NOVAS FRONTEIRAS DA TEORIA DO DIREITO

August 2, 2017 | Autor: Noel Struchiner | Categoria: Teoria do Direito, Filosofia do Direito
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Descrição do Produto

NOVAS FRONTEIRAS DA TEORIA DO DIREITO: da filosofia moral à psicologia experimental

Apoio:

Organizadores: Noel Struchiner e Rodrigo de Souza Tavares

NOVAS FRONTEIRAS DA TEORIA DO DIREITO: da filosofia moral à psicologia experimental

Rio de Janeiro 2014

© Editora PUC-Rio ZƵĂDĂƌƋƵġƐĚĞ^͘sŝĐĞŶƚĞ͕ϮϮϱ WƌŽũĞƚŽŽŵƵŶŝĐĂƌʹĐĂƐĂŐġŶĐŝĂͬĚŝƚŽƌĂ ϮϮϰϱϭͲϵϬϬͮ'ĄǀĞĂʹZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽ͕Z: dĞůĞĨĂdž͗;ϮϭͿϯϱϮϳͲϭϳϲϬͬϭϴϯϴ [email protected] ǁǁǁ͘ƉƵĐͲƌŝŽ͘ďƌͬĞĚŝƚŽƌĂƉƵĐƌŝŽ

© PoD Editora ZƵĂ/ŵƉĞƌĂƚƌŝnj>ĞŽƉŽůĚŝŶĂ͕ϴƐĂůĂϭϭϭϬ WĕĂdŝƌĂĚĞŶƚĞƐʹĞŶƚƌŽ ZŝŽĚĞ:ĂŶĞŝƌŽʹϮϬϬϲϬͲϬϯϬ dĞů͘ϮϭϮϮϯϲͲϬϴϰϰʹϵϴϰϵϴͲϳϬϱϳ [email protected] www.podeditora.com.br

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transŵŝƟĚĂ ƉŽƌ ƋƵĂŝƐƋƵĞƌ ŵĞŝŽƐ ;ĞůĞƚƌƀŶŝĐŽ ŽƵ ŵĞĐąŶŝĐŽ͕ ŝŶĐůƵŝŶĚŽ ĨŽƚŽĐſƉŝĂ Ğ ŐƌĂǀĂĕĆŽͿ ŽƵ ĂƌƋƵŝǀĂĚĂĞŵƋƵĂůƋƵĞƌƐŝƐƚĞŵĂŽƵďĂŶĐŽĚĞĚĂĚŽƐƐĞŵƉĞƌŵŝƐƐĆŽĞƐĐƌŝƚĂĚĂƐĚŝƚŽƌĂƐ͘ Conselho Editorial - PoD Editora ŶƚŽŶŝŽĂƌůŽƐZŝƩŽ hZ:Ͳ/D ƐƚƌĞůůĂŽŚĂĚĂŶĂ hZ:Ͳh DĂƌŝŶŝůnjĂƌƵŶŽ hZ:Ͳ/D ^ĠƌŐŝŽ^ŬůĂƌ hZ:Ͳh

Conselho editorial PUC-Rio Augusto Sampaio Cesar Romero Jacob Hilton Augusto Koch Fernando Sá José Ricardo Bergmann Luiz Alencar Reis da Silva Mello Luiz Roberto Cunha Miguel Pereira Paulo Fernando Carneiro de Andrade Sergio Bruni

ŝĂŐƌĂŵĂĕĆŽ͗ PoD Editora

ĂƉĂ͗ João Luiz Struchiner

ZĞǀŝƐĆŽ͗ PoD Editora

/ŵƉƌĞƐƐĆŽĞĐĂďĂŵĞŶƚŽ͗ Control C – Impressos sob Demanda

CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ N811 Novas fronteiras da teoria do direito: da filosofia moral à psicologia experimental / organização Noel Struchiner, Rodrigo de Souza Tavares. - 1. ed. - Rio de Janeiro : PoD: PUC-Rio, 2014. 220p. il.; 21cm inclui bibiografia e índice ISBN (Pod Editora)

978-85-8225-059-4

ISBN (Ed. PUC-Rio)

978-85-8006-162-8

1. Direito. 2. Direito - Filosofia. I. Struchiner, Noel. II. Tavares, Rodrigo de Souza. 15-20004 17.12.14

CDU: 34 19.12.14

Reitor Pe. Josafá Carlos de Siqueira, S.J. Vice-Reitor Pe. Francisco Ivern Simó, S.J. Vice-Reitor para Assuntos Acadêmicos Prof. José Ricardo Bergmann Vice-Reitor para Assuntos Administrativos Prof. Luiz Carlos Scavarda do Carmo Vice-Reitor para Assuntos Comunitários Prof. Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento Prof. Sergio Bruni Decanos Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade (CTCH) Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS) Prof. Luiz Alencar Reis da Silva Mello (CTC) Prof. Hilton Augusto Koch (CCBM)

Sumário Introdução ............................................................................................................9 Apresentação dos Autores ...............................................................................17

PARTE I - Direito & Moral................................................. 19 CAPÍTULO I O encontro da filosofia analítica com a metáfora: a “Árvore Viva” da interpretação judicial.........................................................21 W.J. Waluchow

CAPÍTULO II Tentando fincar raízes em areia movediça: algumas dificuldades com a concepção de Waluchow sobre uma verdadeira moral da comunidade ..............49 Noel Struchiner e Fábio Perin Shecaira

CAPÍTULO III Respostas a partir da perspectiva do constitucionalismo da “Árvore Viva”....63 W.J. Waluchow

CAPÍTULO IV Devem os juízes considerar argumentos morais? .........................................71 :ĞīƌĞLJƌĂŶĚͲĂůůĂƌĚ

PARTE II - Direito, Psicologia & Experimentos ........... 107 CAPÍTULO V Direito & Emoções: uma proposta de cartografia .........................................109 EŽĞů^ƚƌƵĐŚŝŶĞƌĞZŽĚƌŝŐŽĚĞ^ŽƵnjĂdĂǀĂƌĞƐ

CAPÍTULO VI Aspectos filosóficos e psicológicos das punições: reunindo algumas peças do quebra-cabeça..............................................................................................137 EŽĞů^ƚƌƵĐŚŝŶĞƌĞWĞĚƌŽ,͘s͘ŚƌŝƐŵĂŶŶ

CAPÍTULO VII Como os juízes decidem os casos difíceis do direito? .................................171 EŽĞů^ƚƌƵĐŚŝŶĞƌĞDĂƌĐĞůŽ^ĂŶƟŶŝƌĂŶĚŽ

Introdução Este livro foi viabilizado com o apoio da FAPERJ, por meio do Programa Jovem Cientista do Nosso Estado (Edital de 2011). Na ocasião, foi submetido o projeto intitulado “Decidindo sobre como decidir: estudos sobre a tomada de decisão jurídica”, cuja pretensão maior era compreender como os chamados “casos difíceis do direito” são gerados e como são e devem ser solucionados. Trata-se de um tema que vem ocupando o nosso grupo de pesquisa, o Núcleo de Estudos sobre Razão, Direito e Sentimentos Morais (NERDS), há muitos anos. O livro traz uma pequena, mas representativa amostra das discussões travadas e questões investigadas durante o transcurso da vigência do fomento e mostra, também, a evolução nas preocupações do grupo. É importante ressaltar que antes de sermos NERDS éramos apenas NERD, ou Núcleo de Estudos sobre Razão e Direito. O “S”, para dar conta dos sentimentos morais, foi incluído mais recentemente, e pretendemos reconstruir brevemente nessa introdução o caminho que levou à alteração. Os estudos anteriores foram amplamente conduzidos recorrendo-se a autores de teoria do direito e filosofia da linguagem, mais especificamente, fazendo uso dos trabalhos de teóricos analíticos do direito (como Frederick Schauer, Wil Waluchow e Herbert Hart) e autores da filosofia da linguagem ordinária (como Wittgenstein, Waismann e Austin). Antes da inclusão do “S”, nossas discussões perpassavam as tradicionais questões da filosofia do direito a respeito das relações entre direito e moral, entrando em debates sobre jusnaturalismo, positivismo inclusivo, positivismo exclusivo, etc. Precisávamos entender melhor o que é o direito para identificar os seus problemas e, dessa forma, começar a pensar em soluções. Sempre entendemos que a tarefa conceitual deveria preceder a tarefa normativa. Mas realizávamos essa empreitada trabalhando exclusivamente dentro dos cânones estabelecidos pela teoria analítica do direito.

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Embora aqui não seja o lugar adequado para retomar essas discussões de forma aprofundada, cabe destacar uma maneira especialmente relevante de aproximação entre direito e moral explorada nos dias de hoje: as formulações normativas no campo jurídico evidentemente contêm muitos conceitos “moralmente carregados” – conceitos que são emprestados da ética, como podem ser a dignidade, a igualdade, a justiça, a equidade, entre outros. Os princípios jurídicos inscritos no texto constitucional tipicamente incorporam esses conceitos, que são vagos, e têm significados altamente disputados. Mas o ponto é que, quando o direito incorpora conceitos morais, as decisões judiciais passam a se aproximar das decisões morais1. Vejamos um exemplo de linguagem moralmente carregada no direito: a Constituição do Brasil proíbe o tratamento desumano ou degradante (Art. 5º, inc. III). Há, sem dúvida, casos claros de tratamento desumano ou degradante (a escravidão, por exemplo), mas há tantos outros casos cuja classificação nos elude. Para determinar se certos comportamentos são desumanos, há que se recorrer a alguma teoria moral sobre o tipo de vida a que todos temos direito como seres humanos. Não há dúvida de que haverá desacordo sobre a teoria correta. Indivíduos de diferentes convicções morais discordarão, por exemplo, sobre como formular uma legislação trabalhista que seja suficientemente humana, sobre a forma de tratamento que deve ser dispensada aos presidiários, sobre o tipo e a qualidade de serviços públicos que devem Além disso, mesmo quando não estamos lidando com normas que apresentam categorias moralmente carregadas, é possível que uma regra clara produza um resultado indesejado por ser insatisfatório do ponto de vista de algum outro princípio normativo ou ético e, então, surge a questão sobre se a resposta que deveria ser dada é aquela ditada pelo direito ou aquela determinada pela moral. Por último, todo sistema jurídico pode gerar situações nas quais, seja por causa da ausência de normas, de inconsistência normativa, ou por indeterminação linguística, o agente decisório deve empregar o seu poder discricionário, o que frequentemente envolve engajar-se em algum tipo de posicionamento moral. 1

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estar disponíveis, etc. O que parece mais significativo aqui é que ao usar uma linguagem moral vaga como essa, o constituinte convidou (intencionalmente ou não) à reflexão moral – algo que ele não teria feito caso tivesse definido melhor as noções de tratamento desumano e degradante. Mas se o uso de conceitos morais pelo direito arremessa o responsável pela tomada de decisão jurídica para dentro do terreno da moralidade, então torna-se importante saber como são realizados julgamentos morais. Sendo assim, é fundamental compreender a dinâmica cognitiva e emotiva envolvida na compreensão e aplicação de diretivas morais. As teorias que discutimos no passado pouco falavam sobre aspectos empíricos atrelados à psicologia da decisão e não abordaram o importante tema relativo ao papel exercido pelas emoções nas decisões morais e jurídicas. Temos tentado suprir essa lacuna. Como a implicação desses conceitos moralmente carregados no direito é obrigar os juízes a se engajarem em processos de julgamento moral, não podemos ignorar a larga história de pesquisa sobre psicologia moral, que tem muito a oferecer ao mais recente estudo sobre psicologia judicial. Embora o conhecimento científico sobre o julgamento moral tenha avançado muito, a estrutura cognitiva dos julgamentos judiciais e legais ainda é basicamente desconhecida. Em termos gerais, a investigação psicológica sobre cognição legal e judicial é ainda muito limitada. Esta aproximação empírica pode oferecer contribuições normativas passíveis de serem implementadas na prática do direito, já que apresentarão um grau apropriado de aderência com o que ocorre na realidade. Ao desvelar a base psicológica da cognição jurídica, tais pesquisas podem ajudar a melhorar tanto nossas posturas teóricas e modelos jurídicos, como nosso comportamento punitivo e práticas judiciais. Para entender o modo de funcionamento do julgamento moral, realizamos uma série de seminários com vários professores estrangeiros. Em dezembro de 2010, por meio de um edital

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PAEP, foi possível trazer filósofos e psicólogos para discutirem a questão da tomada de decisão moral e jurídica na PUC-Rio. Contamos com a participação de Fiery Cushman, Edouard Machery, Thomas Nadelhoffer, David Pizarro, e Jesse Prinz. Como resultado, organizou-se um livro intitulado Ética e Realidade Atual: Implicações da Abordagem Experimental, publicado pela Editora da PUC-Rio em 2011, reunindo contribuições dos participantes do evento. Esse evento consolidou a transformação do NERD em NERDS, já que percebemos que não seria possível mais abrir mão de uma abordagem interdisciplinar e empírica para avançar em nossas pesquisas. Para poder prescrever adequadamente, é fundamental conhecer a estrutura e a arquitetura cognitiva (racional e emotiva) dos agentes destinatários das prescrições: em outras palavras, conhecer a nós mesmos. Se não levamos em consideração como efetivamente tomamos as nossas decisões e nos comportamos, o risco é construir uma teoria de ética normativa (e também uma teoria normativa da adjudicação judicial) baseada em uma psicologia moral equivocada e alijada da prática. O filósofo moral (ou do direito) não deve ficar o tempo todo na poltrona, realizando uma filosofia de gabinete, um mero exercício conceitual que ignora o mundo ao seu redor. Filósofos do direito frequentemente querem prescrever como deve ser a prática jurídica de tal forma que ela possa ser considerada moralmente apta. Filósofos e teóricos do direito costumam, por exemplo, defender fortemente suas teorias normativas da adjudicação (na maior parte, teorias normativas baseadas nos trabalhos de Dworkin e Alexy) de forma idealizada e sem considerar dados importantes que pretendemos levantar. Porém, é salutar sempre manter em mente, ao construir uma teoria normativa ou sugerir reformas institucionais, o “Princípio do Realismo Psicológico Mínimo” de Owen Flanagan, que diz que devemos “ter certeza, quando construindo uma teoria moral ou projetando um ideal moral, que o caráter, o processamento da decisão e

o comportamento prescrito são possíveis, ou percebidos como possíveis, para criaturas como nós.” Além disso, reconhecendo os problemas mais recorrentes no direito, podemos discutir quem está mais apto para tomar que tipo de decisão e como essas decisões devem ser tomadas e começar a esboçar uma teoria de modelagem institucional. A inclusão do “S” no NERD(S) representa essa guinada empírica do grupo, agora mais interessado em questões de psicologia moral experimental e suas aplicações jurídicas. O livro reproduz essa guinada por meio de sua apresentação em duas partes: uma parte com artigos mais tradicionais e outra com artigos inscritos nessa virada empírica. O debate sobre as relações entre direito e moral está, sem dúvida alguma, fincado no centro da teoria do direito. Mas, neste livro, movemo-nos do centro deste campo em direção às suas fronteiras, para discutir temas ainda pouco mencionados, sobretudo na literatura jurídica brasileira. Tal empresa de exploração teórica nos levou a abordar primeiramente as contribuições da filosofia moral para o campo do direito e, por fim, desembocar nas recentes contribuições que a psicologia moral experimental tem fornecido sobre o funcionamento da mente humana. A primeira parte traz um diálogo entre expoentes estrangeiros e autores nacionais da teoria do direito. Nela são discutidas as implicações da moralidade para as atividades de interpretação e adjudicação das normas jurídicas, sobretudo daquelas de estatura constitucional. Esse diálogo estabelece a base conceitual a partir da qual se desenvolve a segunda parte do livro. Nesta outra, são incorporadas investigações de cunho empírico sobre o fenômeno moral. Partindo das últimas descobertas das ciências cognitivas a respeito de como os seres humanos decidem e pensam questões morais, são elaboradas algumas reflexões importantes para o direito, tais como as influências das emoções na elaboração legislativa e nas decisões judiciais, a maneira como decidimos sobre punições ou, ainda, como deliberamos e fundamentamos nossas posições diante de hard cases que envolvem dilemas morais.

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Mais detalhadamente, na primeira parte deste livro estão reunidos os debates travados por Wil Waluchow, Noel Struchiner e Fábio Shecaira nas páginas da revisa Problema, periódico de filosofia do direito organizado pelo Instituto de Investigaciones Jurídicas da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), e um artigo de Jeffrey Brand-Ballard. Todos os artigos são inéditos em português. Os capítulos dessa parte abordam, fazendo uso de ferramentas da teoria analítica do direito, alguns problemas concernentes à relação entre direito e moral. O primeiro capítulo apresenta um resumo das teses centrais de Wil Waluchow – publicadas em sua obra A Common Law Theory of Judicial Review: The Living Tree (Cambridge University Press, 2009). Neste capítulo Waluchow defende uma nova maneira de compreender cartas de direitos: não mais como sendo capazes de estabelecer pontos fixos de referência para as questões morais mais fundamentais de uma comunidade, mas sim como árvores vivas. Cartas de direitos, quando concebidas como árvores vivas, permitem construir uma teoria do controle de constitucionalidade que visa a atender, simultaneamente, aos imperativos de estabilidade e adaptabilidade, tão caros para H.LA. Hart. O capítulo dois apresenta a crítica de Struchiner e Shecaira à empreitada de Waluchow. Os autores se concentram na análise das possibilidades de orientação oferecidas pela noção de “moralidade da comunidade” concebida por Waluchow na obra A Common Law Theory of Judicial Review: The Living Tree. Essa noção, embora não apareça de forma desenvolvida no primeiro capítulo mencionado no parágrafo acima, é crucial para que Waluchow seja bem sucedido na sua tentativa de desenvolver um mecanismo de controle de constitucionalidade que apresente simultaneamente as virtudes da estabilidade e adaptabilidade. Ao final, concluem que, diante do pluralismo de valores das sociedades modernas, esta noção carece do grau de determinação necessário para orientar decisões judiciais e, assim, oferecer um grau satisfatório de estabilidade à teoria do controle de constitucionalidade.

O capítulo três contém a réplica de Waluchow. Nela o autor defende sua noção de “moralidade constitucional da comunidade” contra o ceticismo presente nas críticas formuladas por Struchiner e Shecaira. O capítulo quatro (o último da primeira parte do livro) traz as considerações de Brand-Ballard sobre os deveres de um juiz naquelas hipóteses de adjudicação que chama de “casos de resultado subótimo”: casos nos quais o direito, compreendido e aplicado de maneira apropriada, requer que os juízes alcancem um certo resultado, a despeito do fato de que argumentos morais convincentes podem ser oferecidos contra esse resultado. Ele questiona se nesses casos os juízes devem considerar argumentos morais cujas conclusões contradizem o direito, ou seja, se tais argumentos extrajurídicos devem receber algum peso. Alguns juristas insistiriam que os juízes não devem atribuir peso algum a tais argumentos (tese do solapamento), mas Brand-Ballard discorda. A segunda parte deste livro representa uma guinada em direção à investigação empírica como suporte das análises jurídicas. Partindo de investigações descritivas sobre o funcionamento da moralidade, desenvolvidas sobretudo no âmbito da psicologia experimental, os autores traçam reflexões sobre temas de teoria do direito. Todos os capítulos desta parte representam parcerias desenvolvidas no âmbito do grupo de pesquisa NERDS – Núcleo de Estudo sobre Razão, Direito e Sentimentos Morais, liderado pelo professor Noel Struchiner na PUC-Rio. O capítulo cinco, escrito por Struchiner e Tavares, traz uma proposta de mapeamento conceitual de um subcampo efervescente na teoria do direito, dedicado à análise das interações entre direito e emoções. Esta área de estudo, embora recente no Brasil, já apresenta significativo grau de desenvolvimento e complexidade, atraindo interesse cada vez maior da comunidade jusfilosófica mundial, conforme testemunha a escolha deste tema como eixo central do congresso internacional que será realizado no ano de 2015 em Washington, pela Associação Internacional de Filo-

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sofia do Direito e Filosofia Social – IVR. O capítulo pretende reduzir essa complexidade e guiar o leitor num primeiro contato com esta temática inovadora. O capítulo seis, de Struchiner e Chrismann, trata de algumas repercussões dos mecanismos psicológicos ligados à aplicação e ao recebimento de sanções na esfera do direito. Afirma, em síntese, que a filosofia do direito deve fazer um esforço para integrar diferentes informações sobre as punições, sejam oriundas de investigações empíricas ou conceituais, para fornecer uma explicação mais adequada do fenômeno jurídico e para construir teorias normativas mais factíveis. Finalmente, o capítulo sete aborda o tema dos casos difíceis do direito a partir de uma perspectiva descritiva e realista. Valendo-se principalmente da teoria de Jonathan Haidt sobre o funcionamento intuitivo e social da atividade de realização de juízos morais, Struchiner e Brando enfatizam a utilidade da pesquisa empírica para compreensão dos processos de tomada de decisão jurídica, mormente no que tange aos casos difíceis moralmente carregados. Com este livro, espera-se renovar um pouco a área de filosofia/ teoria analítica do direito, que é a área à qual sempre nos dedicamos. Acreditamos que a maneira de evitar a estagnação em certas áreas é olhar um pouco para áreas afins e realizar pesquisas com abordagens múltiplas, oriundas de diversas disciplinas. Espera-se, com isso, equacionar antigos problemas da teoria do direito por um prisma inovador. Na presente obra, pretendemos recorrer principalmente aos estudos de psicologia moral e filosofia moral experimental. Convidamos os leitores para seguir o percurso proposto pelos autores desta coletânea para conhecer as instigantes questões que estão nas fronteiras da teoria jurídica contemporânea.

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Noel Struchiner e Rodrigo de Souza Tavares

Apresentação dos Autores Noel Struchiner (Organizador e autor) é Professor dos Programas de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia na mesma instituição. Também é Coordenador do Núcleo de Estudos sobre Razão, Direito e Sentimentos Morais (NERDS) e do Núcleo de Ética da PUC-Rio (ERA-Ética e Realidade Atual). É bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ) e bolsista de Produtividade em Pesquisa (CNPq). Possui graduação em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1998), mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2001) e doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2005) com período sanduíche na Universidade de Harvard (2004). Foi pesquisador visitante na Universidade de Brown em 2012 no Departamento de Ciências Cognitivas, Linguística e Psicologia. Rodrigo de Souza Tavares (Organizador e autor) é Professor Adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Mestre em Direito, Estado e Sociedade pela UGF (2008), e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Wil Waluchow (Autor) é Professor do Departamento de Filosofia da McMaster University, Senator William McMaster Chair in Constitutional Studies. Também é membro adjunto do Graduate Faculty of Osgoode Hall Law School, Toronto. Possui bacharelado (B.A.) e mestrado (M.A.) em filosofia pela University of Western Ontario (Huron University College) e doutorado (Ph. D.) em filosofia do direito pela Universidade de Oxford, onde estudou sob a orientação de Herbert H. L. A. Hart.

