Notas sobre Instrumentos de Descrição Documental

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Notas sobre Instrumentos de Descrição Documental Catarina Guerra Rodrigues – Mestrado em Ciências da Informação e Documentação (2014/2015) A elaboração de “instrumentos de descrição documental” enquanto ferramentas de pesquisa do conteúdo dos arquivos não se trata de uma atividade recente. Antes pelo contrário, pelo menos desde o século XII, com o crescimento da autonomia municipal, os arquivistas de então sentiram a necessidade de construir e criar instrumentos que os auxiliassem na pesquisa da

informação

de

documentos,

mais

precisamente

para

estudar

os

antecedentes, os direitos e os interesses da cidade (DURANTI, 1992, p. 48). Estes instrumentos, neste caso os inventários da península italiana datados entre os séculos XII e XV, providenciavam uma prova da sua existência, bem como a sua localização no arquivo. Eram criadas extensas listas com pequenas descrições dos documentos de acordo com a sua arrumação e ordenação física no espaço de armazenamento. Este método facilitava, assim, a recuperação da informação essencial no decorrer da atividade arquivística (DUFF; HAWORTH, 1990, p. 26; DURANTI, 1992, p. 49). Os autores parecem estar de acordo em definir que os “instrumentos de descrição documental” foram inicialmente utilizados internamente, ou seja, os próprios arquivistas faziam uso destas ferramentas, não só para controlo de toda a documentação mas também para auxílio na recuperação da mesma assim que se tornasse necessário (DURANTI, 1992, p. 49; RIBEIRO, 1998, p. 12; MARQUES, 2009, p. 69). Só mais recentemente, mais ou menos a partir da década de 30 do século passado (DURANTI, 1992, p. 52), se percebeu a verdadeira potencialidade dos “instrumentos de descrição documental” enquanto meios de acesso à documentação por parte dos utilizadores, permitindo dessa forma uma certa autonomia do utilizador em relação ao arquivista (DUFF; HAWORTH, 1990, p. 27; MARQUES, 2009, p. 69; FREIRE, 2010, p. 32; MACNEIL, 2012, p. 486; ALVES, 2012, p. 15). Contudo, antes de avançarmos na caraterização e função específicas dos “instrumentos de descrição documental”, cabe-nos fazer uma primeira introdução ao conceito “descrição arquivística”, que intimamente se relaciona 1

Notas sobre Instrumentos de Descrição Documental Catarina Guerra Rodrigues – Mestrado em Ciências da Informação e Documentação (2014/2015) com estes instrumentos. O termo, que etimologicamente significa “escrever sobre matéria arquivística” (DURANTI, 1992, p. 47), foi pela primeira vez definido, em 1974, no glossário da Society of American Archivists enquanto, numa tradução nossa, o “processo de estabelecimento de controlo intelectual da documentação através da elaboração de instrumentos de descrição”1. Contudo, este conceito foi sendo afinado ao longo das décadas seguintes, podendo hoje ser definido enquanto “(1) processo de análise, organização e gravação de detalhes sobre os elementos formais de um registo ou coleção de registos, como o criador, título, data, extensão e conteúdo, a fim de facilitar o trabalho de identificação, gestão e compreensão; (2) o produto deste processo”2. Para além da descrição documental, tarefa comum que tem sido alvo de uma crescente normalização através da norma ISAD (G) – General International Standard Archival Description – e, mais recentemente em Portugal, através das Orientações para a Descrição Arquivística (ODA) (RUNA, 2007), a construção de “instrumentos de descrição” é aquilo que mais visivelmente se associa ao trabalho do arquivista (RIBEIRO, 1998, p. 7), pois são estes os instrumentos que se materializam nos arquivos e que devem ser entendidos como um primeiro ponto de acesso à documentação pretendida. O Dicionário de Terminologia Arquivística define este tipo de instrumento enquanto “documento secundário que referencia e/ou descreve as unidades arquivísticas, quantificando as respetivas unidades de instalação, tendo em vista

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Frank B. Evans Apud. DURANTI, Luciana (1992) – “The process of establishing intelectual control over holdings through the preparation of finding aids”, Op. Cit., p. 47. 2

SOCIETY OF AMERICAN ARCHIVISTS (2014) – “Archival description - (1) the process of analyzing, organizing and recordind details about the formal elements of a record or collection of records, such as creator, title, dates, extent and contents, to facilitade the work’s identification, management and understanding; (2) The product of such a process”. In A Glossary of Archival and Records Terminology.

