Novas modalidades de sitcom: uma análise da comédia na era da realidade espetacularizada

May 22, 2017 | Autor: F. Manzo Ceretta | Categoria: Sitcoms, Reality Shows, Televisão
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Fernanda Manzo Ceretta

Novas modalidades de sitcom: uma análise da comédia na era da realidade espetacularizada

Mestrado em Comunicação e Semiótica Processos de criação nas mídias

São Paulo 2014    

 

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Fernanda Manzo Ceretta

Novas modalidades de sitcom: uma análise da comédia na era da realidade espetacularizada

Mestrado em Comunicação e Semiótica Processos de criação nas mídias

Dissertação

apresentada

à

Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob orientação da Prof. (a). Dra. Lucia Isaltina Leão.

São Paulo 2014    

 

Banca examinadora _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________

   

 

Para o meu pai, Carlos Alberto, e minha mãe, Elizabeth.

   

 

Agradecimentos

À minha orientadora, PROFA. DRA. LUCIA ISALTINA LEÃO, por ter me acolhido com tanto carinho. Muito obrigada por sua atenção, conselhos e direcionamentos, sem os quais este trabalho não seria possível. Ao PROF. DR. ARLINDO MACHADO, por ter colaborado valiosamente na orientação dos momentos iniciais desta jornada. À PUC-SP e à CAPES pela oportunidade da bolsa. Esta pesquisa busca honrar os privilégios concedidos por ambas as instituições. À CIDA pela paciência e constante ajuda nos procedimentos. Ao PROF. NICHAN DICHTCHEKENIAN, por permitir que eu acompanhasse sua disciplina na graduação de Psicologia como estagiária docente. ÀS PROFAS. DRAS. CECÍLIA SALLES e PAULA CAROLEI pelos apontamentos na qualificação, determinantes para o trabalho. Aos PROFS. DRS. LÚCIA SANTAELLA e EUGÊNIO TRIVINHO pelas aulas inspiradoras. Aos colegas/irmãos do COS que tanto ajudaram nessa caminhada, especialmente ao pessoal do CCM. Estamos juntos! Aos meus amigos que deram tanta força, especialmente àqueles que contribuíram diretamente com esta pesquisa: Robson Kumode, Maitê Guadalupe, Alexandre Morgado, Letícia Capanema, Bruno Ceretta Schnorr, Fernando Barbosa, Gustavo Moreira, Fernanda Carnielutti, Christiane Ng, Alexandre Kosteckza, Silvio Anaz, Alessandra Marassi, Thiago Silva, Camila Portella, Daniel Lajb, Paula Passarelli, Cledimar Lourenzi. À minha família pelo apoio e inspiração. Pai, mãe, maninho, Cris, João Victor, amo vocês.

   

 

“Você não tem uma televisão? Pra onde os seus móveis apontam?” (Joey Tribbiani, Friends)

   

 

Resumo

Este trabalho propõe analisar as comédias seriadas da televisão norte-americana que parodiam o formato documental. The Office, Parks and Recreation e Modern Family, produções que constituem o corpus da presente pesquisa, são representantes de uma recente tendência na programação televisiva dos Estados Unidos. Esta tendência, intensificada a partir da metade dos anos 2000, consiste em apresentar o texto cômico ficcional em linguagem de documentário. Este formato, por sua vez, rompe com a consolidada práxis do sitcom tradicional que, segundo pesquisadores, apresentava-se estagnado, com as mesmas características desde I Love Lucy, televisionado na década de 1950. Os objetivos são examinar a relação entre a popularidade atual do formato e a conjuntura de seu surgimento: uma programação televisiva repleta de reality shows e a massiva produção audiovisual amadora voltada para a internet. Trabalhamos com a hipótese de um novo relacionamento do espectador com o discurso da factualidade. Metodologicamente, a pesquisa será bibliográfica e documental, envolvendo o entrevistas com os respectivos autores em publicações diversas e levantamento bibliográfico. A base teórico-metodológica fundamental da pesquisa consiste nas obras de Jon Dovey e Mark Andrejevic sobre reality TV e de Brett Mills e Antônio Savorelli sobre o sitcom.

Palavras-chave Sitcom, reality TV, videologs, comédia

   

 

Abstract

This research intends to analyze north-American serial comedies that parody the documentary decoupage. The Office, Parks and Recreation and Modern Family, productions in the corpus of this research, are representatives of a recent trend in the United States television programming. This trend, which was intensified since the mid 2000s, features the fictional comic text in documentary language, building a particular relationship with the discourse of factuality. This format breaks with an established practice of the traditional sitcom. According to researchers, the way in which sitcoms were presented was stagnant, with the same characteristics since I Love Lucy, televised in the 1950s. This research seeks to investigate the peculiarities of the construction of comedy in the text and decoupage of the products mentioned, as well as the possible relationship between the current popularity of this format and the television context: a programming full of reality shows and the massive amateur audio-visual production on the internet. The hypothesis presented is that there is a new viewer's relationship with the discourse of factuality. Methodologically, the research will be bibliographic and documentary, involving interviews with TV authors in specialized publications and bibliography. The fundamental theoretical and methodological basis of the research is in the works Jon Dovey and Mark Andrejevic on reality TV and Brett Mills and Anthony Savorelli on sitcom.

Keywords Sitcom, reality TV, videologs, comedy

   

 

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO................................................................................................. 13 2. CAPÍTULO 1. Comédia e cultura .................................................................. 41 2.1 Estudos sobre a comédia ...........................................................................41 2.2 Mecanismos de identificação .....................................................................49 3. CAPÍTULO 2. DO SITCOM TRADICIONAL AO NOVO SITCOM .................. 58 3.1 As origens...................................................................................................58 3.2 O sitcom tradicional ....................................................................................65 3.3 Consumindo e produzindo reality ...............................................................72 3.4 Novas modalidades de sitcom....................................................................85 4. CAPÍTULO 3. O SITCOM E A LINGUAGEM DA REALIDADE ESPETACULARIZADA ....................................................................................... 90 4.1 A presença da câmera ...............................................................................91 4.2 A montagem .............................................................................................105 4.3 Uma análise do som .................................................................................113 4.4 O confessionário.......................................................................................121 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 132 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. 136  

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Estúdio de gravação de um sitcom tradicional. Dois exemplos. .......... 16 Figura 2. Foto promocional de The Office. .........................................................19 Figura 3. Temporada 9, Episódio 15. Um funcionário de The Office recebe uma propaganda do documentário no e-mail. .............................................................25 Figura 4. Cerimônia na prefeitura de Pawnee em homenagem à Lil’ Sebastian, morto na terceira temporada. ..............................................................................26 Figura 5. Foto promocional de Parks and Recreation. .......................................28 Figura 6. Foto promocional de Modern Family ...................................................29 Figura 7. The Office (cena de 2006): Michael dá um longo e constrangedor beijo em Oscar, assumidamente homossexual, para provar que não é homofóbico. Modern Family (cena de 2010): Cam e Mitchell beijam-se pela primeira vez (um dos poucos da série até o encerramento desta pesquisa), em segundo plano, na segunda temporada. ............................................................................................31 Figura 8. #E_VC? No Youtube. Temporada 1, episódio 1. Ator endereça à câmera. ................................................................................................................38 Figura 9. Símbolo do teatro – máscaras que representam a tragédia e a comédia. ..............................................................................................................43 Figura 10. Family Guy faz uma sátira com os estereótipos comportamentais do povo judeu. ..........................................................................................................51 Figura 11. Estúdio de rádio da DePauw University nos anos 1940, com capacidade para 100 pessoas. ............................................................................62 Figura 12. Um dos modelos Sony CV-2000/TCV-2010, lançado em 1965. .......78 Figura 13. Exemplo do esquema three-headed monster em I Love Lucy. .........91 Figura 14. O sofá centralizado no set de sitcoms: The Cosby Show (NBC, 198492), Full House (ABC, 1987-95), The Fresh Prince of Bel Air (NBC, 1990-96), Married with Children (FOX, 1987-97), Friends (NBC, 1994-2004) e The Big Bang Theory (CBS, 2007-). .................................................................................92 Figura 15. The Office (temporada 3, episódio 20) – momento em que as personagens não percebem a captação. ............................................................93 Figura 16. Chandler pede Mônica em casamento em Friends. ..........................95 Figura 17. Ben pede Leslie em casamento em Parks and Recreation. ..............95

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Figura 18. The Office quebra a quarta parede no episódio 12 da 9a temporada. ...........................................................................................................................101 Figura 19. Após o surgimento de Brian (operador de áudio) na narrativa, o espectador vê ângulos mais crus da câmera. Neste caso, a câmera estava apoiada no chão sem que a operassem. ...........................................................102 Figura 20. Temporada 9, Episódio 18. Funcionários de The Office repreendem a câmera/equipe após perceberem que foram filmados sem que soubessem. ...103 Figura 21. A sobrancelha levantada de Adam Scott e o sorriso de Aziz Ansari direcionados para a câmera (respectivamente, Ben e Tom em Parks and Recreation). .......................................................................................................104 Figura 22. The Office, temporada 9, episódio 8. Dwight tem sua nudez coberta por um efeito típico de programação não ficcional. ...........................................106 Figura 23. Modern Family (temporada 2, episódio 22) – Phil percebe que suas filhas fingiram arrumar o banheiro mas na verdade apenas socaram no armário os objetos, que caem no chão. A câmera acompanha a ação e a reação da personagem em plano-sequência. ....................................................................108 Figura 24. Leslie sofre com as restrições orçamentárias de sua campanha ao som de Gloria Estefan. ......................................................................................117 Figura 25. The Office. Jim abraça Pam em um consultório médico. O espectador é deixado no silêncio, podendo apenas espiar de fora da sala e deduzir o que acontece. ...........................................................................................................119 Figura 26. Parks and Recreation, temporada 5, episódio 21. Leslie Knope endereça à câmera. ...........................................................................................122 Figura 27. Frames de Hey Clip, vídeo do Youtube. ..........................................123 Figura 28. A Diary Room do Big Brother 13, 12 e 10 (Reino Unido). ...............126 Figura 29. Postagens no Twitter com a hashtag “confissões da madrugada”. .130

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Narrativas seriadas. ............................................................................ 14 Tabela 2. Exemplos de gag, wisecrack e joke. ...................................................48

 

 

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1. INTRODUÇÃO No final do século XIX, apresentações teatrais, sobretudo vaudevilles1, deram força ao conceito de serialização na comédia. Esta influência colaborou para o surgimento das comédias de situação, ou sitcoms2, no rádio. O mesmo conjunto de personagens se apresentaria com regularidade para determinada audiência,

contando

uma

história

diferente

por

vez.

A

identificação

proporcionada pelo sitcom o tornou um dos formatos mais populares da televisão norte-americana. Darrell Hamamoto, pesquisador da University of California, Davis e autor de Television Situation Comedy and Liberal Democratic Ideology, afirma que, desde a queda de popularidade do gênero Western, conhecido no Brasil como Velho Oeste, em meados da década de 1950, quase todas as temporadas da programação televisiva norte-americana apresentaram sitcoms entre os produtos de maior audiência (HAMAMOTO, 1989, p. 1). Elizabeth Bastos Duarte, professora da Universidade Federal de Santa Maria e pesquisadora de televisão, traz uma descrição objetiva do que é o sitcom televisivo. Trata-se de histórias curtas e independentes, com personagens fixos, que utilizam como quadro de referência o mundo exterior próprio de um determinado núcleo social, familiar ou profissional, colocando em cena a vida e/ou as atividades profissionais das pessoas pertencentes a esse grupo. Esses programas não costumam ter data de encerramento pré-definida, podendo estender-se, no tempo, enquanto houver audiência e, conseqüentemente, patrocínio e/ou publicidade. (DUARTE, 2008, p. 1)

                                                                                                                          1

Show de performances variadas, popular nos Estados Unidos entre o final do século XIX e

começo do século XX. 2

Optou-se pelo uso de sitcom (situation comedy) como substantivo masculino no texto em

português, apesar de “comédia de situação” ser feminino, como pôde ser observado nas menções do termo por realizadores/pesquisadores brasileiros.

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Essas histórias são contadas através do formato seriado, que possibilita narrativas abertas, híbridas ou fechadas. Narrativas abertas são aquelas nas quais um episódio influencia diretamente o seguinte e, no decorrer das microhistórias contadas em episódios, uma história maior engloba o todo. Esse tipo de narrativa está comumente associado a novelas, por exemplo. A narrativa fechada, ou em loop, mostra episódios com começo, meio e fim que provocam pouca ou nenhuma influência sobre os demais. Um exemplo desse tipo de narrativa é The Simpsons (FOX, 1989 -): em mais de vinte anos de transmissão, a personagem Meg ainda é um bebê, e a família parece iniciar todas as suas histórias no mesmo ponto. Existe também uma narrativa seriada que podemos considerar híbrida por mesclar características de narrativas abertas e fechadas, em proporções variáveis.

Tabela 1. Narrativas seriadas. Narrativa aberta

Serialidade

Exemplos

Episódios contêm micro-

Grey’s Anatomy, Glee,

histórias que fazem parte

Bates Motel, Lost,

de um todo (uma história

Breaking Bad (semelhante

maior). Continuidade.

a uma novela, cada

Gancho dramático ao final

episódio mostra a evolução

dos episódios.

do protagonista e é construído de modo a criar um suspense e provocar a curiosidade do espectador, levando-o a buscar respostas no “capítulo” seguinte.)

Narrativa híbrida

Episódios contêm histórias

Friends, Two and a Half

completas (com começo,

Men, Full House, Fresh

meio e fim), mas, no

Prince of Bel-air,

decorrer da série, constrói-

Everybody Hates Chris

se uma história maior que

(Chris, no decorrer dos

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permeia todos os episódios

episódios, envelhece. O

e evolui.

tempo passa e, se ele é admitido em um emprego, continua nele nos próximos episódios, por exemplo.)

Narrativa fechada

Episódios contêm histórias

Simpsons, Family Guy,

completas (começo, meio e

Chaves, South Park

fim). Todos os episódios

(Kenny sempre morre nos

costumam iniciar no

episódios e, no seguinte,

mesmo ponto, sem

sempre está vivo

alteração de idade ou de

novamente, como se nada

situação das personagens.

tivesse acontecido).

Em relação aos aspectos técnicos do sitcom, nota-se que as raízes teatrais ainda permaneceram nas versões apresentadas em novos meios, sobretudo na televisão. O sitcom popularmente constrói sua mise-em-scène (colocação em cena) respeitando uma frontalidade, como se posicionada em um proscênio. Esta frontalidade é justificada pela posição do público e, no caso da televisão, também das diversas câmeras, que respeitam os limites do cenário. Dessa forma, toda a ação da diegese (realidade própria da obra) deve ser direcionada para o público e/ou para as câmeras, o que influencia na posição dos objetos cênicos e, principalmente, das personagens.

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Figura 1. Estúdio de gravação de um sitcom tradicional. Dois exemplos. Outra característica que remete às origens teatrais são as laugh tracks (“claque”). A claque é a reação do público que pode ser ouvida pelo espectador.

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Caso não haja espectadores na gravação, são adotados recursos de pósprodução que emulam as reações previstas para cada situação. Dessa maneira, a claque configura-se uma das características narrativas mais marcantes do sitcom. Andy Medhurst e Lucy Tuck, ambos da University of Sussex e colaboradores da obra Television Sitcom, consideram a claque um substituto eletrônico para a experiência coletiva que o espectador teria assistindo à mesma obra ao lado de diversas pessoas, como no teatro (MEDHURST; TUCK, 1982, p. 45). A maioria das análises sobre o sitcom televisivo mostra que a comédia de situação manteve diversas de suas características básicas. A fórmula que vem sendo utilizada há quase 70 anos pode ser observada em muitas produções contemporâneas e, ainda assim, o formato continua moldando programas com grandes índices de audiência. Na última década, entretanto, produções diferenciadas de comédia ficcional passaram a disputar a audiência no horário nobre da TV norteamericana. Influenciadas

principalmente

pela

televisão

britânica,

emissoras

tradicionais dos Estados Unidos deram espaço a novas modalidades de comédia ficcional. Estas rompem com diversas práticas consolidadas do sitcom:. •

A estabilidade das câmeras fixas em suportes dá lugar ao movimento da operação da câmera na mão;



Os cinegrafistas invadem o espaço diegético rompendo com a frontalidade. Por mais que o aparecimento de câmeras em quadro não faça parte do formato (com exceções que serão comentadas no decorrer deste trabalho), a diegese por vezes é exibida em 360 graus, livre de limitações do cenário;



A claque deixa de fazer parte do modelo narrativo.