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Fábio Perin Shecaira (Autor) é Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (IFCS, UFRJ). Doutor em filosofia (McMaster University, estágio doutoral em Harvard Law School). Mestre em filosofia (UFRJ). Jeffrey Brand-Ballard (Autor) é Professor Associado de Filosofia da Columbian College of Arts & Sciences da George Washington University, DC. Também faz parte do quadro de docentes da Trachtenberg School of Public Policy and Public Administration Faculty na mesma instituição. Possui mestrado (M.A.) e doutorado (Ph. D.) pela Universidade de Michigan – Ann Arbor – e Doutorado em Direito (J.D.) pela Faculdade de Direito da Universidade de Michigan. Pedro Henrique Veiga Chrismann (Autor) é doutorando do programa de Teoria do Estado e Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pesquisador visitante na Brown University. Professor Substituto do Departamento de Teoria do Direito da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Marcelo Santini Brando (Autor) é Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

PARTE I Direito & Moral

CAPÍTULO I 1GPEQPVTQFCſNQUQſCCPCNÈVKECEQOC OGV¶HQTC #őTXQTG8KXCŒFCKPVGTRTGVCÁºQLWFKEKCN* W.J. Waluchow**

Seção I: Cartas de direitos e as circunstâncias da política

Cartas constitucionais (Charters) e declarações de direitos (Bills of Rights) são normalmente anunciadas como algo bom1. Elas são geralmente aplaudidas pelas proteções que supostamente oferecem a minorias e indivíduos vulneráveis, e pela sua contribuição para a defesa de direitos liberais democráticos fundamentais. Mas as cartas têm quem as detratem. Alguns críticos argumentam que as cartas não são capazes de cumprir a função que lhes atribuem seus defensores, e dizem também que as cartas são moral e politicamente censuráveis. Neste artigo, eu respondo algumas das objeções mais sérias dos críticos, desafiando a própria concepção das cartas e das suas aspirações que parece ser assumida pelos críticos – e que também é assumida por aqueles que veem as cartas como coisas boas, um grupo que chamarei de “Defensores”2. O * Traduzido por Bernardo Abreu de Medeiros, Janaina Roland Matida e Fábio Perin Shecaira. O presente trabalho foi originalmente apresentado na PUC-Rio. Agradecemos ao Consulado Geral do Canadá por viabilizar a visita do Prof. Waluchow. ** “Senator William McMaster Chair in Constitutional Studies”, Professor do Departamento de Filosofia da McMaster University. 1 Nas linhas que seguem, eu farei referência apenas a cartas (Charters), mas tudo o que eu disser sobre elas aplica-se igualmente a qualquer outro instrumento constitucional escrito (por exemplo, a Constituição da Espanha) que reconheça direitos fundamentais de moralidade política. 2 Daqui em diante, refiro-me a esses indivíduos como “Defensores”, embora queira deixar claro que essa classe de indivíduos inclui uma variedade de auto-

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pressuposto compartilhado por muitos Críticos e Defensores é que as cartas pretendem fornecer pontos fixos de acordo e compromissos prévios que imponham limites morais apropriados ao poder do governo. Os Defensores argumentam que, além de possíveis, esses pontos fixos e estáveis também são moral e politicamente desejáveis. Os Críticos, como eu disse há pouco, desafiam ambas as afirmações. Por exemplo, eles argumentam que o acordo e os compromissos prévios tipicamente pressupostos pelos Defensores não podem existir naquilo que Jeremy Waldron chamou de “circunstâncias da política”. Essas circunstâncias consistem na “necessidade que os membros de [sociedades pluralistas] sentem por uma estrutura, decisão ou forma comum de agir em relação a algum assunto, mesmo diante do desacordo sobre qual deveria ser aquela estrutura, decisão ou forma de agir” (Waldron, 1999, p. 102). Esse desacordo abrange a discussão sobre se devemos adotar uma carta, que direitos incluir nela, e como esses direitos devem ser interpretados e aplicados em casos concretos. De acordo com Waldron, “tratando-se de escolhas constitucionais, parece que tudo está sujeito a desacordo” (ibid., p. 295). Agora, se as pessoas em sociedades pluralistas não conseguem concordar a respeito do conteúdo dos limites morais sacramentados em suas cartas de direitos, não faz sentido dizer que elas podem comprometer-se previamente com esses limites como se fossem pontos fixos e estáveis de limitação constitucional dentro dos quais espera-se que o poder do governo seja exercido. E se as pessoas não são capazes de fazer tais compromissos antecipados, então também não são possíveis os outros benefícios e proteções supostamente gerados pelas cartas – e nós, portanto, não temos uma boa razão para adotá-las. Se essa ideia comum a respeito da função das cartas for aceita, então creio que a partida acabou e os Críticos podem

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res que argumentam em defesa das cartas de maneiras diferentes. Defensores na literatura filosófica incluem Dworkin, Rawls e Samuel Freeman. Aqueles que, como Waldron, argumentam contra práticas de controle de constitucionalidade pelo judiciário (judicial review) serão chamados de “Críticos”, embora também não componham um grupo inteiramente uniforme.

ser declarados vencedores – um resultado infeliz para aqueles que, como eu, ainda acreditam que as cartas são coisas boas para sociedades liberais democráticas. Portanto, em vez de enfrentar os argumentos dos Críticos dentro do quadro teórico estabelecido pela concepção comum, vou delinear algumas razões para adotar um quadro alternativo de acordo com o qual as cartas não aspiram – ou pelo menos não precisam aspirar – ao estabelecimento de pontos fixos de acordo e de compromisso prévio; e, o que é importante, elas não precisam pressupor um nível injustificado de confiança na correção de nossos juízos sobre direitos morais. Na verdade, as cartas representam uma mistura de acordo e compromisso prévio muito modestos com uma medida considerável de cautela, humildade e, se meus argumentos estiverem corretos, sabedoria. Longe de se basear na noção duvidosa de que autores constitucionais têm respostas certas para os tipos de questões controvertidas de moralidade política que surgem na interpretação das cartas de direitos – respostas que lhes cabe sacramentar e impor sobre nós – minha alternativa deriva precisamente do oposto: do reconhecimento de que eles – e nós – não temos, na verdade, todas as respostas para essas perguntas sobre moralidade política, e que seria sábio projetar as nossas instituições políticas e legais sem ignorar esse aspecto da condição em que nos encontramos. Se enxergarmos as cartas sob essa nova luz – se, isto é, adotarmos uma espécie de revolução copernicana na forma como pensamos a seu respeito – poderemos começar a entender melhor não só por que as cartas podem nos ser úteis, mas também perceberemos uma forma clara de responder aos argumentos mais poderosos dos Críticos. Pelo menos esse é o meu argumento neste artigo – e no meu livro recente, A Common Law Theory of Judicial Review: The Living Tree (2007), que contém uma defesa muito mais detalhada e elaborada dessas afirmações.

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Seção II: Os argumentos dos críticos

1. O argumento da democracia

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Um dos argumentos mais populares contra as cartas de direitos é que elas são incompatíveis com os princípios da democracia. As cartas limitam de maneira significativa as escolhas que estariam abertas aos órgãos legislativos, e esses limites são muitas vezes aplicados por juízes que não respondem a um eleitorado, e que alcançam a sua posição por meio de nomeação. Mas esse arranjo, argumenta-se, só serve para frustrar a vontade do povo, que se expressa através dos seus representantes eleitos. Não basta responder - como já fizeram alguns juízes em certas ocasiões – que o próprio “povo” optou por impor esses limites judicialmente aplicáveis sobre seu poder democrático, e a razão é simples. Com a possível exceção de cartas muito recentes, esses limites foram determinados há muitos anos, e isso leva a uma pergunta difícil: Por que deve “o povo de hoje” ter suas escolhas atuais limitadas por aquilo que “o povo de ontem” teria considerado limites apropriados para serem fixados em uma constituição? Essa pergunta é particularmente desafiadora à luz da consideração de que não costuma ser fácil modificar no futuro os limites entrincheirados em constituições. Isso parece absolutamente incompatível com a noção de autogoverno contínuo que está no centro dos ideais democráticos. Em vez de sermos escravos de um ditador militar, um rei ou um déspota, agora somo escravos de gerações anteriores, e de juízes não-eleitos, a quem pedimos que decidam questões fundamentais de moralidade política em nosso lugar. De acordo com os Críticos, uma carta aplicada judicialmente é uma admissão depreciativa de que é melhor para nós, as pessoas de hoje, deixar que as gerações anteriores, e uma pequena elite judicial, tomem por nós as nossas decisões sobre moralidade política. Ainda que outras coisas possam ser ditas em defesa desse arranjo, não há como negar que ele não é nada democrático.

2. Juízes como reis platônicos Uma segunda objeção, relacionada à primeira, é que a adoção de cartas de direitos se baseia na falsa premissa de que juízes são por algum motivo mais hábeis do que legisladores e cidadãos na forma como lidam com os assuntos políticos e morais controvertidos e profundamente complexos que surgem tipicamente na interpretação de uma carta de direitos. Mas não há absolutamente nenhuma razão para aceitar essa premissa, dizem os Críticos. Juízes não são melhores do que ninguém na determinação do conteúdo dos pontos fixos de compromisso moral prévio que uma carta supostamente representa. Embora sejam versados em direito, juízes não são, em nenhum sentido, autoridades morais. Também não são especialistas nos vários campos de política social com que lida tipicamente o governo. Eles certamente não exibem um grau de perspicácia superior àquele das autoridades governamentais cujas ações eles são chamados a julgar. Então por que devemos solicitar que os juízes decidam as questões difíceis e profundas de moralidade política que as cartas de direitos suscitam?

3. A ameaça de dissenso radical: Ulisses e o mastro Ao explicar a natureza e o apelo das cartas de direitos, Defensores com inclinações filosóficas frequentemente se referem a uma analogia com a decisão de Ulisses, que quis ser amarrado ao mastro do seu navio. Assim como Ulisses sabe que enlouquecerá quando ouvir as sereias, nós sabemos que em algum momento seremos seduzidos pelas sereias do egoísmo, do preconceito, do medo, do ódio ou da simples cegueira moral, e seremos levados, na política cotidiana, a violar os direitos de concidadãos vulneráveis. E assim como Ulisses sabe que ele está racionalmente justificado em estabelecer, antecipadamente, um limite à sua liberdade de escolha e ação futura, nós, enquanto um povo, sabemos que estamos racionalmente justificados em nos atar ao mastro dos direitos constitucionais fixos e da sua aplicação, em nosso nome, pelos ju-

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ízes3. De acordo com Waldron, o dissenso radical que existe nas circunstâncias da política tira toda a força dessa analogia. Mesmo que haja respostas corretas a questões sobre direitos morais, nós quase nunca concordamos a seu respeito. É, portanto, pura loucura acreditar que poderíamos em algum momento concordar sobre o que significam as cláusulas das cartas de direitos e sobre os limites morais que elas supostamente impõem. Mas se não conseguimos concordar sobre os limites relevantes, não podemos nos comprometer antecipadamente com eles e com sua aplicação pelos juízes. Como podemos nos amarrar ao mastro de direitos morais fixos se não sabemos sequer onde encontrá-lo?

4. Obsessão com palavras Ainda outra objeção de Waldron a cartas escritas é que as palavras escolhidas para descrever os limites morais apropriados ao poder do governo (por exemplo, liberdade de fala versus liberdade de expressão) inevitavelmente impõem restrições artificiais sobre os debates acerca de direitos, limitando a nossa habilidade para lidar com circunstâncias e visões morais em transformação (Waldron, 1999, p. 201). Lidar com a transformação é mais fácil quando permitimos que a evolução dos nossos entendimentos a respeito de direitos morais seja refletida em princípios e precedentes mais flexíveis e verbalmente menos restritos, como os princípios e precedentes do common law. E é “ainda mais fácil se os direitos tomarem a forma de ‘entendimentos convencionais’ endossados pela comunidade política de maneira geral, como eles têm tomado no Reino Unido há muitos anos” (ibid., p. 221). Ao adotarmos uma estratégia alternativa, criamos a possibilidade de um discurso público menos preocupado com as fórmulas verbais e as obsessões semânticas que são características de boa parte da interpretação constitucional nos Estados Unidos, e nos fazemos mais capazes de articular as questões de substância moral que são realmente importantes. Precisamos, escreve Waldron, de me3

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A formulação clássica desse argumento se encontra em Jon Elster (1984).

canismos institucionais para a proteção de direitos que estejam “livres do verbalismo obsessivo de uma carta escrita específica”. Precisamos, em outras palavras, simplesmente deixar de confiar nas cartas como meios para estabelecer limites apropriados ao poder do governo (ibid., p. 221). Seção III: A Árvore Viva e a concepção do common law

Esses são apenas alguns dos argumentos mais comuns contra as cartas de direitos e contra os argumentos mais comuns dos Defensores. Em cada caso, há repostas possíveis, algumas das quais já figuram na considerável literatura gerada pela crítica formidável de Waldron4. Mas, em vez de investir nessas respostas, gostaria de me concentrar na premissa comum que eu destaquei logo no início. Considere novamente todas as objeções que foram descritas. Em cada caso, a crítica se baseia na premissa crucial de que cartas de direitos pretendem incorporar pontos fixos de acordo e compromisso antecipado que servem para limitar o poder do governo. Com essa premissa implícita no lugar, o Crítico segue argumentando que as cartas ou falham em realizar essa aspiração nas circunstâncias da política, ou não merecem nossa fidelidade em uma democracia liberal democrática. O suposto fato do dissenso radical apoia a primeira conclusão, a saber, que as cartas simplesmente não são capazes de realizar a tarefa proposta pelos Defensores. Se, por alguma razão, continuarmos a insistir que as cartas realmente conseguem incorporar os ilusórios pontos fixos – talvez porque pensemos que eles podem ser estabelecidos através de fatores como a “intenção original” ou o “entendimento original” - então seremos levados a sérias preocupações relativas ao seu pedigree democrático, e também seremos levados a fazer aquela admissão ofensiva - de que é melhor deixar Ver, por exemplo, Thomas Christiano, 2000, pp. 513 – 543; David Estlund, 2000, pp. 111 – 128; e Aileen Kavanagh, 2003, pp. 451 - 486. E ver o meu A Common Law Theory of Judicial Review: The Living Tree. 4

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muitas das nossas decisões mais fundamentais sobre moralidade política sob a responsabilidade de poucos juízes cuja função é aplicar limites impostos por gerações anteriores à nossa soberania democrática. Se aceitarmos, portanto, a premissa comum, parece que temos motivos mais do que suficientes para rejeitar as cartas de direitos. No entanto, como alguém que teima em acreditar que uma carta pode realmente ser uma coisa boa para uma sociedade liberal democrática, não consigo deixar de imaginar que a sua rejeição equivalha a jogar fora o bebê junto com a água do banho5*. Para determinar se esse é o caso, proponho que consideremos pelo menos dois fatores: (a) se concordamos com a premissa comum; e (b) se a carta particular que escolhemos adotar e as práticas particulares de interpretação que usamos para aplicá-la são projetadas para refletir essa premissa. Agora quero mostrar que há pouca razão para fazer qualquer uma dessas duas coisas. Meu argumento se inspira na análise penetrante que H.L.A. Hart ofereceu em The Concept of Law sobre os custos e benefícios associados ao estado de direito (rule of law) – uma análise que vou considerar agora. De acordo com Hart, sempre que contemplamos formas jurídicas de regulação social, enfrentamos duas necessidades que competem entre si. Por um lado, precisamos de regras gerais que possam ser facilmente identificadas antecipadamente, e prontamente aplicadas sem a feitura de novos juízos e sem a consideração de valores subjacentes. Por outro lado, precisamos deixar espaço em alguns casos, no momento de aplicação das regras, para apelar a tais fatores. Isso se explica sobretudo porque situações imprevistas inevitavelmente surgem, e elas frequentemente revelam temas e questões que não poderíamos ter apreciado (N. do T.) Essa é a tradução literal da seguinte expressão idiomática: “to throw the baby out with the bath water”. A expressão é usada para sugerir que, no afã de corrigir os problemas de uma teoria ou de uma prática, também está sendo eliminado aquilo que a teoria ou a prática tem de positivo. 5 *

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e resolvido de forma inteligente antes de considerá-las. Fatores familiares como a ignorância sobre fatos importantes, a indeterminação dos nossos próprios objetivos, tecnologias em evolução e assim por diante, todos se combinam para criar a possibilidade sempre presente de que regras bem formuladas levarão em alguns casos, ao serem aplicadas, a resultados absurdos ou indesejáveis em algum sentido. A busca de regras tão precisas a ponto de não deixar, no momento de aplicação, nenhum espaço para a ponderação e a discricionariedade quase sempre representa um ideal que não merece ser endossado. Felizmente, temos maneiras de evitar as armadilhas que acompanham esse tipo de formalismo jurídico rigoroso. Por exemplo, aquilo que Hart chama de “textura aberta” da linguagem frequentemente permite certa margem de liberdade. Às vezes essa margem surge por acidente, como acontece quando um caso difícil cai por acaso sob a “penumbra de incerteza” de Hart e pode-se aproveitar esse fato para decidir com base nos méritos do caso particular, sem preocupação (indevida) com a letra da lei. Mas, o que talvez seja mais importante, a textura aberta pode com frequência ser usada propositada e antecipadamente na feitura de regras. Em alguns cenários, podemos prever que surgirão casos em que um compromisso antecipado firme, mas cego, levaria a resultados legais insensatos ou moralmente problemáticos por algum outro motivo. Podemos saber desse fato geral, mesmo que não possamos prever os resultados indesejados específicos que provavelmente surgirão6. Nesse tipo de cenário, legisladores às vezes usarão termos como “razoável”, “justo ” (fair), “devido cuidado” e assim por diante. Tais regras oferecem alguma medida de orientação prévia - devemos sempre tentar ser razoáveis, justos, tomar o devido cuidado etc. - ao mesmo tempo em que permitem que o cidadão e o juiz, Pense em cenários que envolvam o uso de tecnologias em rápida evolução, como a internet. Ou cenários em que fatores individualmente significativos provavelmente estarão presentes na maioria dos casos regulados por uma regra - por exemplo, situações envolvendo o uso da força para repelir aparentes ameaças à pessoa e à propriedade. 6

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mais tarde chamados a aplicar a norma, exercitem juízo crítico para evitar os resultados claramente indesejáveis que poderiam ser produzidos por uma regra de textura mais fechada. Pense, por exemplo, no direito anglo-americano sobre responsabilidade civil não-contratual ou aquiliana (torts), onde o conceito poroso de “razoabilidade” exerce um papel central. Aqui, as lições de Hart foram bem compreendidas, ainda que nem sempre devidamente apreciadas. No entanto, essas mesmas lições são amplamente ignoradas nos debates entre Críticos e Defensores. Meu objetivo é retificar essa deficiência teórica apelando às ideias de Hart. O resultado é uma teoria muito diferente acerca do papel que as cartas de direitos podem exercer para nós, uma teoria que está longe de ser ameaçada pelas circunstâncias da política. Pelo contrário, as cartas – ou pelo menos algumas cartas, interpretadas e aplicadas de maneira correta – podem ser vistas como uma resposta muito sensata a tais circunstâncias. Minha teoria se inspira não só em Hart, mas em uma ideia articulada há muito por Lorde Sankey7* no caso Edwards8, um marco no direito constitucional canadense, julgado em 1930 pelo Conselho Privado da Inglaterra, e hoje conhecido como “O Caso das Pessoas”. Edwards é famoso por duas razões: primeiro, ele estabeleceu que as mulheres são realmente “pessoas” para fins de nomeação ao senado canadense; segundo, ele introduziu no direito constitucional canadense a metáfora da “árvore viva”, uma ideia repetidamente endossada pelas cortes canadenses, e que possivelmente explica características centrais da constituição relativamente nova do Canadá e a abordagem típica das cortes canadenses em relação à sua aplicação e desenvolvimento9. Par(N. do T.) “Lorde” é o título que se dá no Reino Unido aos membros da câmara alta do parlamento, a Câmara dos Lordes. Esse órgão executa historicamente tanto funções judiciais quanto legislativas. 8 Edwards v. A.-G. Canada [1930] A.C., p. 124. 9 Ver, por exemplo, A.-G. Que. V. Blaikie [1979] 2S.C.R. 1016, p. 1029 (sobre direitos relativos ao idioma); A.-G. B.C. v. Canada Trust Co. [1980] 2 S.C.R. 466, p. 478 (sobre o poder de taxar); Law Society of Upper Canada v. 7 *

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ticularmente relevante é a seção 1, que autoriza limitações razoáveis dos direitos constitucionais, sob a condição de que tais limitações sejam prescritas legalmente e que sejam “demonstravelmente justificadas em uma sociedade livre e democrática”10. O que é demonstravelmente justificado parece depender, de acordo com os tribunais canadenses, de um contexto social, político e jurídico em contínua transformação – quer dizer, de um contexto que se assemelha mais com uma árvore viva do que com uma paisagem estática. De acordo com essa concepção, direitos fixados constitucionalmente não aspiram de maneira alguma a criar pontos estáveis de acordo e compromisso antecipado. Pelo contrário, uma carta de direitos é, como disse o Conselho Privado em Edwards, “uma árvore viva capaz de crescimento e expansão dentro dos seus limites naturais”11. Ela é, nesse sentido, análoga à doutrina da responsabilidade aquiliana no common law e aos seus conceitos centrais, conceitos como “previsibilidade razoável” e “devido cuidado”. Lembre-se agora da afirmação de Waldron de que, com cartas escritas, perdemos “nossa habilidade para desenvolver um discurso político livre e flexível”. A concepção da árvore viva procura mitigar essa perda ao combinar estabilidade com uma boa dose de adaptabilidade. Temos um documento escrito que sagra direitos constitucionais importantes, mas não de uma forma que os paralisa para sempre. Em vez disso, permite-se que os direitos em questão desenvolvam-se na medida em que os contextos mudam e que vários casos de sua aplicação surjam e sejam publicamente discutidos, debatidos e enfim julgados em lides constitucionais. Se essa concepção da árvore viva de fato for viável – e ela parece ser a opção usada no Canadá há algum Shapinker [1984] 1 S.C.R. 357, p. 365 (sobre o direito de ir e vir). A ideia da constituição como uma “árvore viva” não é, obviamente, peculiar ao Canadá. Em outros lugares a ideia é expressa em teorias que falam simplesmente de uma “constituição viva”, capaz de “crescimento orgânico”. 10 Ver Ato Constitucional (Constitution Act), 1982, Parte I, seção 1, que pode ser encontrada em http://laws.justice.gc.ca/en/const/index.html. 11 Edwards, p. 136.

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tempo –, então nossa escolha não é simplesmente entre implementar uma carta de direitos ou rejeitá-la inteiramente. Também podemos escolher o tipo de carta que queremos adotar e a abordagem que desejemos empregar quanto à sua compreensão, interpretação e implementação. Ademais, escolhendo a concepção da árvore viva, podemos colher muitos dos benefícios pelos quais as cartas são celebradas, ao mesmo tempo em que evitamos quase todas as potenciais desvantagens que os Críticos corretamente enfatizam. Assim, tratar as cartas como “árvores vivas” gera um tipo de flexibilidade no momento de aplicação que nos permite acomodar a segunda das duas necessidades fundamentais de Hart. Mas o que dizer da primeira necessidade de Hart, de regras que possam ser aplicadas com segurança sem apelo a considerações políticas e valores subjacentes? Como pode uma carta viva ser compatibilizada com esse requisito fundamental do estado de direito? Para encontrar um resposta plausível, basta olhar para o common law – um sistema de regulação legal que tem sido, historicamente, mais ou menos capaz de satisfazer ambas as exigências de Hart12. Apesar da sua sabida adaptabilidade, é importante que não subestimemos a habilidade do common law para lidar com a necessidade de estabilidade e orientação antecipada. Aqui está o que Hart disse a respeito: “Apesar [da capacidade que as cortes têm de distinguir e revogar precedentes]13*, o resultado Ao tomar o common law como modelo, eu não pretendo sugerir que só ele é capaz de lidar com as duas necessidades de Hart. Estou certo de que aquilo que digo aqui se aplica em larga escala a sistemas de civil law também. Atenho-me a sistemas de common law apenas porque é neles que têm ocorrido os debates examinados aqui. 13 * (N. do T.) Os juristas anglo-americanos distinguem duas formas de se evitar a aplicação de um precedente a um caso atual. Um precedente é revogado quando um tribunal o considera incorreto e, portanto, inaplicável de maneira geral, ou inválido. Um precedente é distinguido quando o tribunal argumenta que o caso atual, apesar de suas semelhanças com o caso anterior que deu origem ao precedente, é suficientemente diferente do caso anterior para que o precedente (que continua válido) não se aplique. 12

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do sistema inglês de precedentes tem sido o de produzir, pelo seu uso, um vasto número de regras, de maior ou menor importância, que são tão determinadas quanto qualquer dispositivo de lei” (Hart, 1994, p. 135). O grau de rigidez que Hart atribui ao common law inglês já foi desafiado14. E mesmo que Hart esteja correto, ainda é verdade que o common law pode se dedicar muito mais à busca da adaptabilidade do que Hart reconhece. Mas seja qual for a combinação de estabilidade e adaptabilidade que um sistema legal incorpora, a questão é que o common law tem historicamente combinado essas duas propriedades de maneira mais ou menos bem sucedida. Lembre-se da responsabilidade aquiliana. Temos, portanto, razão para usar o common law como um modelo que ilustra a função que as cartas de direitos podem desempenhar na limitação do poder do governo. Se fizermos isso, teremos à nossa disposição uma forma de pensar sobre as cartas que nos permite evitar muitas das objeções mais poderosas dos Críticos. Podemos entender uma carta como criando a base para um tipo de jurisprudência15* que lidará com os direitos constitucionais à maneira do common law16 . De fato, podemos ver uma carta, concretamente, como um reconhecimento público dos seguintes pontos importantes: às vezes os atos do governo – vamos nos ater aqui aos atos legislativos – acabarão impreviVer A.W.B. Simpson, 1972, p. 1073. (N. do T.) O termo “jurisprudência” (jurisprudence) é usado aqui em um sentido um pouco mais amplo do que aquele que prevalece no Brasil. Não se trata simplesmente de uma norma ou de um conjunto de normas estabelecidas por decisões judiciais reiteradas, mas de uma maneira especial de se interpretar e aplicar o direito, de uma metodologia para a tomada de decisões judiciais. 16 A falta de espaço impede uma investigação completa dessa questão, mas parece que a interpretação e aplicação de cartas de direitos nos Estados Unidos e no Canadá seguem de fato o modelo do common law. Como indica Schauer em uma resenha, “eu incluo um exemplo constitucional apenas para lembrar o leitor que a aplicação de direito constitucional na Suprema Corte dos Estados Unidos parece um caso central da metodologia do common law “ (Schauer, 1989). 14

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sivelmente por violar um ou mais dos direitos fundamentais de moralidade política, ou pelo menos assim parecerá a muitas pessoas boas. Não podemos sempre determinar, antecipadamente, quando exatamente isso ocorrerá, pelas razões que Hart descreve, e pela razão igualmente importante de que nunca entendemos perfeitamente a natureza, o alcance e as implicações concretas de direitos morais fundamentais. Certamente sabemos que atos do governo às vezes violarão direitos morais importantes em casos imprevistos, mas não podemos dizer, antecipadamente, precisamente quando e como isso ocorrerá. As cartas, sugiro, podem (entre outras coisas, é claro) ser vistas como representando tanto o reconhecimento público desses fatos quanto uma promessa de discussão das questões morais relevantes quando elas aparecerem mais tarde em casos concretos. As cartas não podem fornecer antecipadamente todas as respostas que buscamos – assim como a doutrina jurídica da negligência não pode sempre nos dizer com quanto cuidado devemos proceder em relação ao nosso vizinho. Mas as cartas constituem no mínimo uma promessa de lidar com as questões certas nas horas certas – isto é, quando é razoável acreditar que direitos morais importantes estão sob a ameaça da ação do governo. Gostaria de considerar agora algumas vantagens trazidas por essa concepção das cartas de direitos, e de concluir com algumas ideias breves sobre a forma como ela nos permite lidar com as preocupações mais urgentes dos Críticos. Seção IV: Algumas vantagens

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Como foi indicado no início, diz-se com frequência que as cartas protegem as minorias contra as forças majoritárias presentes na política democrática. Há quem pense que as cartas incorporam os “compromissos prévios e racionais” de uma comunidade contra essas forças, atando-a – e aos seus descendentes – ao mastro dos direitos fundamentais, que limitam o exercício válido do poder governamental, reflexo dos interesses da maio-

ria. Reconhecemos que há problemas sérios com essa imagem e que, portanto, ela precisa ser modificada. Mas não há razão para pensar que alguns dos seus detalhes essenciais não podem permanecer. Por exemplo, considere novamente a visão popular de que compromissos antecipados permitem que a “mão morta do passado” restrinja as nossas decisões hoje, ameaçando a própria noção de autogoverno contínuo. Há um pouco de verdade nesse ideia, visto que as cartas de fato fixam decisões anteriores sobre os direitos de moralidade política que merecem proteção constitucional como limites apropriados ao poder do governo. E mesmo que, para fins de prática constitucional, interpretem-se e apliquem-se esses direitos de acordo com um tipo de raciocínio inspirado no common law, a força dos precedentes terá de ser reconhecida. A mão morta do precedente pode ser tão limitadora quanto as mãos esqueléticas de autores constituintes há muito falecidos. Mas há uma série de fatores que podem compensar esse problema. Primeiro, há a possibilidade sempre presente de emenda constitucional, por mais difícil que seja, muitas vezes, reunir a vontade política e o consenso requeridos para o exercício desse poder. Segundo, embora haja muitas vezes desacordo profundo sobre o conteúdo preciso dos direitos sacramentados em uma carta, raro é o desacordo, mesmo entre gerações distintas, sobre a importância dos direitos escolhidos. Praticamente todos em sociedades democráticas contemporâneas concordam que os direitos à “igualdade”, “liberdade de expressão, “devido processo”, “liberdade de crença religiosa” e “justiça básica” mereceram ser incluídos nas várias cartas encontradas hoje pelo mundo. Uma pessoa razoável poderia desejar, se fosse possível refazer a carta, uma coleção de direitos um pouco diferente daquela que foi estabelecida na sua comunidade, mas poucas pessoas negariam a legitimidade da escolha que de fato foi feita17. Terceiro, não há Por exemplo, algumas pessoas no Canadá pensam que o “direito à propriedade” deveria ter sido incluído na Carta Canadense. Poucos acreditam, se é que alguém acredita, que isso torna a Carta ilegítima. 17

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razão para negar que uma carta possa ser projetada de uma forma que a força de decisões entrincheiradas seja mitigada. Pense novamente na cláusula sobre limitações razoáveis da seção 1, ou na forma deferente com que as cortes canadenses a aplicam em relação às decisões do Parlamento. Melhor ainda, pense na seção 33 da Carta Canadense, que autoriza o Parlamento e os órgãos legislativos provinciais a criar legislação sabidamente inconsistente com os direitos descritos na seção 2 ou nas seções 7-15 – ou para ser mais preciso, com a interpretação que as cortes fazem de algum desses direitos18. A seção 33 permite que as pessoas de hoje, através de legisladores eleitos, evitem, por um certo período de tempo, e com a possibilidade de renovação a cada cinco anos, uma interpretação judicial de pelo menos alguns dos compromissos antecipados que fazem parte da sua carta. Quarto, embora precedentes sempre limitem em alguma medida os tomadores de decisões do futuro, o common law sempre disponibiliza poderes que permitem que se esquivem das limitações aqueles juízes que empregam a concepção da árvore viva. Esses poderes são de vários tipos e há várias condições sob as quais podem ser exercidos. Mas nenhuma teoria sensata do raciocínio no common law diria que uma corte suprema contemporânea estaria impedida de revogar um precedente constitucional cuja utilidade e mérito Ver Ato Constitucional (Constitution Act), 1982, Parte I, seção 33, encontrada em http://laws.justice.gc.ca/en/const/index.html e contendo o seguinte: 33. (1) O Parlamento ou a legislatura de uma província pode declarar expressamente através de um Ato do Parlamento ou da legislatura, dependendo do caso, que um tal Ato ou disposição deve operar a despeito de uma disposição incluída na seção 2 ou entre as seções 7 e 15 desta Carta. (2) Um Ato ou disposição de um Ato em relação ao qual opera uma declaração feita de acordo com o que prescreve esta seção terá os efeitos que ela teria não fosse a disposição desta Carta a que se faz referência na declaração. (3) Uma declaração feita de acordo com a subseção (1) perderá seus efeitos cinco anos depois de entrar em vigor ou antes disso, de acordo com o que estiver especificado na declaração. (4) O Parlamento ou a legislatura de uma província pode tornar a decretar a declaração feita de acordo com a subseção (1). (5) A subseção (3) se aplica a um novo decreto feito de acordo com a subseção (4).

