Notas sobre sociabilidade, consumo e crowdfunding

July 6, 2017 | Autor: Leandro Lima | Categoria: Communication, Zygmunt Bauman, Crowdfunding, Consumo, Zigmund Baumann
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PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012

Notas sobre sociabilidade, consumo e crowdfunding1 Leandro Augusto Borges Lima2 Universidade Federal de Minas Gerais Resumo Neste artigo pretendemos compreender de que forma as plataformas de crowdfunding se inserem no tecido social sob o viés do consumo, ressignificando estas práticas. Numa tentativa primeira de definição do crowdfunding, resgatamos um breve histórico das práticas de financiamento e descrevemos os diversos tipos de financiamento coletivo online. Os conceitos de excedente cognitivo e ação coletiva de Shirky, aliados ao pensamento comunicacional conforme elaborado por Vera França servem como suporte a uma leitura crítica de Zygmunt Bauman. A proposta aqui não é da concordância indiscriminada e nem da crítica total ao autor, mas de aproveitar seu potencial instigador para questionar o crowdfunding como um possível primeiro exemplo de uma nova forma de consumo que se constrói na sociedade.

Palavras-chave: consumo; crowdfunding; interação; excedente cognitivo; ação coletiva 1. Do mecenato ao crowdfunding

Como ainda são escassas as pesquisas a respeito do crowdfunding, em especial na área da comunicação, faz-se necessário aqui delinear esta prática contemporânea. Em termos gerais o crowdfunding é o financiamento coletivo e colaborativo de projetos, buscando no poder das multidões a base de apoio para o sucesso. Buscar apoio financeiro para sua causa no público, invertendo de certa maneira a nossa lógica diária de consumir produtos prontos, aqui doamos e torcemos para que o projeto se efetive para só depois obtermos o produto em si, que como veremos, é das mais diversas ordens. 1

Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo, Entretenimento e Cultura Digital, do 2º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 15 e 16 de outubro de 2012. 2 Aluno de Mestrado do Programa de Pós-Graduação da UFMG, bolsista Capes. Membro do Gris – Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade. Este artigo é parte dos estudos exploratórios para a a dissertação em desenvolvimento, cujo objeto de conhecimento é o crowdfunding, sob orientação do Prof. Dr. Marcio Simeone Henriques.

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É difícil precisar em que momento o crowdfunding teve início como prática no ambiente telemático. A Wikipédia aponta que o primeiro site dedicado à coleta de fundos em prol de algum projeto foi o ArtistShare3 em 2000/2001 porém o termo passou a ser usado com frequência a partir de 2009 com o sucesso do Kickstarter4. Historicamente, outras formas de financiamento de projetos a parte de uma estrutura burocrática (como são as Leis de Incentivo no Brasil) já existiram, e a comparação mais comum que se faz, inclusive pelas plataformas nacionais como o Catarse5, é com a prática do mecenato. Mais conhecida pela sua importância no período renascentista, que possibilitou a cientistas e artistas como Leonardo da Vinci e Michelangelo a criação de obras de valor incomensurável para a humanidade, a prática tem sua origem na Roma Antiga, através da figura de Gaius Cilnius Mecenae. Ele foi conselheiro do Imperador César Augusto e mais conhecido por ser patrono de uma nova geração de poetas agostinos, de onde vem a origem do termo mecenato para se referir a toda ajuda financeira dada por um patrono para produções de cunho artístico-cultural. O mecenato, contudo, não parece ser o melhor correspondente passado do crowdfunding, pois salvo exceções, o patrono era sempre uma figura singular, ligada a alta burguesia,ao clero, a realeza, ou seja, a instâncias de poder político e econômico. Se consideramos o crowdfunding como essencialmente uma realização coletiva e que vem das multidões, é um equívoco compará-la a uma prática que parece ser difundida por outros fins que não a ajuda, o apoio e a colaboração e, principalmente, um modo de financiamento que era pouco coletivo e muito individualista, além de não ser aberto à participação efetiva das multidões, sejam como recebedoras ou doadoras. Retomando uma tentativa primeira de definição do crowdfunding, outro passo fundamental é apresentar parte das diferentes apropriações deste modo de financiar que foram criadas no ambiente online. Atualmente, existem três modelos que parecem preponderantes. O primeiro é o modelo utilizado por sites como o Vakinha6, que como o próprio nome sugere, adapta para o ambiente telemático uma prática já comum. Essa adaptação traz, claro, diferenças positivas, como o aumento da visibilidade, novas formas de pagamento e a participação de pessoas de fora do seu círculo primário de convivência, e também negativas, como casos falsos e fraudes. Este modelo de 3