Exemplos deste novo sitcom são os títulos Scrubs (NBC 2001-2008 e ABC 2008-2010) e Malcolm in the Middle (FOX 2000-2006), que, na metade do início do século XXI, já se consolidavam na televisão norte-americana por muitas temporadas. Brett Mills, professor da University of East Anglia e pesquisador de

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sitcoms, considera que o desuso da claque é a evolução mais significativa do gênero. [...] o recente abandono da claque por muitos dos sitcoms (particularmente na Grã-Bretanha) tem um grande significado. A combinação de um estilo visual diferente da estética teatral tradicional e a remoção da claque resulta em textos que precisam sinalizar suas intenções cômicas de uma forma diferente, ou lidar com a possibilidade de a audiência não apenas perder as piadas, mas não perceber que se trata de um sitcom. (MILLS, 2005, p. 51, tradução nossa)3

Dentre as novas possibilidades do sitcom, títulos parodiando a linguagem audiovisual documental surgiram também com crescente sucesso. Além de a câmera na mão sugerir uma captação sem ensaios, são usados confessionários para que o espectador saiba mais sobre os pensamentos das personagens em determinadas situações, semelhante ao que ocorre nos reality shows. O rompimento elementar com a fórmula consagrada da comédia estadunidense tem provado ser uma tendência crescente a partir de expoentes como The Office (NBC), Parks and Recreation (NBC) e Modern Family (ABC), que constituem o corpus da presente pesquisa. The Office The Office, produzido pela NBC (Estados Unidos) e exibido no Brasil pelo FX, inaugurou a fase triunfante dos sitcoms que parodiam a estética factual na

                                                                                                                          3

“[…] the recent abandonment of the laugh track by much sitcom (particularly in Britain) is

meaningful. The combination of a visual style unlike the traditional theatrical aesthetic and the removal of the laugh track results in texts which must signal their comic intent in a different way, or lay themselves open to the possibility not only of audiences failing to spot all the jokes, but of failing to realise they’re watching a sitcom at all.”

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televisão norte-americana, estreando em 2005. Em 2013, a última temporada (nona) foi ao ar.

Figura 2. Foto promocional de The Office. A produção da NBC foi baseada em um seriado homônimo produzido pela BBC de Londres no período de 2001 a 2003. Apesar das similaridades, o sitcom foi recriado para fazer jus à cultura norte-americana e, de certa forma, representá-la. Curiosamente, ambas as versões não fizeram sucesso na primeira exibição. No Reino Unido, The Office original só foi bem-sucedido na reprise da primeira temporada. A exibição de estreia foi um fracasso. Nos Estados Unidos aconteceu algo parecido. Inicialmente, The Office não foi bem recebido pela crítica e pela audiência. “A qualidade do show original faz com que o remake

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pareça turvo” (tradução nossa), dizia, por exemplo, The Washington Post4 logo após a estreia. A NBC, sem saber qual seria o futuro da série, disponibilizou os episódios da primeira temporada no iTunes, loja virtual de músicas, filmes, séries e outros, na qual é possível fazer downloads desses conteúdos, pagos ou gratuitos, a depender do distribuidor. Enquanto os números do Nielsen (equivalente ao Ibope no Brasil) na televisão ainda eram baixos, The Office era uma das séries de TV mais baixadas no ITunes, ficando em primeiro lugar no ranking de popularidade da plataforma por diversas semanas 5 . Esse fato, inclusive, contribuiu para que o mercado repensasse os medidores de audiência em uma era em que a TV já não é o único meio pelo qual os espectadores têm acesso ao conteúdo das emissoras. Atualmente o site oficial do Nielsen (http://www.nielsen.com) anuncia um serviço que engloba televisão, celulares e internet. Uma notícia publicada no dia 6 de agosto de 2013 no site do jornal Estadão6 mostrou a divulgação de um estudo do Nielsen relacionando o número de twits (mensagens da rede social Twitter) com a audiência dos programas, atestando que as postagens de usuários influenciaram os medidores em uma média de 29%, com destaque para os reality shows (44%), seguido pelas comédias (37%). Estimulada pelo sucesso na internet, a NBC encomendou mais temporadas de The Office que, posteriormente, tornou-se um programa de grande audiência na televisão. Por ser o primeiro sitcom que flerta com a linguagem factual a estrear na televisão norte-americana, o programa precisou de um período para que seus espectadores entendessem esse estilo de comédia e aprendessem a assimilar                                                                                                                           4

SHALES, Tom. “The Office”: NBC’s Passable Duplicate of the Brit Hit. The Washington Post, 24

mar.

2005.

Disponível

em:

. Acesso em: 4 jul. 2013. “[...] the quality of the original show causes the remake to look dim.” 5

DUNCAN, Laurie. How iTunes Saved NBC’s “The Office”. Tuaw, 31 out. 2006. Disponível em:

. Acesso em: 4 jul. 2013. 6

Disponível

em:

.

Acesso em: 6 ago. 2013.

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os novos códigos. Em março de 2013, na conferência nacional da PCA/ACA (Popular Culture Association/American Culture Association) em Washington D.C., um dos painéis de discussão acerca da televisão tratava exclusivamente de novas comédias e era comandado pelo Prof. Antonio Savorelli, autor que será frequentemente citado na presente pesquisa. Ao discutir os sitcoms de falso documentário, muitos dos pesquisadores presentes alegaram certa resistência a The Office nas primeiras vezes em que assistiram à série. Era necessário um período de construção de um repertório desse novo tipo de comédia para que então fosse possível apresentar os interpretantes esperados pelos produtores. Sendo assim, pode-se considerar que a série abriu caminho para a melhor aceitação de outros títulos, como Parks and Recreation e Modern Family. Michael Schur, produtor de The Office e Parks and Recreation, em entrevista para o A.V. Club, comentou o início vagaroso de novos sitcoms como 30 Rock, The Office e Community, ressaltando também outro detalhe sobre essas produções: Todas as comédias são, em algum nível, tentativa e erro [...]. Mas existe outra questão importante – e eu acho que se aplica mais a The Office e Parks and Recreation do que a Community e 30 Rock – que é o fato de os shows serem essencialmente programas de personagens. Até que você saiba quem são as personagens, você não vai achá-las tão engraçadas. Frequentemente, pessoas me dizem: “Eu assisti aos seis primeiros episódios de novo e eles são muito mais engraçados do que eu me lembrava” [...]. Parte da diversão é conhecer quem são as pessoas. A audiência pensa que as personagens ficaram mais engraçadas, e eu acho que a resposta verdadeira é que ela passou a conhecê-los.7 (Tradução nossa)                                                                                                                           7

Entrevista concedida por Michael Schur ao A.V. Club. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2013. “All of comedy at some level is trial-and-error [...]. But there’s another big thing – and I think it’s more applicable to The Office and Parks than to Community and 30 Rock – which is that those shows are essentially character comedies. Until you know who the characters are, you just won’t find them

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A primeira temporada contou com seis episódios – o que é comum na televisão britânica – de trinta minutos de exibição cada, levando em conta a inserção de intervalos comerciais. Posteriormente, o padrão americano de “vinte e poucos” episódios por temporada foi adotado, sendo comum que os primeiros e os últimos episódios tenham uma hora de duração. O programa gira em torno do cotidiano da Dunder Mifflin, uma empresa fabricante de papel localizada na cidade de Scranton, Pensilvânia. Michael Scott, o gerente regional, possui um senso de humor bastante particular e acredita ser o melhor amigo e motivo de admiração de todos os seus subordinados. O fator cômico, no entanto, está no fato de nenhum dos funcionários da empresa compartilhar das opiniões de Michael. A Dunder Mifflin possui outros funcionários que assumem os demais cargos da empresa. Buscando uma maior objetividade, serão apresentados brevemente apenas os principais. Dwight Schrute é um puxa-saco de Michael que se divide entre a vontade de roubar seu posto e a grande amizade que cultiva com ele. A personagem inclusive criou um cargo, o “assistente do gerente regional”, para forçar uma hierarquia inexistente e provar sua superioridade frente aos demais funcionários da empresa. Dwight inicia a série como um completo excêntrico e torna-se, aos poucos, uma personagem de grande carisma na série, protagonizando a última temporada. Jim Halpert é um dos vendedores. Seu papel tem dupla importância para a série: é ele quem compartilha o sentimento de surpresa e perplexidade com os espectadores/câmera em relação aos acontecimentos incomuns do escritório, que se dão principalmente com Michael e Dwight, bem como é ele quem protagoniza o romance central do início da série, ao lado da secretária Pam Beesly.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           that funny. Very often, people say to me, “I went back and watched those first six episodes, and they’re a lot funnier than I remember.” [...] Part of the joy is getting to know who the people are. People think the characters got funnier, and I think the real answer is that you just got to know them.”

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O produtor da série, Greg Daniels, também responsável pela adaptação de The Office para o público norte-americano, concedeu diversas entrevistas esclarecedoras. É como um reality show ou documentário onde eles levaram as câmeras para um típico escritório em Scranton, Pennsylvania. (...) A forma pela qual o show é produzido é muito informal se comparada a um show normal porque é um falso documentário. Sendo assim, a luz não deve ser perfeita e é OK se houver um boom vazando no enquadramento. Os atores gostam muito disso porque permite que eles improvisem. Para cada hora de produção, passamos 50 minutos gravando e 5 minutos montando a luz, ao contrário da maioria das produções de Hollywood, onde gasta-se 40 minutos montando a luz e 20 minutos gravando, ou algo assim.8 (Tradução nossa)

A espontaneidade resultante das similaridades deste formato com o documentário e com o reality show difere do sitcom tradicional, o qual transparece um ensaio para sincronizar perfeitamente tudo o que acontece em cena. Esse humor diferente fez com que Greg Daniels acreditasse no sucesso da série. Acho que o segredo é o falso documentário, porque não há nenhum desses na TV [...] Este estilo de fazer piadas não foi executado exaustivamente. Então ele emprega a energia de um reality show. Você realmente tem que olhar para os rostos das personagens. Eles estão sérios? Mentindo? Desiludidos? Sentindo dor? Eles sabem que parecem idiotas? Estas são coisas interessantes de assistir.

9

(Tradução nossa)                                                                                                                           8

Entrevista (áudio) de Greg Daniels e Mindy Kaling (roteirista e produtora) à rádio NPR, em

março de 2005. Disponível em: . Acesso em: 16 fev. 2013. 9

Entrevista de Greg Daniels ao Washington Post, em março de 2005. Disponível em:

. Acesso em: 4 fev.

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Daniels, na mesma entrevista, faz uma crítica ao sitcom tradicional e às claques. Segundo o autor, comédias como The Office são “frescas” e oferecem uma maior possibilidade de identificação do espectador com os acontecimentos retratados: [...] Na maior parte do tempo, programas ficcionais trabalham em um nível tão irreal que você não se importa com o que vai acontecer. Os sitcoms estão em uma rotina: construção – piada – risada enlatada. A cada quinze segundos ouve-se gente rindo. Depois de trinta minutos você se pergunta: “eu assisti a alguma coisa?’. É como dirigir até o trabalho: de repente você está lá mas não lembra como fez para chegar”.10

Em 2013, na última (nona) temporada, The Office quebrou os paradigmas do próprio formato no qual esteve inserida durante oito temporadas e revelou algumas pessoas dos bastidores do documentário fictício. Repentinamente, o espectador deparou-se com cinegrafistas em quadro e até mesmo com um operador de boom que se tornou personagem da trama. Também na última temporada, o documentário gravado nas oito temporadas anteriores é anunciado para as próprias personagens.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          2013. “I think the trick is the mockumentary, because there aren't any of those on TV [...] That style of telling jokes hadn't been done to death. So it takes the energy of a reality show. You really have to look at the character's faces. Are they serious? Lying? Deluded? In pain? Do they know they look like an idiot? Those are interesting things to watch.” 10

Ibidem. “‘[...] fictional TV isn't delivering that, these moments where you don't know what is

going to happen. Most of the time, fictional shows play at such an unreal level you don't really care what happens. Sitcoms are in a rut.’ Setup. Joke. Canned laugh. ‘Every 15 seconds, the sound of people laughing. After 30 minutes you wonder, did I just watch something? It's like driving to work. Suddenly you're there but you don't remember how you got there’.”

  25  

Figura 3. Temporada 9, Episódio 15. Um funcionário de The Office recebe uma propaganda do documentário no e-mail. Scranton, a locação principal das nove temporadas, recebeu um evento especial em uma praça para comemorar o encerramento de The Office. Membros da equipe e grande parte do elenco transmitiram mensagens aos moradores da pequena cidade, que lotavam as ruas. Mesmo após o encerramento da série, a NBC atualiza constantemente as contas do programa nas redes sociais, com fotos e trivias sobre as personagens. Parks and Recreation Parks and Recreation, também produzido pela NBC e exibido no Brasil pela SONY, estreou em 2009. Também contando com Greg Daniels como um dos autores, o sitcom mostra o cotidiano do departamento de parques e recreação da prefeitura de Pawnee, uma cidade fictícia do estado de Indiana (EUA). Os criadores do programa optaram por uma cidade fictícia para que pudessem

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criticá-la em todos os níveis11 , diferente do que vivenciaram em The Office, quando críticas à cidade de Scranton seriam ofensivas para os moradores. Pawnee é descrita como uma cidade com altos índices de obesidade e com uma população suscetível a opiniões absurdas que circulam na televisão local. Além disso, a cidade é obcecada por um pônei chamado Lil’ Sebastian. Sendo assim, Pawnee é uma sátira dos clichês relacionados às pequenas cidades dos Estados Unidos, com seus moradores bitolados e atrações turísticas de relevância questionável.

Figura 4. Cerimônia na prefeitura de Pawnee em homenagem à Lil’ Sebastian, morto na terceira temporada. O programa acompanha a ascensão política de Leslie Knope, uma pessoa ambiciosa e com excelentes intenções que é viciada em seu trabalho. O departamento de parques e recreação apresenta uma relação de amizade entre pessoas excêntricas, porém geralmente de grande docilidade. Ron Swanson é o chefe de Leslie Knope e detesta trabalhar para o governo. Ele frequentemente é visto em seu escritório esculpindo madeira e comendo lanches gordurosos, enquanto evita ao máximo falar com outras                                                                                                                           11

MILLER, Bruce. “Parks and Rec” filled with more than laughs. Sioux City Journal, 25 mar.

2011. Disponível em: . Acesso em: 6 jul. 2013.

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pessoas. Ron é antissocial, rabugento e ridiculariza tudo o que não seja tradicional, do interior. Apesar desta rispidez, trata-se de uma das personagens mais queridas da série por parte do público, tendo suas frases estampadas em canecas e camisetas produzidas pela NBC. April Ludgate é uma estagiária sarcástica e mal-humorada. Na mesma linha de Ron, é uma personagem composta com características tipicamente associadas a vilões mas que transparece uma bondade interior em determinados momentos. Tanto April quanto Ron são adorados pelas outras personagens, que não levam suas grosserias a sério. Ann Perkins, melhor amiga de Leslie, e Ben Wyatt são as duas personagens menos excêntricas da série. Ann é uma enfermeira com problemas amorosos que, desde o primeiro episódio, se torna a melhor amiga de Leslie e Ben é um supervisor do departamento que, na quinta temporada, se casa com Leslie. Ben foi eleito, aos 18 anos, o prefeito de Partridge, Minnesota. A sua irresponsabilidade na época arruinou a cidade, fazendo com que perdesse o cargo. Ele se tornou um bom administrador mas vive na sombra de seu fracasso político do passado. Outras personagens influentes na série são Tom Haverford, um indiano metido a rapper que está sempre na moda e Andy Dwyer, um homem ingênuo e infantilizado, que sonha em ser policial. Fora desse círculo de amizades do departamento, as pessoas de Pawnee são de uma insanidade ímpar, desde empresários, políticos concorrentes até a apresentadora da TV local. O eleitorado de Pawnee é descrito como facilmente manipulável e inconstante. Na sua primeira temporada, Parks and Recreation foi recebida pela crítica com desconfiança, pois supunha que a produção seria um clone do colega de emissora, The Office. A partir da segunda temporada, no entanto, o programa ganhou autonomia e foi aclamado pela crítica especializada.

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Figura 5. Foto promocional de Parks and Recreation. Em entrevista para o A.V. Club, Michael Schur, produtor da série, ressalta as vantagens de filmar Parks and Recreation utilizando a linguagem do dito falso documentário. A maior vantagem [do falso documentário] é que torna-se um dispositivo para mostrar a forma como as pessoas agem e se comportam de formas diferentes quando estão em espaço público ou privado [...]. Queríamos que Parks and Recreation fosse um mockumentary porque, no governo, a diferença entre o que acontece a portas fechadas e em como as pessoas se apresentam ao público é uma grande questão.12 (Tradução nossa)                                                                                                                           12

Entrevista

concedida

por

Michael

Schur

ao

A.V.

Club.

Disponível

em:

. Acesso em: 3 jul. 2013. “The main advantage is that, at its core, it’s a device for showing the ways people act and behave differently when they’re in public and private. You can see people behaving a certain way around the corner or through some blinds [...]. We wanted this to be a mockumentary show because in the world of government, the difference between what goes on behind closed doors and what people present to the public is a huge issue.”

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Dessa forma, parodiar o gênero documental é, para Schur, uma forma de criticar o governo. Modern Family

Modern Family, produzido pela ABC a partir de 2009 e exibido no Brasil pela FOX, explora diversos contextos familiares da sociedade moderna e insereos em uma só árvore genealógica. Jay Pritchett é um pai de família casado com Gloria, uma colombiana muito mais jovem que tem um filho pré-adolescente (Manny), fruto de um relacionamento anterior. Jay tem dois filhos: Claire e Mitchell. Claire é casada com Phil Dunphy e eles têm três filhos: duas adolescentes (Haley e Alex) e um pré-adolescente (Luke). Já Mitchell é um homossexual assumido que vive com Cameron, seu parceiro. Ambos adotaram um bebê de origem vietnamita (Lily).