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moral a corte já não vê mais. Para ilustrar isso, considere o relativamente recente caso Labaye19, que lidava com os direitos constitucionais de uma casa de “swing” (troca de casais) em Montreal. Nessa decisão, a Suprema Corte abandonou o seu compromisso de décadas com o teste dos chamados “padrões de tolerância da comunidade” para a obscenidade e indecência, e colocou no seu lugar um teste baseado quase exclusivamente no princípio do dano, de John Stuart Mill. Como Labaye demonstra, mesmo cortes supremas não são avessas à revogação dos seus próprios precedentes – mesmo quando elas penam, como nesse caso, para caracterizar o que fazem como uma mera reafirmação de suas decisões anteriores. À luz de todas essas considerações, acredito que seja seguro concluir que, se a mão morta do passado nos restringe quando adotamos uma carta de direitos, ela não precisa fazê-lo de uma maneira que ameace seriamente a nossa autonomia e a nossa capacidade de nos governarmos a nós mesmos. Muito bem, as cartas podem ser flexíveis. Mas a pergunta de Waldron permanece: que motivo há para adotar uma carta, em vez de permitir que o discurso público, os debates legislativos e as decisões judiciais, “livres do verbalismo obsessivo de uma carta específica”, nos sirvam de veículo para a proteção de direitos? (Waldron, 1999, p. 221) Se a flexibilidade é tão importante, então por que não adotamos a opção mais flexível e rejeitamos as cartas inteiramente? Uma resposta, é claro, seria simplesmente que a opção de Waldron não é realmente mais flexível – ou pelo menos que ela não é necessariamente mais flexível. De fato, com as cartas estamos obrigados a formular nossos debates nos termos abstratos escolhidos para expressar seus compromissos. Americanos, por exemplo, têm de discutir liberdade de expressão em termos de “fala” e não de “expressão”. E às vezes isso resulta em debates um tanto incômodos. Mas esses revezes podem ser mitigados das várias formas descritas anteriormente, por exemplo, adotando uma abordagem análoga ao do common law para a 19

R. v. Labaye 2005 SCC 80.

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interpretação da carta, ou incluindo nela dispositivos como as seções 1 e 33 da Carta Canadense. Mas mesmo que nenhuma dessas escolhas seja feita, e que a carta escolhida tenha uma orientação mais absolutista, há meios de se atingir o nível desejado de flexibilidade. Tribunais americanos parecem ter conseguido, da sua própria maneira, alcançar basicamente os mesmos juízos sobre liberdade de fala que eles provavelmente teriam alcançado sob uma declaração de direitos que empregasse o termo mais amplo, “expressão”. Apenas aqueles obcecados com a ideia de que as cartas devem incorporar pontos fixos, estabelecidos de alguma forma pelo sentido literal e/ou original de uma palavra como “fala”, rejeitariam a ideia de que o que mais importa são os valores de moralidade política, constitucionalmente reconhecidos, que estão por trás da expressão linguística escolhida. Nesse caso específico, trata-se de valores individuais e políticos que pedem o reconhecimento de uma variedade ampla, mas não ilimitada, de liberdades expressivas, que têm a liberdade de fala oral e escrita como meras espécies. Em suma, as palavras limitam, mas não necessariamente a ponto de fazer com que os direitos e valores morais subjacentes sejam ignorados ou sacrificados. E se, em algum momento, os limites linguísticos tornarem-se excessivamente restritivos, sempre haverá, é claro, a opção da emenda constitucional. Logo, cartas de direitos não exigem necessariamente que a comunidade dê “um jeito de formular... princípios a partir de fragmentos de um texto sagrado, em um exercício tendencioso de caligrafia constitucional” (Waldron, 1999, p. 221). Mas, mais uma vez, podemos fazer a pergunta sensata: por que correr qualquer risco, por menor que seja, de envolver-se nesse tipo insatisfatório de prática constitucional? Por que não abandonamos simplesmente as cartas de direitos e deixamos que os tribunais e o legislativo, em reação à evolução dos sentimentos da comunidade, desenvolvam uma jurisprudência de direitos flexível, assim como as cortes fizeram no desenvolvimento do conceito jurídico

de negligência? Uma razão importante é que, apesar dos perigos que há em permitir que palavras nos limitem de maneiras indesejáveis, Hart estava certo quando insistiu que normalmente precisamos combinar a flexibilidade desejada com um grau de estabilidade que seja apropriado no contexto. Cartas, afinal, são instrumentos constitucionais cuja função primária é estabelecer e entrincheirar direitos fundamentais de moralidade política contra exercícios injustificados de poder pelo governo. As cartas são capazes de solidificar as limitações e os compromissos que elas representam de maneiras que nem sempre são possíveis com instrumentos menos formais. Isso se deve, em parte, ao fato de que uma carta escrita tende a ocupar um lugar mais seguro no espaço público do que outros veículos para a proteção de direitos. Direitos constitucionais tendem a ser bem conhecidos pela população de forma geral e pelos agentes políticos cujos poderes esses direitos pretendem limitar. O canadense comum, por exemplo, pode desconhecer os detalhes complicados da forma como seus direitos constitucionais são interpretados pelos tribunais, mas a maioria dos canadenses conhece um pouco dessa história jurídica, e alguns sabem das seções mais proeminentes da Carta – por exemplo, as seções 5 (sobre igualdade) e 33 (sobre a possibilidade de legislação inconsistente com direitos constitucionais). Interpretações convencionais e regras não-escritas que emergem de precedentes podem, por outro lado, ser muito menos conhecidas. Também podem ser mais difíceis de articular e entender, e mais suscetíveis de controvérsia no que diz respeito ao seu conteúdo. Por essas razões, agentes políticos podem frequentemente evitá-las ou modificá-las sutilmente com mais facilidade. Uma segunda razão importante para optar por uma carta escrita é seu valor simbólico. Cartas de direitos, penso eu, podem ajudar a definir e reforçar o caráter de uma comunidade como publicamente comprometida, nas suas práticas legais e morais, aos direitos fundamentais e valores que inclui. Esses compromissos públicos podem, naturalmente, ser expressos de outras

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maneiras, mas as cartas, enquanto documentos fundacionais entrincheirados, amplamente conhecidos e citados, e vistos como contendo os compromissos morais fundamentais da nação, são meios muito mais poderosos de expressão desses compromissos do que a maioria dos demais veículos institucionais ou convencionais. Pergunte a um americano qual é o traço da cultura política dos Estados Unidos de que ele mais se orgulha e a resposta provavelmente será a Declaração de Direitos. Pergunte o mesmo a um canadense e a resposta provavelmente será a Carta Canadense. Ela é vista não apenas como um documento que incorpora o compromisso moral canadense com a proteção de direitos fundamentais, mas também como um documento que expressa, nos seus compromissos com coisas como o multiculturalismo, os direitos de grupos específicos, a igualdade diante do direito e o efeito mediador das seções 1 e 33, uma identidade que distingue o Canadá de muitos outros países democráticos. Posso muito bem imaginar um Crítico reconhecendo a essa altura que uma carta pode realmente servir como um instrumento simbólico, inspirativo. Posso até imaginá-lo acrescentando a isso que uma carta pode fornecer uma estrutura conceitual e moral dentro da qual debates políticos públicos, no ambiente legislativo ou fora dele, podem ocorrer20. Mas eu suspeito que ele continuaria a insistir que nada foi dito ainda em defesa da conclusão adicional de que deveríamos pedir que os juízes apliquem os compromissos incluídos na nossa carta através de uma metodologia análoga à do common law. Em outras palavras, mesmo É claro que o simbolismo pode revelar-se inócuo se as culturas política, jurídica e social da sociedade em questão não refletirem as normas formalmente expressas na sua carta. E também não há como excluir a possibilidade de uma sociedade sem carta que possui uma cultura forte de respeito a direitos tipicamente incluídos em cartas escritas. A antiga União Soviética pode ser mencionada como exemplo do primeiro cenário, o Reino Unido como exemplo do segundo. A única afirmação que faço aqui é que, no contexto de uma cultura em que direitos são reconhecidos, o simbolismo poderoso de uma carta pode desempenhar um papel importante. 20

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que concordemos em adotar uma carta concebida como uma árvore viva, ainda não temos razão para defender a prática do controle constitucional pelo judiciário (judicial review), particularmente o controle do tipo que autoriza os tribunais a revogar os juízos bem informados do parlamento ou do congresso. Por que deveríamos supor que questões constitucionais sobre os limites do poder do governo são respondidas mais habilmente por alguns poucos anciões em seus gabinetes do que por esses outros órgãos? Aqui estão algumas razões, algumas delas bastante familiares, para pensar que os juízes podem de fato nos servir bem. Devemos começar reconhecendo que não há nenhuma razão, em princípio, para dizer que é necessário atribuir aos juízes a tarefa de interpretar e aplicar as prescrições morais abstratas de uma carta de direitos. Como foi dito anteriormente, certamente é possível requerer que o legislativo observe seus próprios limites constitucionais – embora, por razões óbvias, isso lembre a ideia de deixar o galinheiro sob os cuidados da raposa. Outra possibilidade é requerer, em qualquer caso difícil em que um tribunal julga, razoavelmente, que a ação do governo infringe um direito constitucional, que o caso seja reapreciado pelo órgão que o editou. Agora, há obviamente uma ótima razão que explica por que nenhum sistema contemporâneo (de que eu tenha conhecimento) usa esse modelo particular para lidar com todo e qualquer caso difícil, incluindo casos não-constitucionais. Casos difíceis no direito tendem a ser tão numerosos, e complexos nas suas particularidades, que um legislativo já sobrecarregado ficaria assoberbado caso assumisse a responsabilidade de decidi-los todos. Essa é uma das razões pelas quais optamos por uma divisão do trabalho e normalmente atribuímos aos juízes a tarefa de decidir casos difíceis21. Mas mesmo que isso seja verdade de É relevante aqui o fato de que o legislativo, por razões semelhantes, frequentemente cria e atribui poder ao membros (não-eleitos) de órgãos administrativos para criar, aplicar e interpretar regras específicas em nome do legislativo. Pode-se facilmente conceber o papel dos juízes como um papel análogo. De fato, esse é o papel que os teóricos normalmente têm em mente 21

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maneira geral, a pergunta surge naturalmente: por que não pedir que os nossos órgãos legislativos democráticos decidam casos difíceis quando a questão disser respeito à possível violação de um direito constitucional? Afinal, o que está em jogo aqui são direitos e valores constitucionais de grande importância e, com frequência, profundo desacordo moral e político. O legislativo certamente consegue achar tempo para cuidar desse conjunto limitado de casos. Mas eu não estou tão certo disso. O número de casos em que a Carta Canadense figura é enorme. Esses casos não incluem apenas aquelas decisões que constituem marcos, alcançam as manchetes e geram toda a controvérsia. Eles incluem também, em números muito maiores, todos aqueles casos em que juízes, cuidadosa e deliberadamente, e sem muito alarde, interpretam, desenvolvem e aplicam a Carta, que influi de alguma forma na questão. Se todos esses casos fossem levados de volta ao legislativo para resolução, suspeito que o governo seria paralisado. Outra consideração relevante – e talvez mais importante do que a anterior – é a possibilidade de que os juízes estejam em uma situação melhor do que os legisladores para decidir os tipos de questões morais que surgem tipicamente em casos envolvendo cartas constitucionais. Se seus contextos de tomada de decisão fossem idênticos, poderíamos concordar com os Críticos e dizer que não há absolutamente nenhuma razão para preferir as decisões de algumas pessoas que não foram eleitas em vez das decisões de um grupo muito maior de pessoas eleitas que têm muito mais recursos, e que são capazes de representar, nas suas deliberações conjuntas, toda a variedade de visões razoáveis que dizem respeito ao tema em debate. Mas os contextos de decisão são mesmo idênticos? Não tenho muita certeza. Até os Críticos precisam reconhecer a existência de forças políticas poderosas que servem de empecilho à tomada de decisões responsável e serena pelos legisladores – fatores

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quando se referem à discricionariedade judicial como capaz de representar um tipo de poder “quase legislativo”.

como a pressão política de uma maioria egoísta, lobistas ou financiadores de partido que ignoram ou até mesmo buscam suprimir os interesses legítimos de indivíduos ou minorias vulneráveis, ou a pressão para curvar-se diante de um primeiro-ministro determinado a fazer uso do imenso poder que lhe confere a política partidária. Essas são forças a que os juízes estão significativamente imunes, graças à doutrina da independência judicial. Há, portanto, razões estratégicas familiares para pensar que seria sábio atribuir aos juízes decisões sobre a compatibilidade entre um ato do governo e um direito constitucional22. Mas creio que seria um erro ignorar os pontos igualmente importantes que seguem. Por razões de necessidade prática, legisladores quase sempre usam o instrumento da legislação geral, isto é, legislação que emprega termos que designam classes muito gerais de pessoas e traços muito gerais de situações recorrentes. Se esse é o caso, então qualquer solução que os legisladores propuserem para resolver um caso difícil envolvendo o suposto impacto da sua legislação sobre um direito constitucional provavelmente terá o mesmo destino que a legislação original. Isto é, é provável que a solução ao primeiro caso difícil também retorne ao legislativo, onde mais uma tentativa terá de ser feita para solucionar, em termos canônicos gerais, algum outro caso difícil que ocorrerá. Não é fácil imaginar legislação geral e compreensível capaz de cobrir de forma sensata a variedade de tipos de casos difíceis que já foram decididos, por exemplo, na aplicação das provisões sobre igualdade da Carta Canadense.23 Uma virtude celebrada do common law é sua capacidade - devida à sua inerenPara uma excelente discussão das limitações desse tipo de argumento, ver Adrian Vermeule, 2009. 23 Veja Denise Reaume, 2002, onde Reaume descreve a verdadeira bagunça que caracteriza as tentativas canadenses de implementar uma legislação para o direito sobre discriminação. De acordo com Reaume, uma estratégia muito melhor teria sido permitir que os tribunais desenvolvessem o direito sobre discriminação à maneira do common law, assim como eles fizeram com as normas relativas à negligência. 22

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te adaptabilidade e sua habilidade para promover transformações graduais, caso a caso - de evitar os problemas que afetam o direito legislado. A Ministra-Chefe24* MacLachlin aludiu a essa capacidade quando disse que: KĚĞƐĞŶǀŽůǀŝŵĞŶƚŽĚĞƵŵĂƚĞŽƌŝĂƉƌĂƟĐĄǀĞůƐŽďƌĞŽĚĂŶŽ ΀ŶŽƋƵĞĚŝnjƌĞƐƉĞŝƚŽăŽďƐĐĞŶŝĚĂĚĞĞŝŶĚĞĐġŶĐŝĂ΁ŶĆŽĠ ƵŵĂƚĂƌĞĨĂƉĂƌĂƵŵƷŶŝĐŽĐĂƐŽ͘EĂƚƌĂĚŝĕĆŽĚŽĐŽŵŵŽŶ law͕ĂƐƵĂĂƌƟĐƵůĂĕĆŽĐŽŵƉůĞƚĂƐſĂƉĂƌĞĐĞƌĄŶĂŵĞĚŝĚĂ Ğŵ ƋƵĞ ŽƐ ũƵşnjĞƐ ĐŽŶƐŝĚĞƌĂƌĞŵ ƐŝƚƵĂĕƁĞƐ ĚŝǀĞƌƐĂƐ Ğ ƚŽŵĂƌĞŵĚĞĐŝƐƁĞƐƐŽďƌĞĞůĂƐ͘ĚĞŵĂŝƐ͕ĂĐŽŵƉůĞdžŝĚĂĚĞĚĂ ƚĂƌĞĨĂŶĆŽĚĞǀĞƐĞƌƐƵďĞƐƟŵĂĚĂ͘ĞǀĞŵŽƐƉƌŽĐĞĚĞƌĚĞ ŵĂŶĞŝƌĂŐƌĂĚƵĂů͕ƵŵƉĂƐƐŽĐƵŝĚĂĚŽƐŽĂƚƌĄƐĚŽŽƵƚƌŽϮϱ.

Como indica a Ministra-Chefe, precedentes não representam tentativas de encerrar assuntos de uma vez por todas por meio de regras gerais fixas. Pelo contrário, um precedente tipicamente é considerado representativo apenas da decisão tomada a respeito do(s) assunto(s) específico(s) suscitado(s) pelo caso. O que é mais importante, o precedente é reconhecido como sendo passível de revisão à luz das demais decisões sobre casos semelhantes e das muitas situações novas que deparamos. Através de tais transformações graduais, passo a passo, o que frequentemente emerge com o tempo é um regime legal que exemplifica um nível de racionalidade prática que a legislação muitas vezes tem dificuldade para atingir. Isso, que dá vida ao common law, é algo que a concepção das cartas de direitos como árvores vivas tanto permite quanto celebra no nível da prática constitucional26. (N. do T.) O termo “ministro” (Justice) é usado aqui para designar um membro da Suprema Corte do Canadá. “Ministro-Chefe” (Chief Justice) designa o membro que preside na Corte. 25 Labaye, par. 26. 26 Para uma crítica bem fundamentada dessa maneira de enxergar o common law, ver, mais uma vez, Adrian Vermeule, 2009. 24 *

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Seria tolo insistir demais nesses últimos pontos sem uma boa dose adicional de argumentação27. Mas talvez eu já tenha dito o suficiente para justificar uma última conclusão: Há motivos significativos para ser otimista em relação à ideia de que uma carta de direitos tanto pode como deve ser projetada e compreendida de acordo com o modelo da árvore viva, o modelo do common law: ela dever ser projetada e compreendida como um conjunto modesto de compromissos razoáveis, desenvolvidos e aplicados através do tempo e de maneira progressiva, por juízes sensíveis aos sentimentos da comunidade e em parceria com outros órgãos do governo. Na articulação dessa conclusão, quero enfatizar a ideia de parceria. Com muita frequência, juízes que lidam com casos de direitos constitucionais são criticados por terem a pretensão de possuir maior autoridade e inteligência moral do que os legisladores e as pessoas representadas pelos legisladores. Mas como podemos ver agora, esse não precisa ser o caso. O papel de legislar regras gerais cujas consequências morais nem sempre podem ser previstas ou inteiramente estimadas abstrata e antecipadamente é totalmente compatível com o papel, atribuído a outra instituição, de decidir o que deve ser feito quando deparamos aquelas consequências morais imprevistas em futuros casos difíceis. Vistos dessa maneira, juízes e legisladores não estão em competição para saber quem tem maior acuidade ou autoridade moral. Pelo contrário, eles podem – e eu acho que devem – ser vistos como capazes de contribuir, cada um à sua maneira, para que alcancemos um estado de direito moralmente ilustrado. Se nos recusarmos a enxergar as cartas de direitos como tentativas tolas de estabelecer, antecipadamente e no escuro (como Hart poderia ter dito), um conjunto de limites fixos sobre os atos do governo, e se nós virmos as cartas, em vez disso, como árvores vivas cujas raízes são fixadas por precedentes e pelos termos esUma argumentação mais detalhada encontra-se no meu livro, A Common Law Theory of Judicial Review: The Living Tree. Críticas, mais uma vez, estão em Vermeule, 2009. 27

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colhidos para expressar os compromissos morais da carta, e cujos galhos podem crescer com o tempo através do desenvolvimento gradual de uma jurisprudência de direitos morais que siga algo parecido com o modelo do common law, então teremos chances melhores de satisfazer as duas necessidades fundamentais de Hart. E poderemos fazer isso ao mesmo tempo em que nos manteremos fieis à imagem própria a que todos aspiramos – a imagem de um povo autônomo, que governa a si mesmo, que respeita direitos morais fundamentais, mas que tem consciência de que não dispõe de todas as respostas28.

Versões anteriores deste artigo foram apresentadas em McMaster University, University of Windsor, SUNY Buffalo, UNAM, Mexico City, The University of Edinburgh, Osgoode Hall Law School, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Centre for Political and Constitutional Studies, Ministry of the Presidency, Madrid e University of Girona. Gostaria de agradecer a todos que participaram naquelas ocasiões com conselhos e críticas muito úteis. Uma versão anterior também apareceu na primeira edição de Problema: Anuario de Filosofia y Teoria del Derecho, 2007, sob o título “A Common Law Theory of Judicial Review.” 28

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Referências CHRISTIANO, T. 2000. “Waldron on Law and Disagreent”. Law and Philosophy, v. 19, pp. 513-543. ELSTER, J. 1984. Ulysses and the Sirens: Studies in Rationality and Irrationality. Cambridge: Cambridge University Press. ESTLUND, D. 2000. “Jeremy Waldron on ‘Law and Disagreement’”. Philosophical Studies, v. 99, pp. 111-128. HART, H.L.A. 1994.The Concept of Law, 2nd ed. Oxford: Clarendon Press. KAVANAGH, A. 2003. “Participation and Judicial Review: A Reply to Waldron”. Law and Philosophy, v. 22, pp. 451-486.REAUME, D. 2002.“Of Pigeonholes and Principles: A Reconsideration of Discrimination Law”. Osgoode Hall L.J., v. 40, pp. 113-144. SCHAUER, F. 1989. “Is the Common Law Law?” (Resenha de Melvin Eisenberg. The Nature of the Common Law. Cambridge: Harvard University Press, 1988.) Cal. L. Rev., v. 77, p. 455. SIMPSON, A.W.B. 1972. “The Common Law and Legal Theory” in SIMPSON, A.W.B. (ed.) Oxford Essays in Jurisprudence, 2nd series. Oxford: Clarendon Press. VERMEULE, A. 2009. Law and The Limits of Reason. Oxford: Oxford University Press. WALDRON, J. 1999. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press. WALUCHOW, W.J. 2007. Common Law Theory of Judicial Review: The Living Tree. Cambridge: Cambridge University Press.