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Notas sobre Instrumentos de Descrição Documental Catarina Guerra Rodrigues – Mestrado em Ciências da Informação e Documentação (2014/2015) o seu controlo e/ou acessibilidade” Define ainda que os tipos mais comuns de instrumentos de descrição são: “guias, roteiros, inventários, catálogos, registos e índices” (1993, p. 59). A NP 4041, não se afastando muito desta definição, entende o instrumento de descrição documental enquanto “documento elaborado para efeitos de controlo e/ou comunicação, que descreve as unidades arquivísticas, acervos documentais ou coleções factícias" (2005, p.7). Contudo, e apesar de todo o esforço na normalização terminológica dos conceitos arquivísticos em português, Fernanda Ribeiro propõe, na sua tese de doutoramento, o termo ”instrumento de acesso à informação”, mais abrangente e preciso, pois a definição encontrada no Dicionário não se adequa devidamente a este tipo de instrumentos. Para argumentar a sua posição, Fernanda Ribeiro dá como exemplo os índices que “podem não ter qualquer elemento descritivo, nem quantificar as unidades de instalação” mas que, ainda assim, não deixam de ser instrumentos facilitadores ao acesso à informação (RIBEIRO, 1998, pp. 25-26). Independentemente da denominação adotada, a importância deste tipo de instrumentos é inegável no que respeita ao acesso à informação dos arquivos pois, enquanto representação fidedigna do arquivo, deve facilitar a consulta e o acesso ao seu conteúdo. Para tal, e segundo alguns autores (BEARMAN, 1989; YAKEL, 2003, p. 2; ALVES, 2012, p. 15), a construção destas ferramentas encerra duas atividades que devem ser realizadas à priori: a organização e a descrição. Por sua vez, Fernanda Ribeiro crê que a construção de instrumentos de acesso eficazes devem ter em conta três parâmetros essenciais: a classificação (identificar e representar a estrutura orgânica-funcional do Sistema de Informação), a descrição (identificando com precisão as unidades arquivísticas) e os pontos de acesso (capazes de estabelecer os “caminhos conducentes à informação” – RIBEIRO, 1998, p. 8). Qualquer que seja a metodologia tomada, o que podemos ter como certo é que a criação de instrumentos de acesso à informação constitui uma 3

Notas sobre Instrumentos de Descrição Documental Catarina Guerra Rodrigues – Mestrado em Ciências da Informação e Documentação (2014/2015) representação de uma realidade, neste caso uma realidade arquivística e informacional. Esta construção deve inevitavelmente partir do rigor das duas atividades principais já enunciadas (organização e descrição). Se tal não acontecer, podemos construir ferramentas que nunca irão ser precisas e, como tal, nunca irão corresponder às expetativas de uma boa recuperação de informação. E informação que não é passível de ser recuperada é considerada inexistente. A informação, especialmente aquela que se encontra encerrada nos arquivos, só ganha sentido a partir do momento em que pode ser recuperada, compreendida e utilizada por utilizadores que tenham interesse nela. Portanto, e tal como nos refere André Lopez (Apud MARQUES, 2009, p. 72), “um arquivo sem instrumentos de pesquisa adequados corre o risco de se tornar um verdadeiro mistério para os usuários”. Contudo, e apesar da necessidade da existência de bons instrumentos de acesso à informação, ainda existe a perceção de que os utilizadores se sentem perdidos e/ou intimidados em utilizar os instrumentos de acesso. A razão deste entendimento prende-se com a noção de que as ferramentas de acesso à informação são escritas com uma linguagem quase hermética, fechadas sobre si mesmas e feitas para a utilização dos próprios arquivistas e não tanto para a utilização dos próprios utilizadores (COX, 2008, p. 8). A questão agrava-se quando se pensa em tornar acessível estas ferramentas via web. Estando disponível online, é certo que qualquer pessoa os pode utilizar, podendo assim resultar numa maior abrangência no que à acessibilidade diz respeito. Todavia, os arquivistas não podem tomar tal estratégia como garantia de um maior acesso à informação. Sem que existam ainda ferramentas de acesso à informação totalmente didáticas e autoexplicativas, a simples ubiquidade que a internet permite não garante necessariamente uma maior e melhor utilização das ferramentas de acesso. Antes pelo contrário, se não existir uma constante formação de utilizadores bem como uma confortável mediação entre utilizador/arquivista/documentação através do uso correto das ferramentas