Http://www.artistshare.net Http://www.kickstarter.com 5 Htttp://www.catarse.me 6 Htttp://www.vakinha.com 4

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crowdfunding é interessante para a realização de pequenos sonhos pessoais, como adquirir um novo violão ou um computador, e também tem sido usado para arrecadar dinheiro para tratamentos médicos dispendiosos. Contudo, a arquitetura do site não impede que outros tipos de projeto sejam submetidos. Um segundo modelo se beneficia do poder das multidões para financiar projetos que já foram aprovados por leis de incentivo. Estas plataformas aceitam apenas projetos enquadrados neste pré-requisito e se posicionam como facilitadoras da captação de recursos em entidades e empresas ou a multidão7, uma tarefa difícil mesmo tendo o projeto aprovado nas diversas leis de incentivo, dada a burocracia envolvida neste processo. O terceiro, mais relevante e difundido modelo, é o de recompensas, em que os patronos recebem algo em troca de sua ajuda financeira. Dentro deste modelo, os projetos submetidos são extremamente diversos, e enquanto algumas plataformas recebem qualquer tipo, outras se especializam em temas específicos. O Catarse se posiciona como um portal para projetos criativos, ainda que aqui o termo criativo não se limite ao campo das artes – música, pintura, teatro,cinema – compreendendo também a criatividade social e tecnológica. Projetos como a Metamáquina 3D 8 ou a Marcha da Maconha em São Paulo 9 tem seu espaço no site, tendo inclusive alcançado sucesso na arrecadação. Algumas plataformas de crowdfunding específicas seriam o Embolacha10, voltado apenas para projetos musicais, e o Queremos, cujo mote é a reunião de fãs para trazer o show de alguma banda para sua cidade. Neste modelo, que é nosso objeto de maior interesse neste artigo, há uma tríade de fundamental importância: o sujeito-proponente, o sujeito-apoiador e a plataforma. Os sujeitos-proponentes são aqueles que criam seus projetos e buscam nos diversos públicos o apoio para que ele aconteça. Cabe a este sujeito tornar, como veremos adiante, seu projeto atraente e vendável para os consumidores da sociedade de consumo. Ele se relaciona com a plataforma pois se inscreve nela e está submetido às suas limitações arquitetônicas e burocráticas, a suas regras de uso e normas de trabalho. Trabalha com táticas que consigam ultrapassar esses 7

Alguns projetos de incentivo, como a Lei Rouanet, permitem a doação de pessoa física com o abatimento no imposto de renda 8 Segundo a descrição feita pelos autores do projeto, a Metamáquina 3D é uma impressora 3D de baixo custo, e a meta do projeto era popularizar este tipo de produto. http://catarse.me/pt/projects/532-metamaquina-3d 9 Eventos de diversas finalidades também podem ser financiados via crowdfunding. Neste caso, a arrecadação visava a produção de adesivos,cartazes e outros itens para divulgação da Marcha da Maconha, além da aquisição de instrumentos musicais para a animação desta. 10 http://www.embolacha.com.br/

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limites e chegar ao outro vértice da tríade, os sujeitos-apoiadores, que convencidos de ajudar, podem também levar o projeto a outros potenciais doadores. Os sujeitos-apoiadores são a multidão, os diversos públicos acionados pelo proponente através de diversas táticas. Estes são os mais polivalentes sujeitos da tríade: são ao mesmo tempo produtores e consumidores, pois ao decidirem apoiar algum projeto, tornam-se os responsáveis pela sua existência, e por este apoio receberão algo de ordem material ou simbólica. Podem ainda se tornar divulgadores do projeto, tanto por gostarem dele e torcerem pelo seu sucesso, quanto pelo desejo de que seu processo de consumo seja concluído e revertido em produtos. A plataforma é o vértice de suporte, cujo serviço é “contratado” pelo sujeito-proponente, e cabe a ela fornecer o suporte tecnológico para o projeto. Mas é a plataforma quem estabelece as regras do jogo, o que é permitido e proibido, o que fere os princípios do crowdfunding e como se dará o processo de apoio. O Catarse , por exemplo, deixa claro em suas normas de uso que parte do dinheiro arrecadado (7,5%) vai para o site, que as recompensas não podem ser financeiras (dinheiro em troca de dinheiro), mas podem ser tanto produtos quanto experiências – ou mesmo um simples muito obrigado. Particularmente interessante para compreendermos as relações entre a tríade é este trecho do termo de uso do Catarse, : O CATARSE apenas aproxima CRIADORES DE PROJETOS e APOIADORES. A utilização do CATARSE não gera relação de trabalho, vínculo empregatício, associação nem sociedade entre os usuários e o CATARSE, nem tampouco representa transação comercial ou