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CAPÍTULO II 6GPVCPFQſPECTTCÈ\GUGOCTGKCOQXGFKÁC CNIWOCUFKſEWNFCFGUEQOCEQPEGRÁºQFG 9CNWEJQYUQDTGWOCXGTFCFGKTCOQTCNFC EQOWPKFCFG Noel Struchiner** Fábio Perin Shecaira***

I

Wil Waluchow apresentou recentemente uma defesa fascinante do controle judicial de constitucionalidade fundado numa carta de direitos fundamentais. O núcleo de seu argumento se baseia em uma revisão da noção relativamente bem difundida sobre a função de cartas de direitos nas democracias contemporâneas. Waluchow resume seu argumento da seguinte forma: EſƐĚĞǀĞŵŽƐƌĞũĞŝƚĂƌĂǀŝƐĆŽĚĞĐĂƌƚĂƐĐŽŵŽƚĞŶƚĂƟǀĂƐ ƉĞƚƵůĂŶƚĞƐĚĞĞƐƚĂďĞůĞĐĞƌŝůƵƐſƌŝŽƐƉŽŶƚŽƐĮdžŽƐĚĞĂĐŽƌĚŽĞƉƌĠͲĐŽŵƉƌŽŵŝƐƐŽƐ͘ĞǀĞŵŽƐ͕ĂŽŝŶǀĠƐ͕ǀġͲůĂƐĐŽŵŽ ĐŽŵŽĄƌǀŽƌĞƐǀŝǀĂƐ͕ĐƵũĂƐƌĂşnjĞƐƐĆŽĮdžĂĚĂƐƉŽƌĨĂƚŽƌĞƐ ƚĂŝƐĐŽŵŽƉƌĞĐĞĚĞŶƚĞƐ͕ũƵşnjŽƐŵŽƌĂŝƐĚĂĐŽŵƵŶŝĚĂĚĞĂůĐĂŶĕĂĚŽƐŶƵŵĞƐƚĂĚŽĚĞĞƋƵŝůşďƌŝŽƌĞŇĞdžŝǀŽ͕ďĞŵĐŽŵŽ pelos termos escolhidos por esta mesma comunidade ;Ğŵ ƐƵĂ ĐĂƌƚĂ ĚĞ ĚŝƌĞŝƚŽƐͿ ƉĂƌĂ ĞdžƉƌĞƐƐĂƌ ƐĞƵƐ ĐŽŵƉƌŽŵŝƐƐŽƐ ĨƵŶĚĂŵĞŶƚĂŝƐ ĚĞ ŵŽƌĂůŝĚĂĚĞ ĐŽŶƐƟƚƵĐŝŽŶĂů ;Ɖ͘ϮϳϬͲϮϳϭͿ1. * Traduzido por Rodrigo de Souza Tavares e Diego Borghetti de Queiroz Campos. Publicado originalmente como “Trying to Fix Roots in Quicksand: Some Difficulties with Waluchow’s Conception of the True Community Morality”. Problema - Anuário de Filosofía Y Teoria del Derecho, v.

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Como sugerido pela metáfora, através da sua referência a árvores vivas e raízes fixas, o objetivo central de Waluchow é prover uma teoria do controle judicial de constitucionalidade que equilibre os ideais (frequentemente conflitantes) de adaptabilidade e estabilidade. Uma sociedade está em constante evolução, assim como estarão suas necessidades. Isso exige, por sua vez, mudanças ocasionais em suas estruturas jurídicas. No entanto, tais mudanças devem ser realizadas dentro de certos limites. Em primeiro lugar, elas não podem acontecer de forma demasiado rápida, profunda ou, ainda, de maneira traumática para os vários indivíduos que de uma forma ou de outra contam com as normas sociais existentes. Além disso, elas não deveriam ser baseadas em caprichos individuais, mas sim em restrições de pedigree democrático. De acordo com Waluchow, um equilíbrio saudável entre estabilidade e adaptabilidade pode ser garantido por uma teoria de controle de constitucionalidade que permita aos juízes desenvolver o direito de acordo com o estabelecido em cartas de direito, mas de maneira gradual e dentro de limites impostos por fatores objetivos, tais como o texto constitucional, os precedentes e a moralidade (verdadeira) da comunidade. Temos muita simpatia pelas linhas gerais do projeto de Waluchow. Compartilhamos os ideais que ele quer atender por meio de sua teoria (i.e. estabilidade e adaptabilidade), e reputamos que sua concepção sobre a função de cartas de direito é muito mais interessante que a arrogante noção popular de que cartas são documentos capazes de estabelecer pontos fixos de pré-compro-

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3, p. 133-145, 2009. Agradecemos à Problema pela autorização do presente artigo para esta tradução e publicação. **Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio. Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-Rio. Bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Email: [email protected]. *** Professor adjunto de teoria do direito da UFRJ. 1 Todas as referências dizem respeito à obra de W. J. Waluchow, A Common Law Theory of Judicial Review – The Living Tree (Cambridge University Press, 2007).

misso. Todavia, temos algumas ressalvas em relação aos detalhes da teoria apresentada por Waluchow. Em particular, achamos que Waluchow é demasiadamente confiante a respeito da capacidade da dita verdadeira moral da comunidade para orientar as decisões dos juízes2. No trecho citado acima, Waluchow faz referência à moralidade da comunidade como um dos fatores que permite fixar as raízes de sua árvore viva. Da maneira pela qual compreendemos essa afirmação, para que a moral da comunidade possa fixar qualquer coisa ela deve ser genuinamente capaz de orientar ações, em outras palavras, ela deve prover prescrições Ainda que não exploremos tal ponto neste artigo, vale ressaltar que somos igualmente céticos sobre a possibilidade de que precedentes ou textos legais sejam capazes de fixar raízes. Isso não quer dizer que não acreditemos na capacidade de orientação proporcionada pelos precedentes ou pelo significado das palavras. Assim como Hart, acreditamos que ambas as formas de diretivas de comunicação podem ser efetivas. Em uma comunidade onde significados linguísticos são levados a sério, tanto precedentes quanto mandamentos explicitados na forma de regras podem constranger decisões nos casos que se enquadram em seu núcleo de significação clara. Porém, ainda de acordo com Hart, acreditamos que tais estratégias para o estabelecimento de padrões de conduta, mesmo que possam ser seguidas sem maior consideração em muitos casos, podem, no entanto, gerar indeterminação, sobretudo devido à vagueza ab initio ou potencial (textura aberta). Quando a linguagem dos precedentes ou das cartas é incapaz de impor restrições em virtude da vagueza, seja ela congênita e persistente ou derivada da concretização de vagueza potencial, estaremos então no âmbito dos casos difíceis (hard cases), os quais permanecem sob uma penumbra de incerteza. Muitos dos casos que envolvem o controle de constitucionalidade (talvez até a sua maioria) são casos em que o sentido convencional da linguagem, conforme prescrito por precedentes ou cartas de direito, não irá ditar uma resposta clara e, portanto, não irá fixar raízes. Da maneira como entendemos a proposta de Waluchow, a verdadeira moral da comunidade é o único meio disponível (i.e. aceitável) para preencher as entrelinhas das normas constitucionais relevantes. Em alguns casos, um dos quais será discutido adiante, a verdadeira moral da comunidade pode até ser capaz de mudar o rumo de uma linha de precedentes bem estabelecida, ou ainda as interpretações consolidadas da linguagem contida na carta de direitos. É por esse motivo que manteremos o foco na questão da moral da comunidade: a viabilidade da proposta de Waluchow é fortemente dependente da viabilidade dessa noção. 2

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suficientemente precisas para poder limitar a discricionariedade dos juízes que decidem questões constitucionais. Porquanto se a moral da comunidade não for capaz de orientar ações, então a ideia da fixação de raízes se torna enganosa. E, se isto for de fato verdadeiro, o argumento central de Waluchow, que diz que sua teoria atende de maneira adequada ao valor da estabilidade, deixa de ser plausível. II

Não fomos os primeiros a encontrar problemas sérios no ideal de moral da comunidade de Waluchow3. Alguns comentaristas já questionaram sua confiança na capacidade que ela teria para impor limites ao raciocínio e à tomada de decisão judicial. Portanto, nossas objeções não serão completamente inéditas, mas elas devem contribuir para tornar ainda mais convincente o ataque à noção de moral da comunidade. De acordo com Waluchow, a verdadeira moral de uma comunidade surge após a sujeição das opiniões morais da comunidade a um processo de revisão racional. Isso não equivale a retificar as opiniões morais de uma comunidade em face da teoria moral preferida pelo próprio revisor. Por exemplo, um juiz utilitarista não deveria reformular as opiniões morais de uma comunidade com o intuito de mitigar tendências contrárias a essa teoria moral, independentemente de quão persuasivos sejam seus argumentos em favor do utilitarismo. Em vez disso, o que um juiz poderia fazer seria considerar todas as crenças morais de uma comunidade (em todos os níveis de abstração) e se certificar de que elas tenham coerência entre si. E, se o resultado desse processo for uma moralidade comunitária de inclinação utilitarista, isto deveria ocorrer em virtude de que as convicções morais mais arraigadas da comunidade eram utilitaristas desde o princípio, e Vide Larry Alexander (2010); Jeffrey Brand-Ballard (2008); e Bradley W. Miller (2007). 3

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não devido ao empenho de um juiz utilitarista para alcançar esse específico resultado. A descrição de Waluchow a respeito do processo de revisão capaz de fazer surgir a verdadeira moral de uma comunidade é de fato bastante vaga. Ele afirma que o procedimento seria “assemelhado” (p.233) ao equilíbrio reflexivo de John Rawls, mas não diz muito mais a respeito dessa analogia. Parece, de qualquer forma, que ele mantém uma noção estreita de equilíbrio reflexivo, já que nunca menciona a possibilidade de se examinar o conjunto de crenças mais abrangentes da comunidade (crenças sociológicas, psicológicas, metafísicas etc.) a fim de verificar se elas são coerentes com suas crenças morais específicas. Waluchow parece também sustentar a visão corrente de que o equilíbrio reflexivo se coaduna naturalmente com um tipo de epistemologia moral coerentista. Em outras palavras, embora as convicções morais da comunidade gozem talvez de credibilidade pro tanto independente, elas poderão naturalmente ser superadas ou reformuladas em algum ponto do processo de revisão. Não há muito mais a dizer sobre a noção de Waluchow de equilíbrio reflexivo, pois, como dissemos anteriormente, ele não a descreve em detalhes. Se estivermos certos ao caracterizar a visão de Waluchow sobre o equilíbrio reflexivo, então sua teoria do controle de constitucionalidade estará em apuros. O primeiro problema que nos chama a atenção é que Waluchow superestima o nível de acordo dentro de uma comunidade no que tange ao tipo de questão moral envolvida nos casos de controle judicial de constitucionalidade. Certamente, ele não sustenta que uma comunidade apresente, com frequência, uniformidade em todas as suas opiniões morais (superficiais) relativas aos tipos de caso que surgem no âmbito da jurisdição constitucional. O que ele afirma de fato é que existe, nestes casos, uniformidade suficiente quanto aos compromissos morais verdadeiros da comunidade. Depois que as opiniões morais provavelmente divergentes de uma sociedade sejam sujeitas a um teste de coerência interna, é esperado que

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uma posição comum se forme. Em outras palavras, a falta de consenso nas opiniões morais não diminui as chances de se obter um consenso em torno de compromissos morais fundamentais. Embora tal esclarecimento baste para demonstrar que a noção de Waluchow sobre consenso moral não é ingênua, claramente não é suficiente para demonstrar que é verdadeira. Resta ainda ser demonstrado que o consenso existente providencia uma base ampla o bastante para a construção de uma moral verdadeira da comunidade. Com toda franqueza, não é de todo descabido acreditar que, mesmo em sociedades plurais como aquelas com que Waluchow está preocupado, exista acordo amplo sobre muitas questões morais importantes. Mas não há razão alguma para crer, todavia, que existe concordância significativa no domínio do debate moral que nos concerne aqui. Parece que Waluchow carrega consigo o ônus da prova nessa questão – e cabe ressaltar que este é um fardo pesado para carregar4. Para poder mostrar Atribuímos o ônus da prova a Waluchow considerando que as evidências empíricas parecem estar do nosso lado. A literatura disponível sobre a ideia de “guerra de culturas” é farta. Recentemente, Jonathan Haidt e outros produziram muitos trabalhos para explicar a divisão moral entre liberais e conservadores. Partindo de um ponto de vista descritivo/explanatório sobre como chegamos a ter um conjunto de crenças morais, ele defende uma espécie de “Teoria dos Fundamentos da Moralidade” (Moral Foundations Theory). De acordo com essa teoria, existem alguns modos básicos de resposta, certos módulos de aprendizagem ou mecanismos psicológicos, compartilhados por todos os seres humanos, e que estão predispostos para reagir a cinco tipos de padrões no mundo social. Ele oferece a seguinte taxonomia (provisória) para tentar captar esses cinco modos básicos de resposta ou fundamentos que estariam na base dos juízos e intuições morais: dano/cuidado; justiça/reciprocidade; pertencimento/lealdade; autoridade/respeito; pureza/santidade. Enquanto a moralidade liberal estaria inclinada, de forma empiricamente confirmada, a se preocupar com a questão do dano e da justiça, a moralidade conservadora estaria distribuída de forma mais uniforme entre os cinco fundamentos. Tais considerações, se corretas, explicariam porque liberais e conservadores teriam diferenças tão profundas em seus compromissos morais em relação a diversos pontos que, no momento, não podem ser reconciliados através de um processo de equilíbrio reflexivo estreito. Acreditamos que um equilíbrio reflexivo 4

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que sua confiança num consenso significativo é fundada, Waluchow deveria ser capaz de produzir pelo menos alguns (dois? três?) exemplos concretos. Contudo, ele não conseguiu obter êxito nessa tarefa: seus exemplos são escassos e pouco convincentes. Na verdade, só há um único exemplo que ele discute de maneira detalhada: ͘͘͘ƚŽĚŽƐĐŽŶĐŽƌĚĂƌŝĂŵƋƵĞĞƐƚĆŽĐŽŶƟĚŽƐŶĂĂƌƚĂĞŶĂ ũƵƌŝƐƉƌƵĚġŶĐŝĂ ƋƵĞ ŐŝƌĂ Ğŵ ƚŽƌŶŽ ĚĂ ƐƵĂ ŝŶƚĞƌƉƌĞƚĂĕĆŽ ŽƐƉƌŝŶĐşƉŝŽƐĞũƵşnjŽƐĂƉĂƌƟƌĚŽƐƋƵĂŝƐĂŵĂŝŽƌŝĂĚŽƐĐĂŶĂĚĞŶƐĞƐƌĂnjŽĄǀĞŝƐ͕ƐĞũĂƋƵĂůĨŽƌƐƵĂŽƌŝĞŶƚĂĕĆŽƉŽůşƟĐĂ͕ ĞƐƚĄĚŝƐƉŽƐƚĂĂĐŽŶĚĞŶĂƌŽƉƌĞĐŽŶĐĞŝƚŽĞŵƌĂnjĆŽĚĞƌĂĕĂ ŽƵ ƐĞdžŽ͘ ƐƐĞƐ ŵĞƐŵŽƐ ƉƌŝŶĐşƉŝŽƐ Ğ ũƵşnjŽƐ ĐŽŶĚĞŶĂŵ ŝŐƵĂůŵĞŶƚĞ Ă ĚŝƐĐƌŝŵŝŶĂĕĆŽ ĐŽŶƚƌĂ Ž ĐĂƐĂŵĞŶƚŽ ĞŶƚƌĞ ƉĞƐƐŽĂƐĚŽŵĞƐŵŽƐĞdžŽ͘/ƐƚŽĠĂƐƐŝŵĂĚĞƐƉĞŝƚŽĚŽĨĂƚŽ ĚĞƋƵĞŵƵŝƚŽƐ;ƉŽƌĞŶƋƵĂŶƚŽ͕ĞƵĞƐƉĞƌŽͿŶĆŽƉĞƌĐĞďĂŵ ƚĂůĐŽŶĞdžĆŽ͘͘͘;Ɖ͘ϮϮϱͿ

Existem problemas óbvios aqui. Para começar, Waluchow não explica o que ele quer dizer por “razoável”. Se ele mantiver um conceito suficientemente rico de razoabilidade, então poderá colocar em perigo sua própria tese, segundo a qual ao submeter a moral da comunidade à revisão racional, não estaríamos reformulando-a à luz de nossas próprias crenças morais subjetivas. Afinal, uma coisa é dizer que as opiniões morais de uma comunidade devem ser internamente coerentes, e outra é dizer que as opiniões dos membros razoáveis da comunidade devem ser internamente coerentes. Coerência não é um conceito moralmente carregado, mas razoabilidade é. De fato, pode ser um conceito moral extremamente rico, excluindo qualquer opinião moral que não consiga satisfazer critérios rígidos; ou pode ser um conceito modesto, isto estreito deveria levar em consideração tanto as visões morais de liberais quanto de conservadores, e que nenhum compromisso moral verdadeiro e homogêneo iria emergir na maioria dos casos, senão em todos, que ocupam nossa atenção quando falamos sobre o controle judicial de constitucionalidade.

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é, pode apenas excluir visões morais evidentemente implausíveis (mesmo se dotadas de coerência interna)5. Vamos assumir que Waluchow adote uma noção modesta de razoabilidade6. Nesse caso, se todas as visões morais que não são Sem dúvida, ambos conceitos, sejam eles considerados de forma rica ou modesta, apresentam problemas devido a sua vagueza e subjetividade. Porém, como a noção modesta é presumivelmente menos vaga, pode-se afirmar que os problemas que apresenta são, consequentemente, menos significantes. A diferença entre as duas noções pode ser ilustrada a partir de algumas passagens espirituosas de Kwame Appiah (2008) oriundas da discussão de um assunto conexo. Um conceito rico de razoabilidade provavelmente será controvertido numa sociedade plural. Da mesma forma, a noção de razoabilidade dos responsáveis pela tarefa de adjudicação constitucional será vista com desconfiança por qualquer canadense dissidente. Qualquer tentativa de basear uma decisão naquilo em que “nós, canadenses razoáveis, acreditamos”, deverá ser objetada pelos críticos com a seguinte interpelação: “ ‘Nós’ quem, cara pálida?” (APPIAH, 2008, p. 80). O uso de uma noção modesta de razoabilidade não deve gerar uma resposta tão atravessada, mas pode ainda causar surpresa para algumas pessoas. Afinal, quem tem autoridade para dizer que uma opinião moral relativa a um caso constitucional é patentemente implausível? Este é o tipo de coisa que pode ser considerada evidente? Sobre o assunto, Appiah conta a estória de um matemático de Cambridge que, após ter preenchido todo o quadro negro de sua classe com uma extensa e intrincada equação, destaca o resultado e fala para sua turma: “como podem ver, a resposta é óbvia”. No entanto, ele é tomado por uma dúvida repentina, e, com a testa franzida, deixa a sala, apenas para retornar cinco minutos depois. Após seu retorno, demonstrando estar aliviado, ele afirma peremptoriamente para seus alunos: “De fato, realmente é óbvia”. (APPIAH, 2008, p.81). 6 Novamente, essa pressuposição suaviza nossas preocupações com relação à introdução por Waluchow do conceito de razoabilidade neste debate, contudo, ela não as descarta totalmente. O problema que enxergamos não se limita ao fato de que mesmo um conceito modesto de razoabilidade é vago demais para direcionar a tomada de decisão judicial (este argumento será tratado na parte final deste artigo). Fundamentalmente, não sabemos conciliar a menção isolada à razoabilidade com o restante do livro de Waluchow. Numa passagem particular, ele descreve sua teoria – usando termos emprestados de Julie Dickson – como “indiretamente avaliativa” (p.227). Waluchow então segue afirmando (ou melhor, reafirmando) que sua teoria não é capaz de retificar a moralidade da comunidade quando esta for intrinsecamente deplorável; e oferece o apartheid sul-africano como exemplo histórico. Portanto, fica bem 5

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visivelmente implausíveis forem levadas em consideração no processo de revisão racional, então é injustificada a confiança de Waluchow na convergência da comunidade canadense sobre a questão do casamento de pessoas do mesmo sexo. Não há razão para crer que alguém (no Canadá ou em qualquer outro país) não possa, de forma razoável e coerente, endossar princípios morais que rejeitem o racismo e o sexismo, e ainda assim defender que o casamento de pessoas do mesmo sexo não deveria ser tido como um instituto dotado de validade jurídica. Em primeiro lugar, a posição de um indivíduo sobre a moralidade de uma norma jurídica não precisa, necessariamente, espelhar sua visão sobre a moralidade de atos particulares cobertos por esta norma. Por exemplo, um sujeito pode acreditar que o aborto é moralmente condenável e, mesmo assim, opor-se à edição de uma lei contra o aborto. Isso é muito comum entre pessoas que tendem a avaliar as instituições sociais por um viés consequencialista. Mesmo que o aborto seja errado, os efeitos da sua proibição (e.g. a provável proliferação de abortos clandestinos) seriam ainda piores. O mesmo se aplica ao casamento homoafetivo. Uma pessoa pode apoiar leis contra discriminação sexual e racial e inclusive defender leis que reconheçam direitos fundamentais para casais homoafetivos, acreditando, simultaneamente, que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma instituição perigosa, pois consiste num grande passo a caminho da legalização do direito de adoção de menores psicologicamente vulneráveis. Essa linha de argumentação específica pode não ser claro a partir dessas afirmações que a teoria de Waluchow não pretende transformar uma moralidade comunitária não razoável numa outra dotada de razoabilidade. Mas, se esse é o caso, por que então qualquer referência à razoabilidade? Appiah já afirmou que o método do equilíbrio reflexivo (ao menos na sua versão estreita) não pode fazer nada além um barbeado e corte de cabelo em nossas opiniões morais já existentes (APPIAH, 2008, p.80). Waluchow parece concordar com tal afirmação na maior parte de seu livro, mas então fala sobre razoabilidade e nos oferece uma surpreendente caracterização de um julgador que pretende fazer muito mais com a moral da comunidade do que um barbeiro ordinário faria.

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convincente para muitos (ela certamente não nos convence), mas dificilmente pode ser considerada irrazoável. Exclui-la da base de acordo a partir da qual a verdadeira moral de uma comunidade é construída interfere nas opiniões da comunidade de uma forma que a teoria de Waluchow não deveria permitir (se de fato ela deseja limitar a discricionariedade judicial). Uma outra forma de desafiar a confiança depositada por Waluchow no consenso canadense a respeito do casamento homoafetivo é a seguinte. Se considerarmos seriamente o modelo coerentista de raciocínio implícito em seu argumento, chegaremos à conclusão de que nenhuma das crenças morais submetidas ao teste de coerência interna estaria imune a uma possível revisão. Canadenses que rejeitam firmemente o racismo e o sexismo podem ter uma convicção igualmente firme a respeito do valor do casamento heterossexual. E para acomodar esta última convicção eles podem estar dispostos a fazer mudanças em outras partes de seu conjunto de crenças. Eles podem inclusive reavaliar seus compromissos anteriores a respeito da discriminação sexual e racial ao considerarem as implicações de suas visões sobre casamento. Classificar certas convicções como não-reavaliáveis, seria, arbitrariamente, transformar um modelo de raciocínio coerentista em um modelo fundacionalista – sendo os fundamentos relevantes escolhidos pelo juiz, e não pela comunidade! Nesse ponto, Waluchow provavelmente gostaria de oferecer uma resposta. Ele provavelmente criticaria o fato de termos editado de forma inapropriada o seu argumento. Afirmaria que não deveríamos ter suprimido a seguinte passagem por meio de uma elipse capciosa:

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De fato, a parte deixada de fora anteriormente não é irrelevante. Waluchow é muito claro sobre o fato de que precedentes são elementos chave na construção de uma moral da comunidade (p. 237). Em acréscimo das convicções morais consensuais de uma comunidade, precedentes legais também contribuem para alargar a base sobre a qual uma moral comunitária uniforme será construída. Entretanto, enxergamos duas razões pelas quais esse apelo aos precedentes não será tão útil como se imagina. Primeiro, de acordo com o modelo coerentista que pressupomos, o precedente é superável, assim como qualquer outra crença moral. De forma que, para acomodar uma convicção moral firme (seja ela relacionada ao casamento homoafetivo ou não) um indivíduo poderia alegremente rejeitar um precedente cujas implicações não fossem coerentes com a mesma. Em segundo lugar, e mais importante, é bastante enganoso sugerir que o precedente pode ser uma parte da moralidade da comunidade quando estão em jogo questões morais controvertidas. Citando Tony Honoré e Joseph Raz, Waluchow discorre sobre como a moralidade de uma comunidade não é nada além de um contorno cujas lacunas devem ser preenchidas por decisões jurídicas. A metáfora é válida, porém não para todos os propósitos de Waluchow. Nas áreas onde a moralidade é genuinamente indeterminada, é de fato razoável dizer que decisões jurídicas oferecem assistência legítima. Isto é, quando os compromissos morais consensuais da comunidade permitirem diversas medidas, aquelas escolhidas pelas autoridades jurídicas deverão prevalecer sobre outras, por razões como eficiência e previsibilidade. Porém, quando a comunidade não é indiferente; ao contrário, quando ela está de fato extremamente dividida, tal função de preenchimento do direito é altamente discutível. Parece-nos que um juiz que opta por permitir o casamento homoafetivo (por exemplo) numa comunidade que diverge sobre a moralidade desse instituto não está meramente preenchendo um detalhe. Tendemos a acreditar que ele está de fato se posicionando e atribuindo validade aos

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compromissos de apenas uma parte da sociedade, em detrimento daqueles da outra parte (que não é menos numerosa ou razoável que a primeira). III

Essas são objeções que estamos preparados a apresentar em face de um dos raros exemplos de uniformidade nos acordos morais de sociedades plurais descritos por Waluchow. Porém, existe uma última questão que surge da análise de um caso cujo acordo parece bastante improvável numa sociedade plural, até mesmo para Waluchow: Ğ ĨĂƚŽ͕ Ğŵ ĂůŐƵŵĂƐ ƋƵĞƐƚƁĞƐ ĂůƚĂŵĞŶƚĞ ĐŽŶƚƌŽǀĞƌƟĚĂƐ͕ ĐŽŵŽ ƉŽƌ ĞdžĞŵƉůŽ ŶĂ ƋƵĞƐƚĆŽ ƌĞůĂƟǀĂ ă ŵŽƌĂůŝĚĂĚĞ ĚŽ ĂďŽƌƚŽ͕ƉŽĚĞŶĆŽŚĂǀĞƌ͕ŝŵƉůşĐŝƚŽŽƵŶĆŽ͕ƵŵĐŽŶƐĞŶƐŽƐŽďƌĞƉŽƐƚŽ͘EĞƐƐĞĐĂƐŽ͕ĂŵŽƌĂůŝĚĂĚĞĐŽŶƐƟƚƵĐŝŽŶĂůĚĂƐŽĐŝĞĚĂĚĞĨƌĂĐĂƐƐĂƌŝĂĞŵƉƌŽǀĞƌƌĞƐƉŽƐƚĂƐĞŵĚĞƚĞƌŵŝŶĂĚŽƐ ĐĂƐŽƐĐŽŶƐƟƚƵĐŝŽŶĂŝƐĞ͕ƉŽƌĐŽŶƐĞŐƵŝŶƚĞ͕ũƵşnjĞƐŶĆŽƚĞƌŝĂŵ ŽƵƚƌŽƐƌĞĐƵƌƐŽƐŶŽƐƋƵĂŝƐƐĞĂƉŽŝĂƌ͘͘͘;Ɖ͘ϮϮϴʹϮϮϵͿ͘

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Pode-se perguntar por qual motivo Waluchow acreditaria que a questão do aborto não admite um consenso, enquanto seria possível um consenso acerca do casamento homoafetivo. Ambas as questões são igualmente polêmicas em sociedades plurais, ao menos no que concerne a opiniões morais não revistas. Waluchow não está afirmando isso apenas porque os participantes do debate sobre aborto, quaisquer que sejam suas outras crenças morais, não estão dispostos a abrir mão de suas opiniões sobre o tema. Afinal, essa é exatamente umas das razões que nos leva a crer que não é possível chegar a um consenso no caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo: num modelo de raciocínio coerentista, nenhuma crença disfruta de credibilidade absoluta. Outra razão pela qual Waluchow trata o aborto como um assun-

to tão polarizador é que os debates a respeito do tema dificilmente conseguem evitar referências a questões ainda mais complexas e delicadas do que questões morais. Quando começa a vida? O quão consciente é um feto? (Sem mencionar as questões religiosas geralmente envolvidas). Mas isso nos levaria a um caminho que não é consistente com aquilo que afirmamos anteriormente neste capítulo. Afinal, Waluchou sugere que a revisão das crenças morais de uma comunidade seja feita em conformidade com o método estreito de equilíbrio reflexivo. Isto é, um método que busca produzir uma teoria moral coerente, mas que ignora, por exemplo, a (in)coerência dessa teoria com as convicções metafísicas dos indivíduos. Este último ponto deveria ser entendido não como uma objeção, mas como uma verdadeira expressão de dúvida em relação à noção de Waluchow de uma verdadeira moral da comunidade e ao método que a acompanha. Se o autor realmente tem o equilíbrio reflexivo estreito em mente, então por que dizer que a questão do aborto não poderia ser objeto de consenso, enquanto o casamento homoafetivo poderia? Isso realmente não está claro na obra de Waluchow. Contudo, este é um ponto de suma importância, pois entender o motivo pelo qual não acredita ser possível alcançar um consenso em alguns casos poderia nos ajudar a entender melhor por que pensa o contrário acerca de outros casos igualmente disputados. Para concluir, não há a menor dúvida de que Waluchow é um meticuloso teórico do direito, que não têm o costume de deixar brechas em suas obras. Ademais, como mencionado anteriormente, simpatizamos muito com a ideia geral de seu projeto, cujo objetivo é encontrar um ponto de equilíbrio entre as virtudes da estabilidade e flexibilidade. No entanto, até que ele possa demonstrar, de maneira clara, a forma através da qual o método de equilíbrio reflexivo estreito pode trazer à tona os verdadeiros compromissos morais de uma comunidade profundamente dividida, continuaremos acreditando que a “Árvore Viva” tem suas raízes fincadas em areia movediça.

