia, além do fato relevante principal, fatos relevantes secundários também são comprovados: “A” é um indígena; “A” faz parte de uma tribo bastante isolada; “A” faz parte de uma população tradicional; “A” é um pajé nessa população tradicional. Os fatos relevantes secundários são suficientes para questionar a qualificação da conduta de “A” tal qual prevista na norma jurídica. 71 MACCORMICK. Legal reasoning... p. 87-97. 72 Quanto à desse requisito às questões de fato, ATIENZA explica que: “Finalmente, como foi sugerido acima, o princípio da universalidade deve também ser aplicado –ainda que MacCormick não o afirme, ou pelo menos, não explicitamente – aos problemas de prova. É óbvio que os fatos do caso são sempre fatos específicos (a premissa fática do silogismo judicial é um enunciado particular ou um conjunto de enunciados particulares), contudo, quando há

16 tratados de forma semelhante –, assim, a escolha pela resposta adequada deve ter pretensão de universalidade, ou seja, deve ser uma resposta apta a ser aplicada em casos semelhantes. Neste sentido, a justiça formal é um critério de racionalidade não apenas porque exige do julgador a consideração pelas decisões anteriores, mas também porque exige do julgador que ele esteja disposto a adotar as razões de decidir em casos semelhantes no futuro73. O requisito consequencialista tem caráter avaliatório e relaciona-se com o requisito da de universalização74, ou seja, no juízo decisório, o magistrado deve testar propostas de decisão à luz de suas consequências, buscando aquele curso de ação que atinge as consequências jurídicas desejáveis ou relevantes75 e que possa ser universalizada – aplicada a casos hipotéticos semelhantes, pensados pelo magistrado76-77. Por requisito de consistência entende-se a inexistência de contradição entre a justificação adotada e uma norma jurídica válida do sistema. Por óbvio, que se deve levar em consideração a possibilidade de se evitar a contradição

problemas sobre o estabelecimento de fatos, parece claro que, dentre as premissas do raciocínio que serão utilizadas, tem de existir – explícita ou implicitamente – um enunciado universal. Assim, referindo-se ao exemplo citado, para se chegar à conclusão de que Louis Voisin matou Emilienne Gerard é necessário pressupor enunciado de tipo universal (por exemplo, uma máxima de experiência) que poderia ser formulada da seguinte forma: Sempre que se dêem os fatos 'X’, ‘Y’, ‘Z', é razoável supor que 'A 'matou ‘B’". Tradução do autor. No original: “En fin, como antes había sugerido, el principio de universalidad cabe aplicarlo también —aunque MacCormick no lo haga o, al menos, no lo haga explícitamente— a los problemas de prueba. Es obvio que los hechos del caso son siempre hechos específicos (la premisa fáctica del silogismo judicial es un enunciado singular o un conjunto de enunciados singulares), pero cuando existen problemas sobre el establecimiento de los hechos, parece claro que entre las premisas del razonamiento que se utilice tiene que existir —explícita o implícitamente— un enunciado universal. Así, a propósito del ejemplo antes puesto, para llegar a la conclusión de que Louis Voisin mató a Emilienne Gerard se necesita presuponer un enunciado de tipo universal (digamos, una máxima de experiencia) que podría formularse así: Siempre que se den los hechos ‘X’, ‘Y’, ‘Z’, es razonable suponer que ‘A’ causó la muerte de ‘B’”. (ATIENZA. Las razones del derecho: teroias de la argumentación jurídica. Mexico: UNAM, 2004. p.116) 73 MACCORMICK. Legal reasoning... p. 75. 74 MACCORMICK, N. On Legal Decisions and their Consequences: From Dewey to Dworkin. New York University Law Review. n. 58 (2), 1983, p. 239-258. p. 250. 75 As consequências jurídicas são aquelas que dirigem à própria ordem jurídica, ou seja, ao status normativo da decisão tomada dentro do sistema, apenas mediatamente dirigida a consequências comportamentais ou extra-jurídicas (behavioral consequences). Cf. Ibidem, p. 239-258. p. 254. 76 FETERIS. The role of Arguments from Consequences in Practical Argumentation. OSSA Conference Archive, 2001. p. 1-21. Disponível em: http://scholar.uwindsor.ca/cgi/viewcontent.cgi?article=1613&context=ossaarchive. Acesso em: 08/01/2015. p.5. 77 Conforme explicado pelo próprio MacCormick, a relação entre consequencialismo e universalidade, aproxima-o de uma concepção de utilitarismo ideal ou utilitarismo de regras.

17 pela adoção de mecanismos interpretativos, todavia, se esses mecanismos não tiverem sucesso, a justificativa deve ser rejeitada78. Por último, o requisito de coerência, que pode assumir a roupagem de coerência normativa ou a roupagem de coerência narrativa 79. A coerência normativa significa afirmar que a resposta jurídica deve fazer sentido e ser compatível com uma ordem jurídico-social de valores, em outras palavras, as regras jurídicas são tratadas como sendo manifestações de princípios mais gerais que garantem a coerência do sistema 80. Já a coerência narrativa implica afirmar que dentre as narrativas expostas aquela que se apresenta sustentada por evidencias ou testemunhas e que é coerente como um todo, cuja avaliação depende de um conjunto de percepções, presunções, crenças e teorias gerais sobre o comportamento humano 81. A coerência narrativa é justamente o ponto central que envolve a concepção de prova como narrativa no pensamento de MacCormick, logo, alguns delineamentos se fazem necessários. Narrativa, nessa perspectiva, exige uma concepção de tempo, visto que se trata da ordenação de eventos que ganha sentido como ação expressão da razão prática a partir do momento em que, além de simplesmente existir em um processo contínuo e indiferente, a ação particular é posta em relação a um projeto ou atividade mais amplos. Assim, o “agora” de cada instante é visto em relação ao “agora” de um projeto mais amplo 82. O tempo da narrativa jurídica se conforma ao denominado tempo analítico, no qual a reconstrução de eventos se dá a partir de uma ordem de antes – simultâneo – depois, e, no mais das vezes, a partir de uma estrutura de início – meio – fim83.