Figura 6. Foto promocional de Modern Family

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A premissa do sitcom é de que uma equipe de filmagem holandesa está acompanhando as três famílias em um reality show que, em algum momento, vai ao ar na Holanda. Os produtores cogitaram inserir no quadro de personagens um intercambista holandês que estudara com os Pritchett no colégio e estaria fazendo as filmagens, mas desistiram da ideia porque a presença dele seria muito incômoda. Sendo assim, o programa foi ao ar sem explicar as câmeras seguindo a família13. Modern Family prova que os novos rumos do sitcom, com teor cada vez mais sarcástico, conseguem se adaptar até à comédia familiar, que é o mais tradicional dos contextos centrais explorados na história do sitcom. Apesar disso, esse é o título mais suave em relação às críticas implícitas e ao humor negro. De fato, Modern Family resgata o sitcom familiar. Para Ginia Bellafante (2009), em artigo publicado no The New York Times 14 , os produtores consideraram que o local de trabalho havia se tornado o novo lar, portanto comédias familiares estavam em baixa. O sitcom havia encontrado sucesso em outros ambientes, como escritórios (The Office), prefeituras (Parks and Recreation) e estúdios de televisão (30 Rock). Além disso, os reality shows já mostravam famílias que superavam a loucura daquelas retratadas nos programas ficcionais, acostumando as audiências às disfunções que guiavam o humor em sitcoms familiares (LAVECCHIA, 2011, p. 2). Apesar do nome (“família moderna”), o programa, para muitos críticos, mostra-se conservador. Diferente de The Office e Parks and Recreation, o cômico de Modern Family encontra limites morais mais delineados. Um exemplo                                                                                                                           13

FEILER, Bruce. What “Modern Family” Says About Modern Families. The New York Times, 21

jan. 2011. Disponível em: . Acesso em: 5 abr. 2013. 14

BELLAFANTE, Ginia. “I’m the Cool Dad” and Other Debatable Dispatches from the Home

Front. The New York Times, 22 set. 2009. Disponível em: . Acesso em: 3 maio 2013.

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é o casal gay da série, Cam e Mitchell, que, apesar de demonstrarem carinho um pelo outro e de ficar claro que moram juntos e dormem na mesma cama, demoraram uma temporada inteira para dar um rápido beijo. Como forma de justificar, em partes, a distância física entre as duas personagens, os produtores escreveram um episódio no início da segunda temporada que fala sobre a dificuldade de Mitchell em fazer demonstrações públicas de afeto.

Figura 7. The Office (cena de 2006): Michael dá um longo e constrangedor beijo em Oscar, assumidamente homossexual, para provar que não é homofóbico. Modern Family (cena de 2010): Cam e Mitchell beijam-se pela primeira vez (um dos poucos da série até o encerramento desta pesquisa), em segundo plano, na segunda temporada. Um fator interessante sobre a produção é a sua popularidade. Aqui, o novo sitcom registra em seu histórico não apenas mais um grande sucesso de audiência, mas consolida um programa constantemente apontado como o mais

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assistido nos Estados Unidos. Desde a sua estreia, a audiência da produção aumenta a cada temporada. Segundo o site TV by the Numbers15, Modern Family foi o programa de televisão com maior audiência no país na última semana de outubro de 2011. Também sobre o sucesso do programa, Yvonne Villarreal do Los Angeles Times agradece a Modern Family pelo renascimento do sitcom: Não quer dizer que o gênero (sitcom) estava totalmente morto quando Modern Family estreou em 2009. Sitcoms da CBS como Two and a Half Men e The Big Bang Theory estavam indo muito bem. Mas comédias estavam sendo deixadas de lado com reality shows como American Idol e Dancing with the Stars povoando os rankings dos maiores índices de audiência ano após ano ao lado dos programas de drama. Agora, o gênero vive o seu maior renascimento desde que Friends e Everybody Loves Raymond acabaram no início dos anos 2000. E Modern Family está liderando as paradas.16 (Tradução nossa)

Ao repensar e refazer alguns aspectos do gênero, essa nova modalidade de sitcoms pode ter dado a energia que

o sitcom precisava para instigar

novamente as audiências ou ainda para conquistar novos espectadores que não gostavam da sua forma tradicional.

                                                                                                                          15 O TV By The Numbers é um site sobre a audiência da televisão norte-americana. Disponível em: . 16

VILLARREAL, Yvonne. Thank “Modern Family” for the revival of the sitcom. Los Angeles Times, 30 out. 2011. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2012. “That's not to say that the genre was totally dead when Modern Family launched in 2009. CBS sitcoms such as Two and a Half Men and The Big Bang Theory were doing quite well. But comedies were mostly in the trough, with reality fare such as American Idol and Dancing With the Stars crowding the top-rated show rankings year after year alongside tried and true dramas. Now, the genre is experiencing a revival, more than any time since Friends and Everybody Loves Raymond ended their runs in the early '00s. And Modern Family is leading the parade.”

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Contexto O sucesso do formato sitcom no território da comédia surge imerso na recente invasão de duas correntes na história da produção audiovisual: a reality TV e a expressão de usuários através de vídeos caseiros na internet, os chamados videologs. Segundo Mark Andrejevic, autor de The Work of Being Watched e professor na University of Queensland, os reality shows tornaram-se extremamente populares a partir das estreias de Big Brother e Survivor (no Brasil apresentado como No Limite) na televisão estadunidense (ANDREJEVIC, 2003, p. 7). A ampla aceitação do gênero, aliada à sua versatilidade e baixo custo, fez com que vários programas fossem criados dentro das bases da reality TV. A premissa implantada pela reality TV é que a submissão à vigilância abrangente não é meramente um desafio de construção de caráter e uma experiência de crescimento, mas uma forma de participar em um meio que há muito tempo relegou os membros da audiência a um papel de espectadores passivos (ANDREJEVIC, 2003, p. 2, tradução nossa)17

A passividade dos espectadores pode ser questionada. Programas de rádio e televisão, por exemplo, frequentemente contaram com a participação da audiência em diversas formas (telefonemas, opiniões do público, entrevistas nas ruas etc.), mesmo antes da ascensão da reality TV. No entanto, percebe-se um crescimento dessa participação e, sobretudo, da importância dessa participação. Nos reality shows, o indivíduo comum é uma personagem potencial. Isso também acontece nas redes sociais da internet. Os videologs são a forma mais popular de produção amadora de vídeo para a internet. A partir da popularização do Youtube em 2005/2006, a plataforma foi tomada por vloggers e                                                                                                                           17

“The premise deployed by reality TV is that submission to comprehensive surveillance is not

merely a character-building challenge and a “growth” experience, but a way to participate in a medium that had long relegated audience members to the role of passive spectators.”

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suas confissões. São vídeos produzidos com poucos recursos e baseados em relatos sobre assuntos diversos dados diretamente à câmera, geralmente gravados com o uso de uma webcam. Sobre a internet e a produção audiovisual específica do meio, Arlindo Machado, na obra O sujeito na tela, define o interator, que, além de consumir o conteúdo on-line, interage com ele através das ferramentas disponíveis nas plataformas. A partir das possibilidades da web, o interator agencia conteúdos, alterna narrativas e sugere novas perspectivas através de comentários, tudo isso sob a mediação de aparelhos e sistemas automatizados. Essa vertente de conteúdos, segundo Jane Roscoe e Craig Hight, está ligada a uma desconfiança em relação ao que é profissional: O docu-soap 18 e a reality TV estão conectados ao mockumentary porque eles também se desenvolveram nos espaços entre fato e ficção. Esses formatos podem ser considerados uma resposta à economia mutante e ao contexto das transmissões, mas seu aspecto mais interessante é a sua relação aparente com algumas das críticas de teorias pós-modernas. Enquanto o docu-soap e a reality TV parecem oferecer muito pouco como uma crítica ao documental, eles podem ser vistos como a representação da popularização do ceticismo pós-moderno em relação ao especializado e ao profissional. [...] Ambos rejeitam profissionalismo em nome de um amadorismo mais geral, o qual é visto como sendo mais confiável e “autêntico”. (HIGHT; ROSCOE, 2001, p. 39, tradução nossa)19.

                                                                                                                          18

Documentário manipulado e editado para ter a estrutura dramática dos episódios de um

programa seriado. 19

“Docu-soap and Reality TV are connected to mock-documentary because they too have

developed in the spaces between fact and fiction. These formats can be regarded as a response to both changing economic and broadcasting contexts, but their most interesting aspect is their apparent relation to some of the critiques offered by postmodern theorising. While docu-soap and Reality TV seem to offer very little in the way of a chitique of the documentary, they can be seen as representing a popularisation of a postmodern scepticism toward the expert and the

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O objetivo da presente pesquisa é traçar um paralelo entre as práticas desses novos títulos do sitcom que trazem características documentais (The Office, Parks and Recreation e Modern Family) e o contexto em que eles se inserem: o de reality shows e videologs. Perceber, entre outros, se o uso dessas linguagens é um fator de identificação com os espectadores do início do século XXI, dado o alto consumo de realities e de conteúdo web produzido por pessoas comuns. As comédias em questão, no entanto, recebem uma denominação que as conecta ao gênero documental. Esses títulos, entre outros, são chamados de sitcoms de falso documentário ou, como chamam os próprios norte-americanos, mockumentaries. Em um artigo sobre a série The Office apresentado na Intercom de 2011, Letícia Passos Affini, professora da Universidade Estadual de São Paulo, e Heitor Franco da Mata, aluno da instituição, explicam o termo mockumentary: [...] mock é um verbo da língua inglesa. Na verdade, to mock significa zombar ou ridicularizar e também é traduzido como simulado ou falso. Estes dois últimos melhor representam o que o termo vem a significar. (AFFINI; FRANCO DA MATA, 2011, p. 3)

Essas produções apresentam situações ficcionais através de recursos de linguagem tradicionalmente pertencentes a outro gênero, o documentário. Sendo assim, trata-se de um formato “factual-ficcional” que possui um relacionamento próximo ao drama e ao documental. Não apenas o gênero se apropria desses códigos, mas constrói um relacionamento particular com o discurso da factualidade. Os sitcoms discutidos nesta pesquisa (The Office, Parks and Recreation e Modern Family), por possuírem características do formato documental facilmente identificáveis – como a câmera na mão e o endereçamento à câmera –, foram                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           professional. […] they both reject profissionalism for a more general amateurism which is seen as being more truthfull ‘and authentic’.”

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designados por diversos pesquisadores e veículos especializados como sitcoms de falso documentário. Entretanto, em conversa com o Prof. Dr. Arlindo Machado, durante a orientação dos primeiros meses da pesquisa, e com a Profa. Dra. Cecília Salles, durante o exame de qualificação, pesquisadores da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, respectivamente, a denominação “sitcom de falso documentário” foi questionada. De fato, os objetos de pesquisa não enganam ninguém: apesar de muitas das escolhas estéticas lembrarem o que é usualmente apresentado em documentários, fica evidente para o espectador que se trata de uma ficção. Tendo o falso documentário uma tradição de longa data, com origens no rádio (MACHADO; VÉLEZ, 2005, p. 1), e uma ideologia específica, não seria mais adequado denominar esses programas de outra maneira? Chamá-los de mockumentaries, no entanto, tornou-se uma convenção de muitos dos veículos norte-americanos de mídia especializados. Em obra sobre o falso documentário (Faking It: Mock-Documentary and the Subversion of Factuality), Craig Hight e Jane Roscoe, ambos da Waikato University na Nova Zelândia, afirmam que o documentário, dentre as linguagens audiovisuais, ocupa uma posição privilegiada perante a sociedade. Subentende-se que seja dele o papel de mostrar a realidade, provendo uma representação confiável do mundo (HIGHT; ROSCOE, 2001, p. 6). Em sua obra Television Mockumentary: Reflexivity, Satire and a Call to Play, Craig Hight define o falso documentário não como um gênero ou subgênero, mas como um discurso complexo identificado por três níveis de atuação: -

O falso documentário é utilizado por produtores por vários motivos. Apesar de esses motivos serem mais frequentemente a paródia e a sátira, não pode ser reduzido apenas a eles. - No nível textual, o falso documentário apropria-se de estilos de representação não apenas referentes a códigos e convenções do

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documentário, mas de um amplo espectro de conteúdo não ficcional, incluindo formas híbridas utilizadas por diferentes mídias. - O falso documentário possibilita uma complexidade de modos de leitura, trazendo diferentes reflexões sobre o não ficcional e as formas híbridas que apropriam-se dele. Podemos relacionar esses três níveis de atuação com algumas características do corpus da presente pesquisa. No entanto, para o pesquisador de semiótica da televisão e sitcoms, Antonio Savorelli, The Office é uma sátira das personagens retratadas – ou seja, do chefe egocêntrico, do puxa-saco, do estagiário, da secretária etc. –, muito mais do que do gênero documental (SAVORELLI, 2010, p. 65). Particularmente, acredito que esses programas sejam também uma paródia que discute a forma pela qual pessoas atualmente se deixam registrar sem temer uma invasão de privacidade, ou seja, uma paródia dos próprios reality shows, redes sociais etc. Os reality shows e os videologs também podem ser considerados híbridos do documentário, mas perderam, no jogo das denominações, referências diretas a este. Já no universo dos sitcoms, alguns títulos, mesmo utilizando em menor escala as características documentais, muitas vezes são chamados de mockumentaries também. Existe uma grande divergência entre publicações, científicas ou não. Sitcoms como 30 Rock, apenas pelo uso de câmera na mão, ou Arrested Development, pelo uso de voz over, recursos tão comuns em obras puramente ficcionais, são chamados de falso documentário. Em um momento de tamanha hibridização de gêneros, categorizar títulos torna-se um grande desafio. As denominações assumiram uma grande complexidade, como, por exemplo, um dos gêneros literários mais bemsucedidos em 2013: a ficção paranormal adolescente. Quando não é possível ser assim, tão específico, o palpite parece imperar. Uma experiência profissional recente pode ilustrar bem isso. Realizei, junto a 8KA Produções Audiovisuais, uma websérie exibida no Youtube em 2012. Chama-se #E_VC?. Na tentativa de mesclar as linguagens mais populares da plataforma em um único produto de

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ficção adolescente (não paranormal, no caso), compusemos um formato híbrido de videoclipe, videolog e série televisiva. O protagonista endereçava diretamente à câmera como quem liga a webcam para dar um depoimento. Depois de instantes, o depoimento assumia caráter de voz over sobrepondo uma trilha musical e uma clipagem de imagens que ilustravam o que era dito pela personagem. No meio do episódio, o clipe e a música cessavam para dar espaço a uma pequena cena. Assim que ela acabasse, a estrutura anterior voltava e o episódio encerrava no rosto do ator, olhando para a câmera, como havia começado.

Figura 8. #E_VC? No Youtube. Temporada 1, episódio 1. Ator endereça à câmera. Enviamos a websérie para a edição de 2013 do Los Angeles Web Fest. Fomos premiados na categoria de docu-soap, que pode ser traduzido como drama-documentário. Jon Dovey, pesquisador de factualidade na televisão e professor na University of West England, chama o docu-soap de versão “McDonaldisada” do documentário. Em termos gerais, é um documentário seriado que estrutura-se

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narrativamente como se fosse uma novela (DOVEY, 2000, p. 140-153). Muitas considerações interessantes são feitas acerca do drama-documentário, mas elas não contribuem para o objetivo da presente pesquisa. O interessante aqui é percebermos que o docu-soap possui a premissa de ser algo não ficcional em sua base. Por que, então, uma websérie totalmente ficcional como #E_VC? seria categorizada pela comissão do LA Web Fest como docu-soap? Depois de muito refletir cheguei a uma conclusão: o olhar do protagonista, direcionado à câmera, tem uma forte relação com algo espontâneo, autêntico, documental. A quebra da quarta parede na nossa websérie emprestou ao formato ares de “realidade”. Uma conclusão aparente é a de que as denominações dos produtos audiovisuais não acompanharam a multiplicação de suas possibilidades e, portanto, perdem gradativamente sua importância. A opinião de Brett Mills em sua obra é a de que as denominações e classificações devem mesmo ficar em segundo plano quando esses produtos televisivos são discutidos. É irrelevante se essas séries estão em conformidade com as características do documentário. O que é significativo é que as audiências estão mais acostumadas a serem entretidas por programas que misturam as características de gêneros factuais e ficcionais. (MILLS, 2005, p. 65, tradução nossa)20

Sendo assim, não é interessante categorizar The Office, Parks and Recreation e Modern Family como sitcoms de falso documentário pelo simples fato de ter se tornado uma convenção. Pensá-los como falso documentário traria uma discussão das características desse gênero que desviam do foco da pesquisa, quando o que se mostra relevante é o comparativo com os reality shows. Dessa forma, os sitcoms serão analisados sem referência àquela denominação.                                                                                                                           20

“Whether any of these series conforms to the characteristics of documentary is irrelevant;

what’s significant is that audiences have become more accustomed to being entertained by programmes which mix the characteristics of factual and ficcional genres.”