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Referências ALEXANDER, L. 2010. Waluchows – Living Tree Constitutionalism. Law and Philosophy. Vol. 29, nº 1, p. 93-99. APPIAH, K. A. 2008. Experiments in Ethics. Cambridge: Harvard University Press. BRAND-BALLARD, J. 2008. Review Essay: A Common Law Theory of Judicial Review by W.J. Waluchow. Notre Dame Philosophical Reviews. Available at http://ndpr.nd.edu/review.cfm?id=14605. HAIDT, J.; JOSEPH, C. 2007. The Moral Mind: How 5 Sets of Innate Moral Intuitions Guide the Development of many culture-specific virtues, and perhaps even modules. In P. Carruthers, S. Laurence, and S. Stich (Eds.) The Innate Mind, Vol. 3. New York: Oxford University Press. GRAHAM, J.; HAIDT, J.; NOSEK, B. A. 2009. Liberals and Conservatives Rely on Different Sets of Moral Foundations. Journal of Personality and Social Psychology, Vol. 96, N. 5, 1029-1046. MILLER, B. W. 2007. Review Essay: A Common Law Theory of Judicial Review by W.J. Waluchow. The American Journal of Jurisprudence, Vol. 52. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=1093365. WALUCHOW, W. J. 2007. Common Law Theory of Judicial Review – The Living Tree. Cambridge: Cambridge University Press.

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CAPÍTULO III 4GURQUVCUCRCTVKTFCRGTURGEVKXCFQ EQPUVKVWEKQPCNKUOQFCőTXQTG8KXCŒ W.J. Waluchow**

Será que faz sentido a ideia de uma “moralidade constitucional da comunidade”? Como acabamos de observar, minha defesa do controle de constitucionalidade presume que faça. Suponha-se, por um momento, que as cartas incorporem ou vinculem a comunidade e os tribunais a padrões estabelecidos pela “moralidade platônica”. Ou seja, a uma moralidade supostamente objetiva e universalmente verdadeira que filósofos, teólogos ou estudantes que frequentam os bares da região há muito tempo procuram descobrir ou articular no desenvolvimento de suas teorias filosóficas. Em suma, suponha-se que as cartas considerem a conformidade com a moralidade platônica o teste decisivo de validade constitucional. Se isso fosse verdade, aqueles que criticam as cartas estariam quase sempre certos: o controle judicial de constitucionalidade baseado numa carta de direitos não poderia ser defendido em uma democracia constitucional moderna. A moralidade de Platão é tão repleta de incertezas e desacordos e, se Raz e Honore estiverem corretos, de indeterminação, que permitir aos juízes utilizarem-na como fundamento para derrubar decisões de representantes democraticamente eleitos seria não * Traduzido por Rodrigo de Souza Tavares e Ana Beatriz Dillon. Publicado originalmente como “A living tree constitutionalist replies”. Problema Anuário de Filosofía Y Teoria del Derecho, v. 3, p. 153-158, 2009. O texto deste capítulo é um excerto da reposta do autor a diversos artigos (dentre eles se encontra o texto de Struchiner e Shecaira, publlidacado no capítulo anterior deste livro) que discutem sua obra - A Common Law Theory of Judicial Review: The Living Tree. Agradecemos ao periódico pela gentil cessão do trecho para esta publicação. ** “Senator William McMaster Chair in Constitutional Studies”, Professor do Departamento de Filosofia da McMaster University.

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apenas politicamente perigoso, mas também um insulto. Isso acabaria por conceder aos juízes muita discricionariedade em questões morais. Assim, um defensor da carta pode estar inclinado a recorrer a outros meios, talvez àquilo que os precursores do positivismo intitularam como moralidade positiva. Ou seja, os valores, crenças e princípios morais amplamente reconhecidos e aplicados pelos cidadãos de uma certa comunidade. Suponha-se que uma carta constitucional esteja apta para incorporar a moralidade positiva, assim entendida. Seria então possível encontrarmos a determinação desejada? Caso fosse possível, um grande obstáculo teria sido superado. Teríamos um conjunto de normas determinado, capaz de ser descoberto e aplicado sem apelo às perspectivas morais pessoais dos juízes. Talvez pudéssemos remover até o aguilhão do insulto. Se os juízes estivessem simplesmente aplicando a perspectiva moral da comunidade, haveria pouca motivação para condenar a prática do controle judicial de constitucionalidade como antidemocrática. Tampouco haveria um reconhecimento implícito de que devemos confiar no julgamento moral de nossas instâncias judiciárias superiores para determinar o que é certo. O controle judicial de constitucionalidade seria fundamentado em normas estabelecidas pela comunidade e não pelo judiciário. Todavia, infelizmente, a moralidade positiva, particularmente em democracias multiculturais e liberais, tais como as que me mencionei em meu livro, parece estar tão repleta de incertezas e desacordos quanto a moral de Platão, o que acarreta sua inevitável contaminação pelo ponto de vista moral do juiz. Além disso, a moralidade positiva parece ser frequentemente desvirtuada, especialmente quando se trata de questões morais envolvendo os interesses e direitos das minorias e de outros grupos em desvantagem. Por exemplo, pode-se argumentar que práticas sociais discriminatórias contra mulheres, homossexuais e indígenas gozam de considerável apoio popular em muitas jurisdições democráticas. Dessa forma, os indivíduos nessas comunidades parecem endossar normas morais e

perspectivas que promovem a injustiça. Por qual motivo, pode-se perguntar, estariam os juízes obrigados a respeitar tais normas e perspectivas equivocadas? Por que deveria um erro moral, em oposição à razão, equidade e justiça, ser considerado como o fundamento adequado para decisões judiciais em matéria de direitos e liberdades fundamentais? Afinal, a oferta de direitos morais juridicamente exequíveis aos indivíduos e às minorias vulneráveis não é justamente apregoada como uma das principais razões para adotar uma carta de direitos escrita? Se as duas alternativas apresentadas acima – a teoria de moralidade do Platão e a moralidade positiva, conforme concebidas – exaurem as possibilidades, então quem estiver inclinado a apoiar o controle de constitucionalidade tem um caminho árduo pela frente. Mas e se houver uma terceira opção? E se enxergássemos as cartas como referências à moralidade constitucional relevante de uma comunidade - isto é, como uma moralidade pressuposta nas leis fundamentais e nas instituições políticas de uma comunidade, incluindo, sobretudo, a sua carta de direitos? Será que não temos aqui o melhor dos dois mundos? Temos a concepção de uma moralidade que está essencialmente ligada às crenças morais fundamentais e aos compromissos da comunidade. Mas é também uma concepção que nos permite entender um argumento judicial que chegue à conclusão de que uma sociedade e/ou seus representantes democraticamente eleitos hajam cometido um erro em uma questão moral relevante. Essa concepção permite que um juiz possa argumentar que uma decisão política posterior, mesmo quando manifestamente apoiada em uma visão moral reconhecidamente popular, está equivocada como uma questão de direito constitucional; isto porque estaria em profundo desacordo com os compromissos de moralidade constitucional desta própria comunidade. Então, boa parte da questão gira em torno da possibilidade de atribuir algo como uma “moralidade constitucional” a uma comunidade democrática em particular. Struchiner e Shecaira se

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“preocupam” que eu esteja “muito confiante sobre a capacidade de orientação” do que eu descrevo como “a verdadeira moralidade da comunidade.” (p. 136)1 Eles “são igualmente céticos sobre a possibilidade de que precedentes ou textos legais sejam capazes de fixar raízes.” (p. 136, nota 2) A partir desse ceticismo profundo, e de algumas reflexões sobre o elevado dissenso que parece ser componente intrínseco das democracias constitucionais modernas, eles são levados a concluir que “a ‘Árvore Viva’ tem suas raízes fincadas em areia movediça.” (p. 145) E se minha proposta alternativa estiver enraizada em areia movediça, então já teria afundado. É sempre difícil responder aos céticos de maneira que fiquem perfeitamente satisfeitos. Sempre haverá espaço, mesmo que remoto e implausível, para dúvidas diante de qualquer proposição ou teoria apresentada. Portanto, aquele que oferece propostas e argumentos controvertidos para apreciação deve proceder com bastante cautela e humildade. Isto é especialmente verdadeiro quando se trata de filosofia – particularmente nas suas afirmações quanto à natureza e às exigências da moralidade. Então, como isto é relevante para a nossa discussão? Vejamos a seguir. Entre meus objetivos principais em A Common Law Theory of Judicial Review: The Living Tree, estava a abertura de uma nova via de pensamento, a fim de introduzir o que eu chamei, de certa maneira com pouca modéstia, de “uma revolução Copernicana” na nossa maneira de pensar sobre as cartas e as práticas possíveis de controle judicial a partir delas. Pode-se pensar no meu argumento da seguinte forma. Se a chamada “Visão Padrão” das cartas e o dito “Argumento Padrão” em favor do controle de constitucionalidade são tudo que temos para seguir com o debate, então é melhor render-nos de uma vez aos críticos. O caso apresentado pelos críticos é, desta perspectiva, provavelmente insuperável. Mas, e se houver outra opção? E se pudéssemos dar sentido àquilo que se chamou de moralidade As citações desta página referem-se à revista Problema - Anuário de Filosofía Y Teoria del Derecho, v. 3, 2009. 1

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constitucional da comunidade, compreendida como um conjunto de normas que pode ser manejada por juízes, de forma semelhante àquela mediante a qual os juízes da Common Law desenvolveram e aplicaram um corpo, mais ou menos coerente, de normas reguladoras de questões como a negligência ou o uso razoável da força? Será então que teríamos uma alternativa plausível, que poderia nos permitir contornar as objeções mais poderosas apresentadas pelos críticos? E, será que não teríamos, dessa maneira, uma concepção de controle de constitucionalidade que destacaria o seu potencial para o bem? Foi com essas ambições modestas em mente que eu tracei algumas etapas preliminares no sentido de introduzir uma teoria sobre a moralidade constitucional e sua possível função no controle de constitucionalidade. Como observado na minha resposta a Imer Flores, a moralidade platônica contém considerável indeterminação. O mesmo acontece com a moralidade positiva, se a compreendermos simplesmente como o resultado da tentativa de unir uma amálgama de opiniões populares acerca da moral, amplamente difundidas em uma comunidade democrática moderna. A moralidade positiva, assim concebida, é, como Struchiner e Shecaira nos lembram, uma miscelânea de conflitos incomensuráveis e, em muitos casos, de opiniões morais irrefletidas. Se a moralidade a que as cartas fazem referência fosse de algum desses dois tipos, então deveríamos ser céticos quanto à possibilidade de limitarmos os juízes, e deveríamos também defender seu completo abandono. E a minha “Árvore Viva” de fato estaria destinada a afundar. Mas a moralidade constitucional, tal como apresentada em meu livro, não é nenhuma dessas duas coisas. Como mencionado, é o complexo produto de inúmeras escolhas, feitas por diversas pessoas, ao longo da história de uma comunidade. E, principalmente, em determinados assuntos, pode não ser compatível com alguns dos pontos de vista amplamente compartilhados dentro desta mesma comunidade, tais como o aborto ou o casamento homoafetivo. É verdade que, se realizássemos uma pesquisa com as pessoas de certos países, como o Canadá, México, Brasil ou Estados Uni-

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dos, quase que certamente encontraríamos uma falta de consenso a respeito da moralidade do casamento homoafetivo. Pode-se expressar isso afirmando que os pontos de vista morais das pessoas, mesmo levando em consideração as hipóteses bem refletidas, são radicalmente diferentes, ou que a moral da comunidade (se houver tal coisa) está dividida quanto a essa questão. Todavia, isto não implica considerar que a moralidade constitucional da comunidade está igualmente dividida, no sentido de ser indeterminada quanto à correção de qualquer uma dessas visões concorrentes. Quando a Suprema Corte do Canadá decidiu em favor do casamento homoafetivo, não baseou a sua decisão exclusivamente em um consenso de opinião, entre os canadenses, a respeito do assunto. Isso é bom porque, obviamente, não se encontra tal consenso, mesmo depois de haver expurgado de nossa amostragem certas opiniões baseadas numa lógica inconsistente e crenças factuais obviamente falsas. E talvez o mais importante para os nossos propósitos é que o Tribunal não baseou a sua decisão na moralidade da comunidade concebendo-a como algo independente do seu direito, particularmente quanto ao seu ramo constitucional. Ao contrário, o Tribunal se baseou em uma longa linha de decisões do judiciário e do legislativo canadenses, cada qual “determinando”, de alguma forma particular, as normas de “igualdade”, conforme aplicadas a gays e lésbicas canadenses no que tange aos benefícios previdenciários, adoção, e assim por diante. Quando todos esses elementos foram adicionados à mistura, o que surgiu foi a conclusão de que a proibição do casamento homoafetivo viola a moralidade constitucional do Canadá. Pelo menos, é assim que o Tribunal viu a questão, mesmo que ele e eu tenhamos sido um pouco imprudentes em salientar aquilo que acreditávamos ser a conclusão certa e evidente. E tudo isso é verdade, apesar do fato óbvio de que existia - e continua a existir - um desacordo generalizado entre canadenses racionais e bem informados sobre quão desejável moralmente é o casamento homoafetivo.

Então, as minhas ambições eram modestas: sugerir de que forma a moralidade constitucional de uma comunidade, se é que tal coisa pode ser construída, poderia limitar adequadamente os juízes, apesar do profundo e inegável nível de desacordo existente em relação às controversas questões que são suscitadas no âmbito do controle de constitucionalidade. É claro que não digo o bastante sobre como tal moralidade pode ser construída e, presumindo que o seja, se apresentaria determinação suficiente de modo a enraizar minha árvore viva em algo mais estável do que a areia movediça. Estas são definitivamente questões importantes que ainda não foram integralmente respondidas.

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CAPÍTULO IV &GXGOQULWÈ\GUEQPUKFGTCTCTIWOGPVQU OQTCKU!* Jeffrey Brand-Ballard**

1. Introdução

Este artigo pretende lançar luz sobre uma questão fundamental acerca dos deveres dos juízes em cortes judiciais. Estou interessado em casos nos quais o direito, compreendido e aplicado de maneira apropriada, requer que os juízes alcancem um certo resultado, a despeito do fato de que argumentos morais convincentes podem ser oferecidos contra esse resultado. Chamo-os de casos de resultado subótimo. Autores proeminentes nos Estados Unidos têm dito recentemente que alguns casos de resultado subótimo são inevitáveis em qualquer sistema jurídico realista. Essa tese é defendida nos trabalhos de Frederick Schauer, Larry Alexander, Emily Sherwin, Alan Goldman e outros (Alexander, 1991; Alexander e Sherwin, 2001; Goldman, 2002; Goldman, 2006; Schauer, 1991)1. A pergunta prática fundamental sobre casos de resultado subótimo é: como devem os juízes decidi-los? Essa pergunta mais ampla é difícil demais para este artigo, mas eu procuro alcançar * Traduzido por Fábio Perin Shecaira e Noel Struchiner. [No texto original, o autor emprega uma série de termos técnicos correntes na literatura filosófica de língua inglesa. Infelizmente, não há consenso entre os autores brasileiros sobre como traduzir boa parte desses termos. Preferimos, nesses casos, simplesmente empregar a expressão original (e.g. “all-things-considered”) ou traduzi-la ao pé da letra, mantendo o termo em inglês entre parênteses]. ** Jeffrey Brand-Ballard é Professor Associado de Filosofia da Columbian College of Arts & Sciences da George Washington University, DC. 1 Esses autores se concentram em casos nos quais as normas jurídicas aplicáveis assumem a forma de regras.

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algum progresso em um livro que está por vir2. Neste artigo, discuto uma questão preliminar: devem os juízes sequer considerar argumentos morais cujas conclusões contradizem o direito? Devem tais argumentos extrajurídicos receber algum peso? Alguns juristas insistiriam que os juízes não devem atribuir peso algum a tais argumentos (Alexander e Sherwin, 2001; Goldman, 2002; Scalia, 1989). Chamo essa posição de tese do solapamento (“undermining thesis”), dada a sua afirmação de que razões morais para desviar-se do direito são solapadas pelo próprio direito. Eu examino vários argumentos possíveis a favor da tese do solapamento, concluindo que nenhum deles está correto. 2. Razões práticas

Minhas unidades básicas de análise são as razões práticas. Elas são razões para agir ou abster-se de agir, em oposição às razões teóricas – razões para crer. Eu uso a distinção familiar entre razões pro tanto e razões all-things-considered.3* 4 Um fator cumpre o papel de razão quando favorece uma certa ação5. Uma razão pro tanto para realizar uma ação favorece essa ação, mas pode ser derrotada por uma razão pro tanto de maior força. Um agente tem uma razão all-things-considered para fazer aquilo que é favorecido pelo balanço de razões pro tanto. Se eu prometo que vou encontrar você para o almoço ao meio-dia, eu adquiro uma razão pro tanto para encontrá-lo. Mas se a minha filha pequena quebra sua perna pouco antes do meio-dia, então tenho uma razão pro tanto mais forte para levá-la ao hospital e faltar ao nosso Sob contrato com Oxford University Press. Nota do tradutor. A tradução literal desta expressão seria: “consideradas todas as coisas”, ou “levando-se tudo em consideração”. 4 Muitos seguiram W. D. Ross, que falava de razões prima facie, mas “pro tanto” tornou-se a terminologia preferida (Kagan, 1989, p. 17; Ross, 1930). Razões all-things-considered também são conhecidas como conclusivas ou decisivas. 5 Tomo o termo [“favorecer”] emprestado de Dancy, 2004, p. 29. 2

3 *

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encontro. Nós diríamos que tenho uma razão all-things-considered para levar minha filha ao hospital e uma razão, talvez, para pedir desculpas a você. 3. Força

Decisões judiciais são moralmente significativas em parte porque controlam o uso de força e as ameaças de uso de força. Juízes orientam outros oficiais a usar força e criar, retirar ou bloquear ameaças de uso de força. A força está envolvida seja qual for o modo como um juiz decide um caso. Se ele decide a favor do réu, então ele se abstém de ameaçá-lo com o uso de força e o protege de ameaças feitas por outros oficiais. Se ele decide contra o réu, instrui os oficiais subordinados a ameaçá-lo com o uso de força, e a usá-la caso necessário, e se abstém de ameaçar os oficiais caso eles o façam. 4. Resultados ótimos versus resultados subótimos

Decisões judiciais afetam a forma como a força é usada no sistema jurídico. Elas podem ser avaliadas em termos normativos. O resultado foi justo ou injusto, eqüitativo ou iníquo, tendente ou não ao bem estar geral? Esta seção faz uma distinção, pressuposta pelo meu argumento, entre resultados ótimos e subótimos. No entanto, minha discussão a respeito da distinção precisa permanecer abstrata. Teorias diferentes sobre justiça, punição e políticas públicas identificarão resultados diferentes como ótimos. Neste capítulo, procuro me manter o mais neutro possível acerca de como julgar casos específicos. Para os meus propósitos, a distinção entre ótimo e subótimo é uma distinção conceitual. Para avaliar meus argumentos, basta que você esteja preparado para distinguir, por sua conta, entre resultados ótimos e subótimos. Você e eu não precisamos concordar a respeito da classificação apropriada de qualquer resultado particular. Afinal, suas opiniões morais e políticas podem diferir das minhas.

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No restante do capítulo, no entanto, alguns leitores ver-se-ão fazendo perguntas como as seguintes: como pode um juiz saber que ele está certo quando determina que um dado resultado é subótimo? E se ele estiver errado? Há realmente respostas corretas para questões normativas difíceis? Alguns leitores serão incapazes de deixar tais dúvidas de lado. Pode parecer que faço algumas suposições tolas: que determinar se um resultado é subótimo é sempre fácil; que juízes sempre determinam corretamente quais resultados são subótimos; que juízes geralmente concordam acerca de questões normativas. Essas suposições não são realistas, é claro. Meus argumentos são projetados para ter êxito sem depender delas, embora caiba a você decidir se eles conseguirão fazê-lo. Estou simplesmente tentando respeitar o fato de que vivemos com aquilo que John Rawls chama “o fato do pluralismo razoável” (Rawls, 1993, p. 144)6. Para os nossos propósitos, bastam as seguintes definições: t Um resultado r1 em um caso é normativamente superior a um resultado r2 se e somente se o juiz teria uma razão all-things-considered para alcançar r1, em vez de r2, se o direito permitisse alcançar tanto r1 quanto r2. t Um resultado r é ótimo se e somente se nenhum outro resultado é normativamente superior a r. t Um resultado r é subótimo se e somente se r não é ótimo (Schauer, 1991, p. 204).

Um caso de resultado ótimo é aquele em que o direito permite ao juiz alcançar um resultado ótimo. Todos os demais são casos de resultado subótimo: aqueles nos quais o direito requer que o juiz alcance um resultado subótimo7. Num caso de resulNão posso, é claro, ignorar permanentemente que juízes têm muitas opiniões morais incorretas e discordarão intensamente entre si a respeito de muitas questões morais. Eu abordo esse assunto no Capítulo XIV do meu livro. 7 É importante lembrar que o adjetivo “subótimo”, na expressão “caso de resultado subótimo”, qualifica o resultado exigido pelo direito, e não o resultado efetivamente alcançado por uma corte. Então, um caso de resultado subótimo 6

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tado subótimo, o direito requer que o juiz decida a favor de uma das partes, ainda que ele tivesse uma razão all-things-considered para decidir contra aquela parte, se o direito o permitisse. Um juiz pode alcançar um resultado subótimo num caso de resultado subótimo mesmo que ele não cometa qualquer erro de fato ou de direito8.

5. Pressupostos da existência de casos de resultado subótimo

Minha discussão se dirige às pessoas que acreditam que casos de resultado subótimo realmente existem. Qualquer um que acredite nisso está comprometido com três suposições. Primeiro: pelo menos algumas questões jurídicas têm respostas juridicamente corretas. Segundo: o direito às vezes requer que os juízes alcancem resultados que eles teriam razões all-things-considered para evitar, se o direito permitisse. Terceiro: juízes, enquanto agentes morais, têm razões morais que o direito em si não fornece. Eu discuto essas suposições, seriatim, nas três subseções que seguem. não é um caso em que uma corte chega a um resultado subótimo. É um caso em que o direito requer que a corte chegue a um resultado subótimo, mesmo que a corte não o faça. O mesmo se aplica aos casos de resultado ótimo, mutatis mutandis. 8 Imagine dois matadores de aluguel, ambos condenados pelo crime de homicídio nos estados de Ohio e Vermont, respectivamente. Ohio executa o condenado, enquanto o direito de Vermont não permite a pena de morte, e o matador de Vermont recebe uma pena de prisão. Um abolicionista em relação à pena de morte considera o caso de Ohio um caso de resultado subótimo, enquanto um defensor da pena de morte o considera um caso de resultado ótimo. As suas opiniões se invertem quando consideram o caso de Vermont. Apesar dos seus desacordos substantivos, ambos acreditam que há uma diferença conceitual entre casos de resultado ótimo e casos de resultado subótimo.