78

MACCORMICK. Legal reasoning... p. 106. 79 NERHOT parece ter razão quando afirma que a distinção entre coerência narrativa e coerência normativa realizada por MacCormick implica a separação entre uma função cognitiva e uma função normativa na realização do direito, assim sendo, a coerência narrativa – ainda que em um sentido mais fraco, visto que fundada na causalidade e motivação racional – aproximaria a concepção de MacCormick do arquétipo moderno de prova. (NERHOT. L’interprétation em sciences juridiques: La notion de cohérence narrative. Revue de Synthèse. n. 111 (3), 1990, p. 299-329. p.319-320). 80 MACCORMICK. Legal reasoning... p. 107. 81 Ibidem. p. 91. 82 MACCORMICK. Rhetoric... p. 215. 83 Ibidem. p. 216.

18 Contudo, a narrativa nesses termos não nos permite diferenciar uma narrativa sobre o mundo real e uma narrativa de criações da imaginação, daí a necessidade de um critério de coerência narrativa voltado ao Direito 84. Destarte, para MacCormick a coerência narrativa constitui “um teste acerca da verdade ou probabilidade sobre as questões de fato e evidência sobre as quais a prova direta por observação direta está indisponível” 85. Pressupõe-se assim que existe uma racionalidade subjacente fundada na suposição de que aquilo que percebemos é real; na suposição de que tudo o que é real está relacionado a tudo o mais que é real sob certos princípios explicativos; e a suposição [superável] de que as proposições sobre eventos não percebidos que se adaptem aos esquemas explicativos por meio de relações

racionais

com

proposições

sobre

eventos

percebidos

são

consideradas proposições verdadeiras sobre os eventos não percebidos 86. Também, a coerência narrativa será mediada pelas normas jurídicas, não apenas àquelas normas referentes à prova (meios de prova; presunções; proibições; limitações), mas também às normas substantivas invocadas (pelas partes, pelo magistrado etc.) que estabelecem a seleção do recorte da história narrada87. Ainda, dois princípios compõem a exigência de coerência narrativa: o princípio da causalidade universal; e o princípio da motivação racional. O princípio da causalidade universal, considerando a concepção analítica de tempo, encadeia eventos ou fragmentos de narrativas a partir das relações de causa e efeito ou relações de probabilidade. Já o princípio da motivação racional significa considerar que as ações humanas são expressões de uma razão prática, logo, a ação humana ganha significado e é guiada por razões de princípio, de ordem de valores, de propósitos ou de um projeto de vida a ser perseguido88. Além disso, MacCormick indica três truísmos que estreitam os laços da narrativa jurídica como uma narrativa sobre mundo real: 84

“nem todas as

Idem. Tradução do autor. No original. “[...]a test of truth or probability in questions of fact and evidence upon which direct proof by immediate observation is unavailable”. MACCORMICK. Coherence in legal justification. In: PECZENIK et all. (ed.). Theory of legal science. Dordecht / Boston/ Lancaster: Reidel, 1984, p. 235- 251. p. 245. 86 MACCORMICK. Rhetoric... p. 225. 87 Ibidem. p. 221. 88 Ibidem. p. 216-217 e 224-225. 85

19 memórias são falsas; nem todos os registros são imprecisos ou enganosos; [...] nem todas as assertivas são desonestas ou insinceras89”. Isso significa dizer que a construção da narração sobre o mundo real ganha plausibilidade se ancorada em relatos, em documentos, e na pretensão de honestidade e veracidade que os acompanha. Não se deve, contudo, abandonar uma visão crítica sobre a possibilidade de erro ou falsidade dessas memórias e registros90. Será a partir dessa composição complexa que o requisito de coerência narrativa balizará a escolha do magistrado pela narrativa mais crível e coerente sobre um conjunto de eventos passados, devendo levar em consideração o duplo aspecto da narrativa: a narrativa em julgamento (story in the trial) e a narrativa do julgamento (story of the trial). A narrativa em julgamento composta pela história apresentada à corte como material relevante para a demanda, assim como o material contraposto apresentado pela parte contrária. E, a narrativa do julgamento composta pelos eventos ocorridos no julgamento: os argumentos levantados; as testemunhas arroladas; as interpretações e as ênfases controvertidas; e as discrepâncias nas histórias apresentadas91. Enfim, a coerência narrativa como um teste de verdade ou de probabilidade – filtrado pelas lentes do sistema jurídico – exige do julgador a escolha pela narrativa coerente, ou seja, aquela construída: com a ausência inconsistências lógicas entre os seus elementos fáticos; com suporte no princípio da causalidade universal e/ou no princípio da motivação racional; e com o recurso às memórias, registros e relatos que estreitem os laços entre a narração e o mundo real92. 4. NOTAS SOBRE O PENSAMENTO DE BERNARD JACKSON

O pensamento jurídico de Jackson sustenta-se em bases semióticonarrativas, configurando-se: pela aproximação entre o panorama semântico e do panorama pragmático do discurso jurídico; pela diluição da diferença entre 89

Tradução do autor. No original: “[...] not all memories are false; and not all records are inaccurate or misleading [...] not all statements are deshonest or insincere” Ibidem.p. 222). 90 Idem. 91 Ibidem. p. 228. 92 Ibidem. p. 226.