venda

de

produtos

ou

serviços.

(Termos

de

Uso.

Disponível

em:

http://catarse.me/pt/terms )

Ainda que haja de fato uma separação formal entre os trés vértices, é importante ressaltar a interdependência da tríade. O projeto só é bem sucedido para todos, quando todos, colaborativamente, trabalham em prol do sucesso deste. Sem alcançar a meta financeira de cada projeto, ninguém sai ganhando: o Catarse só recebe a taxa de 7,5% do valor arrecadado e os sujeitos-apoiadores só receberão suas recompensas quando a meta foi alcançada ou ultrapassada, bem como os sujeitos-proponentes só têm acesso ao valor quando o projeto é bem-sucedido. Se o

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Catarse age como aproximador, ele é também dependente do sucesso desta aproximação. Como na acepção de dispositivo midiático de Antunes e Vaz (2006), a tríade é também um halo, um aro e um elo, na medida em que, mesmo se destacando um ou outro vértice, os outros estão sempre em relação, sempre presentes no jogo das interações e mutuamente implicados. Estaríamos então desenhando uma outra maneira de consumir? Tendo em vista a discussão aqui realizada num primeiro momento, podemos definir o crowdfunding como uma instância de sociabilidade, alicerçada pela colaboração, participação e liberdade dos públicos, visando a realização de projetos mediante o apoio das multidões mobilizadas pela causa. Dentro desta definição, cada um dos três modelos preponderantes insere suas particularidades e cada plataforma suas especificidades, porém todas tem uma base comum na definição primária que apresentamos aqui.

2. Sociabilidade: a ação coletiva Neste ponto uma questão incômoda surge: podemos então apontar o crowdfunding como de fato uma nova prática social? As rudimentares vaquinhas que realizamos para organizar uma festa ou para dar um presente a alguém, não seriam formas preliminares de financiamento coletivo, ainda que sem a estrutura que hoje os dispositivos telemáticos disponibilizam? Autores como Clay Shirky apontam que estamos num momento em que a generosidade e a colaboração são potenciais resultados de nosso excedente cognitivo: nosso ímpeto em se sentir parte de algo, em efetivamente agir em prol de uma causa, seriam resultantes benéficas do uso deste excedente. Uma articulação entre Shirky e autores caros ao paradigma praxiológico podem permitir um melhor olhar sobre este fenômeno, que parece resultar da aparição de novos espaços de sociabilidade, novos lugares em que os sujeitos em interação se posicionam e confrontam as instâncias de poder em que o modelo informacional parece ser ainda dominante. Dois pontos se destacam no trabalho de Shirky para este artigo: o excedente cognitivo e a ação coletiva. Shirky aponta que no mundo atual temos a possibilidade de utilizar nosso excedente cognitivo para fazer parte de projetos coletivos. Para o autor, este excedente se inciou no pósguerra, com as mudanças nas relações de trabalho, o surgimento do lazer e do tempo livre. Surgida