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A. Determinação parcial Casos de resultado subótimo não podem existir a menos que algumas questões jurídicas tenham respostas juridicamente corretas. A antítese – que nenhuma questão jurídica tem uma resposta juridicamente correta – é a indeterminação radical9. Regras jurídicas válidas e vinculantes pretendem fornecer aos seus destinatários pelo menos razões pro tanto para a ação. No entanto, se uma regra é radicalmente indeterminada, ela não fornece tais razões. Isso implica que os juízes não têm razão para aderir à regra, porque a regra, na verdade, não requer coisa alguma10. Se as regras jurídicas são todas radicalmente indeterminadas, então do princípio de que “deve” implica “pode” segue-se que não há nenhum dever judicial de aderir ao direito, e os meus argumentos restantes são vãos. Um compromisso com a indeterminação radical é freqüentemente atribuído ao movimento dos Critical Legal Studies (Solum, 1996; Altman, 1990, p. 19; Kress, 1989, p. 283), embora eu hesite em atribuir a tese a qualquer autor específico sem antes defini-la de maneira mais precisa11. A tese da indeterminação radical, juntamente com outras teses relacionadas a ela e também atribuídas aos Critical Legal Studies, foi submetida a crítica severa e extensa (Altman, 1990; Solum, 1987; Kress, 1989; Coleman e Leiter, 1993; Burton, 1992; Greenawalt, 1992, pp. 3-89; Waluchow, 1996; Drahos e Parker, 1992; Bix, 1993; Zapf e Moglen, 1996; Landers, 1990). Esse debate é complicado. Alguns representantes Também conhecida como “indeterminação forte”. Ver, e.g., Solum, 1996, p. 491. 10 “Se alguém pensasse que regras são radicalmente indeterminadas – isto é, que é impossível dizer se uma regra se aplica em qualquer caso particular – não faria sentido perguntar... se elas restringem decisões já tomadas.” Shapiro, 2001, p. 557 n. 26. 11 Essa posição já foi atribuída a Joseph Singer, Duncan Kennedy, Clare Dalton, Mark Tushnet, Gary Peller, e muitos outros. Ver, e.g., Kress, 1989, pp. 286-87 (Singer, Kennedy); Altman, 1990, pp. 19, 58 (Dalton, Tushnet, Peller). 9

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dos Critical Legal Studies, e outros defensores da indeterminação, afirmam que suas posições foram mal compreendidas ou mal reproduzidas (Kennedy, 1997, p. 24; D’Amato, 1990). Eu não vou me posicionar em relação a isso. Muitos observaram que os Critical Legal Studies não são mais um movimento acadêmico viável12. Seu fim pode ser parcialmente atribuível à crítica da tese da indeterminação, mas, novamente, não vou tentar oferecer argumentos em defesa dessa ideia. Seja qual for a causa do fim dos Critical Legal Studies, o consenso atual é que a maioria das regras jurídicas vinculantes não são radicalmente indeterminadas, e que mesmo as regras parcialmente indeterminadas são capazes de guiar os juízes. Nas palavras de Brian Tamanaha, “o debate teórico sobre a indeterminação jurídica expirou com um consenso de que um certo grau de indeterminação coexiste com uma quantidade substancial de previsibilidade” (Tamanaha, 2004, p. 124)13. Da mesma forma, assumirei que pelo menos algumas questões jurídicas têm um número finito de respostas juridicamente corretas – uma ou mais – além de algumas respostas juridicamente incorretas. Embora eu assuma que normas jurídicas prescrevem resultados determinados em alguns casos, seja lá como for que elas o fazem, não vou assumir nenhuma teoria específica sobre conteúdo jurídico. Eu convido você a adotar qualquer teoria sobre conteúdo jurídico que lhe agrade: positivista inclusiva, positivista exclusiva, dworkiniana etc14. Não vou assumir, como fazem os Tamanaha, 2006, p. 132 (Critical Legal Studies “não existem mais”); Sunstein, 2001, p. 1251 (Critical Legal Studies “desapareceram”); Balkin, 2001, p. 1441 (Critical Legal Studies estão “mortos e enterrados” (“dead as a doornail”) in 2000); Unger, 1996, p. 121. (“A radicalização da indeterminação é um erro.”) 13 Ver também Alexander e Sherwin, 2001, p. 97 (“Rejeitamos o ceticismo acerca da possibilidade de comunicação por meio da linguagem.”). 14 Consigo imaginar, no entanto, teorias sobre conteúdo jurídico que, caso verdadeiras, tornariam inoperante a minha teoria da decisão judicial (“theory of adjudication”). Alguém poderia assumir a posição de acordo com a qual os juízes sempre têm uma razão all-things-considered para aderir ao direito, mas 12

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positivistas exclusivos, por exemplo, que o conteúdo do direito pode sempre ser identificado sem recurso a argumentos avaliativos (Raz, 1979; Shapiro, 2000). Meus argumentos não pressupõem uma teoria positivista do conteúdo jurídico, muito menos uma teoria positivista exclusiva, embora sejam compatíveis com essas teorias. Meus argumentos são compatíveis até mesmo com aquilo que Hart chama teorias “formalistas”, de acordo com as quais as regras sempre determinam a resposta juridicamente correta (Hart, 1994, cap. 7). Eu não vou assumir que o direito consiste exclusivamente de regras, em vez de princípios ou outros tipos de padrões jurídicos. Minha posição é compatível com a afirmação de Dworkin de que teorias sobre o conteúdo do direito “não precisam deixar em aberto a questão sobre como os juízes devem decidir casos reais” (Dworkin, 1986, p. 112). O meu assunto é aquilo que Dworkin chama de força do direito (“force of law”) – “o poder relativo de qualquer proposição jurídica verdadeira para

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negar que as leis de sistemas jurídicos razoavelmente justos alguma vez exijam resultados subótimos. Imagine uma teoria que implica que se uma decisão judicial produz um resultado subótimo, então, ipso facto, essa decisão está juridicamente incorreta. Disso se segue que casos de resultado subótimo não existem. Não conheço qualquer pessoa que tenha defendido essa tese, embora seja possível que alguém o tenha feito. Alguns jusnaturalistas chegam muito perto, mas nem eles vão tão longe. Michael Moore observa que Cicero, Blackstone e outros jusnaturalistas eventualmente afirmam que o caráter justo de uma norma é suficiente para a sua validade jurídica (Moore, 1992, p. 197). No entanto, essa posição não implica que o direito sempre permite alcançar resultados ótimos. Mesmo as normas ótimas prescrevem resultados subótimos em casos de lacuna. A própria posição de Moore se aproxima ainda mais da visão de que “subotimidade” gera incorreção jurídica. Além de endossar a máxima de Agostinho, lex iniusta non est lex, Moore afirma que “uma decisão judicial injusta não é o direito no que diz respeito ao caso decidido” (Idem, p. 198). Isso implica que os juízes nunca estão juridicamente ou moralmente obrigados a alcançar resultados injustos, mas alguém poderia aceitar esse princípio sem contar como injusto todo resultado que contar como subótimo de acordo com a minha definição. Embora todo resultado injusto seja subótimo, pode-se definir “injusto” de tal modo que apenas os casos mais gravemente subótimos são injustos.

justificar a coerção em diferentes tipos de circunstâncias excepcionais” -, em vez de bases do direito (“grounds of law”) – “circunstâncias em que proposições jurídicas específicas deveriam ser consideradas corretas ou verdadeiras” (Idem, p. 110).

B. Imperfeição O segundo pressuposto da existência de casos de resultado subótimo é que alguns resultados exigidos pelo direito são, de fato, subótimos. Contra essa tese, alguém poderia assumir uma posição “panglossiana” de acordo com a qual os resultados exigidos pelo direito no seu sistema jurídico são sempre moralmente ótimos, ou pelo menos moralmente indiferentes. Opondo-se ao panglossianismo, Antonin Scalia observa “a inevitável tendência dos juízes para pensar que o direito é aquilo que eles gostariam que ele fosse” (Scalia, 1989, p. 864). Algumas pessoas têm dificuldade em aceitar a ideia de que o direito, aplicado apropriadamente, poderia proibir seus resultados preferidos. Elas acreditam que casos de resultado subótimo não existem. Elas se queixam quando os juízes chegam a resultados que elas consideram “ruins”, mas elas não distinguem entre “moralmente ruim” e “juridicamente incorreto”. Elas condenam certas decisões como, ao mesmo tempo, moralmente ruins e juridicamente incorretas. Elas elogiam outras decisões como boas e fiéis ao direito. Se os panglossianos estão certos, então os juízes podem simplesmente perseguir o resultado juridicamente correto em cada caso, confiantes de que, seja qual for esse resultado, ele também será moralmente ótimo15. Um positivista só poderia ser um panglossiano se ele acreditasse que seu sistema jurídico é um sistema perfeito, com legisladores excepcionalmente ilustrados. Eles fazem leis que permitem a cada juiz decidir exatamente da maneira como ele faria se decidisse de acordo com uma razão all-things-considered, caso o direito nada tivesse exigido dele. Esse seria um estado de coisas feliz. Juízes nunca teriam um razão all-things-considered para descumprir o direito. Não haveria casos de resultado subótimo. Por outro lado, um jusnaturalista poderia ser um panglossiano sem atribuir perfeição aos legisladores do seu sistema. Ele poderia simplesmente insistir que “o direito”, bem compreendido, sempre reflete a moralidade, e não o direito positivo (quando os 15

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Não vou oferecer argumentos contra as posições panglossianas, mas vou assumir que elas estão erradas.

C. Razões além do direito O último pressuposto da existência de casos de resultado subótimo é que tais casos não podem existir a menos que os juízes tenham razões que o direito em si não fornece. Opondo-se a isso, alguém pode insistir que as razões fornecidas pelo direito são as únicas razões que os juízes têm para decidir casos. De acordo com essa tese, se o direito não exigisse do juiz um certo resultado, então ele não teria razão para alcançá-lo, em vez de um resultado contrário. Logo, não haveria casos de resultado subótimo, porque a definição de caso de resultado subótimo pressupõe que juízes podem ter razões para alcançar resultados que são meramente permitidos, mas não exigidos, pelo direito. A tese mencionada acima reflete a visão de que o papel judicial é um “guia perfeitamente adequado” à ação judicial (Hardimon, 1994, p. 338). A noção de que papéis sociais podem ser guias perfeitamente adequados para a ação já foi atribuída a Hegel e a F.H. Bradley, mas agora essa atribuição é amplamente criticada. Proponentes contemporâneos da moralidade de papéis (“role morality”) rejeitam a atribuição e negam que qualquer filósofo importante já a tenha aceitado (Idem). No que segue, assumirei que os juízes têm outras razões além daquelas fornecidas pelo direito em si.

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dois conflitam). Mas se o direito sempre coincide com a moralidade, então o direito não pode dar uma resposta final a questões morais controvertidas. Para alguns juízes, o direito permite o aborto. Para outros, o direito o proíbe. Não pode haver direito coerente sobre temas em que há desacordo moral entre os juízes. O jusnaturalista panglossiano, portanto, ou teria de assumir que todos os juízes concordam sobre a maioria das questões morais, ou então que os efeitos de uma decisão sobre as partes são sempre mais importantes, no sentido moral, do que quaisquer outros efeitos, incluindo a falta de consistência. O jusnaturalismo panglossiano vai muito além da posição de Moore, discutida acima: nota 14.

6. Casos de resultado subótimo

Vou ilustrar o conceito de caso de resultado subótimo usando um cenário hipotético, um caso típico de privação econômica16. Yasmin é uma viúva empobrecida que está alugando um apartamento de Rafael, proprietário rico que herdou o imóvel e nunca trabalhou na vida. Yasmin deixou de pagar vários meses de aluguel. Rafael propôs uma ação de despejo perante o juiz Lucas. Eu estipulo que Yasmin é moralmente inocente. Ela está velha e frágil demais para trabalhar. Sua pensão não é suficiente para pagar o aluguel. Nem a justiça retributiva, nem a justiça corretiva exigem uma decisão contra Yasmin. Ela não fez nada para merecer o despejo, sob o ponto de vista da moralidade (embora, juridicamente, ela tenha descumprido um contrato). O juiz Lucas também não viola os direitos morais de qualquer pessoa se decidir a favor de Yasmin. Essa decisão viola os direitos jurídicos de Rafael, mas, para começar, Rafael não tinha, ausentes as normas jurídicas, um direito moral de receber o aluguel de Yasmin. O direito de propriedade em vigor, suponhamos, não consegue atender às exigências da justiça distributiva, já que ele fornece um sistema social de proteção inadequado para pessoas que se encontram na situação de Yasmin. O despejo de Yasmin também não vai maximizar a utilidade combinada de Yasmin e Rafael, visto que Yasmin precisa mais de seu apartamento do que Rafael do dinheiro dela. Se o direito não exigisse o despejo, o juiz Lucas teria uma razão moral all-things-considered para rejeitar o pleito de Rafael. No entanto, a norma que regula o caso requer que ele acolha o pleito e expulse Yasmin. Seja qual for a decisão do juiz Lucas, ela vai frustrar e trazer desvantagem à parte derrotada. Se o direito permitisse uma decisão a favor de Yasmin, o juiz Lucas teria uma forte razão pro tanto para tomar tal decisão. Minha pergunta é: o que acontece com essa razão quando uma lei requer que o juiz chegue a um Esse caso é uma adaptação de um caso discutido em Wasserstrom, 1961, p. 141 e em Goldman, 2002, p. 43. 16

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resultado subótimo, como de fato ela faz no caso de Yasmin? Vou considerar argumentos em defesa da conclusão de que, em casos de resultado subótimo, todas as razões para evitar resultados subótimos, inclusive as razões morais, são solapadas (“undermined”), isto é, elas perdem toda a força. Vou argumentar que essas razões não são solapadas. Elas sobrevivem como razões pro tanto para evitar resultados subótimos17. Ofereço o caso de Yasmin como um exemplo de caso de resultado subótimo, mas eu o faço apenas com o objetivo de tornar mais concreta a minha tese. Meu objetivo não é persuadi-lo de que uma decisão contra Yasmin é um resultado subótimo. Essa conclusão depende de certas teorias sobre a justiça distributiva que eu não vou pedir que você aceite. Se você fica contente em ver Yasmin derrotada, então você pode imaginar algum outro caso em que o direito requer um resultado que você considera subótimo. Abaixo há uma lista de resultados, muitos deles inspirados em casos reais.18* O fato do pluralismo razoável sugere que, para a maioria desses resultados, você deve ter facilidade em imaginar uma pessoa inteligente e bem informada que considera o resultado subótimo, concorde você ou não: a)

Uma corte judicial ordena a deportação de um imigrante ilegal que trabalhou muito e fez grandes contribuições para a sua comunidade.

b) Uma corte proíbe que um estudante frequente uma escola pública fora do seu distrito a despeito do fato de que seu próprio sistema escolar oferece um ambiente de ensino inadequado e inferior. É, naturalmente, uma outra questão se essas razões são superadas (“overridden”) por razões mais fortes para aplicar o direito, mas eu não vou responder essa questão neste artigo. 18 * Nota do tradutor. Vale lembrar que o autor faz referência a casos litigados no sistema jurídico do Estados Unidos. Ao descrevê-los, portanto, ele utiliza termos que denotam categorias jurídicas próprias daquele sistema e menciona sanções jurídicas (e.g. pena de morte, prisão perpétua) que o sistema jurídico brasileiro não admite. 17

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c)

Sob leis que estipulam penalidades mínimas, uma corte atribui pena de prisão perpétua a alguém condenado por uma agressão com porte de arma (“assault with deadly weapon”) e dois delitos não-violentos subsequentes.

d) O júri determina a execução do réu e uma corte confirma a decisão com base na alegação de inexistência de erro jurídico. e)

Uma corte ordena o confisco dos bens dos parentes inocentes de um condenado19.

f)

Uma corte rejeita provas obtidas ilicitamente que são indispensáveis para a condenação de um réu acusado de abusar sexualmente de várias crianças.

g)

Uma corte condena à prisão um ambientalista responsável por atos de vandalismo contra um estabelecimento cujas atividades eram nocivas ao meio ambiente.

h) Uma corte impõe uma longa pena de prisão sobre um jovem de dezoito anos por manter relações sexuais consensuais com a sua namorada de quinze anos. i)

Uma corte rejeita as referências aos ideais de liberdade de expressão (contidos na Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos) feitas por um estudante que deseja fazer uma prece cristã diante de seus colegas em um evento patrocinado por uma escola pública.

j)

Uma corte rejeita a denúncia contra um médico que realizou um aborto antes que o feto fosse viável.

k)

Uma corte confirma a condenação de um médico que realizou um aborto com nascimento parcial (“partial-birth abortion”)20* no estado de Nebraska; o médico acreditava que o procedimento era necessário para proteger a saúde da mulher grávida.

Bennis v. Michigan, 116 S. Ct. 994 (1996). Nota do tradutor. Trata-se de uma técnica própria para a interrupção da gravidez avançada (ver: ). 19

20 *

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l) m) n) o)

p)

Uma corte confirma a condenação de um réu que produz maconha para fins medicinais21. Uma corte rejeita um processo criminal contra um réu que realizou tráfico virtual de pornografia infantil. Uma corte atribui uma pena longa a uma vítima de violência doméstica que matou seu parceiro enquanto ele dormia. Uma corte federal ordena que um agente público remova de um prédio público um monumento que faz referência aos Dez Mandamentos. Uma corte federal revoga uma proibição sobre a propriedade de armas no Distrito de Columbia22.

Casos de resultado subótimo, e o problema a respeito de como os juízes devem solucioná-los, não são nada novos. Muitos comentadores, independentemente das suas filiações políticas, acreditam que a Corte Suprema dos Estados Unidos durante a era Warren desviava-se repetidamente da leitura juridicamente correta da Constituição. Os mais conservadores condenam as decisões como instâncias injustificadas de descumprimento do direito. Mas juristas progressistas frequentemente concordam, com relutância, que a Corte Warren descumpriu o direito vigente à época. Esses juristas progressistas veem os casos em questão como casos de resultado subótimo em que a Corte, afortunadamente ou até mesmo heroicamente, desviou-se do direito. Como explica Tamanaha, Brown versus Board of Education23 convida o mesmo tipo de reação: ĚĞĐŝƐĆŽĞŵƌŽǁŶͲƉŽĚĞͲƐĞĂƌŐƵŵĞŶƚĂƌͲŶĆŽƐĞďĂƐĞĂǀĂ Ğŵ ƉƌŝŶĐşƉŝŽƐ ũƵƌşĚŝĐŽƐ͕ ĞůĂďŽƌĂĕĆŽ ũƵƐƟĮĐĂĚĂ ;͞ƌĞĂƐŽŶĞĚĞůĂďŽƌĂƟŽŶ͟Ϳ͕ŽƵƉƌŝŶĐşƉŝŽŶĞƵƚƌŽ;͞ŶĞƵƚƌĂů ƉƌŝŶĐŝƉůĞ͟Ϳ͘ĚĞĐŝƐĆŽŶĆŽƉŽĚĞƌŝĂ͕ƉŽƌƚĂŶƚŽ͕ƐĞƌĐŽŶĨŽƌGonzales v. Raich, 125 S. Ct. 2195 (2005). District of Columbia v. Heller, 128 S. Ct. 2783 (2008). 23 Brown v. Board of Education, 347 U.S. 483 (1954) (segregação racial em escolas públicas viola a cláusula constitucional de proteção igual - “Equal Protection”.) 21

22

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Os acadêmicos liberais a que Tamanaha se refere estavam, e estão, divididos. Alguns acreditam que os supostos desvios da Corte Warren eram eticamente justificados, embora ilegais (“unlawful”). Outros liberais concluem, muitas vezes com algum pesar, que os juízes agiram de forma antiética, apesar de alcançarem resultados justos. Resultados justos poderiam ter sido alcançados pelos poderes políticos e, de acordo com essa visão, não deviam ter sido realizados pelo judiciário (Ely, 1973; Wechsler, 1959). Um terceiro grupo de liberais, é claro, nega que a Corte Warren realmente se desviou do direito (embora possa admitir que os juízes se desviaram de certas regras jurídicas). Esses liberais negam que o direito realmente exigia resultados subótimos naqueles casos controvertidos. Formular uma teoria do direito que seja coerente com essa posição é um dos desafios enfrentados por esses juristas liberais (Strauss, 2007). Juristas conservadores, é claro, não se convencem com os esforços feitos nesse sentido. E também não há muito consenso entre juristas liberais sobre como justificar decisões liberais em termos jurídicos (Ackerman, 1991, cap. 6; Balkin, 2005; Balkin e Ackerman, 2001). Talvez com a mesma frequência, os conservadores hoje pensem que o direito não está do seu lado. E, no entanto, como observa Scott Shapiro,

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7. Decidindo casos de resultado subótimo

Uma vez que o juiz tenha determinado o que o direito requer no caso sob análise, ele tem duas opções: aderir ao direito ou desviar-se dele24. Em casos de resultado ótimo, o juiz tem boas razões para aderir ao direito. Se o direito permite que o juiz favoreça o réu, e esse é o resultado ótimo, o juiz tem razões morais pro tanto para abster-se de ameaçá-lo com o uso de força e para protegê-lo de ameaças por parte de outros oficiais. Se o direito permite favorecer o autor, e esse resultado é ótimo, então o juiz tem razões morais pro tanto para instruir oficiais subordinados a ameaçar o réu com o uso de força. O juiz também tem razões morais para afastar ameaças de uso de força contra os oficiais se eles ameaçarem o réu conforme instruídos. De fato, se o direito o permitir, o juiz tem razões morais all-things-considered para evitar casos de resultado subótimo. Isso se segue da definição de um resultado subótimo: aquele que o juiz tem uma razão moral all-things-considered para evitar, se o direito o permitir. São menos óbvias as razões que o juiz tem em casos de resultado subótimo. Nesses casos, o direito requer que o juiz ordeAlternativamente, o juiz poderia recusar-se a decidir, renunciar ao cargo ou cometer suicídio. Não vou considerar nenhuma dessas opções. 24

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ne oficiais subordinados a usar força, ou ameaçar usá-la, contra a parte juridicamente desfavorecida. Em um caso de resultado subótimo, por definição, o juiz teria uma razão all-things-considered para não realizar tais ações, se elas não fossem exigidas pelo direito. Em um caso de resultado subótimo em que o direito favorece o autor, o juiz teria razões all-things-considered para abster-se de ameaçar o réu com uso de força, e protegê-lo das ameaças de outros oficiais, se o direito o permitisse. Em um caso de resultado subótimo em que o direito favorece o réu, o juiz teria uma razão all-things-considered para instruir os oficiais subordinados a ameaçar o réu com uso de força, se o direito o permitisse. Ele também teria razões all-things-considered para não ameaçar os oficiais subordinados, se eles ameaçassem o réu conforme instruídos. Eu quero determinar o que acontece com as razões morais all-things-considered do juiz para evitar resultados subótimos quando o direito requer tais resultados. Considere os seguintes cenários. O juiz A vai sentenciar um réu condenado pela prática do crime X. Em outra jurisdição, o juiz B vai sentenciar um réu condenado por praticar X em circunstâncias idênticas. Assuma também os seguintes fatos. Primeiro, cada juiz está juridicamente permitido a impor uma pena de prisão pelo crime X, de acordo com as leis das suas respectivas jurisdições. Segundo, nenhum dos réus realmente merece, no sentido moral, uma pena de prisão, visto que o crime X é uma transgressão insignificante. Terceiro, de acordo com as leis da sua jurisdição, o juiz A está juridicamente obrigado a impor a pena de prisão. Por fim, o juiz B não está, de acordo com as leis da sua jurisdição, juridicamente obrigado a impor a pena de prisão. O juiz B tem um razão moral pro tanto para não impor a pena de prisão. A questão é se o juiz A tem uma razão do mesmo tipo e da mesma força. De acordo com a tese do solapamento, quaisquer razões (inclusive razões morais) que um juiz pode ter para alcançar um resultado contra-jurídico são solapadas. A tese

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do solapamento implica que os juízes têm razões morais all-things-considered para aderir ao direito em todos os casos. Ela implica que é sempre objetivamente errado (para um juiz) desviar-se do direito, mesmo quando o direito requer resultados objetivamente ruins. Esse é um princípio absoluto de fidelidade judicial ao direito. Políticos e comentadores insistem frequentemente que os juízes devem “respeitar o direito” (“follow the law”)25. No entanto, o princípio absoluto de fidelidade ao direito implica que o desvio nunca é moralmente permissível, nem mesmo quando o direito exige violações radicais de direitos humanos básicos. Eu não sei se hoje há alguém que acredita nisso. Os críticos do judiciário nem sempre distinguem claramente entre a censura política a um resultado e a crença de que o juiz desviou-se do direito. É difícil saber se os críticos censurariam o desvio caso os seus resultados lhes agradassem. Historicamente, leis já autorizaram o genocídio, a escravidão, a tortura criminal e outros horrores. Críticos que insistem que o desvio é sempre errado não parecem ter essas leis em mente. Mas talvez eles acreditem que os juízes devem simplesmente renunciar aos seus cargos em vez de aplicar tais leis. No extremo oposto ao princípio absoluto da fidelidade está a posição segundo a qual os juízes estão sempre permitidos a alcançar resultados ótimos, mesmo quando o direito os proíbe: eles estão sempre permitidos a desviar-se em casos de resultado subótimo. Essa é uma forma de particularismo jurídico, análoga ao particularismo moral. Particularistas morais afirmam que juízos morais particulares podem ser justificados sem apelo a quaisquer regras ou princípios morais (Dancy, 2004). Particularistas jurídicos afirmam que juízos jurídicos particulares podem “O Juiz Roberts é um juiz excepcional, uma mente jurídica brilhante, e um homem de notável caráter, que compreende seu profundo dever de respeitar o direito.” Herman, 2005, p. 1A (citando comentários do Senador John Cornyn [Republicano do Texas] sobre a nomeação do Juiz John G. Roberts, Jr. à Suprema Corte do Estados Unidos); “Os juízes estão, afinal, obrigados a respeitar o direito.” Shaman, 1996, p. 617. 25