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Notas sobre Instrumentos de Descrição Documental Catarina Guerra Rodrigues – Mestrado em Ciências da Informação e Documentação (2014/2015) fornecidas, a recuperação da informação será inevitavelmente parca e/ou deficiente. Deste modo, corre-se o risco de os utilizadores continuarem sem perceber a utilidade dos instrumentos de acesso à informação (tanto em suporte tradicional, em papel, quanto na sua versão mais “moderna” disponibilizada via internet – COX, 2008, p. 9; MARQUES, 2009, p. 80). Apesar de existir um enorme interesse, por parte dos arquivistas, em produzir melhores ferramentas de acesso, fazendo até uso das novas tecnologias existentes (YAKEL, 2003, p. 16; COX, 2008, p. 14), é certo que ainda existe um longo caminho a percorrer e nem sempre existe o tempo necessário para parar e refletir. A organização e a descrição, duas das mais importantes atividades para a criação de ferramentas de acesso bem conseguidas, não devem ser descuradas, especialmente no que respeita ao rigor. Contudo, estas atividades ainda se apresentam como verdadeiras consumidoras de recursos — não só financeiros e tecnológicos mas também ao nível de recursos humanos, requerendo para tal uma equipa conhecedora, determinada e, acima de tudo, motivada para levar a bom cabo o instrumento de acesso à informação (BEARMAN, 1989). Relativamente à construção de inventários, ferramenta de descrição documental por excelência, uma vez que não é tão “superficial” quanto um guia de fundos nem tão detalhado quanto um catálogo (MARQUES, 2009, p. 74), não basta, para tal, apenas referir e descrever as séries documentais. O inventário deve, antes de mais, proceder à descrição das unidades que compõem as séries documentais segundo a estruturação do plano ou quadro de classificação de origem, por forma a reproduzir assim a estrutura orgânico-funcional que lhe deu origem. É igualmente indispensável, a este nível, ter uma base de conhecimentos consolidada sobre a instituição produtora da documentação, por forma a identificarmos o contexto de produção e esclarecer as funções de uma determinada instituição.

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Notas sobre Instrumentos de Descrição Documental Catarina Guerra Rodrigues – Mestrado em Ciências da Informação e Documentação (2014/2015) Um dos benefícios não só da descrição mas também da própria construção dos instrumentos de acesso à informação foi a possibilidade de representação da ordem original da documentação que, às vezes, por diversas razões, não se consegue reorganizar fisicamente (DURANTI, 1992, p. 50). A isto chama-se

“ordenação

intelectual”,

constituindo-se

dessa

maneira

uma

separação daquilo que é a organização física e a organização intelectual dos documentos. Esta é apenas mais uma forma como os instrumentos de acesso à informação podem representar a documentação, entendendo aqui este conceito enquanto “uma correspondência do domínio real — objeto, dados, informação — , naquilo que é o resultado da representação — instrumento de acesso à informação” (YAKEL, 2003, p. 1). A estratégia, no entanto, é pensar não só no instrumento de acesso à informação como algo útil mas também algo indispensável na acessibilidade de informação. Importa, acima de tudo, que os arquivistas avaliem a eficácia da sua produção e que melhorem, quase como num Ciclo PDCA (Plan, Do, Check, Act), os instrumentos, tendo sempre em conta as necessidades dos verdadeiros utilizadores dos arquivos, o público externo que pretende contactar com a documentação.

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