  40  

No primeiro capítulo, este estudo apresenta uma breve recapitulação de teorias acerca do cômico, fazendo também uma relação com a semiótica Peirciana e com o contexto cultural em que os sitcoms analisados se encontram. No segundo capítulo é mostrada uma pesquisa das origens do sitcom, em uma investigação que discute o porquê da consolidação de linguagens utilizadas pelo sitcom tradicional. Cronologicamente, o fenômeno dos reality shows também é discutido para a compreensão de como esse momento da história da televisão possivelmente influencia a forma de se pensar outros gêneros, incluindo o sitcom. No terceiro capítulo, pretende-se fazer uma análise dos títulos escolhidos. The Office, Parks and Recreation e Modern Family são apresentados enquanto conceito, suas referências, informações de processos de produção e criação pertinentes e demais informações relevantes para a pesquisa. Entrevistas com diretores e roteiristas, bem como comentários de críticas especializadas, vão traçar o ponto de partida e a intenção de quem produziu esses sitcoms diferenciados. Após conhecermos os objetos da pesquisa, será apresentada uma análise das escolhas de linguagem que diferenciam esses novos sitcoms em relação ao sitcom tradicional. São eles: o uso da câmera, o som, a montagem e o confessionário. Exemplos de cenas dos sitcoms vão ilustrar diversos momentos interessantes desses recursos, e, constantemente, o sitcom tradicional, os reality shows e os videologs serão citados em comparação.

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2. CAPÍTULO 1. Comédia e cultura 2.1 Estudos sobre a comédia A comédia se apresenta na televisão e em outras mídias em uma infinidade de formatos, do teatro e da commedia dell’arte até sitcoms, desenhos animados, shows de variedades etc. O que faz com que todos esses formatos sejam categorizados como comédia? No primeiro capítulo do livro Popular Film and Television Comedy, Steve Neale e Frank Krutnik, pesquisadores da University of Kent, na Inglaterra, buscam encontrar uma característica comum a todos esses tipos de comédia. Nessa busca, os autores provam que a definição do gênero limita-se a convenções genéricas, que nem sempre se aplicam. Eles mostram, por exemplo, que fazer rir, ainda que seja o objetivo mais recorrente, nem sempre é a meta dos títulos de comédia. [...] diversas comédias como Going my Way (1944), It’s a Wonderful Life (1946) ou The Apartment (1960) são apenas intermitentemente engraçadas e parecem elaboradas tanto para nos fazer chorar quanto para nos fazer rir. Da mesma forma, muitos filmes – The Big Sleep (1944), El Dorado (1967) e Stakeout (1987), entre outros – contêm muitas

frases

e

momentos

engraçados,

mas

não

são

convencionalmente categorizados como comédia. (NEALE; KRUTNIK, 1990, p. 11, tradução nossa)21

Outra convenção genérica apontada é o final feliz. Ainda assim, é preciso lembrar da tragicomédia e do melodrama, que em francês era chamado de                                                                                                                           21

“[…] a number of comedies – like Going my Way (1944), or It’s a Wonderful Life (1946), or The

Apartment (1960) – are only intermittently funny, and seem designed as much to make us cry as to make us laugh. Equally, many films – The Big Sleep (1944), El Dorado (1967), and Stakeout (1987) among them – contain plenty of funny lines and funny moments, but are not conventionally categorized as comedy.”

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comédie larmoyante, ou comédia lacrimosa. Nesses casos, nem sempre há um final feliz (NEALE; KRUTNIK, 1990, p. 13). É possível concluir que a comédia é um gênero de difícil definição dada a sua versatilidade. Tal versatilidade pode ser relacionada a outra característica da comédia: sua adequação a hibridizações. Não existem apenas híbridos da comédia no cinema ou na televisão; ela se adapta com maior facilidade a outros gêneros. Os meios pelos quais a comédia se mostra presente nesses híbridos e desperta risadas na audiência não costumam interferir nas convenções de outros gêneros (NEALE; KRUTNIK, 1990, p. 18). De acordo com a obra História do Teatro, de autoria do dramaturgo e pesquisador Edson Tadeu Ortolan, a palavra comédia tem origem grega, e existem fragmentos de textos do gênero que datam de antes do século V a.C., sendo impossível determinar a época exata de sua criação: A palavra comédia não tem a sua etimologia ainda definida. As hipóteses apontam para komo (aldeia) ou kóme (cabelo) e ode: assim seria a canção dos aldeões ou a canção dos cabeludos. Outras informações apontam para koma (sono), porque este gênero era apresentado à noite, como também para komós (festa), o momento de folia e orgia dos cultos religiosos. (ORTOLAN, 2004, p. 14)

Apesar de a etimologia não ser precisa, as hipóteses apresentam conexão com questões da comédia que serão mais bem discutidas no decorrer do capítulo. Henri Bergson, filósofo francês do princípio do século XX, na obra em que analisa o fenômeno do riso, aponta que “o nosso riso é sempre o riso de um grupo” (BERGSON, 1983, p. 7). A ideia do grupo surge nas hipóteses komo, “aldeia”, e kómos, “festa”, que remete também ao riso e à alegria. Já kóme, “cabelo”, que gera o significado de “a canção dos cabeludos”, está ligada ao costume da elite da Grécia antiga de manter os cabelos curtos (ORTOLAN, 2004, p. 15), assim relacionando a comédia com algo baixo e popular, bem como koma, sono, ligado ao noturno, marginal, às escuras.

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Décadas depois, Vladimir Propp, acadêmico russo cuja trajetória foi dedicada ao estudo da narrativa, comenta que desde a antiguidade a prioridade atribuída ao gênero trágico fazia com que a comédia fosse analisada em contraponto à tragédia. No Romantismo do século XVIII, a busca pelo belo e pelo sublime se opunha ao cômico, considerado baixo e violento. Só a partir da estética positivista alemã do século XIX, o oposto do cômico foi apontado como o não cômico, ou seja, o sério. Isso permitiu que a comédia fosse analisada como tal (PROPP, 1992, p. 5).

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Figura 9. Símbolo do teatro – máscaras que representam a tragédia e a comédia. É possível afirmar que o sitcom – objeto da presente pesquisa – é uma comédia na qual o som da risada é peça fundamental. Nesse caso o riso não é só o objetivo, mas faz parte do texto através, por exemplo, do uso da claque. E o que tem potencial para fazer rir? Aquilo que é cômico. O cômico pode ser definido como algo que causa ou pretende causar o riso. Sendo assim, o cômico não está apenas nos limites da comédia, mas tratase de um conceito maior do que o próprio gênero em questão. Por exemplo: uma situação das nossas vidas pode ser cômica, uma pessoa real pode ser cômica, ambos fora do contexto da comédia (NEALE; KRUTNIK, 1990, p. 16).

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O cômico parece estar relacionado àquilo que é específico do homem, direta ou indiretamente. Animais, sobretudo o macaco, despertam o riso através de suas semelhanças físicas e comportamentais com o ser humano. As paisagens da natureza, entretanto, não costumam ser engraçadas, a menos que identifiquemos em uma árvore a silhueta de uma pessoa ou em uma folha a expressão de um rosto humano. O riso é exclusivo do ser humano; isso se explica pelo fato de que, para que possamos rir, é necessário atribuir às ações algum valor moral, algo que os outros animais não são capazes de fazer. Para Henri Bergson, o cômico está ligado a um estado de insensibilidade daquele que ri, manifestando crueldade por um momento. “O maior inimigo do riso é a emoção” (BERGSON, 1983, p. 12). Isso significa que um envolvimento excessivo do espectador por determinada personagem, por exemplo, pode arruinar as chances de nele ser despertado o riso quando algo ruim acontecer à personagem. Essa citação de Bergson sugere a necessidade de um afastamento da personagem cômica para que ela possa tornar-se risível. O risível e o humor estão naturalmente interligados. Rir só é possível quando o espectador sente um bem-estar psicológico, o chamado bom humor. Propp define o humor em sua obra Comicidade e riso: “O humor é aquela disposição de espírito que em nossas relações com os outros, pela manifestação exterior de pequenos defeitos, nos deixa entrever uma natureza internamente positiva” (PROPP, 1992, p. 31). Ivo Cláudio Bender, dramaturgo e doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, analisa o teatro cômico em sua obra Comédia e riso (1996). No primeiro capítulo, Bender cita Aristóteles e as ações que geram riso segundo os estudos do filósofo grego: o engano, a assimilação para pior ou vice-versa, o impossível, o inconsequente, as coisas ou eventos contrários às expectativas do espectador, o rebaixamento da personagem. O riso provém do inesperado, surge repentinamente. Segundo Neale e Krutnik, “todas as formas do cômico são fundamentalmente semióticas. Enquanto elas envolvem expectativas e lógica, necessariamente também

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envolvem significados e signos” 22 (NEALE; KRUTNIK, 1990, p. 70, tradução nossa). Um homem escorregando em uma banana só é engraçado porque isso tem

um

significado,

e

esse

significado

gera

uma

contradição

que,

consequentemente, leva a uma surpresa risível. No final do século XIX e começo do século XX, Charles Sanders Peirce explorou diversas áreas do conhecimento, entre elas o estudo dos signos. Ele é considerado o fundador da moderna Semiótica23. De acordo com uma definição simples, o signo representa alguma coisa, o objeto, para alguém. Ou seja, o signo faz gerar, na mente desse “alguém”, outro signo. Esse outro signo, gerado a partir da exposição do signo original a uma mente potencial, é o que Peirce denomina “interpretante”. Na obra Semiótica aplicada (2010), Lúcia Santaella, especialista em semiótica peirciana e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mostra como é possível fazer uma análise semiótica de um produto audiovisual. Essa obra foi referência fundamental para os exemplos discutidos a seguir em relação às novas modalidades de sitcom estudadas. O pensamento de Peirce segue uma lógica triádica. Esta sugere que todo signo possui três níveis: um nível de qualidades/possibilidades (categoria da primeiridade), de existentes (categoria da secundidade) e de relações (categoria da terceiridade). A partir disso, cada um desses níveis também possui três níveis, e assim por diante, sempre remetendo às três categorias primordiais. O interpretante, que diz respeito às relações de um signo, possui vários níveis de realização. Existe um interpretante relacionado à primeiridade: o interpretante imediato. Relacionar o interpretante à primeiridade significa afirmar que este nível de realização encontra-se dentro do próprio signo, no plano da pura possibilidade. Aplicando este conceito a um signo televisivo, podemos dizer que trata-se do potencial do material audiovisual para ser interpretado de determinada maneira, o que se apresenta em características como o públicoalvo esperado e o nível de repertório implícito. No caso dos sitcoms que utilizam                                                                                                                           22

“All instances and forms of the comic are fundamentally semiotic. In as much as they involve

expectation and logic they necessarily involve meanings and signs.” 23

Disponível em: . Acesso em: 27 jul. 2013.

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linguagem documental, por exemplo, esse repertório implícito compreende tanto os códigos do gênero documental quanto os do sitcom, por ser um híbrido de ambos. Deixando o plano das possibilidades e pensando o interpretante no plano dos existentes (secundidade), encontramos o “interpretante dinâmico”. Esta é a denominação peirciana para o efeito singular e psicológico que cada uma das mentes em contato com o signo produzirá no exato momento dessa exposição. A primeira subdivisão do Interpretante dinâmico é o efeito emocional, no caso o que sentimos ao assistir ao sitcom em questão. Este interpretante está presente em qualquer interpretação, mesmo que não tenhamos consciência dele. Prazer, divertimento, constrangimento e surpresa são algumas das emoções que nos acompanham internamente ao assistir a The Office, Parks and Recreation e Modern Family. Outro efeito presente no interpretante dinâmico é o efeito energético. Aqui gera-se um esforço, dispende-se energia, seja ela física ou mental. Neste caso, o riso é o efeito energético mais recorrente. Finalizando as subdivisões do interpretante dinâmico, Peirce apresenta, em sua teoria semiótica, o efeito lógico. Para que um signo seja interpretado, é necessário que a mente em questão (espectador) possua determinadas regras interpretativas internalizadas, ou seja, um conhecimento prévio. Neste caso, podemos dizer que o efeito lógico é o conhecimento de características dos ambientes retratados, ter familiaridade com os arquétipos trabalhados etc. Por fim, o “interpretante final” (terceiridade) tende ao infinito: são as conclusões possíveis a partir do contato com o signo e as suas reverberações. Esta pesquisa, por exemplo, é um interpretante final dos sitcoms em questão. O estudo dos interpretantes de Peirce, sobretudo o dinâmico, tem muito a dizer sobre a construção do cômico em sitcoms. A familiarização da audiência com as personagens e demais informações relevantes do sitcom interferem no efeito lógico. Através dessa familiarização, temos uma maior disposição do humor e, consequentemente, estamos propensos a uma maior intensidade no

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efeito emocional. Dessa forma, o efeito energético, no caso primordialmente o riso, torna-se mais frequente. A mesma piada contada diversas vezes enfraquece o interpretante dinâmico, pois o efeito emocional de surpresa não ocorre mais ou enfraquece. Ao mesmo tempo, a familiarização com o contexto e com as personagens fortalece o efeito lógico. Sendo assim, a serialização mostra-se eficiente na construção desse interpretante dinâmico enquanto efeito cômico. Umberto Eco, filósofo, semiólogo, escritor, entre outros, da Università di Bologna, comenta que o formato seriado possui características que consolam o espectador: este “acredita que desfruta da novidade da história enquanto, de fato, distrai-se seguindo um esquema narrativo constante e fica satisfeito ao encontrar um personagem conhecido” (ECO, 1989, p. 123). Ou seja: a serialidade pode ser uma forte aliada do riso. Existem tipos diversos de riso. Propp sugere duas categorias: o que provém da derrisão e os demais, como o riso bom, o riso cínico e o riso maldoso, que possuem determinadas funções sociais. O riso mais recorrente nas artes é o de derrisão/zombaria, suscitado por defeitos daquilo ou de quem ri (PROPP, 1992, p. 151). Sendo assim, sugere-se que um protagonista cômico deva ser falho, mas que suas falhas e defeitos não sejam graves o suficiente para provocar fortes emoções nos espectadores, como repúdio ou compaixão. Na televisão, bem como em outras mídias, os produtos de comédia utilizam diferentes estilos de piadas e eventos cômicos para fazer rir. Na obra de Neale e Krutnik, um capítulo discute a diferença entre gags, jokes e wisecracks. (NEALE; KRUTNIK, 1990, p. 43). Em português, o sentido para os três termos é basicamente o mesmo: uma piada, algo que leva ao riso. A distinção dos termos é arbitrária entre autores que abordaram a comédia, então optou-se por adotar o ponto de vista dos autores mencionados. Wisecrack é uma observação espirituosa e sarcástica. Já a joke é uma anedota, história ou frase com a intenção de ser engraçada. Existem também os casos em que as wisecracks e as jokes surgem a partir da estupidez ou do engano, e não são ditas pela personagem com a intenção de fazer rir, mas o

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fazem. Neste caso, segundo Neale e Krutnik, a terminologia não é tão importante. O relevante é que essas piadas costumam encerrar-se em si mesmas, constituindo geralmente uma pausa, sem afetar diretamente a narrativa. As gags são ainda mais difíceis de definir, pois são utilizadas como diversos tipos de piadas em ocasiões diferentes, sem um padrão. Para Neale e Krutnik, uma gag é uma piada que provém de uma ação não verbal. Tantos as gags, as wisecracks e as jokes possuem uma característica em comum: fazem uso da surpresa (NEALE; KRUTNIK, 1900, p. 47).

Tabela 2. Exemplos de gag, wisecrack e joke. Gag

Ação não verbal engraçada. Exemplo – The Office: Dwight abre uma gaveta e encontra seu grampeador preso dentro de uma gelatina.

Wisecrack

Observação sarcástica. Exemplo – The Office: “Foi isso o que ela disse!” – Frase dita por Michael Scott toda vez que alguém no escritório fala algo com conotação sexual.

Joke

Anedota, história ou frase engraçada. Exemplo – The Office: “Se eu prefiro ser amado ou odiado? Eu prefiro ambos. Quero que as pessoas tenham medo do quanto me amam” – Frase da personagem Michael Scott

Já o evento cômico depende da narrativa. Trata-se de um conjunto de acontecimentos que, por si sós, não seriam engraçados. Entretanto, esses acontecimentos constroem uma situação engraçada, o evento cômico. É possível concluir, portanto, que a história que um episódio de sitcom conta é um evento cômico, e este vem recheado de piadas de todos os tipos.