20 fato e direito no processo de tomada de decisão e; pela adoção de um critério não-referencial93 de verdade94 para avaliação da coerência narrativa95. Na perspectiva de Jackson, o conceito de narrativa alude à presença de três elementos: temporalidade (ou sequencia); ação (ou propósito) e inteligibilidade (ou experiência). A temporalidade é uma das categoriais essenciais da compreensão, seja na perspectiva interna do sujeito, seja nas 93

“Tradicionalmente, entende-se por referente os objetos do mundo ‘real’, que as palavras das línguas naturais designam. O termo objeto mostrou-se notoriamente insuficiente, por isso referente foi chamado a cobrir também as qualidades, as ações, os acontecimentos reais; além disso, como o mundo ‘real’ parece ainda por demais estreito, referente deve englobar também o mundo ‘imaginário’. A correspondência termo a termo entre o universo linguístico e o universo referencial, que é assim metafisicamente pressuposta, não é menos incompleta: por um lado, certas categorias gramaticais [...] não possuem referente aceitável; por outro lado, os dêiticos (pronomes pessoais, por exemplo) não possuem referentes fixos, e remetem de cada vez a objetos diferentes. Isso equivale a dizer que [...] é impossível elaborar uma teoria do referente que seja satisfatória, suscetível de explicar o conjunto de fenômenos considerados. [...] Uma outra solução nos parece possível: consiste em dizer que o mundo extralinguístico, o mundo do ‘senso comum’, é enformado pelo homem e instituído por ele em significação, e que tal mundo, longe de ser o referente (isto é, o significado denotativo das línguas naturais), é, pelo contrário, ele próprio uma linguagem biplana, uma semiótica natural (ou semiótica do mundo natural). O problema do referente nada mais é então do que uma questão de cooperação entre duas semióticas, um problema de intersemioticidade (intertextualidade). Concebido desse modo como semiótica natural, o referente perde assim sua razão de existir enquanto conceito linguístico” (GREIMAS; COURTÉS. Dicionário de semiótica. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 377-378). Também, Cf. JACKSON. ‘Anchored narratives' and the interface of law, psychology and semiotics. Legal and Criminological Psychology, v.1, 1996, p. 17–45. p. 28-29 e 39. 94 Para JACKSON o problema da verdade não é uma questão da verdade do discurso –da estrutura de significação –, mas do dizer verdadeiro – da enunciação do discurso – (JACKSON. Law, fact and narrative coherence. Merseyside: Deborah Charles, 1988. p.2). Neste sentido, seria mais preciso enquadrar o problema como um problema de veridicção da pretensão de verdade da enunciação do discurso. LANDOWSKI aponta quatro regimes de veridicção: a) Objetivo: em que a verdade consiste no ‘real’, o objeto do conhecimento permite apreensão unívoca de sua existência – pela evidência empírica – seja qual for o sujeito do conhecimento – evidencia empírica; b) Objetivado: em que se admite que a verdade depende da situação do sujeito do conhecimento, todavia não se estabelece um subjetivismo, mas sim a construção de uma realidade jurídica (realidade jurídica que não coincide com a realidade empírica), cuja verdade deve ser constituída dentro de um sistema convencional de significados construído pelas normas jurídicas; c) Lógico-formal: em que a verdade dependerá da validade formal etapas que determinam o valor verdade das proposições enunciadas no decurso raciocínio jurídico (e.g. silogismo dedutivo; cálculo proposicional); d) Intersubjetivo: em que a construção da verdade é delegada ao sujeito-julgador e deverá ser consolidada em uma decisão judicial devidamente justificada. E, embora a decisão sobre a verdade decorra das crenças do julgador, essas crenças devem ser compartilhadas por outros sujeitos, ou seja, deve ser reconhecida como verdade pela comunidade jurídica. Esta construção intersubjetiva assume viés ainda mais forte ao se considerar que a decisão judicial decorre de um processo controversial em que perspectivas de verdade estão em confronto, cabendo ao juiz construir a verdade no discurso decisório, pautado pela verossimilhança das narrativas e pela credibilidade dos narradores. (LANDOWSKI. Vérité et véridiction em droit. Droit et Societé, v. 8, 1988, p. 47-63; p. 53-55.). A partir desses apontamentos, pode-se afirmar que a perspectiva de JACKSON sobre a aplicação do direito se enquadraria no regime intersubjetivo de veridicção. 95 JACKSON. Narratives theories and legal discourse. In. NASH (ed.). Narrative and culture: the uses of storytelling in the sciences, philosophy and literature. London / New York: Routledge, 1990. p. 23-51. p. 23-24.

21 suas manifestações externas ao sujeito.

Por sua vez, a ação reflete a

presunção de racionalidade do agir humano e indica a pretensão de intencionalidade do sujeito, em outras palavras, há uma intenção prévia ao agir que lhe dá significado. Por último, a inteligibilidade, que atua como o filtro da experiência social e que nos informa se uma dada sequência temporalintencional faz ou não sentido96. Ademais, Jackson recorre ao arcabouço semiótico de Greimas como modelo de avaliação do sentido das narrativas. Arcabouço esse formado por três planos: a) o plano sociolinguístico; b) o plano temático; c) plano estrutural. Em primeiro lugar, o plano sociolinguístico, que abrange a forma e o conteúdo de um discurso em particular – oral ou escrito –, compreendendo a multiplicidade de papéis e situações discursivas que se manifestam na vivência (também chamado nível superficial de comunicação)97. Em segundo lugar, o plano temático, que se configura como um acervo implícito – social e culturalmente variável – de histórias compartilhadas por uma coletividade, representando os padrões de comportamento conhecidos e compreendidos nessa coletividade98. Em terceiro lugar, o plano estrutural, que compreende uma estrutura subjacente

do

discurso,

composta

por algumas estruturas universais

elementares de significação99-100. Esse plano estrutural se organiza em dois eixos de comunicação: o eixo sintagmático e o eixo paradigmático. O eixo sintagmático se dispõe em um modelo actancial composto por três funções: “contrato”, o estabelecimento de metas; “performance”, a realização ou não-realização das metas; “reconhecimento”, a acreditação da realização ou não-realização das metas. Também envolvidos nesse modelo, há um conjunto de “actantes”: “sujeito” – “objeto”; “emissor” – “receptor”; ajudante – “oponente”. De tal modo, “um emissor nomeia um receptor como ‘sujeito’ da 96