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na mesma época, a televisão veio ocupar esse tempo livre, porém como uma atividade pouco rica e produtiva, um mau uso do excedente cognitivo “criado” após a II Guerra Mundial, que “é apenas potencial,ele nada significa nem faz alguma coisa sozinho” (SHIRKY,2011,p.30). O excedente cognitivo é um bem mundial compartilhado, e se antes o gastávamos passando horas em frente a TV, agora podemos utilizá-lo proativamente, pelas redes telemáticas, pelas mídias sociais, podemos “tratar o tempo livre como um bem social geral que pode ser aplicado a grandes projetos criados coletivamente” (SHIRKY, 2011,p.15). A ação coletiva é um dos possíveis usos benéficos do nosso excedente cognitivo, e o crowdfunding se insere aqui, como verificaremos adiante. Shirky ressalta que “estamos vivendo em meio a um extraordinário aumento de nossa capacidade de compartilhar, de cooperar uns com os outros e de empreender ações coletivas, tudo isso for a de instituições e organizações tradicionais”(2011,p.23). Como dissemos anteriormente o crowdfunding rompe com os modos usuais de financiamento de projetos, buscando naquele que seria o final da cadeia produtiva o suporte para que ela tenha início. Em 2008, ano que escreveu o livro “Lá vem todo mundo: o poder de organizar sem organizações”11 o crowdfunding era uma prática ainda incipiente e portanto ausente da obra, mas certamente se encaixa com perfeição na sua linha de pensamento que favorece o poder da ação coletiva. Entretanto, o nível da ação coletiva é difícil de se alcançar pois requer uma forte coesão grupal e o intenso envolvimento dos públicos na causa: “a todo momento nossos desejos e talentos humanos básicos para o esforço em grupo são obstruídos pelas complexidades da ação global” (2012, p.43). Para se chegar à ação coletiva, caso essa seja de fato necessária, dois outros estágios devem ser superados e, ao final, agregados: o de compartilhamento e o de cooperação. O primeiro estágio é o de agregação de participantes, do estabelecimento de uma consciência compartilhada em torno da causa. Utilizando o exemplo do crowdfunding, é o estágio inicial das táticas do proponente, em que ele busca tornar seu projeto visível para seu círculo mais próximo de convivência, e estes são responsáveis por compartilhar a ideia com os outros pela rede de contatos. O estágio da cooperação é quando o grupo começa a ter uma identidade própria, a produção colaborativa se torna uma possibilidade real e efetiva e a criação é compartilhada. É o momento em que o projeto é

11

Traduzido no Brasil apenas em 2012.

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plenamente compreendido pelos apoiadores, incluindo os que possuem vínculos distantes com o proponente. Shirky ressalta que diferentes causas, diferentes organizações, pedem diferentes formas de organização, e podem funcionar perfeitamente bem sem precisar sair do estágio de compartilhamento por exemplo. O esforço envolvido para a criação de uma ação coletiva é grande; o excedente cognitivo dispendido é incalculável. Os projetos de crowdfunding que obtêm sucesso não necessariamente chegam ao nível da ação coletiva. Uma análise mais detida dos projetos pode indicar que eles já obtenham sucesso no nível da cooperação. Porém, alguns projetos no site americano Kickstarter tiveram arrecadações monstruosas, como o projeto do smartwatch Peeble, que arrecadou 10.266% do valor inicialmente requerido 12. Projetos com todo esse alcance certamente chegam ao último estágio, em que o esforço conjunto da comunidade é grande, a coesão do grupo é fundamental para a credibilidade e confiabilidade do projeto, e a responsabilidade do seu sucesso é compartilhada por um contingente de sujeitos muito grande. Se Bauman (2008) afirma que “a sociedade de consumo tende a romper os grupos ou torná-los eminentemente frágeis e fissíparos”, vemos no financiamento coletivo e nas colocações de Shirky que, ainda que certamente estejamos numa sociedade marcada pelo consumo, que este não possui tanto poder quanto acredita o autor. 3. Interação e Consumo Uma pequena apresentação do paradigma sob o qual é pensado este trabalho faz-se necessário, a saber, o paradigma praxiológico, em que a interação é ponto central. O conceito de interação que aqui utilizamos deriva dos estudos de G.H. Mead, conhecido como o pai do Interacionismo Simbólico. Mead considera que para compreender a sociedade é necessário um olhar atento para as dinâmicas interacionais estabelecidas bem como para a estrutura social. Para França (2007), a “comunicação não constituiu a preocupação central de Mead, mas o seu principal eixo explicativo”, pois é ela que “permite a superação dos dualismos contra os quais ele se batia” (FRANÇA, 2007). 12