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2.2 Mecanismos de identificação Para Bergson, o riso é a mecânica aplicada no ser vivo, acontecendo com uma precisão similar às leis da natureza: está presente sempre que há uma causa para isso. Entretanto, Propp problematiza essa afirmação de Bergson. [...] pode-se dar a causa do riso, porém é possível existirem pessoas que não riem e que é impossível fazer rir. A dificuldade está no fato de que o nexo entre o objeto cômico e a pessoa que ri não é obrigatório nem natural. Lá, onde um ri, outro não ri. (PROPP, 1992, p. 31)

A causa para esse fenômeno pode residir, segundo Propp, em condições de ordem histórica, social, nacional e pessoal. “Cada época e cada povo possui seu próprio e específico sentido de humor e de cômico, que às vezes é incompreensível e inacessível em outras épocas” (PROPP, 1992, p. 32). As pesquisas acerca da comédia antiga, segundo Ortolan, apontam para a utilização dos temas que mais afetam a sociedade na época em que cada texto era elaborado. O contexto das histórias e as personagens eram baseados em política, guerra, educação, religião, discriminação sexual etc. (ORTOLAN, 2004, p. 15). Voltando a Bergson, o filósofo afirma que o nosso riso sempre tem um grupo implícito. O nosso riso é sempre o riso de um grupo. Ele talvez nos ocorra numa condução ou mesa de bar, ao ouvir pessoas contando casos que devem ser cômicos para elas, pois riem a valer. Teríamos rido também se estivéssemos naquele grupo. Não estando, não temos vontade alguma de rir. [...] Por mais franco que se suponha o riso, ele oculta uma segunda intenção de acordo, diria eu quase de cumplicidade, com outros galhofeiros, reais ou imaginários. (BERGSON, 1983, p. 7)

Essa afirmação discute a importância da familiarização e da relação com o que faz rir. No universo da comédia televisiva, ressalta a importância da rápida

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assimilação das características das personagens, para que entendamos seu gênio e saibamos o que esperar delas. Parte do que faz uma piada funcionar quando dita, por exemplo, por uma personagem como Dwight Schrute, de The Office, é saber que ele é um excêntrico e que raramente vai dizer algo de senso comum. Outra familiarização que favorece a comédia está relacionada aos ambientes explorados. Estes resgatam situações que possivelmente ocorrem, já ocorreram ou tem o potencial de ocorrer com os espectadores nesses locais de convívio. É possível relacionar alguém da família com alguma das personagens de Modern Family e fantasiar com a que essas atitudes poderiam levá-las. Identificar as características do gênero documental ou da reality TV nesses programas também é uma forma de provocar um reconhecimento mais rápido por parte do espectador. Os sitcoms analisados nesta dissertação valemse da paródia e da sátira como formas pelas quais usualmente o gênero documental e o cotidiano são ridicularizados. Segundo Propp, a paródia consiste na imitação das características exteriores de um fenômeno qualquer da vida de modo a ocultar ou negar o sentido interior daquilo que é submetido à parodização e serve para desvendar a inconsistência interior do que é parodiado (PROPP, 1992, p. 84). A paródia nem sempre é cômica. Entretanto, se esse for o objetivo, o efeito de comicidade vai depender de um conhecimento prévio por parte do espectador, pois as piadas estarão ligadas às convenções do meio ou gênero parodiado. Para Neale e Krutnik, o falso documentário de comédia é uma paródia do gênero documental, por exemplo (NEALE; KRUTNIK, 1990, p. 19). Enquanto a paródia se baseia em convenções estéticas, a sátira se baseia em convenções sociais (NEALE; KRUTNIK, 1990, p. 19). A partir desse ponto de vista, podemos dizer que The Office, Parks and Recreation e Modern Family

satirizam

as

disfunções

de

empresas,

governos

e

famílias,

respectivamente, enquanto parodiam documentários e reality shows. Os movimentos de câmera e o olhar endereçado ao espectador parodiam o gênero documental, ao passo que o chefe estúpido da empresa e o pai de família que

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tenta ser descolado mas permanece antiquado fazem parte da construção de uma sátira das relações que ocorrem nessas instituições. Outro exemplo de paródia que foi amplamente explorado nas últimas décadas no cinema hollywoodiano são os filmes que apresentam versões cômicas de sucessos de bilheteria. A série de filmes Scary Movie (Todo mundo em pânico) parodia famosos filmes de terror. Já Austin Powers apresenta um espião nada convencional que desconstrói a imagem e os desafios de James Bond. A sátira encontra terreno fértil em animações. South Park e Family Guy são dois exemplos que frequentemente satirizam aspectos da sociedade americana. Raças, religiões e política são alvos de piadas que, de forma divertida, por vezes trazem uma crítica.

Figura 10. Family Guy faz uma sátira com os estereótipos comportamentais do povo judeu. Propp alega que a sátira representa os defeitos que ainda sobrevivem em nossos costumes e que essa arte ajuda a superá-los. Para o autor, “É considerado aspecto superior da comicidade o satírico e o riso que ele suscita. O riso provocado por este gênero de comicidade é um riso ideologicamente significativo, valioso e necessário” (PROPP, 1992, p. 185). Mas até mesmo o

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riso desprovido de sátira, simples e habitual, cumpre um papel social, pois leva à alegria de viver e “eleva o tônus da vida” (PROPP, 1992, p. 190). Retomando os apontamentos de Bender sobre a teoria do cômico de Aristóteles, este cita o rebaixamento da personagem como uma ação que gera risadas. Consiste na “dessacralização de heróis nacionais, deuses ou instituições” (ARISTÓTELES apud BENDER, 1996, p. 32). Nos casos aqui analisados, temos, portanto, a dessacralização de instituições como as empresas, o governo e a família contemporâneos. Quando o cotidiano e as situações retratadas nesses sitcoms assemelham-se ao que vivemos ou projetamos naqueles ambientes, estamos inseridos no grupo necessário para o riso sobre o qual falava Bergson, ou seja, o grupo de pessoas que trabalham em escritórios, que ficam incomodadas com a ineficiência do poder público e que têm famílias ou grupos de amigos compostos por pessoas diferentes e que vivem em conflito. A importância da identificação do espectador com esses grupos parece ser o motivo pelo qual, a partir dos anos 2000, no universo dos sitcoms, os títulos que giravam em torno de ambientes familiares foram, em parte, substituídos por lançamentos que priorizavam o ambiente de trabalho. Trata-se da busca por uma maior identificação por parte dos espectadores, sendo que produtores consideravam empresas e escritórios o novo lar. Propp, em sua obra, fala sobre a sátira que ridiculariza as profissões. Algumas profissões podem ser representadas satiricamente. Nesses casos a atividade é representada apenas pelo ponto de vista de suas manifestações exteriores, privando-se de sentido com isso o seu conteúdo. (PROPP, 1992, p. 79)

Quando os funcionários da Dunder Miffin em The Office ou da prefeitura em Parks and Recreation desempenham suas funções, geralmente não há um exercício intelectual intenso. A atenção permanece em seus aspectos exteriores no trabalho: posições, trejeitos e até mesmo o semblante de tédio, comum nas personagens dessas séries. Dessa forma, segundo Propp, é mais fácil fazer

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uma sátira de determinada profissão. As personagens parecem ser, portanto, elementos da reconstrução cômica desses ambientes: o chefe que toma decisões estúpidas, o puxa-saco do escritório, o gordo ridicularizado por todos e o secretário do governo que evita trabalhar. Ainda sobre essa afirmação de Propp, é possível traçar um paralelo com a pouca informação que nos é dada sobre as personagens de sitcoms. Eventualmente, conhecemos a família e algumas histórias da trajetória dessas personagens, mas, geralmente, elas nos são apresentadas e percorrem diversos episódios sem termos nenhum conhecimento significativo de seu passado. A personagem constrói-se como um clichê, um tipo fácil de ser reconhecido. Para Aristóteles, a comédia representa as pessoas “piores do que elas são” (ARISTÓTELES apud PROPP, 1992, p. 134), ou seja, a criação de personagens cômicas demanda algum exagero. Os princípios da construção de tais personagens parecem ligados aos da caricatura, na qual uma qualidade é aumentada até o ponto de tornar-se visível para todos. A teoria de Propp diz que o riso de zombaria está no desnudamento de qualidades negativas. Um homem gordo pode ou não ser ridículo. Se o homem em questão tiver algum desajuste ou algum defeito, ele faz rir. Mas se o homem for alguém muito inteligente e sereno, ele não será engraçado. O exagero que faz parte da caricatura, entretanto, não pode ultrapassar determinados limites que façam com que os espectadores sintam repúdio ou desgosto. “Só os pequenos defeitos são cômicos” (PROPP, 1992, p. 135). Os arquétipos explorados em sitcoms costumam enquadrar-se nessa definição. Eles podem ser

fanfarrões,

bajuladores,

vaidosos,

malandros

etc.,

características

consideradas negativas. Brett Mills afirma que, para acharmos uma personagem engraçada imediatamente, ela precisa ser um tipo de fácil reconhecimento (MILLS, 2005, p. 7). No entanto, tanto nos sitcoms quanto na vida, não existem tipos totalmente negativos ou positivos. A protagonista possui, geralmente, mais características positivas do que negativas, o que sugere que tipos positivos também podem ser cômicos. A comicidade está, segundo Propp, no otimismo

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dessas personagens, bem como em sua alegria. Quando algo de errado acontece com elas, o otimismo se torna um defeito, pois revela sua ingenuidade e provoca o riso. A contradição também está constantemente presente nos sitcoms estudados. O cômico da contradição reside nas relações recíprocas entre o objeto do riso e o sujeito. “[...] quem ri tem algumas concepções do que seria justo, moral, correto ou [...] considerado conveniente” (PROPP, 1992, p. 173). Ou seja, o riso da contradição está em perceber os defeitos do mundo que contrariam essas concepções. Quando as personagens estão cientes da presença da câmera, nota-se que elas interpretam, representando como gostariam de ser registradas. Quando a câmera as “espiona”, há um grande contraste. O discurso para a câmera traz uma expectativa em relação à moralidade das personagens. Esta é, logo em seguida, quebrada pelo corte para outra captação que revela a contradição das atitudes em relação ao discurso. Nos momentos em que as personagens falam olhando para a câmera, em modo confessional, elas também revelam frequentemente a falta de sinceridade na ação e dos diálogos no cotidiano. A mentira enganadora nem sempre é cômica. Para sê-lo, tal como os outros vícios humanos, ela deve ser de pequena monta e não levar a consequências trágicas. Além disso ela deve ser desmascarada. A que não o for não pode ser cômica. (PROPP, 1992, p. 79)

Um exemplo dessa mentira inofensiva à qual Propp se refere pode ser vista no episódio “Survivor Man” (7, quarta temporada), de The Office. Michael Scott, o chefe, conversa com Jim, um dos vendedores da Dunder Miffin: (sala de Michael) MICHAEL -

Hipoteticamente, se eu te convidasse para acampar... você sabe o que hipoteticamente significa, não é real.

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JIM -

Entendi. MICHAEL

-

Então, se eu hipoteticamente te convidasse para acampar comigo, você iria? JIM

-

Sim, com certeza. (confessionário) JIM

-

Quando Michael joga o jogo do “hipoteticamente”, eu sempre digo “sim”... (sala de Michael) MICHAEL

-

De verdade? JIM

-

Sim. MICHAEL

-

Oh... quer ir hoje? (confessionário) JIM

-

... e eu sempre estou ocupado. (sala de Michael) JIM

-

Não, não posso ir hoje. Eu doei sangue. MICHAEL

-

Com que frequência você pode doar sangue? JIM

-

Existe algum limite? Eu não sei.

Aqui, além da mentira, há outro componente que constrói a comicidade: a ironia. Quando Jim diz que não sabe se há um limite para doar sangue, ele olha para cima como quem está à procura da resposta, endereça à câmera e diz toda a frase com o olhar fixo na lente. Segundo D.C. Muecke, professor do departamento de inglês da Adelaide University (Austrália), em sua obra Ironia e

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irônico, “a ironia é dizer alguma coisa de uma forma que ative não uma, mas uma série infindável de interpretações subversivas” (MUECKE, 1995, p. 48). Para que uma mentira seja irônica, o significado real (contrário) do que é dito deve ser compreendido ou diretamente pelo que é dito ou pelo seu contexto, como é o caso da cena em questão (MUECKE, 1995, p. 54). Alogismos também são recorrentes não só nos sitcoms, mas, segundo Propp, trata-se da forma mais comum de comicidade na vida. “O alogismo desnuda a si mesmo tanto devido à evidente e indiscutível incoerência das argumentações ou das conclusões quanto às ações absurdas que são sua consequência” (PROPP, 1992, p. 177). A comicidade aqui surge a partir da estupidez que pode provir de qualquer personagem. Algumas, no entanto, são construídas com base nesse conceito e já se espera que a maioria de suas manifestações seja um alogismo. Um exemplo é a personagem Andy Dwire de Parks and Recreation. No segundo episódio da terceira temporada, há uma epidemia de gripe na prefeitura. Leslie Knope, protagonista, insiste em trabalhar mesmo com febre e Ben, seu par romântico, finalmente a convence a ir para casa. No caminho eles passam por Andy, um faz-tudo bastante ingênuo que trabalha na prefeitura, sentado em frente a um computador. ANDY -

Leslie, eu digitei seus sintomas no negócio aqui em cima (aponta para a tela) e diz que você pode ter problemas de conexão de rede.

Esses exemplos de construção cômica demonstram a importância da harmonia entre as vivências do espectador e o que é retratado na comédia televisiva. Dessa forma existe uma maior identificação e compreensão dos recursos para fazer rir. Os sitcoms citados não apenas apresentam grande conjunção com o que o espectador mediano experimenta ou já experimentou na vida, mas fazem uso de linguagens que lembram as utilizadas em reality shows. Essa hibridização em particular reforça os laços entre produção e espectador, sendo que reality shows possuem uma forte presença na televisão, ao lado dos sitcoms, fazendo parte do que podemos chamar de cultura televisiva.

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Como citado anteriormente, a comédia possui grande versatilidade. Comédias como The Office, Parks and Recreation e Modern Family são exemplos de uma corrente nova de sitcoms que surgiu na televisão norteamericana a partir de 2005. No início do século XXI, os reality shows constituíam uma ameaça ao sitcom. A maneira como esses programas conseguiram estabelecer um diálogo com o fenômeno da reality TV e reter grandes audiências mostra como a comédia é um gênero de grande adaptabilidade.

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3. CAPÍTULO 2. DO SITCOM TRADICIONAL AO NOVO SITCOM 3.1 As origens Na segunda metade do século XIX, o desenvolvimento de diversos setores da indústria norte-americana, no que ficou conhecido como Segunda Revolução Industrial, levou a uma intensa migração da zona rural para a zona urbana dos Estados Unidos. Na época, com cerca de metade dos norteamericanos concentrada nas cidades e trabalhando de forma regulamentada, tempo e dinheiro estavam à disposição desses trabalhadores para serem despendidos com lazer e entretenimento24. Robert W. Snyder, pesquisador da State University of New Jersey, em colaboração para a obra The Encyclopedia of New York City, mostra que diferentes formas de entretenimento estavam disponíveis para diferentes classes sociais. [...] o entretenimento em Nova York estava dividido por classes: as óperas

eram

principalmente

destinadas

à

classe

alta,

as

apresentações de menestréis à classe média e os shows de variedades nos saloons aos homens da classe trabalhadora e aos pobres. O vaudeville foi desenvolvido por empreendedores que buscavam maiores lucros advindos de maiores audiências. (SNYDER, 1995, p. 1226, tradução nossa)25

Os vaudevilles reuniam uma diversidade de artistas que se apresentavam em uma sequência de espetáculos circenses, musicais e de comédia. Essa formatação de variedades sequenciais não representava, entretanto, uma inovação absoluta. Shows de variedades eram comuns na Europa e também                                                                                                                           24 25

Informações obtidas no site musicals101.com, disponíveis em http://www.musicals101.com

“[…] entertainment in New York City was divided along class lines: opera was chiefly for the upper middle and upper classes, minstrel shows and melodramas for the middle class, variety shows in concert saloons for men of the working class and the slumming middle class. Vaudeville was developed by entrepreneurs seeking higher profits from a wider audience.”

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nos Estados Unidos mesmo antes da nova conjuntura de desenvolvimento industrial. Diferentes apresentações estavam à disposição de diferentes públicos, sobretudo o masculino, até mesmo pela recorrência do uso do erotismo e da dita vulgaridade. O diferencial do vaudeville, portanto, estava relacionado ao seu modelo comercial: o espetáculo encontrava-se pela primeira vez organizado de uma forma estável e institucionalizada. As atrações – de oito a doze por show – continham mandatoriamente de sete a vinte minutos cada, sendo seu conteúdo adequado para todos os públicos, acessível para a nova classe trabalhadora e sofisticado o suficiente para atrair também a burguesia. Esse foi um marco que caracterizou o entretenimento popular como um grande negócio26. Tony Pastor, um empresário norte-americano e proprietário de teatros, foi o idealizador de um vaudeville clean, ou seja, um show de variedades com as características de um entretenimento familiar. Suas apresentações semanais, com estreia em 1881 em Nova York, passaram a atrair vários moradores da cidade, tornando-se um sucesso comercial instantâneo. Também defendendo um espetáculo convidativo para mulheres e crianças, Benjamin Franklin Keith, outro proprietário de teatros nos Estados Unidos, inaugurou uma variedade de luxuosas instalações para a exibição de vaudevilles moralmente adequados, com preços variáveis de acordo com os lugares disponíveis, o que permitia o acesso a todos. A censura em seus teatros estendia-se aos artistas, proibidos de apresentar conteúdo tido como vulgar ou de duplo sentido, e até ao público, ao qual foi imposta uma rígida discrição que ajudou a classe trabalhadora a superar velhos hábitos. Gritos e arremessos de frutas nos palcos não eram mais tolerados. O espetáculo oferecido nos teatros de Keith ajudou a educar e a transformar as plateias norte-americanas em seu novo papel de espectadores educados e consumidores de experiências27.                                                                                                                           26

Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2012.