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ser justificados sem apelo a quaisquer regras ou princípios jurídicos26. Uma forma extrema de particularismo jurídico implica que os juízes estão sempre permitidos a alcançar resultados ótimos, mesmo em casos de resultado subótimo27. Alguns comentadores acreditam que desconsiderar o direito às vezes é o que os juízes devem fazer, all-things-considered. No entanto, eles logo acrescentam que casos de desvio justificado nunca aparecem em sistemas jurídicos razoavelmente justos como o nosso (Greenawalt, 1987, p. 368; Dworkin, 1986, p. 111). Nessa medida, eles aceitam a tese do solapamento, pelo menos em relação a sistemas jurídicos razoavelmente justos. Nem todo mundo aceita a tese do solapamento, mesmo com essa restrição quanto ao seu alcance, mas ela é uma posição popular, talvez a posição da maioria dos advogados, juízes, professores de direito e estudiosos da teoria do direito. 8. Avaliando argumentos a favor da tese do solapamento

No restante do artigo, vou apresentar e criticar todos os argumentos a favor da tese do solapamento que eu conheço, mantendo o alcance da tese limitado aos sistemas jurídicos razoavelmente justos. Creio que nenhum desses argumentos está correto28. Concluo que razões morais all-things-considered para evitar resultados subótimos não são solapadas (“undermined”) em casos de resultado subótimo, mas antes sobrevivem como razões pro tanto. É outra questão, naturalmente, se essas razões são superadas (“overridden”) por razões mais fortes a favor da aplicação do direito. Não vou examinar essa questão neste capítulo. Ver, e.g., Alexander e Sherwin, 2001, p. 28 (um modelo de decisão jurídica particularista consiste em raciocinar diretamente de princípios morais para decisões particulares). 27 Para uma visão mais moderada, ver Dworkin, 1978, pp. 326-27. 28 Embora eu pense que devemos rejeitar a tese do solapamento, não sei como provar que a tese é falsa, nem tentarei fazê-lo. 26

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A. Discurso ordinário Um defensor da tese do solapamento pode dizer que ele raramente ouve um observador queixar-se que um juiz agiu de forma “imoral” ou violou seu “dever moral” quando o juiz toma uma decisão que o observador acredita estar de acordo com o direito. Se, como eu afirmo, aderir ao direito em casos de resultado subótimo é pro tanto imoral, então por que as pessoas não se queixam com mais frequência? Tenho duas coisas a dizer como réplica. Primeiro, algumas pessoas de fato se queixam que o juiz agiu de forma imoral ao tomar uma decisão que eles acreditam ser injusta, mesmo quando eles também acreditam que a decisão era exigida pelo direito. Algumas pessoas têm mais tolerância em relação a decisões injustas do que outras, mas a maioria das pessoas consegue imaginar uma decisão tão injusta que elas condenariam o juiz por agir de forma imoral, mesmo que elas estivessem convencidas de que a decisão era exigida pelo direito. Considere a maneira como Tamanaha caracteriza Brown. Aquela decisão, ele afirma, “estava indubitavelmente correta sob um ponto de vista moral”, mas, “pode-se argumentar, não se baseava em princípios jurídicos, elaboração justificada, ou princípio neutro”. Era uma decisão “impossível de justificar em termos puramente jurídicos” (Tamanaha, 2004, p. 80). Se a corte tivesse mantido a segregação escolar, Tamanaha e muitos outros teriam condenado a decisão como imoral (ou pelo menos moralmente subótima), embora juridicamente exigida. Segundo - e mais importante -, você deve lembrar que neste artigo estou afirmando apenas que os juízes têm razões morais pro tanto para desviar-se em casos de resultado subótimo. Eu não preciso, e não vou, afirmar que essas razões devem prevalecer sobre tudo que se oponha a elas. Eu não afirmo que aderir em todos os casos é imoral all-things-considered.29 Portanto, não confunda miNo meu livro, argumento que aderir ao direito em alguns casos de resultado subótimo é moralmente permissível, talvez até mesmo moralmente obrigatório. 29

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nha afirmação modesta de que aderir em todo caso de resultado subótimo é pro tanto imoral com a afirmação insustentavelmente forte de que qualquer juiz que aderir em um tal caso age de maneira “imoral”. No discurso ordinário, afirmar que alguém agiu de maneira “imoral” ou que “violou um dever moral” é afirmar que suas ações não eram moralmente permissíveis all-things-considered. Então, você não deve ficar surpreso se apenas raramente ouvir um observador acusar um juiz de agir de maneira imoral por aderir em um caso cujo resultado o observador acredita ser subótimo. Não se pode inferir a partir do silêncio do observador que ele acredita que o juiz não tem nenhuma razão para desviar-se do direito. O observador pode crer que o juiz tinha uma razão para desviar-se do direito, mas uma razão mais forte para aderir a ele.

B. Positivismo jurídico Alguém pode sugerir que toda a filosofia do positivismo jurídico implica o solapamento. Creio que isso depende do que se entende por “positivismo”. Pode-se definir “positivismo” como a visão de que os juízes devem decidir casos apenas com base em normas jurídicas positivadas. Dworkin chama essa visão de “convencionalismo estrito” (“strict conventionalism”) (Dworkin, 1986, p. 124). O convencionalismo estrito também se assemelha ao que David Dyzenhaus chama de “positivismo” (Dyzenhaus, 1991; Dyzenhaus, 2000). O convencionalismo estrito implica, de fato, que os juízes não têm nenhuma razão para desviar-se do direito em casos de resultado subótimo. Ele implica o solapamento. Se eu estiver certo, o convencionalismo estrito é falso. O convencionalismo estrito não é, entretanto, o que a maioria dos autodenominados positivistas quer hoje dizer com “positivismo”. A declaração de Schauer é típica: EĂĚĂ ŶŽ ƉŽƐŝƟǀŝƐŵŽ ŝŵƉĞůĞ ă ŝĚĞŝĂ ĚĞ ƋƵĞ ĂƉĞŶĂƐ ƌĞŐƌĂƐĐŽŵƉĞĚŝŐƌĞĞũƵƌşĚŝĐŽĚĞǀĞŵŐƵŝĂƌĂƐĚĞĐŝƐƁĞƐũƵĚŝĐŝĂŝƐ͙ K ƉŽƐŝƟǀŝƐŵŽ ƚƌĂƚĂ ĚĂ ǀĂůŝĚĂĚĞ ũƵƌşĚŝĐĂ Ğ ŶĆŽ ĚĞ ĐŽŶĐůƵƐƁĞƐ ƐŽďƌĞ ĐŽŵŽ ĂŐŝƌ͕ Ğ ŶĂĚĂ ŶŽ ƉŽƐŝƟǀŝƐŵŽ

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Positivistas modernos entendem-se como defensores de teorias sobre validade jurídica e conteúdo jurídico, e não como defensores de teorias da decisão judicial. Sua posição é compatível com uma série de teorias da decisão judicial, inclusive a minha.

C. Autoridade jurídica Outro argumento a favor da tese do solapamento procede com base na premissa de que os juízes estão juridicamente autorizados a usar coerção. O direito autoriza os juízes, mas não os particulares, a usar coerção contra os réus derrotados. A maioria dos teóricos concordaria que essa autorização jurídica solapa, para o juiz, pelo menos algumas das razões morais desfavoráveis ao uso da coerção que são atribuídas aos particulares em virtude do seu pertencimento à sociedade civil. Os particulares na sociedade civil têm razões morais para não coagir os outros, nem mesmo aqueles que são moralmente culpáveis e merecem coerção. Ainda que você surpreenda um ladrão roubando seu carro, ato pelo qual ele merece permanecer preso durante seis meses, você tem razões morais para não trancá-lo no quarto de visitas durante seis meses como “punição”. Os juízes têm permissão moral para usar coerção em circunstâncias nas quais os indivíduos não têm. Um juiz tem permissão moral para ordenar a detenção de indivíduos que são moral e juridicamente culpáveis. Quando os indivíduos ingressam na sociedade civil, no entanto, eles trazem do estado de natureza certas razões morais para usar força e para evitá-la. Essas razões incluem razões para assistir os necessitados, proteger os inocentes e não coagir os outros. Se os juízes também retêm essas razões, então elas constituem razões morais para evitar resultados subótimos, mesmo quando juridicamente exigidos. É por isso que eu rejeito o princípio se30

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Ver também Coleman, 2001, p. 167; Brink, 1989.

gundo o qual o juiz não tem nenhuma razão moral para não usar força quando o direito exige que ela seja usada. A autorização jurídica para usar força não solapa todas as razões morais que um juiz tem para não usá-la, assim como as proibições jurídicas quanto ao uso de força não solapam as razões morais para usá-la.

D. Validade jurídica formal (“formal legality”) O próximo argumento a favor da tese do solapamento apela ao ideal do estado de direito (“rule of law”). Limito-me aos sistemas jurídicos nos quais os princípios formais do estado de direito são respeitados: as leis vêm a público com antecedência, são inteligíveis para os sujeitos jurídicos, são voltadas para o futuro (e não ex post facto), são coerentes umas com as outras, podem ser obedecidas etc. (Fuller, 1969, pp. 33-38). Nesses sistemas, os sujeitos não podem se queixar de que desconhecem as consequências jurídicas das suas ações, por mais injustos que possam ser os resultados exigidos pelo direito. Considere uma lei que impõe um tributo especial sobre os cidadãos que frequentam igrejas, com o propósito de desestimular a prática do cristianismo. O confisco de dinheiro dos cristãos os coloca, de modo injusto, em desvantagem. Esse fato constituiria ordinariamente uma razão moral pro tanto para não confiscar o dinheiro. De forma análoga, o caráter injusto da norma fornece aos legisladores razões morais para revogá-la. Vamos assumir, no entanto, que o direito exibe as virtudes formais associadas ao ideal do estado de direito: é público, inteligível, voltado para o futuro, possível etc. Desse modo, todos têm uma oportunidade razoável de tomar conhecimento do fato de que frequentar a igreja implica pagar uma taxa especial. Alguém poderia argumentar que esse fato solapa as razões morais que o juiz tem para não confiscar o dinheiro. Esse argumento toma por condição suficiente o que é uma condição necessária. Pode ser, realmente, um erro aplicar uma lei a que falta uma ou mais das virtudes formais associadas ao estado de direito. Mas o fato de que uma regra tem todas essas virtudes não solapa quaisquer razões morais que se pode ter para não aplicá-la.

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Segue uma analogia. Pedro ordena que Ana, sua vizinha, nunca vá à igreja. Ele ameaça tomar dez dólares da sua bolsa toda vez que ela desobedecer. A ordem é inteligível, é dada com antecedência, é voltada para o futuro e pode ser obedecida. Esses fatos não solapam as razões morais que Pedro tem para manter-se afastado do dinheiro de Ana depois de ela o desobedecer e ir à igreja. De modo similar, o fato de que uma lei e o sistema jurídico a que ela pertence manifestam as virtudes formais associadas ao estado de direito não solapa as razões morais que um juiz tem para desviar-se do direito num caso de resultado subótimo. Joseph Raz observa que: Ƶŵ ƐŝƐƚĞŵĂ ũƵƌşĚŝĐŽ ŶĆŽͲĚĞŵŽĐƌĄƟĐŽ͕ ďĂƐĞĂĚŽ ŶĂ ŶĞŐĂĕĆŽĚĞĚŝƌĞŝƚŽŚƵŵĂŶŽƐ͕ŶĂƉŽďƌĞnjĂĚŝƐƐĞŵŝŶĂĚĂ͕ŶĂ ƐĞŐƌĞŐĂĕĆŽ ƌĂĐŝĂů͕ Ğŵ ŝŶŝƋƵŝĚĂĚĞƐ ƋƵĂŶƚŽ ĂŽ ƐĞdžŽ͕ ŶĂ ƉĞƌƐĞŐƵŝĕĆŽƌĞůŝŐŝŽƐĂ͕ƉŽĚĞ͕ĞŵƉƌŝŶĐşƉŝŽ͕ĐŽŶĨŽƌŵĂƌͲƐĞ ŵĞůŚŽƌăƐĞdžŝŐġŶĐŝĂƐĚŽĞƐƚĂĚŽĚĞĚŝƌĞŝƚŽĚŽƋƵĞƋƵĂůƋƵĞƌ ĚŽƐ ƐŝƐƚĞŵĂƐ ũƵƌşĚŝĐŽƐ ĚĂƐ ƐŽĐŝĞĚĂĚĞ ŽĐŝĚĞŶƚĂŝƐ ŵĂŝƐŝůƵƐƚƌĂĚĂƐ;ZĂnj͕ϭϵϳϵ͕Ɖ͘ϮϭϭͿ͘

E. Legitimidade política

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Alguém poderia defender a tese do solapamento apelando ao conceito de legitimidade política. Poder-se-ia argumentar que em sistemas jurídicos politicamente legítimos os indivíduos têm um dever de obedecer ao direito e um dever de não se esquivar das consequências jurídicas da desobediência. E seria possível concluir que, se um sujeito tem um dever de aceitar as consequências jurídicas do seu comportamento, então os juízes nunca têm uma razão moral para protegê-lo dessas consequências, desviando-se do direito. Essa é uma outra maneira como a validade de uma lei poderia afetar as razões do juiz em um caso de resultado subótimo. Há dois problemas com esse argumento. Primeiro, o último passo é suspeito. A partir do fato de que a Pessoa A tem um dever de não resistir a uma certa ameaça não se pode inferir que a

Pessoa B não tem uma razão moral para deixar de impor uma ameaça sobre A, ou que ela não tem uma razão para proteger A dessa ameaça. Segundo, e mais importante, poucos autores hoje defendem a premissa de que os indivíduos têm um dever moral all-things-considered para aceitar a punição ou outras consequências jurídicas da desobediência. Até mesmo o princípio bem mais fraco de acordo com o qual os cidadãos têm um dever moral pro tanto de obedecer ao direito (enquanto tal) caiu em descrédito entre os filósofos (Raz, 1994; Simmons, 1979; Smith, 1973). Ou não há estados politicamente legítimos, ou a legitimidade política não dá realmente aos sujeitos um dever moral de obedecer. A última conclusão está em harmonia com a ideia de que um estado politicamente legítimo herda todas as suas prerrogativas morais dos direitos naturais dos indivíduos - direitos relativos à justiça, beneficência etc. Ele não pode, portanto, ter a prerrogativa de usar força em casos de resultado subótimo, visto que os indivíduos no estado de natureza não têm esse direito. A razão moral pro tanto que o juiz tem para evitar resultados subótimos sobrevive em casos de resultado subótimo. A legitimidade política do estado não solapa essas razões. 9. Distanciamento moral

Guardei para o fim aqueles que podem ser os argumentos mais interessantes a favor da tese do solapamento. Eles apelam a princípios morais gerais que isentariam os juízes de responsabilidade moral pelo dano que advém das suas decisões.

A. Intenção Alguém poderia afirmar que um juiz não tem nenhuma razão pro tanto para desviar-se em casos de resultado subótimo quando ele adere com as intenções apropriadas. Este é o argumento:

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a)

Um efeito danoso previsível de uma ação)sobre uma vítima inocente não fornece ao agente uma razão objetiva pro tanto para não realizar ), se)contribui para um bem maior e se o agente não tem a intenção de provocar o efeito danoso.

b) Aderir ao direito em um caso de resultado subótimo tem efeitos danosos previsíveis sobre a parte derrotada. c)

Um juiz que adere ao direito em um caso de resultado subótimo contribui para um bem maior.

d) Um juiz que adere ao direito para contribuir para um bem maior não tem a intenção de lesar a parte derrotada. e)

Portanto, os efeitos danosos não fornecem ao juiz uma razão objetiva pro tanto para desviar-se do direito.

Esse argumento suscita várias perguntas. Primeiro, a premissa “a” lembrará alguns leitores da doutrina do duplo efeito (“doctrine of double effect”). Evito essa terminologia porque há muitas formulações divergentes do duplo efeito na literatura. Além disso, a premissa “a” é mais forte do que a maioria das formulações do duplo efeito, que trata de deveres all-things-considered. Muitos estudiosos rejeitaram o duplo efeito (Kamm, 2007; Bennett, 1995; Scheffler, 1994; Kagan, 1989; Alison McIntyre, 2001, pp. 219-255; Reibetanz, 1998, pp. 217-223) e certamente rejeitariam também a premissa “a”. Mas o duplo efeito tem seus defensores (Quinn, 1989; Nagel, 1979). Em vez de ingressar no debate, vou assumir, arguendo, que a premissa “a” é verdadeira31. A segunda questão é: que bem maior é servido pela adesão em um caso de resultado subótimo? Em casos de resultado subótimo, a adesão normalmente lesa mais a parte juridicamente desfavorecida do que o desvio lesaria a parte favorecida. Então, aderir não contribui para nenhum bem maior se consideramos apenas os interesses das partes. Mas, se olharmos além dos interesses das partes, alguns bens são, possivelmente, promovidos Eu não acredito, no entanto, que a doutrina do duplo efeito é verdadeira como princípio básico de moralidade. 31

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pela adesão. Satisfazer as expectativas de um litigante é bom, e o juiz que adere satisfaz as expectativas da parte juridicamente favorecida, se ela tinha a expectativa de prevalecer. Cumprir uma promessa é bom, e pode-se argumentar que os juízes prometem aderir ao direito. Pode-se argumentar também que obedecer ao direito é intrinsecamente bom, e que o direito exige a adesão dos juízes. Por fim, pode-se argumentar que preservar o estado de direito é bom, e que aderir é uma forma de preservar o estado de direito. Esses são bens, certamente, mas será alguns deles um bem maior – bom o bastante para superar o mal gerado pela adesão em um caso de resultado subótimo? Em outro trabalho, argumento que satisfazer expectativas, cumprir promessas e obedecer ao direito não superam esse mal. Na verdade, defendo que em casos de resultado subótimo essas considerações são solapadas (“undermined”) enquanto razões para aderir. O bem que resta, portanto, é o estado de direito. Em outro trabalho, explico como aderir promove a instituição do estado de direito (“the rule of law as an institution”). Toda a instituição do estado de direito é, possivelmente, um bem maior – bom o bastante para superar os efeitos danosos da adesão em um caso de resultado subótimo. Logo, vou assumir por enquanto que aderir em um caso de resultado subótimo promove um bem maior. Vamos considerar, então, uma terceira questão suscitada pelo argumento da intenção: o juiz que adere ao direito por razões morais em um caso de resultado subótimo tem a intenção de lesar a parte juridicamente desfavorecida? O debate acerca do duplo efeito ensina que interpretar “intenção” para o propósito de aplicar princípios morais é algo notoriamente complicado. Como pode um juiz negar que ele tem a intenção de lesar a parte juridicamente desfavorecida? Primeiro, ele poderia, de maneira plausível, negar que ele tem qualquer tipo de antipatia em relação à parte desfavorecida. Os juízes que me interessam são aqueles que aderem ao direito por razões mais inofensivas: para proteger

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suas reputações, cumprir seu trabalho, honrar seu juramento, promover o estado de direito etc. Juízes que aderem ao direito em casos de resultado subótimo por essas razões podem sentir verdadeira simpatia pelas partes desfavorecidas e lamentar que a adesão ao direito nesses casos gere um dano imerecido. Se eles pudessem aderir ao direito sem provocar dano, eles o fariam. Esses juízes contrastam com juízes perversos que aplicam o direito de forma seletiva, contra indivíduos que lhes desagradam por razões pessoais, ou contra membros de um grupo étnico, por exemplo. Tais juízes realmente têm a intenção de lesar as partes derrotadas. No entanto, o contraste entre juízes fanáticos e juízes obedientes comuns não deve obscurecer o fato de que até mesmo os juízes comuns têm a intenção de lesar as partes derrotadas. A intenção de lesar não implica malevolência. Ela não implica que o dano seja o objetivo final do agente. Caso contrário, a intenção de lesar seria algo exclusivo das pessoas vingativas, dos fanáticos, dos sádicos e mais alguns poucos indivíduos. Até mesmo o vilão preferido dos debates sobre duplo efeito, o homem-bomba terrorista, procura promover apenas a sua campanha militar justa. Se ele pudesse promovê-la sem matar inocentes, ele o faria. Ele não lhes deseja mal, mas, ainda assim, tem a intenção de matá-los, como um meio para o seu fim. Problemas diferentes emergem se aceitamos uma teoria da intenção coerente com a proposição de que os juízes que aderem para preservar o estado de direito não têm a intenção de lesar as partes desfavorecidas (mesmo quando podem prever a lesão). Uma tal teoria da intenção permite que os agentes causadores de dano se dissociem muito facilmente da intenção. Considere como tal teoria da intenção permitiria que se defendesse um juiz responsável por um desvio. Se ele se desvia do direito por razões morais, como faz o meu juiz em casos de resultado subótimo, então essa teoria lhe permite dizer que ele não tem a intenção de provocar (mas apenas prevê) quaisquer conse-

quências danosas que o desvio possa produzir. A teoria ainda lhe atribui intenção de lesar se ele é motivado por vingança ou sadismo, ou se ele desvia com a finalidade de minar o estado de direito. Mas, de acordo com essa teoria da intenção, juízes que se desviam do direito para evitar resultados subótimos têm boas intenções, quaisquer que sejam seus métodos. De acordo com essa teoria, o desvio não é menos correto por gerar efeitos danosos. Concluo que, seja qual for a teoria da intenção que adotemos, a premissa 1 só pode isentar de responsabilidade os juízes que aderem se também isentar aqueles que desviam, de modo que ela se torna inútil para alguém que pretende defender a tese de que os juízes têm um dever moral de aderir em casos de resultado subótimo.

B. Meios Em vez de apelar às intenções judiciais, alguém poderia atribuir relevância moral à distinção entre dano causado por um agente como um meio para seu fim, e dano causado como um efeito ou aspecto colateral da sua ação: a)

Um efeito lesivo da ação ) não fornece aos agentes uma razão objetiva pro tanto para evitar ), se)promove um bem maior e o efeito lesivo é um mero efeito ou aspecto colateral de), e não um meio para o fim visado pelo agente que realiza ).

b) Aderir ao direito em um caso de resultado subótimo gera efeitos danosos para a parte derrotada. c)

Um juiz que adere ao direito em casos de resultado subótimo promove um bem maior.

d) Quando um juiz adere ao direito em um caso de resultado subótimo, os efeitos lesivos da sua decisão não são meios para o seu fim, mas meros efeitos ou aspectos colaterais da sua decisão. e)

Portanto, os efeitos lesivos não fornecem ao juiz uma razão objetiva pro tanto para desviar-se do direito.

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Ainda mais importante é dizer que o princípio do dano permissível não permite lesar, mesmo quando isso é um efeito ou aspecto, a menos que o dano seja um efeito ou aspecto de um bem maior. Na seção anterior, sugeri que aderir ao direito pode, de fato, promover um bem maior. Mas o dano causado pela adesão é realmente um efeito ou aspecto desse bem, ou um meio para atingi-lo? Suponha que adotemos uma teoria sobre meios de acordo com a qual aderir lesa a parte juridicamente desfavorecida apenas como um efeito ou aspecto, não como um meio. O juiz Jack adere ao direito em um caso de resultado subótimo e condena Ivan, injustamente, à prisão. Ivan sofre os danos do encarceramento. Mas a razão de Jack para provocar esses danos é preservar o estado de direito, e não atormentar Ivan. Jack nega que use Ivan apenas como um meio para seu fim. Ivan sofre dano como um efeito ou aspecto colateral da decisão de Jack. O objetivo que Jack tem de preservar o estado de direito não seria comprometido se, por um milagre, Ivan escapasse a caminho da prisão. Concordo que uma teoria plausível sobre meios apoia a conclusão de que juízes que aderem por razões relacionadas ao ideal do estado de direito não usam as partes juridicamente desfavorecidas como meios. Essa teoria não é implausível, embora também não esteja obviamente correta. Seja como for, essa teoria também permite que um juiz que desvia faça uma afirmação similar. Ele pode admitir que o desvio prejudica o estado de direito, mas insistir que só o faz como um efeito ou aspecto, não como um meio para seu fim. Sua razão para desviar não é prejudicar o estado de direito, mas proteger a parte juridicamente desfavorecida de danos que ela não merece. Esse seu objetivo não seria comprometido se, por um milagre, o estado de direito fosse capaz de evitar o prejuízo. No mínimo, seu argumento, baseado no princípio do dano permissível, parece mais forte do que o argumento que um juiz que adere poderia fazer com base nesse princípio. Diferentemente das partes, o estado de direito nem se-

quer é um ser humano com interesses ou direitos32. Há, acredito, razões morais para não prejudicar o estado de direito, mas elas parecem fracas diante das nossas razões para não lesar seres humanos especificados. Essas últimas razões são simplesmente mais diretas e urgentes. O princípio do dano permissível, portanto, só isenta de culpa os juízes que aderem se também isentar os juízes que desviam. 10. Conclusão

Considerei vários argumentos em defesa da conclusão de que juízes não têm razões morais pro tanto para desviar-se do direito em casos de resultado subótimo. Acredito que nenhum desses argumentos está correto. Dessa forma, casos de resultado subótimo apresentam conflitos aparentes entre razões morais e as exigências do direito. Nesses casos, os juízes têm razões morais pro tanto para desviar-se do direito. Citando Schauer, novamente: KƌĞƐƵůƚĂĚŽĚĞƵŵĂĚĞĐŝƐĆŽũƵĚŝĐŝĂů ƉŽĚĞƚŽƌŶĂƌŽůŝƟŐĂŶƚĞƵŵƉƌşŶĐŝƉĞŽƵƵŵŝŶĚŝŐĞŶƚĞ͕ĨĂŵŽƐŽŽƵŝŶĨĂŵĞ͕ Ƶŵ ƐƵĐĞƐƐŽ ŽƵ Ƶŵ ĨƌĂĐĂƐƐŽ͘  ƋƵĂŶĚŽ ŽƐ ůŝƟŐĂŶƚĞƐ Ă ƋƵĞŵ ĞƐƐĂƐ ĐŽŶƐĞƋƵġŶĐŝĂƐ ƐĞ ĂƉůŝĐĂŵ ĂƉƌĞƐĞŶƚĂŵͲƐĞ ĚŝĂŶƚĞĚŽũƵŝnj͕ĂƉƌĞƐƐĆŽƉĂƌĂƋƵĞƐĞĐŚĞŐƵĞĂŽƌĞƐƵůƚĂĚŽ ĐŽƌƌĞƚŽ͕ Ğŵ ǀĞnj ĚĞ Ƶŵ ƌĞƐƵůƚĂĚŽ ƐƵďƐƚĂŶƟǀĂŵĞŶƚĞ ŝŶĐŽƌƌĞƚŽŐĞƌĂĚŽƉĞůĂĂƉůŝĐĂĕĆŽĮĞůĚĂƐƌĞŐƌĂƐ͕ƉƌŽǀĂǀĞůŵĞŶƚĞƐĞƌĄĞŶŽƌŵĞ;^ĐŚĂƵĞƌ͕ϭϵϵϭ͕Ɖ͘ϮϬϮͿ͘

Noutro trabalho, trato da questão fundamental: sob que condições têm os juízes razões all-things-considered para desviar-se do direito? Há, evidentemente, muitas razões importantes para que os juízes sejam fiéis ao direito. Algumas dessas razões se aplicam mesmo quando o direito requer um resultado graIsso não significa negar que seres humanos sofrem quando o estado de direito é danificado. 32

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vemente subótimo. Mas elas funcionam, eu sugiro, superando (“overriding”) as razões morais do juiz para desviar-se do direito. Determinar o que um juiz deve fazer all-things-considered num caso particular requer, portanto, uma análise mais minuciosa do perfil moral do caso, e das maneiras precisas como o desvio ameaça o estado de direito. Não devemos insistir, a priori, que os juízes devem sempre aderir ao direito só porque eles são juízes e porque a lei é a lei33.