A meta inicial era de $100.000, e o valor arrecadado foi de $10.266.846. É um dos projetos mais bem sucedidos da história do crowdfunding, mas houveram outros de sucesso semelhante no Kickstarter. http://www.kickstarter.com/projects/597507018/pebble-e-paper-watch-for-iphone-and-android?ref=live

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Assim, compreendemos a interação como elemento central na vida social, em que a linguagem assume um papel fundamental. A comunicação depende da interação, da responsividade do outro perante seu ato iniciador, do gesto significante, cuja linguagem permite aos envolvidos o partilhamento de sentido. Cruz e Silva (2007) explicita o conceito de interação para Mead: “um processo de ação reciprocamente referenciada em que cada indivíduo está, o tempo todo, pensando a sua atitude através da percepção da reação do interlocutor. (…) a interação é um ajustamento mútuo de comportamento.” (CRUZ E SILVA, 2007, p.57). O conceito de interação oriundo dos estudos de Mead também nos permite estabelecer o diálogo mais próximo com o modelo de comunicação que nos é caro, o modelo praxiológico de Louis Quéré (1991). Aliado às discussões sobre redes sociais (RECUERO, 2009), Mead e Quéré levam nosso olhar para as dinâmicas interativas entre os diversos sujeitos, pois sua abordagem: entende a comunicação não apenas como um processo de transmissão de mensagens, mas como um processo constituidor tanto dos sujeitos quanto do mundo comum construído e partilhado intersubjetivamente. Essa perspectiva insere a comunicação no terreno da experiência, da ação e intervenção dos homens, em que a linguagem assume uma dimensão expressiva e constitutiva da experiência do homem no mundo. (…) Nesse modelo praxiológico, a comunicação é vista como lugar constituidor da própria realidade social (SIMÕES, 2007).

Considerando então este modelo, propomos aqui pensar o consumo sob o viés praxiológico, como prática social intimamente ligada à interação, ao estar com o outro em uma dinâmica de trocas simbólicas, mutuamente afetados. Os sujeitos envolvidos nesta relação são, em termos de França, sujeitos em comunicação, ou seja, dispostos numa rede de relações que “constituem esse sujeito – a relação com o outro, a relação com a linguagem e o simbólico. Assim, não falamos em sujeito no singular, mas no plural; e não apenas sujeitos em relações, mas em relações mediadas discursivamente.” (FRANÇA,p.77). Mais do que um viés praxiológico, o olhar que aqui propomos para compreender as relações de consumo implicadas nos processos de crowdfunding é prioritariamente comunicacional. Partindo do pressuposto de que vivemos numa sociedade de consumo, conforme Bauman, em que todo sujeito é também uma mercadoria, e o consumo se coloca como prática fundamental para a

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manutenção do tecido social, buscamos aqui criticar em certa medida o posicionamento pessimista do autor quanto ao momento social que vivemos. Acreditamos que as práticas de consumo, quando vistas com os óculos da comunicação, tomam formas menos demonizantes e mais constituidoras, construidoras do viver em sociedade. Admitimos, sim, que o consumo tomou a posição dominante antes ocupada pela produção, como Bauman muito bem demonstra em seu trabalho. Porém até que ponto novas práticas como o crowdfunding não são capazes de apontar para novos modos de consumir em que a satisfação13 é tanto material quanto simbólica, da ordem da posse mas também do prazer em colaborar e construir algo maior do que uma efêmera relação de troca? Ao propor esta abordagem comunicacional que não cria novos objetos mas apreende os objetos do mundo de outra forma, queremos buscar o sentido destas relações de troca, a forma como as três instâncias envolvidas no financiamento coletivo online se afetam mutuamente. “A abordagem comunicacional busca desvelar, nos fenômenos sociais, a presença da comunicação enquanto momento constituidor. Seu objetivo é apreender as relações comunicativas, relações estabelecidas pelas práticas simbólicas, como um espaço de agenciamento e de escolha; um embate de forças. Este embate é a experiência comunicativa. Tomar a interação como pressuposto (entendemos que o processo comunicativo é uma interação, com tudo que isto significa) nos orienta a buscar nela uma chave analítica, receber dela uma direção na busca da compreensão do fenômeno.” (FRANÇA, p.85)