JACKSON. Law... p.155-156. JACKSON. Narratives theories and legal discourse. In. NASH (ed.). Narrative... p. 23-51. p. 33-34. 98 Ibidem. p. 23-51. p. 29-30 e 33-34. 99 Ibidem. p. 23-51. p. 33-34. 100 JORI explica que os episódios e personagens das histórias particulares seriam, na verdade, a interminável repetição de algumas funções fixas (estruturas elementares de significação). JORI. Making sense of “making sens in law”. International Journal for the Semiotics of Law. v. 9 (3), 1996, p. 315-328. p.322. 97

22 história ao comunicar-lhe uma meta (objeto). Na consecução dessa meta (objeto), o sujeito pode ser auxiliado por um ‘ajudante’ ou obstaculizado por um ‘oponente’ e; ao fim do sintagma, há outro elemento comunicacional: o envio e recebimento do reconhecimento daquilo que aconteceu” 101. Destaque-se ainda que as funções e os actantes podem ser encarnados por diferentes atores – pessoas reais da vida social – nos discursos particulares do nível superficial de comunicação; ou por um mesmo ator em momentos diferentes do discurso102. Já o eixo paradigmático é formado por um conjunto de regras para a intercambiabilidade de termos, estabelecendo restrições semióticas para a preservação do sentido dos outros elementos do sintagma 103. Esse conjunto de restrições semânticas pode ser representado em um dispositivo formal, chamado de quadrado semiótico104. Com efeito, a perspectiva de Jackson acerca da narrativa ganha destaque na análise da decisão judicial como fruto de disputas entre narrativas –, seja entre autor e réu nos casos cíveis, seja entre promotor de justiça e acusado nos casos criminais; seja entre os advogados e as testemunhas; seja entre os advogados e os peritos etc –. Neste sentido, o processo judicial se desenvolve a partir da multiplicidade e da sobreposição de disputas narrativas105, em que o julgador

101

Tradução do autor. No original: “A sender invests a receiver as ‘subject’ of the story, by communicating a goal to him/ her. In achieving this goal (‘object’), or performing this task, the subject may be assisted by a ‘helper’, or obstructed by an ‘opponent’. At the end of the syntagm there is another communicational element, the sending and receiving of recognition of what has occurred”. (JACKSON. Narratives theories and legal discourse. In. NASH (ed.).Narrative... p. 23-51. p. 34-35). 102 JACKSON. Narrative models in legal proof. In. PAPKE. Narrative and the legal discourse: a reader in storytelling and the Law. Liverpool: Deborah Charles Publications, 1991. p. 158-178. p. 164. 103 JACKSON. Law... p. 28-29. 104 LINHARES. Evidence (or proof?) as Law’s gaping wound: a persistent false aporia? Boletim da Faculdade de Direito. v. 88, t. 1., 2012, p. 65-89. p. 78 105 A mesma estrutura sintagmática é aplicável a todos as narrativas que se desenvolvem no processo judicial: partes; testemunhas; peritos etc. O exemplo de Jackson sobre a testemunha é esclarecedor: Seguindo a estrutura já apresentada: a testemunha é o “sujeito” a quem é atribuído – por uma das partes/advogados – uma meta: o agir persuasivo o a respeito da verdade sobre enunciados de fato. O “ajudante” será o advogado da parte que arrolou aquela testemunha; ao passo que o “oponente” será o advogado da parte contrária. A performance se dá pelo ato de testemunhar. E o reconhecimento se dá na decisão do julgador. (JACKSON. Narrative models in legal proof. In. PAPKE. Narrative and the legal.... p. 158-178. p. 165.).

23 observa a disputa; identifica as metas dos participantes; forma um juízo sobre quem atingiu suas metas e confere reconhecimento àquele fato 106. Mais que isso, as tramas narrativas do discurso jurídico envolvem perspectivas interligadas, uma semântica (semiótica) e outra pragmática (retórica). A construção da verdade do discurso judicial será arquitetada no emaranhado dessa dupla perspectiva: a narrativa em julgamento (story in the trial) – narrativa focada no conteúdo da história em julgamento – e a narrativa do julgamento (story of the trial) – narrativa focada na história do próprio julgamento –. Assim, não se trata apenas da avaliação do conteúdo da história narrada (story in the trial / ênfase semântica), mas também da maneira como a história é contada no julgamento (story of the trial / ênfase pragmática) 107-108. Também, convém salientar que o sentido não é universal em uma sociedade, visto que o plano temático é contingente. Isto significa dizer que a avaliação na construção de sentido é variável de acordo com os vários grupos semióticos – que compartilham algumas práticas e comportamentos 109 –, embora possa haver sobreposições parciais entre eles. Outrossim, Jackson sustenta que o discurso jurídico se desenvolve dentro de um enquadramento institucional, que sugere a construção específica de sentido da narrativa por membros de grupos semióticos particulares (e.g. advogados; promotores de justiça; acadêmicos; juízes). Dessa forma, na construção e avaliação de sentido, o acervo narrativo compartilhado é mobilizado a partir de algumas tipificações narrativas110 internalizadas por aquele grupo particular111. 106

