Nótula sobre a pintura de Nossa Senhora da Misericórdia do Museu Municipal de Olhão

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Nótula sobre a pintura de Nossa Senhora da Misericórdia do Museu Municipal de Olhão Denominação: Nossa Senhora da Misericórdia. Autor: bandeyrinhas. Época: Século XVIII; 1727. Técnica e suporte: óleo sobre tela. Dimensões: Alt. 101 cm x Larg. 89 cm (sem moldura); 122 cm x 108 cm (com moldura). Proveniência: Igreja da Misericórdia de Grândola (?). Local Actual: Museu Municipal de Olhão. Modalidade de incorporação: doação. Estado de conservação: bom (com repintes).

A pintura hoje integrada na colecção do Museu Municipal de Olhão teve um percurso até esta instituição que parece ter-se iniciado na Misericórdia de Grândola, conforme deixa suspeitar, para além do tema representado, a inclusão do nome da vila alentejana no verso da tela, juntamente com a data em que esta foi pintada, 1727, e alcunha do artista que a pintou, o bandeyrinhas. Profanada a igreja da Misericórdia de Grândola, a tela terá sido provavelmente vendida à semelhança do sucedido com os azulejos que revestiam aquele templo1. Até à data de incorporação no Museu Municipal de Olhão (Julho de 2003) a pintura encontrava-se na posse do doador, Dr. Mendes Segundo, residente nesta cidade. A moldura actual, muito posterior à data de concepção da obra, implicou alguns cortes facilmente reconhecíveis, afectando algumas figuras representadas. O estado de conservação da pintura revela-se bastante satisfatório, apesar dos aparentes repintes posteriores à sua factura original2. Ainda no que às questões materiais diz respeito, haverá a salientar o facto desta obra ter pertencido originalmente a uma bandeira semelhante a inúmeras outras tradicionalmente realizadas para as Misericórdias, atendendo à sua iconografia e ao uso que habitualmente era dado ao tema como objecto artístico. Considerando 1

Cfr. Sant’Anna DIONISIO (apresentação de), Guia de Portugal, (texto integral que reproduz a 1.ª edição publicada pela Biblioteca Nacional de Lisboa em 1927), vol. II – Estremadura, Alentejo, Algarve, s.l., Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, p. 8. 2 A submissão ao exame de ultravioletas poderá esclarecer de forma eficaz quanto à existência e extensão dos repintes desta pintura.

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esta hipótese, significa que esta obra foi separada de outra tela de características idênticas, que constituiria o verso da bandeira, representando Nossa Senhora da Piedade3. Todas as Misericórdias portuguesas têm nas bandeiras Reais ou em pinturas no interior das suas igrejas uma Virgem da Misericórdia cujo simbolismo e representações têm sido objecto de estudo em trabalhos de Dagoberto Markl4 e Joaquim de Oliveira Caetano5. Qualquer que seja o tratamento plástico dado à Virgem da Misericórdia a sua invocação decorre sempre do Salmo 57 onde se lê: tem compaixão de mim, ó Deus, tem compaixão, porque em ti busco protecção. Quero abrigar-me debaixo das tuas asas, até que o perigo tenha passado. A Virgem como intercessora surge assim com a imagem de protectora, fonte de vida, de piedade e de Misericórdia, cobrindo com o seu manto toda a cristandade6. Numa apreciação estilística geral podemos afirmar estar perante uma obra modesta, iconograficamente decorrente da habitual produção de estandartes realizados para a saída em procissões da Semana Santa das Misericórdias portuguesas, sendo fruto do labor de um artista local, o bandeyrinhas, até ao momento desconhecido da historiografia de arte, de modestos recursos técnicos, mas interessante pela sua expressividade de cariz popular. A leitura iconográfica nada apresenta de invulgar, uma vez que representa com alguma fidelidade a iconografia oficial das bandeiras das Misericórdias portuguesas determinada, em 1627, por alvará régio de Filipe III (II de Portugal), na sequência de idêntica determinação relativa às bandeiras da Misericórdia de Lisboa, em Setembro de 1575, pelo Provedor Ruy Lourenço de Távora: De commum accordo e unânime consentimento determinamos que no pintar das bandeiras, esteja de uma parte a imagem de Christo nosso Redemptor, e da outra a SS. Virgem, Mãe da Misericordia. Á 3 O “Santuário Mariano” liga aliás explicitamente o uso da imagem de Nossa Senhora da Piedade no verso das bandeiras da Misericórdia a uma intenção de guardar a memória da confraria donde teria partido a Misericórdia de Lisboa; Joaquim Oliveira CAETANO, “Sob o manto protector. Para uma iconografia da Virgem da Misericórdia”, In AAVV (coor. Nuno Vassalo e Silva), Mater Misericordiae, s.l., Museu de São Roque – Livros Horizonte, 1995, p. 17. 4 Cfr. Dagoberto MARKL, “Breve introdução ao estudo da iconografia das Virgens de Misericórdia”, Separata do Boletim da Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1987. 5 Cfr. Joaquim Oliveira CAETANO, Op. Cit., 1995. 6 Cfr. AAVV (coor. Manuel Batoréo), A Pintura e os Pintores da Santa Casa da Misericórdia da Ericeira, s.l., Mar de Letras – editora (colecção Arte e Património, n.º 3), 1998, p. 34.