27

TRACHTENBERG. Versão de hipertexto. Disponível em:

. Acesso em: 12 jun. 2012.

  60  

No começo do século XX, os vaudevilles foram progressivamente perdendo espaço para o cinema. Inicialmente, exibições de filmes começaram a fazer parte do set de atrações, mas a popularização do novo meio e seu custo reduzido diminuíram drasticamente o interesse do público pelas apresentações ao vivo. O surgimento da indústria cinematográfica norte-americana e, posteriormente, dos filmes sonoros, aliado à Grande Depressão de 1929, fez com que o vaudeville praticamente desaparecesse28. Outro fenômeno relacionado à falência do modelo comercial dos vaudevilles foi o surgimento do rádio. As atrações musicais, informativas e ficcionais, incluindo os sketches de comédia, que antes levavam os cidadãos aos teatros e às salas de cinemas, agora poderiam ser apreciados em ambiente doméstico. O show de variedades perdeu o apelo frente às grandes massas. A partir do surgimento da primeira rádio comercialmente licenciada, em 1920, até o surgimento da NBC em 1926, a programação já apresentava conteúdo humorístico, resumido a pequenas brincadeiras e piadas entre os membros das orquestras e os anunciantes. Nessa época, as emissoras de rádio não contavam com recursos suficientes para atrair atores de prestígio dos vaudevilles para sua programação. Steve Neale e Frank Krutnik afirmam que a consolidação comercial do rádio ocorreu nos Estados Unidos em 1929, quando um em cada três lares norte-americanos possuía um aparelho de rádio (NEALE; KRUTNIK, 1990, p. 212). Ironicamente, trata-se do mesmo período em que o país sofreu a Grande Depressão, quando quedas das ações e a falência de diversas indústrias e bancos resultaram em altíssimas taxas de desemprego. Segundo William e Nancy Young, pesquisadores independentes e autores de The Great Depression in America, o cinema perdeu mais de um terço do público pagante entre 1929 e 1933, culminando no fechamento de mais de 5 mil salas nos Estados Unidos. Nos jornais, o número de anunciantes despencara 45%. Isso representou uma redução de 860 milhões para 470 milhões de dólares em receita de publicidade entre 1929 e 1933 (YOUNG; YOUNG, 2007, p. 320-352). A diferenciação do                                                                                                                           28

Disponível em: . Acesso em: 13 maio 2012.

  61  

modelo comercial possível através do rádio, por outro lado, fez com que este crescesse expressivamente. Além de o rádio estar presente na casa de muitas famílias e possuir grande audiência, até mesmo os norte-americanos que não sabiam ler poderiam compreender os anúncios. Com o aumento na renda publicitária das rádios, programas humorísticos baseados em vaudevilles ingressaram na programação da NBC e da CBS, as maiores redes até então, contando com altos orçamentos. Em sua maioria, esses artistas comandavam comedy-variety shows (shows de comédia variada), nos quais uma miscelânea de conteúdos de entretenimento era apresentada. Alguns problemas de adaptação definiram progressivamente os formatos na transição midiática. Os artistas, acostumados com as performances teatrais, mantiveram o costume de vestir-se de acordo com os personagens encenados nos sketches, quadros isolados do contexto do programa em que uma situação cômica possui início, meio e fim. Entretanto, o formato não permitia que a audiência os visse. Sendo assim, no início da década de 1930, foi instituída a audiência presente no estúdio. O riso dessa plateia passou a fazer parte do texto cômico, servindo para sinalizar as reações da audiência em casa (NEALE; KRUTNIK, 1990, p. 231). Nascia assim a claque, uma das características que, posteriormente, acompanharia diversos títulos de sitcom televisivo até o século XXI.

  62  

f

Figura 11. Estúdio de rádio da DePauw University nos anos 1940, com capacidade para 100 pessoas29. No rádio havia também a necessidade de uma quantidade maior de novos textos a serem encenados, fazendo com que os apresentadores passassem, em partes ou integralmente, a responsabilidade do conteúdo de seus programas a uma equipe de roteiristas (NEALE; KRUTNIK, 1990, p. 214). Na busca pela fidelização da audiência, a continuidade não era um forte dos variety-shows. Por apresentarem atrações isoladas, a identificação do público não era trabalhada em seu máximo potencial e as redes buscavam a criação de um hábito em seus ouvintes para manter os índices de audiência. Em 1939, durante a New York World's Fair, a RCA apresentou a televisão ao grande público norte-americano, uma criação associada às mentes de                                                                                                                           29

Disponível em: .

Acesso em: 11 nov. 2013.

  63  

Vladimir Zworykin e Philo Farnsworth, inventores do tubo (Orthicon tube) e do receptor (Kinescope), respectivamente30. A transmissão de televisão nos Estados Unidos durou cerca de cinco meses, até ser interrompida pela Segunda Guerra Mundial. Retomada a produção após o término da guerra, a demanda por televisores era surpreendente. O aparelho era um símbolo de status, como retrata Patricia Mellencamp, professora do departamento de Artes e História na University of Wis-Mailwaukee, em seu artigo “Film History and Sexual Economics” (MELLENCAMP, 1992, p. 80). A programação comercial das redes de televisão norte-americanas começou verdadeiramente em 1948, quando o programa do gênero comedyvariety, Texaco Star Theater, consolidou-se como o primeiro grande sucesso da TV dos Estados Unidos. A comédia esteve presente na leva dos primeiros gêneros a serem televisionados. Em 1950, o formato mais popular era o comedy-variety show, definido por Jeff Little 31 como “um vaudeville eletronicamente transmitido” e também conhecido como vaudeo, uma abreviação de vaudeville e vídeo. Programas como The Colgate Comedy Hour (1950-1955) e Cavalcade of Stars (1950-1952) traziam uma miscelânea de atrações que incluíam música, dança e, em destaque, sketch comedies, quadros ficcionais isolados de comédia com início, meio e fim, como os dos programas de rádio. O comedy-variety show tratava-se então, grosso modo, de uma versão do mesmo gênero radiofônico, adaptado para uma apresentação com imagens. Dos 25 shows de comédia variada televisionados em 1950, 11 eram baseados na apresentação de artistas conhecidos do público. Nomes como Sid Caesar de Your Show of Shows (1950-1954) e Milton Berle de Texaco Star                                                                                                                           30

TAFLINGER, Richard F. Sitcom: What it is and How it Works. A History of Comedy On

Television: Beginning to 1970. Disponível em: . Acesso em: 9 nov. 2012. 31

LITTLE, Jeff. Rewind the Fifties: Timeless Laughter. Disponível em:

. Acesso em: 5 jun. 2012.

  64  

Theatre

(1948-1956),

mencionado

anteriormente,

comandavam

as

apresentações trazendo para a televisão a audiência que já os acompanhava em transmissões radiofônicas. Além dos 25 shows de comédia variada, as redes norte-americanas NBC, CBS e ABC apresentavam no total mais 11 sitcoms em 1950, uma modalidade de comédia que, com o passar dos anos, tornou-se a mais popular da televisão. Já a partir de 1951, o sitcom tornava-se a modalidade de show de comédia mais volumosa na televisão norte-americana, e essa marca se mantém até os dias atuais. O sitcom não se tornou apenas um produto volumoso, mas também popular.

  65  

3.2 O sitcom tradicional A situation comedy, mais conhecida pela abreviação sitcom, torna-se popular no rádio e, posteriormente, na televisão como uma conjunção dos formatos de comédia já existentes em music halls e vaudevilles (MILLS, 2005, p. 37). Trata-se, inicialmente, de uma conjunção de propostas já consolidadas, além de uma reciclagem de atores e artistas que já haviam conquistado o público naqueles outros meios. Segundo Joseba Bonaut e Mario del Mar Grandío, pesquisadores respectivamente da Universidad San Jorge e da Universidad Complutense de Madrid,

podemos

apontar

como

principais

características

dos

sitcoms

tradicionais: •

Sistema de produção com padrões narrativos específicos: o

sitcom é um produto audiovisual de entretenimento cuja narrativa de cada episódio apresenta introdução, desenvolvimento e conclusão, categorizando-a como fechada. Possui curta duração (cerca de 22 minutos). Geralmente rodado em interiores e com a presença de um público, utilizando cores vivas em uma única locação dividida em vários cenários fixos que se repetem ao longo de todos os episódios. O formato se caracteriza principalmente pela claque, ou seja, o som da reação da audiência, que enfatiza os momentos de humor. •

Estrutura narrativa e decupagem: o sitcom tradicional possui

sua estrutura em três atos, ficando claras as divisões entre eles através dos intervalos comerciais. Existe geralmente uma trama principal e uma ou duas tramas adjacentes. Faz-se uso de teaser, um prólogo que, com uma pequena cena, pretende segurar a audiência após o primeiro corte publicitário e exibição da abertura. Também utiliza-se o tag, pequena cena que acompanha os créditos finais e traz um último momento cômico do episódio. Sobre a captação, são usadas três ou mais câmeras, com poucos movimentos, geralmente limitados a plano/contra plano.

  66  



O humor é construído através de piadas por diálogos,

imagens e som: é frequente a utilização de técnicas como a surpresa, o mal-entendido verbal, a mudança de papéis, o engano e a confusão. As personagens falam mais do que atuam e, sendo assim, a comicidade constrói-se comumente baseada em diálogos. •

Temática

tradicional

e

personagens

baseadas

em

estereótipos: originalmente a maioria dos sitcoms era centrada em uma família, como em Father Knows Best (NBC, 1954). Aos poucos, o local de trabalho também ganhou espaço, como em Mary Tyler Moore Show (CBS, 1970). Os sitcoms foram, através das décadas, moldando a personalidade e a profissão de suas personagens em referência à cultura da época. (BONAUT; GRANDÍO, 2009, p. 759). A serialidade também pode ser apontada como algo determinante para o formato. Estando o aparelho de televisão dentro das residências, foi possível contar com a formação de um hábito entre os espectadores e pensar em produções que estimulassem e ao mesmo tempo favorecessem a ação de ligar a TV em determinados dias e horários. A comédia surge como uma das maiores favorecidas do formato seriado, pois ajuda na construção de uma familiarização dos espectadores com as personagens (MILLS, 2009, p. 17). É fácil entender a importância dessa familiarização. Alguma vez você já deve ter contado a um grupo de pessoas um caso engraçado que aconteceu com um amigo seu. Talvez você se lembre também da diferença entre as reações dos que conheciam o amigo e dos que nunca tiveram nenhum contato com ele. Os que o conheciam certamenteriram muito mais. Sendo assim, o conteúdo seriado traz essa possibilidade de reconhecimento da personagem, potencializando o quão engraçado o espectador considera suas peripécias. O sitcom, particularmente, é tão dependente dessa familiarização conquistada através do conteúdo seriado que não poderia existir no cinema ou no teatro (MILLS, 2009, p. 18). A serialidade dos sitcoms difere de acordo com os programas. Algumas produções apresentam textos fechados, ou seja, os acontecimentos de um

  67  

episódio dificilmente interferem nos seguintes. Já o conteúdo seriado aberto aproxima-se do que é visto em telenovelas: os episódios trazem acontecimentos mais complexos que desenvolvem-se no decorrer de toda a série e ultrapassam as barreiras do episódio enquanto unidade. Sendo assim, a narrativa fechada favorece o espectador casual, que não pode ou não procura assistir TV nos mesmos horários, enquanto que a narrativa aberta demanda maior dedicação por parte do espectador, dado o seu caráter de continuidade (SAVORELLI, 2010, p. 17-18). Os sitcoms nem sempre estão categorizados exatamente como seriados abertos ou fechados. É bastante comum que a primeira temporada apresente as narrativas mais fechadas. Se o programa sobreviver na emissora e for acordada a produção de uma segunda temporada, geralmente observa-se tendência à maior abertura das narrativas. Um bom exemplo é The Office, da NBC, parte do corpus da presente pesquisa. Na primeira temporada, o sitcom ressaltou as características de cada personagem e trabalhou acontecimentos isolados dentro do escritório. Já na segunda temporada, os criadores passaram a construir o progressivo romance entre Pam e Jim, o primeiro dos conflitos que passaria a evoluir no decorrer dos episódios do sitcom. Relacionamentos amorosos são recorrentemente os principais traços de abertura das séries que inicialmente apresentam episódios mais fechados. Parte das características presentes no sitcom tradicional desde a década de 1950 até a atualidade foi resultado das influências culturais e da conjuntura encontrada por produtores no início da transição rádio-televisão. A mudança do meio apresentou problemas para o sitcom, principalmente no que tange ao aspecto visual. Adaptar a comédia a um novo meio representava um problema, uma vez que ela tinha longa tradição em apresentações teatrais, na literatura, na música e outros. Talvez por isso o sitcom televisivo não tenha abandonado a característica teatral na forma como se organiza para a apresentação ao público. Segundo Mills, a configuração que se tornou a práxis do sitcom por tantas décadas pode ser considerada um híbrido teatral, pois trata-se de uma tentativa

  68  

de passar para o público em casa a sensação de uma apresentação humorística teatral ao vivo, o que fica bastante claro nas reações expansivas dos atores (que precisariam ser vistos até nas últimas fileiras de um teatro) e nas claques, que, entre outras contribuições, traz uma sensação de identificação com o grupo (MILLS, 2009, p. 14). As câmeras de televisão na época de shows como Amos n' Andy (19511953) eram pesadas e difíceis de transportar, o que fez com que produtores evitassem externas e construíssem a narrativa dentro dos limites de uma locação interna (estúdio). Segundo Elizabeth Bastos Duarte, os sitcoms adotam um formato simplificado, caracterizado por produções baratas com a utilização de locações e cenários pré-estabelecidos (DUARTE, 2003, p. 30). Foi I Love Lucy (1951-1957) o sitcom que instituiu muitos dos recursos de linguagem encontrados até hoje no formato, através das criações do diretor e fotógrafo Karl Freund. Freund, após fotografar clássicos como Metropolis (1927), de Fritz Lang, e Dracula (1931), de Tod Browning, acompanhou os sete anos de I Love Lucy no ar. Entre suas criações está uma iluminação específica que possibilita o uso de câmeras simultâneas sem que haja diferença de luz entre os diferentes ângulos de captação. Esse jogo de (muitas) luzes permite o uso do Three-Headed Monster, ou “monstro de três cabeças”, uma alusão às três câmeras estrategicamente posicionadas à frente do cenário que capturam o diálogo entre dois ou mais atores, possibilitando o uso de três enquadramentos na edição: um plano mais aberto, mostrando o conjunto dos atores e duas opções de plano americano ou fechado, em parte das personagens ou em um ator específico. Segundo Mills, essa configuração mostra que a importância do plano de quem fala é equivalente à importância do plano de quem reage ao que é dito. Uma piada seguida de reação traz duas possibilidades: a de deixar clara a estranheza e, portanto, a comicidade do que foi dito e a de gerar duas risadas em vez de uma (MILLS, 2009, p. 39). É possível reconhecer um sitcom tradicional imediatamente na televisão ao detectarmos a presença da claque. O som da risada não é importante apenas porque é a finalidade do gênero, mas também porque, através do uso da reação

  69  

do público presente no estúdio e também das risadas enlatadas, pode-se dizer que o riso faz parte do texto do sitcom (MILLS, 2005). A claque é considerada por alguns teóricos o substituto eletrônico para a experiência coletiva (MEDHURST; TUCK, 1982), alinhando o público presente nas gravações com a audiência em casa. A voz coletiva reage dentro de uma gama de risadas mais discretas, interjeições de surpresa, gargalhadas e algumas poucas outras opções. A claque é um elemento metalinguístico, pois deixa claro para os espectadores que o que eles estão assistindo é uma peça, uma performance de uma atividade cômica. Em Burns and Allen Show (1950-1958), o programa era gravado com duas câmeras cruzadas, de modo que, em um diálogo entre duas personagens, cada câmera enfatizava a reação de uma delas. Após a gravação, o episódio era então mostrado a uma audiência para a gravação das claques. Essa apresentação determinava a edição: se a piada fazia os espectadores rirem, a segunda câmera mostrando a reação da outra personagem entrava na edição. Caso contrário não havia o corte e a audiência permanecia vendo o ator que fez a piada. Já nos primórdios do sitcom televisionado, a risada “enlatada” também era utilizada. Gravações contendo o áudio de plateias em reações diversas eram inseridas, em processo de pós-produção, para forjar a presença de um público presente no espaço por trás das câmeras, a quarta parede cuja visualização não era permitida aos telespectadores. Bancos de dados contendo esses áudios são utilizados por produtores até os dias atuais. Em entrevista para o site On the Media32, Joe Adallian, colunista de TV da New York Magazine, comenta que o motivo pelo qual os produtores passaram a optar pelas risadas previamente gravadas é que, durante as filmagens, por vezes era necessário refazer a mesma sequência. É bastante comum haver algum erro por parte dos atores, algum imprevisto técnico ou qualquer outro fator que os fizesse ter que repetir a cena. O público, após assistir à mesma piada mais de uma vez, não tinha a reação desejada.                                                                                                                           32

http://www.onthemedia.org/tags/joe_adalian/

  70  

As risadas enlatadas, em contrapartida, soam artificiais. Era comum a repetição dos mesmos áudios em diferentes shows, por décadas. Segundo Adallian, claques gravadas nos anos 1950 ainda eram utilizadas nos anos 1960 e 1970. Alguém com uma percepção mais aguçada poderia até pensar: “acho que conheço essa risada!”. Provavelmente já a ouvira antes mesmo. Produtores brincavam entre si com o fato de que muitas pessoas já mortas estariam rindo em seus programas. Na década de 1970, acreditava-se que, se não houvesse o som de risadas, os telespectadores não iriam rir.