JACKSON. Law... p. 34-35. JACKSON. ‘Anchored narratives' and the interface of law, psychology and semiotics. Legal and Criminological... p. 17–45. p. 29. 108 O reconhecimento pelo julgador da performance de uma testemunha –em relação à confiabilidade da sua percepção, memória e recordação – deverá levar em consideração não apenas a plausibilidade da história em julgamento (story in the trial), mas também a estrutura narrativa da história do julgamento (story of the trial). (JACKSON. Law.... p. 88). 109 JACKSON. ‘Anchored narratives' and the interface of law, psychology and semiotics. Legal and Criminological... p. 17–45. p. 43. 110 Neste sentido: JACKSON “[...] três elementos importantes da noção de '’tipificação narrativa’ emergem. Em primeiro lugar, a tipificação narrativa não é uma definição em termos condições suficientes e necessárias: como um modelo que informa nossa percepção, ela não gera (como o positivismo desejaria) julgamentos demonstráveis, sobre o que está ‘dentro ou ‘fora’ 'da imagem. Mas é capaz de gerar percepções em termos de similaridade relativa: uma dada narração fará maior ou menor sentido na medida em que se pareça em maior ou menor medida semelhante à tipificação narrativa [...] Em segundo lugar, algumas tipificações são relativas a grupos sociais ou profissionais particulares – às vezes chamados de grupos semióticos – que se distinguem uns dos outros pelo (frequentemente sobreposto, mas ainda a distinto) sistema 107

24 Em síntese, será pela conexão entre os três planos – sociolinguístico; temático; estrutural – que se construirá uma avaliação da verdade da narrativa112. Dessa forma, pode-se dizer que a veracidade de uma história particular decorre da relativa similaridade113 entre a história contada e o acervo narrativo de conhecimento – histórias tacitamente compartilhadas –, sendo que a interação entre a história particular e o acervo narrativo só é inteligível porque mediada pelas estruturas elementares de significação114. Finalmente, Jackson assume esse mesmo modelo discursivo tanto para a construção de sentido de sentido da questão de fato e da questão de direito115. Assim sendo, a aplicação do direito não seria conciliável com o silogismo normativo116, antes se resumiria a uma relação interdiscursiva de

de significação operante dentro deles. Assim, tribunais de júri, tribunais recursais e advogados de defesa podem representar diferentes ‘grupos semióticos’ (uma questão empírica). Eles podem ter diferentes tipificações narrativas de um ‘ladrão’, por exemplo. A verdade construída dentro de qualquer um dos grupos não pode ser utilizada para falsificar o que é construído m outro. Terceiro, e mais importante, essas tipificações não são meras descrições neutras; elas vêm, sempre, carregadas com uma forma de avaliação (mesmo ‘indiferença’ é uma forma de avaliação) ”. Tradução do autor. No original: “[...] three important elements of the notion of ‘narrative typification’ emerge. First, a narrative typification is not a definition in terms of necessary and suficiente conditions: as a model, which informs our perception, it does not generate (as positivist might wish) ‘demonstrable’ judgments as to what is ‘within’ or.‘outwith’ the image. But it is capable of generating perceptions in terms of relative similarity: an account actually given makes more or less sense insofar as it appears more or less similar to the narrative typification. [...] Secondly, some typifications are relative to particular social and/or professional groups-sometimes called ‘semiotic groups’distinguished one from another by the (often overlapping but still distinct) systems of signification operating within them. Thus, trial courts, appellate courts and defence counsel may represent different ‘semiotic groups’ (an empirical question). They may have different narrative typifications of a thief, for example. The truth constructed within any one cannot be used to falsify that constructed in another. Third, and most important, such typifications are not mere neutral descriptions; they come, always, laden with a form of evaluation (for even ‘indifference’ is a form of evaluation)”. (Ibidem, p. 17–45. p. 32-33). 111 DUPRET. Adjudication in action: na ethnomethodology of Law, morality and justice. Farnham: Ashgate, 2011. p. 36. 112 A pretensão de verdade é avaliada por uma visão de integridade, ou seja, pela “[...] habilidade, de pensamento e de ação, de avaliar não apenas as teorias, mas também as políticas e estratégias com o maior grau possível de autoconhecimento e criticismo”. Tradução do autor. No original: “[...] having the ability, both in thought and in action, to evaluate not only theories but also policies and strategies with the highest possible degree of self-awareness and criticismo” (JACKSON. Law... p. 189). 113 JACKSON. ‘Anchored narratives' and the interface of law, psychology and semiotics. Legal and Criminological... p. 17–45. p. 20. 114 JACKSON. Narrative models in legal proof. In. PAPKE. Narrative and the legal... p. 158178. p. 169-170 115 JACKSON. Narratives theories and legal discourse. In. NASH (ed.). Narrative... p.38. Também, JACKSON. Law... p. 59-60. 116 Ao assumir o modelo semiótico-narrativo, Jackson assume a inexistência de conexões lógico-formais entre as narrativas (do fato e da norma). O silogismo normativo só seria possível se abstraída a narrativa, assumindo-se a norma (como premissa maior) e o caso (como premissa menor) como modelos abstratos conceituais, em que a aplicação do direito se

25 aproximação analógica entre narrativas (narrativa dos fatos e narrativa da norma), ou seja, dar-se-ia pela comparação entre a narrativa construída a partir dos fatos e a narrativa subjacente, explícita ou implícita, da norma 117.

5. SÍNTESE

DO

DEBATE

ENTRE

MACCORMICK

E

JACKSON:

APROXIMAÇÕES E DIFERENÇAS

O debate entre MacCormick e Jackson foi travado, especialmente, nas páginas do “International Journal for the Semiotics of Law”, sobretudo nos textos de autoria de MacCormick: “Notes on narrativity and normative syllogism” e “A deductivist rejoinder to a semiotic critique”; e os de autoria de Jackson: “Semiotic scepticism: a response do Neil MacCormick” e “MacCormick on logical justification in easy cases: semiotic critique”.