Tendo isto em mente, partimos para a exposição de outro conceito caro a este artigo, o de sociedade de consumo, conforme proposto por Zygmunt Bauman. Apontada como, ao mesmo tempo, a continuidade e a ruptura com uma sociedade anterior, caracterizada como produtora, em que os sujeitos eram moldados segundo padrões de durabilidade, segurança, prudência e valorização do trabalho, a sociedade de consumo é mais do que uma mera afirmação de que consumimos, pois isto o fazemos desde tempos imemoriais. Consumimos o mundo e suas coisas, consumimos o outro 13

A satisfação/insatisfação, felicidade/infelicidade do sujeito consumidor é tema constante de discussão em autores que tratam do consumo, como Hannah Arendt, Richard Sennet, Colin Campbell, Jean Baudrillard, dentre outros. Ainda que consideremos como um fator importante para se compreender a dinâmica de consumo no crowdfunding, optamos por deixar esta discussão fora deste trabalho, pois ela parte para aspectos subjetivos e psicolgicos com os quais ainda não temos material suficiente para analisar neste momento da pesquisa, já que demandaria uma análise profunda das motivações dos sujeitos-apoiadores.

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e seu espírito. Mas aonde está o ponto de virada que permite a Bauman afirmar que vivemos numa sociedade do consumo? Um dos motivos é que somos instados e ditados a atuar como consumidores no palco da vida social. O consumo é a prática social, o ato da troca econômica, da troca simbólica, material ou subjetiva, da satisfação ou insatisfação, da criação e destruição de desejos. Porém é o consumismo que Bauman aponta como o divisor de águas, o momento em que o consumo toma a importância que antes era dada ao trabalho. Consumíamos sempre, mas agora somos impelidos a fazê-lo devido ao consumismo que um atributo da sociedade, ou seja, um: “arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros,permanentes e ,por assim dizer, neutros quanto ao regime, transformandoos na principal força propulsora e operativa da sociedade, uma força que coordena a reprodução sistêmica, a integração e a estratificação sociais, além da formação de indivíduos humanos, desempenhando ao mesmo tempo um papel importante nos processos de auto identificação individual e de grupo, assim como na seleção e execução de políticas de vida individuais.” (BAUMAN, 2008, p.41)

As elucubrações em torno da sociedade de consumo feitas por Bauman são extensas, não se resumem a sua obra “A vida para consumo”, e seríamos incapazes de aqui expor todos as minúcias que o autor traz ao conceito. Contudo, alguns apontamentos feitos pelo autor são particularmente instigantes de discussões. É quase lugar comum falarmos da importância excessiva que bens materiais ganharam na sociedade atual, alimentados por uma eficiente indústria de marketing e propaganda. Possuir um iPad e não um tablet android chinês demonstra não só uma discrepância de poder econômico mas principalmente de status. Possuir o aparelho da moda, a roupa da estação e de grandes marcas, o carro do ano, ou, para não ficarmos apenas no cenário do consumo material, ser um cobiçado perfil no Twitter ou o novo hit do YouTube, são elementos com os quais convivemos constantemente e que são objeto de estudo da pesquisa em comunicação com certa frequência. Esta é uma das facetas do consumismo, que associa a felicidade, a satisfação e o bem estar à posse destes bens ou ao alcance de posições de visibilidade que tornam os sujeitos (e sua posição) também objetos de desejo. Aqui nos interessa particularmente essa dimensão dos sujeitos-mercadoria, que para Bauman é um dos objetivos da sociedade de consumo – nos transformar em mercadoria