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sua mão direita um papa, um cardeal e um bispo, como cabeça da Egreja militante, e um religioso da SS. Trindade, grave, velho e macilento, de joelhos e mãos levantadas, com estas letras F.M.I. que querem dizer Frei Miguel Instituidor; e da parte esquerda da mesma Senhora um rei e uma rainha, em memoria do inclito rei D. Manuel e da rainha D. Leonor, como primeiros irmãos d’esta Irmandade; mais dois velhos graves e devotos, companheiros do veneravel instituidor, e aos pés da Senhora algumas figuras de miseraveis que representam os pobres7. A Nossa Senhora da Misericórdia em análise segue as principais características acima descritas conjugadas com a matriz compositiva fornecida a partir da gravura inserida no Compromisso da Misericórdia de Lisboa (1516), da autoria de Hernão de Campos. Sob o manto protector da Virgem, coroada de estrelas, vestida de branco, de pé sobre um quarto crescente lunar, encontra-se um total de catorze figuras (tantas quantas as obras da Misericórdia8) representativas das diversas classes: realeza, aristocracia, clero, não faltando nesta última a figura do frade trinitário Frei Miguel de Contreiras, historicamente associado à fundação da Misericórdia de Lisboa, bem identificado pelo traje trinitário ostentando a sigla F.M.I. À semelhança de muitas outras representações do mesmo tema, são omissas as figuras representativas dos pobres ou da classe popular, ficando o espaço inferior diante da Virgem liberto de qualquer representação humana. Trata-se de uma representação bipartida da sociedade, de um lado os poderes espirituais do mundo, do outro os temporais, com as suas hierarquias próprias, directamente relacionadas, que prestam homenagem à Virgem e se colocam sob o seu manto protector9. Este é aberto e segurado por dois anjos, um em cada extremidade. Uma particularidade iconográfica dos modelos derivados da citada gravura lisboeta é o facto de a Virgem ser ao mesmo tempo uma Nossa Senhora da

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Citado a partir de Joaquim Oliveira CAETANO, Op. Cit., p. 24. As catorze Obras da Misericórdia dividem-se em dois grupos: Obras Corporais e Obras Espirituais. Pertencem às Obras Corporais: Dar de comer a quem tem fome, Dar de beber a quem tem sede, Vestir os nus, Visitar os enfermos, Dar pousada aos peregrinos, Remir os cativos e Enterrar os mortos. Às Obras Espirituais pertencem: Rogar a Deus pelos vivos e pelos defuntos, Sofrer com paciência as fraquezas dos nossos próximos, Perdoar a quem errou, Castigar com caridade aqueles que erram, Consolar os tristes, Ensinar os ignorantes e Dar bom conselho a quem o pede. 9 Cfr. Joaquim Oliveira CAETANO, “A Virgem da Misericórdia: uma aproximação iconográfica”, In Oceanos, n.º 35, Julho/Setembro de 1998, p. 73. 8

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Misericórdia e uma Imaculada Conceição, como é observável pelo crescente a seus pés e pela sua auréola em sol, terminando em estrelas10. Para incluir todas estas personagens, obedecendo às obrigações da iconografia, o artista recorre a um esquema de distribuição espacial das mesmas em composição triangular. Curiosamente, é bem possível que a figura barbada e com a cabeça descoberta que se esconde atrás da figura de Frei Miguel de Contreiras, desviando o olhar da Virgem para o espectador, se trate de um auto-retrato do autor da tela, o alcunhado bandeyrinhas, que pode ter pretendido seguir um hábito corrente em meados do século XVII. Na parte inferior da tela lê-se a legenda: SUBTUVM, PRAESIDIUM, CONFUGIMUS. No verso da tela encontra-se a já mencionada referência à autoria, data e provável local onde a pintura foi executada: fes o bandeyrinhas na era de 1727 ã grandola. Haverá que considerar o facto de a bandeira evidenciar a existência de repintes, o que não impede o reconhecimento da abordagem algo primitiva ao nível do cromatismo e das limitações do artista ao nível do desenho, designadamente no tratamento mascarrado das faces e na rudeza dos panejamentos. Daniel Santana Faro, Janeiro de 2004

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A relação entre os dois cultos explica-se quer pela sua progressão de certa forma cronologicamente paralela, quer pelo papel das confrarias na divulgação de ambos e, especialmente, pela espiritualidade dos fundadores da Irmandade; cfr. Idem, ibidem, p. 73.

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