5.1 HÁ ALGO PARA ALÉM DAS NARRATIVAS?

O primeiro desacordo entre o pensamento de MacCormick e Jackson remonta à possibilidade ou impossibilidade de se sustentar uma teoria correspondencial da verdade. MacCormick afirma que “tudo poder se tornar parte de uma história não significa que tudo é ou deva ser narrativizado 118”. Decorre daí que a relação entre as histórias e a verdade pode assumir formas diferentes: por um lado, posso ter uma história cuja verdade dependa de fatos do mundo real; por outro lado, posso ter uma história cuja verdade é constituída na no plano de fundo da história119. Neste sentido, quando falamos do mundo real, a o juízo de verdade estaria ligado a conceber a possibilidade prática de verificar os eventos no

limitaria a uma consequência estabelecida por uma regra a um referente particular. Cf. Ibidem. p. 89. 117 Ibidem. p. 101. 118 Tradução do autor. No original. “That everything can become part of a story does not mean that the whole of our experience is or could possibly become narrativised”. (MACCORMICK. Notes on narrativity and the normative syllogism. International Journal for the Semiotics of Law. v. 4 (2), 1991, p. 163-174. p. 163. 119 Ibidem. p. 164.

26 mundo real120. O mesmo não aconteceria em se tratando do universo literário ou ficcional em que o juízo de verdade se limita aos próprios termos da história. Para MacCormick a forma como lemos as evidências nas situações envolvendo pessoas reais e pessoas ficcionais são diferentes. No caso das pessoas reais, acreditar que existe uma pessoa é acreditar que algumas experiências sensoriais de um ser humano são acessíveis aos outros. Já no caso de uma pessoa ficcional, essa experiência sensorial não é acessível, remetendo-nos a outras narrativas. Assim, os critérios de verdade seriam diferentes para narrativas de tipos diferentes. No caso da aplicação do direito, as afirmações sobre fatos têm por critério de verdade a correspondência ou não-correspondência com eventos passados121. Ainda que esses eventos passados não sejam considerados como fatos brutos, mas sim em um contexto institucional que transforma esses fatos brutos em fatos institucionais de direitos e deveres122. Ademais, ainda que faltem evidencias diretas sobre uma afirmação sobre fatos, o que exigiria um juízo de coerência narrativa, o critério de verdade não se alteraria123. Jackson, por sua vez, contesta a perspectiva de narrativa posta por MacCormick para sustentar uma perspectiva não-correspondencial de verdade, MacCormick teria limitado a narrativa ao plano sociolinguístico, afastando de sua análise o plano estrutural que comporia o mecanismo de significação do ser humano. A proposta de Jackson nega uma verdade semântica condicionada por um referente externo (e.g. reino dos fatos brutos), a verdade seria uma pretensão discursiva da enunciação do discurso124. Para Jackson, ao “conceber a possibilidade prática de verificar os eventos no mundo real” não se estaria utilizando um critério de verdade correspondencial, vez que “conceber a possibilidade” é um ato interno do

120

Idem. Ibidem. p. 167 122 MACCORMICK. A deductivist rejoinder to a semiotic critique. International Journal for the Semiotics of Law. v.5 (2), 1992, p. 215-224. p. 222. 123 MACCORMICK. Notes on narrativity...p. 167-168. 124 JACKSON. MacCormick on logical justification in easy cases: a semiotic critique. International Journal for the Semiotics of Law. v.5 (2), 1992, 203-214. p. 210. 121

27 sujeito que envolve o processamento de dados sensíveis através de uma estrutura de um mecanismo de significação125 que envolve a narratividade126. Dessa forma, não se nega a existência de uma realidade – dados sensíveis

–,

o

desacordo

se

deve

possibilidade

(MacCormick)

ou

impossibilidade (Jackson) de experimentar esses dados sem a mediação de um mecanismo de significação127. Destarte, Jackson defende que não há correspondência verificável entre a linguagem e o mundo exterior, porque a única forma de acessar o mundo exterior se dá pela mediação de um mecanismo de significação que envolve a construção de narrativas128. Por esse ângulo, a verdade de uma afirmação sobre os fatos não se estabelece por correspondência a eventos passados do mundo real, visto que a afirmação se dá por um discurso que constrói a sua própria realidade. Existe sim uma pretensão de verdade de que aquilo que está sendo narrado corresponde ao que realmente aconteceu, mas não há outra maneira de estabelecer essa relação senão pelo discurso129. É justamente essa pretensão de verdade do ato de enunciação – e não da proposição em si – que permite distinguir a narrativa do “mundo real” e a narrativa “literária ou ficcional”; verdade essa avaliada por meio da coerência narrativa, que inclui condições de sinceridade e honestidade130. Em suma, o desacordo entre MacCormick e Jackson decorre da relação do homem com o mundo exterior, em especial, se essa relação depende ou não da mediação de um sistema de significação que contém, dentro de si, elementos de narratividade.

125

JACKSON sugere que não há verdadeiramente “fatos brutos” mas apenas experiências que ganham sentido mediadas por mecanismos construtores de sentido. Nós adquirimos conhecimento social pela internalização de tipificações narrativas de ação; tipificações essas que requerem as a condições de inteligibilidade do plano estrutural da narrativa. Este conhecimento social internalizado fornece o enquadramento para interpretação dos dados sensíveis, e converte o impacto do fenômeno sensível em algo compreendido como “experiência” (JACKSON. Semiotic scepticism: a response do Neil MacCormick International Journal for the Semiotics of Law. v. 4 (2), 1991, p. 175-190. p. 184). 126 Ibidem. p. 176. 127 Ibidem. p. 179. 128 Idem. 129 JACKSON. The normative syllogism and the problem of reference. In: NERHOT (ed.). Law, interpretation, and reality: essys in epistemology, hermeneutics, and jurisprudence. Dordrecht: Springer, 1990. p. 379-401. p. 381. 130 JACKSON. Semiotic scepticism... p. 180-181.