Por serem vistas como algo tão

primordial na fórmula dos sitcoms, as claques invadiam as telas até mesmo quando não havia um espaço adequado no texto. Os criadores de M.A.S.H. eram contra o uso das claques, mas foram vencidos pelas determinações da emissora. É possível perceber, nesse caso, que a inserção da claque parece inadequada, tanto pelo humor diferenciado do texto quanto pelo fato de o programa não ter as configurações tradicionais de um sitcom, a começar pela ambientação, um cenário de guerra. Apesar disso, M.A.S.H foi muito bemsucedido. Através das décadas, o sitcom mostrou tendências diferentes. O foco do texto transitou por temas como família, ambiente de trabalho, ascensão feminina,

universos

fantasiosos

etc.

Em

contrapartida,

suas

principais

características mantiveram-se as mesmas. Depois do sucesso dos reality shows no ano 2000, as emissoras reduziram os investimentos nessas produções para dar lugar ao novo fenômeno, havendo um menor número de títulos disponíveis nas grades de programação33. O sitcom, contudo, pôde contornar essas novas tendências televisivas e até mesmo utilizar-se de sua estética para manter-se presente. A seguir vamos

                                                                                                                          33  VILLARREAL, Yvonne. Thank “Modern Family” for the Revival of the Sitcom. Los Angeles Times, 30 out. 2011. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2012.

  71  

compreender o impacto da premissa apresentada pela reality TV e por novas tecnologias, e como isso interferiu nos sitcoms lançados a partir do século XXI.

  72  

3.3 Consumindo e produzindo reality Em sua história, o canal PBS (Public Broadcast Service) dos Estados Unidos levou ao ar um documentário diferente: em 1973, um lar de classe média em Santa Barbara, na Califórnia, permitiu a presença constante de câmeras. Em trezentas horas de material bruto, que depois foram transformadas em doze episódios de uma hora cada, a família Loud teve capturados a separação dos progenitores e a revelação da homossexualidade de um dos filhos. Esse era An American Family, precursor de títulos muito bem-sucedidos como o reality show The Real World (MTV, 1992-dias atuais) que, com 27 temporadas, é um dos programas mais longos da história da televisão mundial. A locução de abertura, feita pelos próprios participantes de cada temporada, explica a premissa do show: “Esta é a história verdadeira... de sete desconhecidos... escolhidos para viver em uma casa... trabalhar juntos e ter suas vidas gravadas... para descobrir o que acontece.... quando as pessoas deixam a educação de lado... e começam a “jogar a real”... The Real World”. Produtores do The Real World disseram que, em sua primeira edição, encontraram dificuldade para recrutar o elenco. A maioria dos entrevistados recusava-se a participar por não se sentir confortável com a ideia de ser vigiado 24 horas por dia para um programa de TV. Mais tarde, no final dos anos 1990, após o sucesso de Survivor (CBS, 2000-) e Big Brother (CBS, 2000-2006, Showtime 2 2007-2012, TVGN 2013-), a concorrência para participar do programa superou o número das inscrições para a Universidade de Harvard (ANDREJEVIC, 2004, p. 17). Em Maio de 1998, as publicações especializadas em televisão previam o que estava por vir nas grades de programação: É uma verdade: a reality TV é o curso principal da dieta dos telespectadores norte-americanos, que permanecem famintos por melodramas da vida real. Relativamente baratos de produzir, infinitamente diversos em termos de conteúdo, suficientemente interessantes para atrair audiências estáveis e globais o bastante para

  73  

conquistar compradores de emissoras internacionais. (Reel Screen, 1998 apud Dovey, 2000, p. 17, tradução nossa)34

Pesquisadores costumam estabelecer o estopim do sucesso da reality TV no verão do ano 2000, quando dois fenômenos de audiência mantiveram milhões de norte-americanos hipnotizados adiante da televisão. Survivor, um reality show sobre um grupo de pessoas vivendo situações extremas em busca do prêmio de 1 milhão de dólares, era o maior sucesso da temporada em toda a história da televisão norte-americana. Logo atrás havia o Big Brother, mostrando a convivência de um grupo de jovens confinados em uma casa, novamente motivados por um grande prêmio em dinheiro. O Big Brother foi criado pelo holandês John de Mol, inspirado no projeto Biosfera 2, realizado nos Estados Unidos entre 1991 e 1993. Trata-se de um domo de 17 mil metros quadrados construído no deserto do Arizona, onde um grupo de oitenta cientistas viveria fechado por dois anos (Veja, 21/11/2001). O gênero reality TV, ou TV realidade, surge quando técnicas documentais são utilizadas não para mostrar locais e culturas remotas, mas para estudar a vida

de

figuras

próximas,

contemporâneas,

como

representantes

das

“personalidades reais”. O sitcom, bem como os programas em geral calcados em círculos familiares, antecipou o reality show ao basear-se no cotidiano de pessoas comuns, mostrando sua vida privada, mesmo que de uma forma por vezes idealizada (ANDREJEVIC, 2003, p. 65-66). Os formatos baseados em surveillance, ou seja, vigilância eletrônica, a partir desses dois “estouros iniciais”, começaram um movimento de propagação contínua até termos uma grande quantidade de reality shows televisionados. Desde o cotidiano de crianças participando de concursos de beleza, caminhoneiros que fazem entregas através de pistas congeladas e lojistas que                                                                                                                           34

“It’s a fact: Reality-based programming is a main course in the diet of North American television

viewers, who are still hungry for true-life melodrama. Relatively inexpensive to produce, infinitely diverse in content, sufficiently interesting to attract stable, core audiences and global enough to appeal to international television buyers, this year’s new reality-based shows continue to trend to inform, titillate, gross out and fascinate audiences with real-life stories.”

  74  

negociam crânios de macacos até celebridades que abriram as portas de suas casas 24 horas por dia. Ozzy Osbourne, Kim Kardashian, Paris Hilton, Gene Simmons e tantos (muitos) outros. Diz Andrejevic (2003, p. 3, tradução nossa): “Os formatos da reality TV multiplicaram-se ao ponto de se tornarem paródias de sua premissa inicial de permitir o acesso às interações não roteirizadas de pessoas que não são artistas profissionais”35. A reality TV parece suprir os desejos de ambas as partes envolvidas: os produtores só veem vantagens em lançar programas do gênero e os telespectadores parecem adorar consumi-los. Do ponto de vista das emissoras de televisão, reality shows são produtos ideais por sua razão entre investimento e retorno. Um exemplo brasileiro, veiculado pela Rede Globo, ilustra muito bem o que acontece nas televisões ao redor do mundo: “Manter o Big Brother no ar custa por mês cerca de quinze vezes menos do que sustentar uma novela das 8 pelo mesmo período” (Veja, 13/6/2007). Segundo Fernando Oliveira, do IG, cada inserção de trinta segundos no intervalo da novela das 8 (ou “das 9”, como diz o colunista) custa, em média, R$ 450 mil reais (IG NA TV, outubro de 2012). Essa mesma média de custo por inserção é aplicada aos intervalos do Big Brother, no ar logo após a novela. Trata-se de um produto tão rentável que, apesar de a atração ter perdido audiência com o passar dos anos, a Rede Globo não cogita interromper a fórmula tão cedo. Entretanto, se o Big Brother Brasil perdeu força, isso não significa que a reality TV tenha perdido público no país. O investimento de TVs abertas e principalmente de canais a cabo em novos formatos do gênero é crescente, especialmente a partir do decreto de lei n. 12.485, que determina cotas obrigatórias de veiculação de conteúdo produzido no Brasil. Além de serem opções econômicas e, portanto, menos arriscadas de produção, possuem chances razoáveis de resultarem em números satisfatórios de audiência.                                                                                                                             35

“Reality TV formats have multiplied to the point they have become self-conscious parodies of

their original premise of access to the unscripted interactions of people who are not professional entertainers.”

  75  

Um estudo de 2001 feito pela American Demographics determinou que 45% de todos os norte-americanos assistem a programas categorizados como reality TV. Além disso, descobriu-se que um quinto desse percentual – o que corresponde a um em cada onze norte-americanos – considera-se “fanático” por um show em particular ou por vários (ANDREJEVIC, 2003, p. 9). Nos anos 1990, devido à grande concentração de renda, os Estados Unidos conheceram uma maior desigualdade social. Exemplo disso é a diferença entre o pagamento do maior cargo de uma empresa (CEO, Chief Executive Officer) e o de um trabalhador mediano, que nos anos 1970 costumava ser de, em média, 39 vezes e que, trinta anos depois, já era de mil vezes o salário de um trabalhador mediano. O hiato entre os mais ricos e a classe média tornou-se maior, dificultando a desejada ascensão de classes sociais. O fato de pessoas comuns, geralmente sem nenhuma aptidão artística, cativarem olhares na televisão, desfrutando de determinado sucesso em shows como o Big Brother, fez com que o reality show se tornasse uma espécie de loteria da televisão. A mensagem era a de que qualquer espectador poderia estar em diante das câmeras. Na mesma época em que esses shows fizeram sucesso, a loteria norte-americana movimentava 35 bilhões de dólares, um aumento expressivo se comparado ao rendimento do final dos anos 1970: um bilhão de dólares. Tanto os reality shows quanto a loteria são o que Andrejevic (2003, p. 68) chama de uma versão fast food do sonho americano funcionando como uma compensação pela centralização de riqueza e poder. Ao mesmo tempo, Dovey (2000, p. 57) discute que frentes pósmodernistas apontam para uma mudança que ele chama de “novo regime da verdade”, agora baseado em experiências de primeiro plano, individuais, subjetivas, em contraste com o desgaste de verdades generalizadas. As mudanças nos formatos televisivos, de objetivo para subjetivo, de transparente para reflexivo e em direção a um “teatro das intimidades” é consequência não apenas de uma mudança econômica das mídias de massa, mas de desenvolvimentos importantes no relacionamento entre cultura e identidade.

  76  

Renato Janine Ribeiro, filósofo brasileiro e professor na Universidade de São Paulo, esteve presente na FAAP no dia 9 de abril de 2012 com a palestra “A falsa intimidade: a vida que todo mundo vê”. A intimidade foi discutida partindose do princípio de que receber influências do contexto cultural é algo construído individualmente. As diferenças dos hábitos sexuais entre indígenas e europeus nos primórdios do Brasil colonial denotam a diferença dos conceitos de intimidade para ambos os povos, como mostra o historiador e padre Eduardo Hoornaert no texto A questão do corpo nos documentos da primeira evangelização, na obra Família, mulher, sexualidade e igreja na História do Brasil, organizada pela historiadora Maria Luiza Marcílio: Parece que a convivência entre o homem e a mulher era bastante erotizada em geral. O sexo não era assunto reservado à intimidade e isso deve ter perturbado os europeus, acostumados a uma rígida redução da vida sexual à esfera íntima. (HOORNAERT in MARCÍLIO, 1993, p. 21)

Essa

discussão

insere-se

em

um

contexto

em

que

celulares,

camcorders36, webcams, reality shows e redes sociais formam uma conjuntura tecnológica única na história. Nunca foi tão simples, tentador e involuntário expor-se. Seja para conhecidos ou desconhecidos. “Estes espaços estão cheios de vozes proclamando e celebrando sua própria esquisitice, articulando seus medos e segredos mais íntimos, representando a banalidade de suas próprias subjetividades extraordinárias” (DOVEY, 2000, p. 4). Trata-se do nosso novo espaço público. Estar exposto, sob constante vigilância, é um pesadelo presente em culturas diversas, como no mito asteca de Tezcatlipoca, o espelho fumegante, que reflete o futuro do mundo e dos homens (LEÃO, 2002, p. 123). Espelhos como esse, que tudo podem ver, são retratados também em histórias como a da Branca de Neve. É através do espelho mágico que a rainha má pode vigiar tudo                                                                                                                           36

Câmera filmadora voltada para o mercado doméstico, de baixo custo.

  77  

o que acontece em seu reino. O espelho fumegante também assemelha-se à “teletela” da obra 1984, escrita por George Orwell e publicada em 1949. A “teletela” é um dispositivo de vigilância parecido com uma televisão, que permite ver e ser visto. Através dele, o Estado consegue controlar todos os cidadãos individualmente. A obra trata-se de uma distopia, uma representação literária de um estado indesejável possível de ser evitado, mas ainda assim uma realidade concebível para o futuro da sociedade, segundo citação que David Lyon faz de James Rule, ambos pesquisadores da surveillance. Para Rule, os únicos limites para a realização do pesadelo Orwelliano eram as capacidades de vigilância, entre outras, as limitações tecnológicas (RULE apud LYON, 1994, p. 57). Essa afirmação de Rule data de 1973. No mesmo ano, a primeira rede interna de computadores (ethernet) foi criada por Robert Metcalfe e pela Xerox 37 , e a primeira ligação via telefone celular foi feita, em 3 de abril, por Martin Cooper38. Lúcia Leão, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em sua obra A estética do labirinto, compara as webcams espalhadas pelo mundo com o mito do espelho fumegante (LEÃO, 2002, p. 124). Essas câmeras permitem que vejamos avenidas, cidades, atrações turísticas e até o espaço em tempo real. Trata-se de uma demonstração do quanto evoluímos em termos de recursos para a vigilância eletrônica desde a época da obra de James Rule. Ironicamente, a sociedade em 1984 vivia sob o regime totalitário do Big Brother, personagem homônimo ao maior sucesso dos primórdios da reality TV em todo o mundo. O Big Brother trouxe uma repaginada hollywoodiana do conceito atrelado ao seu nome, tornando-se um panfleto para os benefícios da vigilância de alta tecnologia. Não se trata de uma compilação televisiva de momentos excepcionais documentados, mas sim de uma fiscalização por parte da                                                                                                                           37

BELLIS, Mary. Inventors of the Modern Computer. Disponível em:

. Acesso em: 4 mar. 2014. 38  SMITH,

Graham. The day the mobile phone went public 38 years ago, leaving New Yorkers bemused and bewildered. Mail Online, 5 abr. 2011. Disponível em: . Acesso em: 4 mar. 2014.  

  78  

audiência, que acompanha o dia a dia e o ritmo da vida das pessoas enclausuradas. O programa ajudou a reposicionar o papel da vigilância e ressaltou as vantagens não apenas de vigiar, mas de ser vigiado (ANDREJEVIC, 2003, p. 102). Considerando a exposição que celulares, webcams e camcorders tornaram possível, de fato os números contabilizados acerca da produção de vídeos do tipo confessionário, chamados videologs, são bastante expressivos. Sobretudo no popular YouTube, “uma plataforma projetada para permitir a participação cultural [audiovisual] de pessoas comuns” (BURGUESS; GREEN, 2009), cujo slogan é Broadcast Yourself (“Divulgue-se”). Quarenta por cento do material de produção dos usuários “comuns” do YouTube enquadra-se na categoria videolog. Afirmar, no entanto, que essa exposição é fruto da miniaturização e da facilidade de operação das câmeras mais recentes é depositar em um determinismo tecnológico as consequências de todo um contexto cultural. Câmeras portáteis com foco no mercado doméstico estão disponíveis desde 1964, quando a Sony lançou a CV-2000/TCV-2010, o primeiro modelo com fitas de meia polegada39.

Figura 12. Um dos modelos Sony CV-2000/TCV-2010, lançado em 1965.                                                                                                                           39

Rewind Museum – Reel to Reel Video. Disponível em:

. Acesso em: 5 ago. 2013.

  79  

Mesmo que a qualidade da captação e a facilidade de uso não tenham atingido

os

patamares

atuais

até

os

anos

1990,

muitos

artistas

e

documentaristas encontraram-se fascinados pelo estilo íntimo, confessional e despretensioso do vídeo 40 . O diferencial é que as portas da televisão continuavam fechadas para esse tipo de produção, que até então nunca tinha sido dominante na cultura popular. No século XXI, a situação parece se reverter (DOVEY, 2000, p. 57). Dirigir-se diretamente à câmera, enquanto espectadores assumem um papel de confidentes anônimos, é um processo que faz parte do Big Brother e que pode ter influenciado a produção em massa desse tipo de vídeo por parte dos interatores, aqueles que habitam a internet e produzem conteúdo. Os próprios produtores do Big Brother Brasil, durante os períodos de seleção dos candidatos a entrar na casa, por diversas edições encorajaram a produção desses vídeos como forma de inscrição. Os formatos de produção audiovisual que utilizam a linguagem da camcorder e das câmeras de vigilância parecem hipnotizar suas audiências. Bill Nichols, professor da San Francisco State University e pesquisador de documentários, faz uma alusão à pornografia e à ambivalência entre prazer e insatisfação para explicar o êxito dessas atrações. A ambivalência deriva da dependência do outro para um senso de identidade que, em sua coerência imaginária ou autonomia, nega a centralidade do outro sobre quem ele é dependente. Na pornografia, essa ambivalência envolve um desejo paradoxal por prazer que não é totalmente disponível. A pornografia pretende prover prazer, mas não completamente. O prazer que é representado permanece diferido, talvez indefinidamente, em favor da sua representação fetichista. O resultado é um sujeito preso a um desejo pelo prazer oscilatório per se. A realização do prazer é adiada a favor da perpetuação de um                                                                                                                           40

Mais sobre videoarte confessional em Documentário em primeira pessoa: relatos íntimos no

audiovisual, dissertação de Ana Cecília Costa Santos.