Este artigo inclui material de vários capítulos do meu futuro livro (sob contrato com Oxford University Press). [N.E. O livro ao qual o autor se refere nesta e em outras notas foi publicado em 2010, com o título Limits of Legality: the ethics of lawless judging.] Versões anteriores deste artigo foram apresentadas nas seguintes instituições brasileiras, em junho de 2008: Faculdade de Direito da UFRJ; Departamento de Direito da FGV de São Paulo; Faculdade de Direito da USP; Faculdade de Direito da PUC de São Paulo; Escola da Magistratura Federal de São Paulo; Instituto Rio Branco; Faculdade de Filosofia da UNB. Sou grato a essas instituições por terem me convidado e às minhas audiências pelo diálogo proveitoso. Agradecimentos especiais ao Professor Noel Struchiner, pelo convite original para vir ao Brasil e pela hospitalidade. 33

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PARTE II Direito, Psicologia & Experimentos

CAPÍTULO V &KTGKVQ'OQÁÐGUWOCRTQRQUVCFG ECTVQITCſC Noel Struchiner* Rodrigo de Souza Tavares**

1. A tumultuada relação entre o direito e as emoções

O direito está atrelado às emoções, nossas intuições parecem confirmar esta conclusão. Afinal, é costume se empregar expressões que aludem às emoções para falar do cotidiano jurídico. É corrente o uso da expressão “drama judicial” para denotar um processo especialmente complicado, ou dizer que um “crime foi passional”, quando motivado por emoções intensas do agressor em relação à vítima. Pode-se afirmar, ainda, que alguém, ao buscar o judiciário, “ficou feliz pela justiça que foi feita” ou se “indignou diante da injustiça cometida”. Porém, apesar de intuitiva, a afirmação do entrelaçamento entre direito e emoções é, sem dúvida, cercada de polêmica. Tradicionalmente, as relações entre direito e emoções partiram de visões dicotômicas, que separam a razão da emoção, subordinando esta àquela. Em linhas gerais, esta visão se coaduna ao mito platônico do cocheiro, exposto no diálogo Fedro. Nesta obra, Platão compara a alma humana a uma carruagem puxada por cavalos. O corpo humano é a carruagem e o cocheiro representa a razão, condutora dos cavalos que, por sua vez, são * Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio. Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-Rio. Bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Email: [email protected]. ** Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Mestre em Direito, Estado e Sociedade pela UGF (2008), e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

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as emoções. Em outras palavras, as emoções são retratadas neste diálogo como forças irracionais capazes de nos mover, mas que devem ser domadas pela racionalidade, se quisermos andar pelo caminho correto. Em consonância com este modelo, o direito é visto como uma construção da razão, que deve subjugar ou até eliminar as influências indevidas das emoções. Podemos notar que este é o pressuposto informativo de algumas normas jurídicas que se referem aos estados emocionais de seus destinatários. No código penal, a emoção é considerada uma perturbação capaz de reduzir a pena aplicada ao condenado. Assim, se um crime for cometido sob a influência de uma emoção violenta, gerada por uma provocação injusta da vítima, poderá o autor de um crime se beneficiar com a atenuação da sua pena1. Portanto, considera-se menos reprovável a conduta delituosa quando praticada sob a influência de fortes emoções, pois nestas circunstâncias o agente não estaria no controle das suas faculdades normais do juízo. No direito constitucional, a criação de algumas instituições está atrelada ao temor de que emoções ‘irracionais’ desestabilizem a ordem jurídica. Numa passagem dos Federalistas, James Madison afirma que: “em todos os casos em que a maioria está unida por um interesse ou paixão comum, os direitos da minoria estão em perigo” (Madison apud Elster, 2009, p. 168). O legislativo bicameral foi estruturado de forma que a Câmara Alta (Senado), composta por políticos mais experientes, pudesse esfriar os ânimos exaltados da Câmara Baixa (Câmara dos Deputados), isto explica a diferença etária nos requisitos de elegibilidade destas casas legislativas2. As dificuldades extravagantes do processo legislativo de emenda constitucional (denominadas limitações ao poder constituinte reformador) também podem ser interpretadas Código Penal, artigo 65, inciso III, alínea ‘c’. Segundo o artigo 14, § 3º, inciso VI, da Constituição da República Federativa do Brasil, é condição de elegibilidade para a Câmara dos Deputados a idade mínima de 21 anos. Em relação ao Senado Federal, o mesmo dispositivo prevê a idade mínima de 35 anos como condição de elegibilidade. 1 2

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como instrumentos de salvaguarda ou pré-compromissos diante de sentimentos populares temerários. Neste mesmo sentido, a probabilidade da manifestação de emoções negativas pelo juiz (tais como raiva ou ódio) justifica o seu afastamento por suspeição, quando uma das partes num processo sob sua jurisdição for seu inimigo capital3. O juiz afetado pelas emoções se tornaria pouco confiável, pois estaria propenso a descumprir seu dever de imparcialidade. Em suma, o protótipo de virtude judicial consiste na impassibilidade diante das emoções e na estrita adesão aos argumentos racionalmente justificáveis. Essa parece ser a expectativa direcionada ao exercício da função jurisdicional, ao menos isto é o que transparecem algumas recomendações, tais como esta, contida no Código Ibero-Americano de Ética Judicial (Atienza; Vigo, 2008, p.19): ΀͘͘͘΁ŽũƵŝnjƉƌƵĚĞŶƚĞĠĂƋƵĞůĞƋƵĞĐƵŝĚĂƉĂƌĂƋƵĞŽƐƐĞƵƐ ĐŽŵƉŽƌƚĂŵĞŶƚŽƐ͕ĂƟƚƵĚĞƐĞĚĞĐŝƐƁĞƐƐĞũĂŵŽƌĞƐƵůƚĂĚŽ ĚĞƵŵũƵşnjŽũƵƐƟĮĐĂĚŽƌĂĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞ͕ĂƉſƐŚĂǀĞƌŵĞĚŝtado e avaliado argumentos e contra-argumentos dispoŶşǀĞŝƐŶŽąŵďŝƚŽĚŽŝƌĞŝƚŽĂƉůŝĐĄǀĞů͘

Comentando esta diretriz, Manuel Atienza (2008, p. 19), notório defensor do caráter racional da argumentação jurídica, afirma o seguinte: ĨĞƟǀĂŵĞŶƚĞ͕ Ă ŵĞƐŵĂ ĚĞŶŽŵŝŶĂĕĆŽ ĚĞ ͚ũƵƌŝƐƉƌƵĚġŶĐŝĂ͛ƌĞŵĞƚĞăŽďƌĂĚŽƐ͚ũƵƌŝƐƉƌƵĚĞŶƚĞƐ͕͛ƉŽƌŝƐƐŽŽĂƌƟŐŽ ŝŶŝĐŝĂůĐŽŶĞĐƚĂĂƉƌƵĚġŶĐŝĂĐŽŵŽ͚ĂƵƚŽĐŽŶƚƌŽůĞ͛ũƵĚŝĐŝĂů ĞĐŽŵŽ͚ĐĂďĂůĐƵŵƉƌŝŵĞŶƚŽĚĂĨƵŶĕĆŽũƵƌŝƐĚŝĐŝŽŶĂů͛͘΀͘͘͘΁ ŽũƵŝnjƉƌƵĚĞŶƚĞĠĚĞĮŶŝĚŽĐŽŵŽĂƋƵĞůĞƋƵĞƉĂƵƚĂƐĞƵƐ ĐŽŵƉŽƌƚĂŵĞŶƚŽƐ Ğ ĚĞĐŝƐƁĞƐ Ğŵ ũƵůŐĂŵĞŶƚŽƐ ƌĂĐŝŽŶĂůŵĞŶƚĞũƵƐƟĮĐĂĚŽƐƋƵĞĚĞƌŝǀĂŵĚĂŵĞĚŝƚĂĕĆŽĞǀĂůŽƌĂĕĆŽĚĞĂƌŐƵŵĞŶƚŽƐĞĐŽŶƚƌĂͲĂƌŐƵŵĞŶƚŽƐĚŝƐƉŽŶşǀĞŝƐŶŽ ŵĂƌĐŽĚŽŝƌĞŝƚŽǀŝŐĞŶƚĞ͘ǀŝƌƚƵĚĞĐůĄƐƐŝĐĂĚĂƉƌƵĚġŶĐŝĂ ƐĞƌĞůĂĐŝŽŶĂĐŽŵĂƌĂnjĆŽƉƌĄƟĐĂƋƵĞ͕ăǀŝƐƚĂĚĂƐĐŝƌĐƵŶƐƚąŶĐŝĂƐ ĚĂ ĐĂƵƐĂ ;ĐŝƌĐƵŶƐƉŝƌĞ ŽƵ ĐŝƌĐƵŶƐƉĞĐĕĆŽͿ͕ ĂǀĂůŝĂ 3

Código de Processo Civil, artigo 135, inciso I.

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ĂůƚĞƌŶĂƟǀĂƐĞĐŽŶƐĞƋƵġŶĐŝĂƐ͕ŽƉƚĂŶĚŽƉĞůĂŵĞůŚŽƌ͕ĚĞƉŽŝƐĚĞƵŵĂƌĞŇĞdžĆŽĞƉŽŶĚĞƌĂĕĆŽĂƉƌŽƉƌŝĂĚĂ͘

Enfim, essa prevenção frente às repercussões das emoções na esfera jurídica pode ser encontrada facilmente. Richard Posner (2000), fazendo referência à visão predominante sobre a atividade judicante, afirma que jurados, assim como crianças, estariam mais inclinados a fazer julgamentos emocionais do que juízes, pois quanto menos experiência tem uma pessoa em raciocinar sobre um tipo particular de problema, mais facilmente reagirá emocionalmente. Noutra passagem (Posner, 2000, p. 309) afirma que: “A lei em si é convencionalmente considerada como um bastião da ‘razão’ e concebida como a antítese de emoção, operando para controlar a emotividade do comportamento que dá origem às disputas legais”. Diante destas opiniões, parece que a seara do direito é pouco hospitaleira frente às perturbadoras influências das emoções. O gráfico abaixo, gerado pela ferramenta Ngram Viewer, mostra os números de ocorrência da expressão “law and emotion” sobrepostos à ocorrência da expressão “law and reason”, considerando todas as palavras contidas no acervo de livros digitalizados pelo projeto Googlebooks. Os resultados demonstram que a frequência do uso da expressão direito e emoções é insignificante perto da frequência do uso dos termos direito e razão.

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Contudo, este panorama vem mudando gradualmente. Quando analisamos os gráficos isolados de frequência das duas expressões, percebemos que existe um declínio gradual de emprego da expressão direito e razão em paralelo a um crescimento significativo das alusões à expressão direito e emoções, ainda que em números absolutos permaneçam grandes disparidades.

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Como visto, as emoções estão em alta nos dias de hoje, despertando interesse entre economistas4, cientistas políticos5, executivos6, etc. Uma literatura cada vez mais popular vem argumentando pela prevalência das emoções nos processos deliberativos (Damasio, 2005) e na construção da inteligência (Go4 5 6

Ver: Rápido e devagar: duas formas de pensar. (Kahneman, 2012). Ver: Emoções ocultas e estratégias eleitorais (Lavareda, 2009). Ver: O momento decisivo (Lehrer, 2010).

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leman, 1996), desafiando a tradicional visão platônica da dicotomia razão/emoção. Além disso, a literatura especializada em neurociência, psicologia e filosofia, também tem construído uma visão mais integrada e conciliadora sobre o papel das emoções e das faculdades cognitivas racionais nos processos deliberativos de tomada de decisão. $ÀQDORTXHpXPDHPRomR"

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Ao invés de impulsos irracionais, as emoções são consideradas atualmente como mecanismos sofisticados, moldados pela evolução de nossa espécie, que desempenham a função de receber e transmitir informações culturais. As propostas de definição do que são emoções podem ser divididas em duas vertentes teóricas. A primeira, conhecida como cognitivista, defende que as emoções consistem em julgamentos e que são formadas por pensamentos, conceitos e crenças. Martha Nussbaum (2001), por exemplo, acredita que as emoções são juízos de valor que avaliam se um objeto externo é importante para o bem-estar do indivíduo. Por seu turno, a segunda corrente, chamada não-cognitivista, argui que essa concepção das emoções é intelectual demais. Ao invés de definir emoções como julgamentos, defendem que elas são sensações mais mundanas, essencialmente corpóreas ou carnais. Wiliam James (1884) e Carl Lange (1885), por exemplo, são autores de teorias que definem as emoções apenas como percepções de mudanças nas estruturas fisiológicas do corpo, tais como elevação dos batimentos cardíacos, respiração acelerada, sudorese e mudança das expressões faciais. As duas posições parecem explicar aspectos importantes da experiência das emoções, mas também deixam de fora pontos que parecem relevantes. Dessa forma, uma proposta de meio termo seria mais conveniente. Por esse motivo, entendemos que a melhor proposta existente sobre o problema da definição do que são emoções pode ser encontrada na obra de Jesse Prinz (2007).

Para o autor, emoções são avaliações sobre o ambiente, representadas por alterações corporais e fisiológicos num indivíduo. Empregando uma analogia, podemos dizer que um bip num alarme de incêndio é um sinal imediato da presença de fumaça. Todavia, sua função mediata é representar a existência de um perigo em potencial. Da mesma forma, as emoções são disparadas por situações específicas, mas representam mediatamente algum tipo de avaliação do indivíduo a respeito do ambiente. Todavia, tais avaliações frequentemente estão mais próximas de intuições do que de julgamentos cognitivamente elaborados, como defendem os cognitivistas. Considere-se o exemplo da tristeza. O que pode causá-la? A perda de um parente, a rejeição da pessoa amada, a perda de um emprego, entre outras situações. O que parece unir estas situações díspares é a perda de algo valioso para o indivíduo. Para Prinz (2007), a tristeza é um detector confiável de que algo valioso foi perdido. Portanto, a definição do autor representa uma síntese dialética elaborada a partir das teses cognitivistas e não-cognitivistas. 3. Um novo olhar sobre as relações entre o direito e as emoções

Considerando a presença de obras sobre as emoções na lista dos livros mais vendidos, bem como sua posição entre os tópicos quentes da pesquisa em diversas áreas científicas, não é de se estranhar que este tema desperte interesse renovado também entre juristas. Na verdade, a virada afetiva no direito e a configuração de um campo de estudo dedicado às relações entre direito e emoções já ocorreu antes deste boom editorial das emoções. Nos Estados Unidos, há cerca de três décadas, a crítica ao racionalismo e à marginalização das emoções no direito se iniciou com o movimento do feminismo jurídico7. Criticando o modelo hegemônico de raVer: On the bias: feminist reconsiderations of the aspirations for our judges (Resnik, 1987); Legality and empathy (Henderson, 1986). 7

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cionalidade judicial, que não abarcaria a perspectiva do cuidado, própria da visão de mundo feminina, autores deste viés afirmaram que as emoções, querendo ou não, cumprem um papel fundamental no direito e que estas podem até melhorar a qualidade da atividade judicial (Abrams; Keren, 2010). Além disso, na obra dos realistas jurídicos já se encontram argumentos que podemos considerar como uma proto-crítica ao racionalismo jurídico e um embrião do estudo do papel das emoções no direito8. Desde o fim da década de 90 do século passado, o estudo do direito e das emoções já havia alcançado significativo desenvolvimento. Uma publicação pioneira organizada por Susan Bandes (2000), intitulada The Passions of Law, reuniu um grupo de pesquisadores destacados para tratar da relação de algumas emoções, tal como o nojo, a vergonha, a raiva, etc., e questões jurídicas, tal qual a imposição de penas degradantes, a criminalização de comportamentos sexuais, a fundamentação da punição estatal, a autoridade do direito, entre tantas outras. Esta obra seminal foi seguida por esforços crescentes de pesquisa. Diversos simpósios foram organizados na última década nos E.U.A. para tratar do tema9. Atualmente, o estudo das emoções atrai a atenção de especialistas de diversas áreas, como o direito civil10, o direito da regulação11, o direito constitucional12, etc., além da A frase de Holmes ([1897] 2002) – “a vida do direito não tem sido a lógica; tem sido a experiência [...] mesmo os preconceitos que os juízes partilham com os seus concidadãos têm contado mais do que o silogismo na determinação das leis pelas quais os homens devem ser regidos” – prenuncia a crítica posterior ao racionalismo jurídico e o interesse pela investigação das emoções como fatores causais das decisões judiciais. 9 Uma extensa revisão de literatura sobre o movimento Direito & Emoções, incluindo uma lista com os seminários e respectivas publicações de anais dedicados ao tema, pode ser encontra no artigo Emotions and the Law, de Susan Bandes e Jerry Blumenthal (2012). 10 Ver: The role of emotions in comparative negligence judgments (Feigeson et. al, 2001). 11 Ver: Two conceptions of emotion in risk regulation (Kahan, 2008). 12 Ver: Our founding feelings: emotion, commitment, and imagination in constitutional culture (Gewirtzman, 2009). 8

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pesquisa mais tradicional sobre o direito penal, especialidade onde as emoções parecem aflorar com maior visibilidade (Bandes; Blumenthal, 2012). Na Europa, a pesquisa das interações entre direito e emoções ainda não está tão estruturada quanto no cenário norte-americano, mas algumas iniciativas já despontam (Lagier, 2009; Sajó, 2011). No Brasil, o tema tem gerado alguma curiosidade, mas os esforços de pesquisa propriamente ditos ainda estão no seu início. Alguns autores já reproduzem o discurso das ciências cognitivas falando da influência das emoções na formação de intuições morais e traçam algumas consequências disto para o direito, mas ainda empregam um tom depreciativo em relação ao fenômeno. Veja-se, por exemplo, a afirmação de Luiz Flávio Gomes ao comentar o debate sobre a legalização do comércio de drogas (2010): WŽƌƋƵĞĠŵƵŝƚŽĚŝİĐŝůĚĞďĂƚĞƌ;ŽƵĚĞĐŝĚŝƌƐŽďƌĞͿŽƚĞŵĂ ĚĂ ůĞŐĂůŝnjĂĕĆŽ ;ŽƵ ŶĆŽͿ ĚĂ ŵĂĐŽŶŚĂ ĚĞ ĨŽƌŵĂ ƌĂĐŝŽŶĂů͍ WŽƌ ĐĂƵƐĂ ĚĂƐ ŶŽƐƐĂƐ ĞŵŽĕƁĞƐ Ğ ŝŶƚƵŝĕƁĞƐ ŵŽƌĂŝƐ ;ĐŽŶǀŝĐĕƁĞƐŵŽƌĂŝƐ͕ƋƵĞƐĞƚƌĂŶƐĨŽƌŵĂŵĨĂĐŝůŵĞŶƚĞĞŵ ƉĂŝdžƁĞƐĨƵŶĚĂŵĞŶƚĂůŝƐƚĂƐ͕ƐĞŶĆŽĐŽŶƚƌŽůĂĚĂƐͿƋƵĞƐĆŽ geradas pelos nossos condicionamentos culturais. Tudo ĐŽŵĞĕĂĐŽŵŽƐĞŐƵŝŶƚĞ͗ŶĆŽĞdžŝƐƚĞƉĞŶƐĂŵĞŶƚŽĚĞƐĐŽŶĞĐƚĂĚŽ ĚĂƐ ŶŽƐƐĂƐ ĞŵŽĕƁĞƐ ;Ğ ŝŶƚƵŝĕƁĞƐ ŵŽƌĂŝƐͿ ;Ġ Ž ƋƵĞĂĮƌŵĂŽŶĞƵƌŽĐŝĞŶƟƐƚĂƉŽƌƚƵŐƵġƐŶƚſŶŝŽZ͘ĂŵĂƐŝŽ͕ĂƵƚŽƌĚŽůŝǀƌŽ KĞƌƌŽĚĞĞƐĐĂƌƚĞƐͿ͘ 

Entretanto, as investigações acerca da técnica da ponderação e da racionalidade da argumentação jurídica ainda atraem muita atenção no cenário brasileiro (Barcellos, 2005; Sarmento, 2000; Silva, 2011). Somando-se a isto uma visão caricatural das emoções, enxergadas ordinariamente como perturbações da psique ou distorções da racionalidade, é natural que a temática das relações entre direito e emoções ainda seja um tabu entre nós. Mas, como já foi dito, o crescimento da pesquisa empírica

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sobre as emoções não poderia ser ignorado por muito tempo pelos juristas brasileiros. Alguns autores já iniciaram investigações mais aprofundadas e menos hostis à associação entre direito e emoções. No âmbito da PUC-Rio, vale ressaltar a produção do grupo de pesquisa NERDS, registrado no CNPQ e coordenado pelo professor Noel Struchiner. Antes designado como Núcleo de Estudos sobre Razão e Direito, incorporou o ‘S’ em seu acrônimo a fim de caracterizar-se como um Núcleo de Estudo sobre Razão, Direito e Sentimentos Morais. Almejando estabelecer um intercâmbio frutífero entre juristas, filósofos, psicólogos e neurocientistas, este grupo vem explorando novas fronteiras na pesquisa sobre direito e emoções. Ademais, pesquisadores brasileiros envolvidos em áreas afins, tais como direito e literatura13 e neurodireito14 também estão contribuindo no desenvolvimento da pesquisa sobre direito e emoções. Não obstante estes louváveis esforços, o promissor campo do “Direito & Emoções” ainda carece de maior atenção dos juristas brasileiros. 'LUHLWR (PRo}HVSURSRVWDGHFDUWRJUDÀD

Neste item pretendemos elaborar uma proposta de mapeamento conceitual da pesquisa existente sobre direito e emoções. A afirmação de que as emoções cumprem um papel importante no direito desafia distintas perspectivas. As análises neste campo, embora recentes, já apresentam bastante ramificação e complexidade, dificultando um enquadramento compreensivo e coerente das suas várias vertentes. Partindo das abordagens disponíveis, almeja-se traçar linhas que auxiliem a navegação daqueles que ingressam neste terreno. É possível iniciar esta tarefa por uma demarcação já presente na literatura sobre o tema. Abrams e KeNa obra Direito & Literatura (Trindade, 2010) pode ser encontrada a tradução de um importante artigo de Martha Nussbaum, que expõe uma concepção cognitivista das emoções. 14 Ver: Neuroética, Direito e Neurociência (Fernandez, 2008).

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ren (2010) afirmam que existem três dimensões de estudo na área do Direito & Emoções. Na opinião destes autores elas seriam: a iluminação; a investigação; e a integração. Por “iluminação” os autores se referem ao trabalho de trazer à tona as implicações das emoções, frequentemente desconhecidas nos arranjos legais. Para eles (Abrams; Keren, 2010, p. 2040): “o compromisso profundo do direito com o racionalismo pode tornar atores jurídicos alheios ou mal informados sobre as emoções que o permeiam”. Trata-se, em outros termos, da observação de temas jurídicos tradicionais pelo prisma das emoções, com o fim de descortinar relações muitas vezes ignoradas ou negligenciadas. Como exemplo, os autores citam as pesquisas de Amy Smith (2007) que tratam da espera entre a condenação e a execução da pena de morte nos E.U.A. Sob o prisma jurídico tradicional, o assunto circunscreve-se às questões processuais sobre execução penal e a efetividade da tutela jurisdicional. Ao ser analisado pelas lentes das emoções, questões como o sofrimento experimentado pelo condenado e a proibição constitucional de imposição de penas cruéis e degradantes emergem para serem discutidas. Por ‘investigação’, os autores (Abrams; Keren, 2010, p. 2040) entendem o esforço de informar e enriquecer a compreensão jurídica de emoções ou processos emocionais específicos. Neste ponto, os autores sublinham a necessidade de uma abordagem interdisciplinar para buscar nas áreas que estudam o comportamento humano o significado e o funcionamento das emoções interligadas ao direito. Trata-se de uma empreitada complementar àquela de iluminação antes referida. Na opinião destes: ΀͘͘͘΁ ĞƐƚƵĚŝŽƐŽƐ ĚĞ ĚŝƌĞŝƚŽ Ğ ĞŵŽĕƁĞƐ ƉŽĚĞŵ ĂƵŵĞŶƚĂƌ Ă ĐŽŶƚƌŝďƵŝĕĆŽ ƉŽƚĞŶĐŝĂů ĚĞ ƐĞƵ ĞƐĨŽƌĕŽ ĚĞ ŝůƵŵŝŶĂĕĆŽ ĂƚƌĂǀĠƐ ĚĂ ŝŶǀĞƐƟŐĂĕĆŽ ĚĂ ůŝƚĞƌĂƚƵƌĂ ĞdžŝƐƚĞŶƚĞ ƋƵĞ ĞdžƉůŽƌĂŽƐĂƚƌŝďƵƚŽƐĚĂƐĞŵŽĕƁĞƐŝŵƉůŝĐĂĚŽƐĞŵĐŽŶƚĞdžƚŽƐ ũƵƌşĚŝĐŽƐƉĂƌƟĐƵůĂƌĞƐ͘;ďƌĂŵƐ͖
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