28 5.2 CRÍTICA AO SILOGISMO NORMATIVO

O segundo ponto de desacordo entre MacCormick e Jackson alude à validade do silogismo normativo como raciocínio modelo da aplicação do direito. Jackson afirma que o silogismo normativo é um equívoco, visto que a relação prescrição e consequência jurídica exige um paralelismo que inexiste na relação entre o caso particular e concreto e a norma jurídica universal e abstrata. Nestes termos, a norma universal e abstrata não pode se referir a casos particulares e concretos, mas tão somente a hipóteses gerais e abstratas. Por certo, nessa perspectiva só existe propriamente um silogismo como mecanismo de lógica formal entre proposições universais e abstratas, logo, não se pode afirmar uma relação lógica entre a norma jurídica e a decisão judicial, visto que as decisões judiciais são atos de vontade (e não de conhecimento) – decisões são tomadas e não deduzidas – 131. Além disso, há uma diferença em relação à dimensão temporal que envolve a norma universal e abstrata – norma jurídica – e a norma particular e concreta – decisão judicial –. A norma jurídica não é condicionada por uma dimensão temporal, ao passo que a decisão judicial, no Estado de Direito, deve ser precedida pela norma jurídica que lhe dá sustentação132. Acrescente-se ainda que, na perspectiva de Jackson, o silogismo normativo na aplicação do direito não levantaria o problema sobre a subsunção entre o fato e a norma jurídica, mas sim um problema de referência: a saber, se as partes em litígio aderem ou não ao uso da premissa maior como referentes dos fatos da premissa menor133. Diante da incompatibilidade entre a aplicação do direito e o silogismo normativo, Jackson propõe um raciocínio por coerência, sempre em grau aproximativo, entre a narrativa da história particular e concreta e a narrativa implícita da norma jurídica134. 131

JACKSON. MacCormick on .... p. 204 JACKSON. Law.... p. 37-38. 133 JACKSON. Law... p. 45. 134 “[...] no processo de construção dos fatos, a narrativa como enunciada no julgamento é comparada com o acervo de modelos narrativos socialmente construído do júri [julgador]; então 132

29 Para MacCormick o processo de prova exige um teste de relevância que, na aplicação do direito, significa a conformação entre as afirmações sobre fatos e a hipótese fática abstratamente concebida na norma jurídica 135. Respondendo às críticas de Jackson: Em primeiro lugar, MacCormick reconhece que a decisão judicial é um ato de vontade que não são inferidas da norma jurídica, portanto, não seriam explicáveis por meio de dedução, contudo, isso não significa afirmar que o ato de justificação da decisão não possa ser explicado por meio da dedução136; Em segundo lugar, afirma que o silogismo normativo não implica uma questão de referência, mas sim de sentido. O silogismo seria possível desde que o sentido do caso particular e concreto se subsuma ao sentido da norma geral e abstrata 137. Assim, o silogismo normativo será válido se o sentido da premissa menor se subsumir ao sentido da premissa maior. Atente-se que a aplicação do direito não se resume ao silogismo normativo, MacCormick reconhece a existência prévia, implícita ou explícita, de decisões sobre a interpretação das normas e a classificação – ou qualificação – dos fatos, visando justamente resolver a questão da paridade de sentido entre a premissa menor (fática) e a premissa maior (normativa). Definida a paridade de sentido, não haveria mais obstáculo para a dedução pelo silogismo normativo138. Apesar da resposta de MacCormick a respeito da paridade de sentidos, Jackson ainda pontua que, mesmo nesse caso, para fazer valer o Estado de Direito – em especial, a antecedência da norma ao caso –, haverá um problema da referência. A paridade de sentidos defendida por MacCormick no silogismo normativo não é um atributo estático, pelo contrário, o sentido da norma e o sentido do fato são construídos na decisão judicial, assim, não se poderia a mesma construção narrativa dos fatos é comparada com a modelo narrativo subjacente (frequentemente conceitualmente expresso) da norma jurídica a ser aplicada”. Tradução do autor. No original: “[...] in the process of fact construction, the narrative as told in the court is compared to the jury's stock of sociaIly-constructed narrative models, here that same narrative construction of fact is compared with the narrative model underlying the (often conceptually expressed) rule of law to be applied” (JACKSON. The normative syllogism and the problem of reference. In: NERHOT (ed.). Law, interpretation.... p. 399). 135 MACCORMICK. Notes on narrativity... p. 168. 136 MACCORMICK. A deductivist .... p. 216. 137 MACCORMICK. Notes on narrativity... p. 171. 138 Ibidem. p. 171-173.

30 afirmar a preexistência do sentido da norma em relação ao fato 139. Ou seja, a postulado do Estado de Direito restaria comprometido. Por último, MacCormick contesta a perspectiva reducionista do Estado de Direito à mera antecedência da norma jurídica ao caso. O Estado de Direito seria uma idéia regulativa formado por um complexo sistema de regras, princípios e políticas que conferem estabilidade às expectativas dos cidadãos; daí porque na decisão judicial mesmo nos casos problemáticos, em que constrói sentidos, o julgador o faz tendo em vista essa idéia reguladora 140. 6. ANÁLISE E CRÍTICA