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vendável – mas que para nós é um caminho para se pensar o crowdfunding e a forma como os sujeitos-proponentes devem tornar seu projeto atrativo ao outro. Para nos atermos ao ambiente online, sites de rede social como o Linkedin agem como vitrines, expondo os melhores e mais adequados perfis para a vaga que a empresa procura. Para ser encontrado e escolhido, os candidatos devem ser atraentes, vendáveis, encher os olhos do contratante. Neste sentido, os apontamentos da sociedade de consumo de Bauman são de fácil validação quando olhamos criticamente para o cotidiano. Contudo, ressaltamos aqui novamente a importância do pensamento comunicacional e de se tomar o consumo como um momento de interação, de troca: por mais que nos tornemos “mercadoria” aos olhos da indústria, somos ainda sujeitos em comunicação, agindo no mundo, afetando-o e sendo afetado por ele. Assim como no Linkedin, o funcionamento do financiamento coletivo online requer que os projetos sejam atraentes, convincentes, conquistadores do público. Um bom video, um bom projeto, boas recompensas, são todas táticas postas em prática pelos proponentes para serem mais vendáveis, mais atrativos. O crowdfunding como instância de consumo não se desvincula totalmente do ato de consumo padrão, mas traz novos movimentos ao tabuleiro do jogo que apontam para uma outra forma de consumir que mesmo sob as bases da troca mercadológica, dá mais importância aos sujeitos e as relações entre estes e os sujeitos-apoiadores, numa construção conjunta de um “produto” final a ser consumido, que é tanto da ordem material quanto do espírito. As recompensas oferecidas nos projetos de crowdfunding do Catarse são fruto de uma colaboração coletiva da tríade que compõe o núcleo do financiamento coletivo – plataforma, sujeito-proponente e sujeito-apoiador – resultado do que ,para Clay Shirky (2011), é fruto da ação coletiva, como explicamos previamente. Uma última indagação que a leitura de Bauman com o olhar crítico praxiológico e comunicacional trata do que o autor aponta como a cultura consumista, esse “modo peculiar pelo qual os membros de uma sociedade de consumidores pensam em seus comportamentos ou pelo qual se comportam de 'forma irrefletida'” (BAUMAN,2008 p.70). Para Bauman, a sociedade de consumo rejeita outras opções culturais que não sejam o consumo. Todos devem e precisam ser consumidores, como uma vocação, um direito e um dever humano. Se há, e nesse ponto concordamos, um forte imperativo do consumo na vida social, com suas promessas de felicidade (efêmera e substituível), jogos discursivos (compro, logo existo, sou, respiro) e a mercantilização do

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todo (objetos e sujeitos), por outro lado Bauman parece dar força demais a um olhar pessimista do consumo e, com o perdão do possível exagero, quase hipodérmico de seu poder sob a sociedade. Em que medida a critica a uma sociedade de consumo, ou ao consumo em si, não esbarra no discurso de uma mídia manipuladora, controladora das massas? Até que ponto é de fato criticável o consumo de bens materiais e simbólicos “fúteis” pelos sujeitos a fim de se sentirem parte de um grupo que compartilha determinados gostos? A abordagem do consumo pode e deve ser pensada sob um viés praxiológico, dialógico, em que os sujeitos possuem o controle de suas ações. Há claro um forte discurso midiático, seja da publicidade ou da imprensa, que favorece o consumo de um estilo de vida em detrimento de outros, mas este de forma alguma impede a multiplicidade de discursos consumistas. Os sujeitos em comunicação , na sociedade baumaniana do consumo, estão também em consumação, consumindo e sendo consumidos pelos discursos, e criando seus próprios discursos para o consumo de outrém. Se estamos vivendo nesta sociedade de consumo, e anteriormente afirmamos concordar com o autor, ela não nega as outras opções culturais, mas sim as agrega quando possível. Concordamos e questionamos, por acreditarmos que o texto é instigante, rico em possibilidades de análise, e certamente provocador por seu quase aterrorizante retrato dos sujeitos. Se pensarmos no crowdfunding como esta nova instância consumista da sociedade de consumo, esta já traz elementos que contestam esse posicionamento endurecido quanto a cultura, pois aqui há a junção do que Shirky chama cultura colaborativa à tradicional cultura do consumo, gerando uma terceira via, híbrida. Mais do que um rompimento com formas tradicionais de financiamento de projetos pessoais,culturais ou empreendedores, o crowdfunding rompe e se mistura com a lógica de consumo vigente, criando sua própria lógica: produz-se, e depois criam-se as motivações para o consumo destes bens. No crowdfunding o processo é mais complexo e, em essência, dialógico. 4. Apontamentos Finais O trabalho desenvolvido aqui é curto e , em alguma medida, ousado em demasia ao propor a crítica a alguns pontos da obra de Bauman (2008), que de maneira alguma nega sua importância ou esgota suas questões. No entanto, a crítica se faz necessária por acreditarmos que as ponderações de Clay Shirky (2011) quanto ao potencial benéfico do excedente cognitivo tomam uma forma mais