As concepções de prova como narrativa de MacCormick e Jackson partem de pressupostos diferentes. Deveras, de um lado, o pensamento de MacCormick se aproxima mais do arquétipo moderno de prova, especialmente pela adoção de uma teoria correspondencial da verdade, portanto, o processo de prova busca evidências entre as afirmações sobre fatos e o acontecimento no mundo real. A distinção entre casos claros e casos problemáticos também fortalece essa aproximação com o arquétipo moderno. Pode-se dizer que há uma perspectiva atomista mitigada da prova que, quando insuficiente – nos casos problemáticos – exigirá a conjunção com um critério de coerência narrativa, de perspectiva holísitica. Saliente-se que mesmo diante da impossibilidade da prova direta dos fatos – casos problemáticos –, as narrativas que daí se seguem devem ser pautadas pelos princípios lógico-científicos da causalidade e da motivação racional. Também, as distinções entre coerência narrativa e coerência normativa, assim como a adoção do silogismo normativo como critério padrão de justificação na aplicação do direito induz à distinção entre a questão e a questão de direito. De outro lado, o pensamento de Jackson se aproxima do arquétipo retórico-argumentativo de prova, que se estabelece pela por uma concepção 139 140

JACKSON. Semiotic scepticism.... p. 186-187. MACCORMICK. A deductivist ... p. 222-223.

31 não-correspondencial de verdade, que se materializa na construção discursiva dos fatos e do processo de prova. O embasamento semiótico-narrativo, relacionando as perspectivas semântica e pragmática, assim como a interação entre um plano sóciolinguístico, um plano temático e um plano estrutural da construção de sentido indica uma perspectiva holística do processo de prova. Ainda, a adoção do mesmo modelo narrativo para tratar as questões de fato e as questões de direito exterioriza a relação entre a questão de direito e a questão de fato. Apesar disso, a forma como se resolve essa relação emula o raciocínio por dedução, típico do arquétipo moderno de prova. Pode-se afirmar algumas semelhanças entre o pensamento de MacCormick e de Jackson. A primeira semelhança é a necessidade de comparação entre narrativas para determinação da narrativa final da decisão. A segunda semelhança é tratar a relação entre fato e direito por meio de um raciocínio dedutivo: o silogismo normativo para MacCormick e a aproximação entre narrativa dos fatos e a narrativa implícita da norma para Jackson.

A

terceira semelhança, é centrar o raciocínio de aplicação do direito na figura da norma jurídica como expressão de uma regra, legando aos princípios e políticas um papel secundário. Dentre as críticas às concepções narrativas de prova, algumas merecem destaque. Em primeiro lugar, ainda não há uma teoria completa da narrativa que se ocupe do processo de prova e da análise de evidência como um todo, além disso, os critérios de coerência e plausibilidade ainda não tem muita densidade semântica141. Em segundo lugar, o critério de distinção entre narrativas do mundo real e narrativas literário-ficcionais é bastante frágil, por vezes, impossibilitando uma a identificação de uma narrativa como ficcional ou jurídica, por exemplo. Em terceiro lugar, a perspectiva holística da prova como narrativa relativiza em demasia o papel da evidência, possibilitando ao apelo às emoções se sobrepor ao apelo à razão, o que pode contaminar a justificativa racional da decisão. Mais que isso, torna possível a avaliação das narrativas 141

AMAYA. The tapestry of reason: Um inquiry into the nature of coherence and its role in legal argument. Oxford/Portalnd: Hart Publishing, 2015. p. 124-125.

32 não com base em evidências, mas sim com base em preconceitos enraizados em uma sociedade142. Em quarto lugar, considerando o papel pragmático-retórico da narrativa, é possível ocorrer o distanciamento exagerado entre a narrativa e o acontecimento do mundo real143. Em quinto e último lugar, há uma dificuldade em encontrar um critério de comparabilidade para definir a narrativa coerente e plausível, diante da concorrência de duas ou mais narrativas coerentes e plausíveis144.

7. CONCLUSÃO

Findo o percurso sugerido na proposta de trabalho, algumas conclusões podem ser apontadas. Em primeiro lugar, a construção dos arquétipos de prova – como tipos ideais – mostrou-se um mecanismo importante para comparar e diferenciar as perspectivas de MacCormick e Jackson acerca da prova como narrativa. Em segundo lugar, o delineamento de uma concepção ampla de narrativa forneceu um contexto importante para identificar características das várias concepções narrativas de prova; além de situar o pensamento de MacCormick e Jackson no recorte selecionado para a pesquisa. Em terceiro lugar, a síntese dos pensamentos de MacCormick e Jackson atendem uma dupla função: em primeiro lugar, proporcionam a conjuntura para compreensão do debate; em segundo lugar; identificam os principais desacordos entre os dois pensadores. Em quarto lugar, a síntese e análise do debate entre MacCormick e Jackson permitiu destacar e aprofundar dois dos principais pontos de desacordo entre eles: a) a aproximação dos pensamentos aos arquétipos retórico-argumentativo ou clássico de prova; b) a adoção ou não de uma teoria correspondencial da verdade; c) a necessidade ou não de mediação de um sistema de significação para compreensão do mundo real; d) as distinções de

142

GRIFFIN. Op. Cit. p. 312-33. AMAYA. Op. Cit.. p. 125-128 144 Ibidem. p. 129-130. 143

33 concepção de coerência narrativa para avaliação das narrativas em juízo: para MacCormick fundada nos princípios da motivação racional e da causalidade; para Jackson fundada na interação entre os planos sociolinguístico, temático e estrutural da narrativa; e) a ênfase diferente na compreensão do problema da prova: em Jackson, direcionada a uma teoria da decisão; e em MacCormick, direcionada para uma teoria da justificação; f) o questionamento do silogismo normativo como raciocínio válido para justificação da aplicação do direito; g) algumas críticas e limitações da adoção da concepção narrativa de prova. 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Acesso

em

27/05/2015.

Disponível

em:

http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S071809502007000100010&lng=es&tlng=es. 10.4067/S0718-09502007000100010.

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