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consistente no crowdfunding. De maneira semelhante, por pensarmos aqui o consumo como prática social em que a interação é componente fundamental e os sujeitos agem ativamente durante o processo, não estando portanto indefesos quanto a força da cultura do consumo, o forte discurso de Bauman sofre pequenos tremores quando visto a partir do paradigma praxiológico. Continuando o tom de ousadia, defendemos que o crowdfunding revela uma nova faceta das práticas de consumo que é dialógica, interacional e colaborativa. Claro, estas conclusões são ainda primárias e carecem de maior fundamento, porém apontam para um caminho que parece ter substância. Não podemos generalizar: talvez esse aspecto colaborativo do consumo se revele apenas nas práticas de financiamento coletivo, e outras análises seriam necessárias para ver a presença ou ausência deste fator em outras situações. Contudo, arriscamos aqui um pouco mais: a sociedade de consumo conforme apontada por Bauman (2008) pode ser não um estado final, mas uma transição. Como tal, ela é tempestuosa, confusa, sujeita a opiniões e discussões tão opostas quanto pontos cardeais. Se estamos ainda no processo de desvinculação de uma sociedade de produtores, mas já extremamente inseridos num contexto social em que o consumo exerce papel fundamental, podemos ter iniciado também a caminhada para uma configuração social em que produtores e consumidores compartilharão os mesmos corpos ; as fronteiras entre um e outro ficariam cada dia mais tênues. Já somos “mercadoria” pois estamos na constante necessidade de conquistar o outro nas mídias sociais ou na mesa do bar, no Linkedin ou na entrevista de emprego, nos canais de vídeo do YouTube e no nosso esforço escolar para se destacar. Já produzimos e consumimos, diariamente. Se rumamos para um mundo conectado e generoso, a nossa percepção de consumo também sofrerá alterações. O crowdfunding pode ser o primeiro e mais óbvio exemplo de um consumo colaborativo e participativo , mas acreditamos que outros virão, com maior ou menor relevância, e que este entre-lugar da sociedade de consumo baumaniana poderá gerar novas discussões e verdades quanto ao consumo na sociedade.

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Referências 1. ANTUNES, Elton e VAZ, Paulo Bernardo. Mídia: um aro, um halo, um elo. IN: Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. FRANÇA, Vera e GUIMARÃES, César (Org). Belo Horizonte, Autêntica, 2006 2. BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro. Editora Jorge Zahar,.2008 3. CATARSE. Termo de Uso. Acessado em: 20/08/2012. Disponível em: http://catarse.me/pt/terms 4. CRUZ E SILVA, Rafael F. No Orkut pelo Pearl Jam: interação, sociabilidade e cooperação num processo colaborativo na Internet. 178 p. Dissertação – UFMG. Belo Horizonte.2007. Arquivo eletrônico disponível em: www.fafich.ufmg.br/gris 5. FRANÇA,Vera. Interações comunicativas: a matriz conceitual de G.H. Mead. Belo Horizonte. 2007 6. FRANÇA, Vera. Sujeito da comunicação,sujeitos em comunicação. In: Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. GUIMARÃES,Cesar, FRANÇA, Vera (org.). Belo Horizonte. Ed. Atuêntica. 2006. 7. QUÉRÉ, Louis. D’um modèle épistemologique de la communication à um modèle praxéologique. Réseaux, 46/47, Paris, Tekhné, mar-abril 1991 8. LIMA, Leandro. Do Ceará ao Canadá, Izzy Nobre: visibilidade, performance e carisma

como elementos de ruptura do anonimato na internet. Monografia de Graduação apresentada ao Curso de Graduação em Comunicação Social, UFMG. 2011. 9. SHIRKY,Clay. A Cultura da Participação: criatividade e generosidade no mundo conectado. Rio de Janeiro. Editora Zahar, 2011 10. SHIRKY, Clay. Lá vem todo mundo: o poder de organizar sem organizações. Rio de Janeiro. Editora Zahar, 2012 11. SIMÕES, Paula Guimarães. Para uma abordagem das interações comunicativas. IN: Verso e Reverso, n.46. Porto Alegre. 2007. 12. WIKIPEDIA

Gaius

Mecenae.

Acessado

http://en.wikipedia.org/wiki/Mecenate#Legacy

em:

10/08/2012.

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