  80  

conjunto

de

representações

encenadas

de

desejo

(por

mais

pornografia). (NICHOLS, 1994, p. 74, tradução nossa)41

A partir dessa afirmação, é possível traçar um paralelo com o que diz o professor Hille Koskela da University of Hellsinki em seu artigo “Webcams, TV Shows and Mobile Phones: Empowering Exhibitionism”: “Há uma fascinação voyeur em observar, mas, reciprocamente, uma fascinação exibicionista em ser visto” (KOSKELA, 2004, p. 301). Existe uma satisfação em expor os sentimentos mais profundos e legítimos, pois eles supostamente carregam como qualidade a verdade. Para Jon Dovey, a possibilidade de se deixar observar e revelar é, por nós, erroneamente associada à liberdade (DOVEY, 2000, p. 105). Permitir ser observado dentro de casa é sujeitar esse momento à vigilância tradicionalmente associada ao local de trabalho (ANDREJEVIC, 2003, p. 105). O lar, já considerado um paraíso livre da vida pública, torna-se cada vez mais o local de vigilância por excelência (LYON, 1994, p. 16). Existe uma semelhança na vigilância aplicada ao nosso dia a dia em relação à da casa do Big Brother, ou seja, temos consciência da existência de câmeras, mas não sabemos exatamente onde elas se encontram e nem sempre percebemos sua presença. Apesar das demandas por regulação dos sistemas de vigilância que nos cercam, chegamos a um ponto em que a tecnologia, a miniaturização e a camuflagem de câmeras permitem que elas estejam em

                                                                                                                          41

“Ambivalence derives from the dependence on the other for a sense of identity which, in its

imaginary coherence or autonomy, denies the centrality of the other upon whom it is dependent. In pornography this ambivalence involves a paradoxical desire for a pleasure that is not one, is not fully available. Pornography sets out to please but not to please entirely. It affords pleasure but not the please that is (only) represented. The pleasure that is represented remains deferred, perhaps indefinitely, in favor of its (fetishistic) representation. The result is a gendered viewing subject caught up in a desire for this oscillatory pleasure per se. The completion of desire is deferred in favour of perpetuating a set of staged representations or desire (for more pornography)”.

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qualquer lugar. “[...] chamei esta era de infinitas representações de the cam era (a era das câmeras)”42 (KOSKELA, 2003, p. 299, tradução nossa). Essa conjuntura levou ao diagnóstico do que psicólogos chamam de “A síndrome de Truman”, em referência ao filme The Truman Show (O show de Truman, 1998), no qual a vida inteira de um homem é na verdade um reality show, sem que ele tenha consciência disso. Os pacientes com essa síndrome acreditam também fazer parte de um reality show, no qual câmeras capturam todas as suas ações, sofrendo de nervosismo e ansiedade por pensarem que são alvos de perseguição do governo. A doença é mais comum em países com grandes tecnologias de vigilância (CNN HEALTH, 2008). Curiosamente, esses sintomas foram percebidos por um estudo psicanalítico feito por Regina Abeche, professora da Universidade Estadual de Maringá, que analisou os efeitos da vigilância nos participantes da segunda edição do Big Brother Brasil. [...] ele constrói uma imagem a ser transmitida pela mídia acima da sua própria imagem. Estes são os absurdos comportamentais de Cida, a depressão de Rodrigo e o pânico vivido por Manuela. É também o discernimento da Tarciana quando, depois de uma conversa com o apresentador do programa, ela comenta: “por que ele falou das minhas corridas? Eu corro como quase todos aqui fazem”. Isto prova que o sentimento de perseguição paira sobre o grupo. (ABECHE, 2003, p. 15)

Ser vigiado, no entanto, torna-se progressivamente menos incômodo, aceito como algo natural. Em “Big Brother: the Series that Made Surveillance Acceptable” (“Big Brother: a série que tornou a vigilância aceitável”), matéria publicada no jornal inglês The Independent em 2010, John Walsh comenta o efeito de onze edições do Big Brother na sociedade britânica. Segundo Walsh, os ingleses haviam se tornado o povo mais vigiado (inspecionado, seguido, marcado, monitorado, questionado etc.) do oeste europeu, além de terem se tornado espectadores inveterados uns dos outros.                                                                                                                           42

“[…] I have called this era of endless representations ‘the cam era’”

  82  

O reconhecimento público trouxe consigo uma cultura de vigilância que está perto da perseguição. Houve uma época em que celebridades se preocuparam com jornalistas e paparazzi. Agora, todos são repórteres e disseminadores de conteúdo. Eles podem dizer qualquer coisa sobre qualquer um, sem regras. Esse é o real legado do Big Brother. Os inspecionados tornaram-se os inspecionadores. “Eles” se tornaram “nós”. Dez anos assistindo a cobaias humanas vivendo sua prisão de três meses em um inferno pré-fabricado gerou em nós um gosto por bisbilhotar uns aos outros e dramatizar os detalhes triviais da nossa vida ao tornar tudo público em telas eletrônicas.43 (The Independent, 2010, tradução nossa)

O Big Brother, conforme sugerido por Peter Weibel, prepara o espectador para o futuro dos sistemas de vigilância: “Observação não é uma ameaça. Observação é entretenimento” (WEIBEL, 2002, p. 217). Weibel é um artista ucraniano e pesquisador das mídias que, além de ter discutido a surveillance em um livro e em uma exposição da ZKM (Center for Arts and Media Karlsruhe), explorou o modelo confessional em videoarte. Para John McGrath, diretor artístico e autor do livro Loving Big Brother: Surveillance Culture and Performance Space, o temido futuro no qual somos amplamente observados chegou antes mesmo do Big Brother, então talvez ele seja uma forma de explorar o que podemos fazer com essa realidade (MCGRATH, 2004, p. 76). Contudo, McGrath não considera o Big Brother tão perverso no nosso contexto de vigilância. Segundo ele, é comum ouvir queixas em relação ao Big Brother, principalmente em relação à banalidade, à chatice e à monotonia dos                                                                                                                           43

Public recognition has brought with it a culture of surveillance that's close to stalking. Once, celebrities might have worried about journalists and paparazzi. Now, everyone's a reporter and broadcaster and they can say anything about anyone, without rules. That's the real legacy of Big Brother. The surveyed have become the surveyors. "Them" has become "Us." Ten years of watching human guinea pigs and lab-rats at close quarters, living out their three-month imprisonment in a prefabricated hell, has given us a taste for prying into each other's lives and dramatising the trivial details of our own, while making everything public on electronic screens.

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acontecimentos da casa. Os participantes da casa devem ser assim. A superficialidade do Big Brother sugere que, por mais que sejamos amplamente vigiados, aqueles que nos olham não sabem nada sobre nós. Revela quão livre nós somos. O Big Brother e suas relações nos permitem fantasiar com a multiplicidade do “eu” que podemos soltar no mundo da vigilância, além de também nos lembrar das formas incontroláveis pelas quais esses seres serão distorcidos e explorados pelo sistema consumidorcorporativo. (MCGRATH, 2004, p. 206, tradução nossa)44

No âmbito doméstico, relatos cotidianos, fotos do final de semana até vídeos com opiniões sobre política, todo tipo de informação pessoal é compartilhada. Essa exposição, que já pode ser tomada como parte da cultura dos frequentadores assíduos desses canais, faz com que um vídeo, com um depoimento tão íntimo e tão naturalmente articulado, seja mais um em uma massa de confissões capturadas de forma simples, partindo de olhares diretos às webcams, câmeras de celular e camcorders, atravessando a web à disposição de confidentes anônimos. Vemos uma incessante performance de identidades estruturadas através dos relatos em primeira pessoa sobre sentimentos, opiniões e, principalmente, relacionamentos íntimos. É a intimidade, o pessoal, como autenticidade. Os videologs no YouTube posicionam a própria pessoa como o sujeito da narrativa. Endereçar o espectador é um convite inerente a um retorno (feedback), uma conversa, o que fica claro na grande quantidade de comentários e vídeosresposta que os videologs costumam gerar no YouTube, em comparação com outras categorias de vídeos, como os videoclipes musicais (BURGUESS; GREEN, 2009). Nesse caso, portanto, o olhar direcionado à câmera parece favorecer a popularidade do vídeo.                                                                                                                           44

“Big Brother and its relations allow us to fantasize the multiplicity of selves we may unleash into

the surveillance world, while also reminding us of the uncontrollable ways in which those selves will be distorted and exploited by the consumer-corporate system.”

  84  

A ascensão do modelo confessional sugere uma busca maior por registros pessoais sem a interferência da pós-produção. A objetividade do vídeo em questão, começando e terminando abruptamente, sem cortes ou inserções, aponta para essa tendência. Para Jon Dovey, a experiência no contexto doméstico é semelhante a como respondemos aos vídeos amadores quando estes aparecem na TV; eles aparentam ser mais amigáveis do que a imagem ensaiada e produzida que constantemente está presente na televisão. “Mais íntimas, menos pretensiosas, mais confortáveis em suas falhas óbvias” (DOVEY, 2000, p. 65).

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3.4 Novas modalidades de sitcom Na década de 1990, o sitcom vivia um de seus momentos mais frutíferos desde o surgimento da televisão. Programas como Frasier (NBC, 1993-2004) e Friends (NBC, 1994-2004) consolidaram-se como grandes sucessos e símbolos culturais da época (BONAULT; GRANDÍO, 2009, p. 47). São apenas dois exemplos que mostram a força e a influência do gênero no século XX. Quando esses e outros grandes títulos da década de 1990 já haviam encerrado ou exibiam seus episódios finais, revistas especializadas decretaram a morte do sitcom. “Não existe nenhum sitcom entre os 10 programas mais assistidos nos Estados Unidos”, atestava o Daily Telegraph em 2004 45 . Apesar disso, na mesma publicação, Robert Thompson, professor de Estudos de Cultura Contemporânea e Mídia da Syracuse University de Nova York, afirma a resiliência do Gênero: Quando um meteoro atingir o planeta, duas coisas vão sobreviver: baratas e sitcoms. Quando estivermos todos em Marte, posso garantir que estaremos assistindo a sitcoms. É uma unidade gramatical básica da TV norte-americana. Televisão é uma forma artística em um espaço doméstico, e sitcom é o programa mais amigável aos espectadores de todos os tempos. Você pode apreciá-lo se estiver meio adormecido ou meio morto. (PILE, 2004, tradução nossa)46

O motivo pelo qual os sitcoms perdiam força na época era principalmente a popularidade dos reality shows. Como mencionado anteriormente, o forte apelo frente ao público e a grande conveniência na produção desses títulos fizeram com que a reality TV tomasse conta de horários tradicionalmente ocupados por sitcoms. “Se as emissoras produzem apenas quatro novos                                                                                                                           45  PILE, Stephen. The Last Laugh.   Daily Telegraph, 24 jan. 2004. Disponível em: . “Not one of the top 10 programmes in America is currently a sitcom [...]”. 46  “When a meteor hits this planet two things will survive: cockroaches and sitcom. When we are all up on Mars I can assure you that we will be watching sitcom. It is the basic grammatical unit of American TV. Television is an art form in a domestic space and sitcom is the ultimate userfriendly programme. You can enjoy it if you are half asleep or half dead.”

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sitcoms em um ano e apenas um a cada oito é um sucesso, então existe apenas meia chance por ano de surgir um sitcom que dure várias temporadas” (PILE, 2004, tradução nossa)47. O caráter estritamente comercial das emissoras norte-americanas pode ter sido um dos motivos pelos quais o sitcom ficou, durante tanto tempo, sem inovações mais significativas, partindo-se do princípio de que toda inovação representaria um risco, alterando o que funcionava há décadas. Isso não significa que o sitcom jamais tivesse experimentado mudanças em relação à práxis tradicional na história da TV anteriormente. Programas como Seinfeld (NBC, 1989-1998) e M.A.S.H. (CBS, 1972-1983) são dois exemplos de rompimento que antecedem as reviravoltas comerciais da televisão nos anos 2000. M.A.S.H. era um híbrido de gêneros, o que tornava sua classificação enquanto sitcom um pouco confusa, levando a denominações alternativas como dramedy (drama + comédia). Além disso, não organizava sua decupagem como os sitcoms tradicionais. A crise na comédia televisiva no começo do século XXI levou a uma abertura maior para a tentativa de repaginar o sitcom nos Estados Unidos. Essa mudança foi impulsionada por dois motores: o sucesso de emissoras como HBO, TNT e Showtime, com seus novos programas de temática polêmica e linguagem audiovisual mais artística, apresentando requintes cinematográficos; e os reality shows, com a utilização de práticas documentais. “As origens desse novo tipo de comédia foram motivadas por razões industriais e por transformações televisivas derivadas da hibridização de formatos” (BONAULT; GRANDÍO, 2009, p. 38). Um grande volume de novos títulos com mudanças expressivas em relação ao sitcom tradicional passou a integrar as grades de programação: Extras (BBC-HBO, 2005-2007), Spaced (Channel 4, 1999-2001), Curb your Enthusiasm (HBO, 2000-), Scrubs (NBC, 2001-2008) (ABC, 2008-), Arrested Development (Fox, 2003-2006), 30 Rock (NBC, 2006), entre outros. Em termos                                                                                                                           47  “If the networks are trying out only four news sitcoms a year and one in eight is a hit, then you have only half a chance of a winner every year

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de ruptura, cada programa possui suas especificidades, mas os dois diferenciais mais marcantes certamente são a exclusão da claque e a invasão da diegese por parte da câmera, semelhante às práticas cinematográficas, contando também com movimentos de grua, steadycam, travelling e câmera na mão. Além disso, a maior mudança de cenas e locações intensificou o ritmo da narração, e os temas abordados ficaram mais polêmicos, havendo também uma maior abertura para o humor politicamente incorreto e o nonsense, ou absurdo. “A maioria dos sitcoms atualmente não possui claques, com exceção das produções da CBS” (ADALLIAN, 2012). Os produtores de Two and a Half Men, Big Bang Theory e 2 Broke Girls afirmam que as claques são provenientes de uma audiência presente no estúdio, sem recursos para exagerar essas reações. A única de suas produções que admite o uso de risadas enlatadas é How I Met your Mother, que, diferentemente das demais produções de comédia citadas, possui uma decupagem mais cinematográfica. E este apresenta risadas abrandadas em relação às encontradas nos programas que contam com a audiência presente. How I Met your Mother é um sitcom que traz inovações sobretudo no que diz respeito ao roteiro, contando a história a partir de vários pontos de vista (apesar de o ponto de vista do pai, Ted, ser o principal) e fazendo um intenso jogo com o tempo, rompendo diversas vezes a cronologia dos fatos. Certa vez, conversando com um amigo que assistiu a todas as temporadas da série repetidas vezes, entrei em uma discussão: ele alegava que não havia claque na série e eu, que já havia escrito este parágrafo na ocasião, insisti que a claque era utilizada. Ele disse isso com tanta convicção que eu mesma tive que rever trechos de episódios para ter certeza de que não estava enganada. Sim, How I Met your Mother usa claque. Talvez meu amigo a tenha excluído da memória após incontáveis horas assistindo aos episódios, porque trata-se de um sitcom com uma linguagem tão inovadora para o gênero que a claque soa antiquada em meio a seus recursos. Ou também pelo novo hábito que o espectador de sitcoms pôde criar ao assistir títulos sem o uso da claque.

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Mesmo sem admitir as manipulações nas reações do público através da captação, é possível mudar a percepção dos espectadores em casa, seja com posicionamento de microfones ou com diferentes níveis de volume em relação ao que é dito pelos atores. O quanto esses ou outros recursos são utilizados na CBS, como diria o próprio Adallian, “apenas a cabeleireira do estúdio sabe ao certo”. Essa discussão é evitada pelos produtores, pois pode sugerir que o programa não é engraçado, tornando-se uma espécie de tabu. Um rompimento ainda maior surgiu com as séries que flertam com a linguagem documental. The Office é considerado um marco dessa hibridização na televisão. Originalmente produzido pela BBC, emissora britânica, o formato do programa chamou a atenção de produtores norte-americanos que, sob algumas adaptações, passaram a exibir uma versão estadunidense da série na NBC em 2005. Emissoras públicas, tanto da Inglaterra quanto da Austrália, trouxeram novas propostas de sitcom para suas grades de programação antes dos Estados Unidos. Talvez pelo fato de não serem tão dependentes de audiência e publicidade, elas possam ter testado novos formatos com maior liberdade. E não seria apenas o sucesso de The Office na BBC uma justificativa suficiente para a adaptação do título para televisões norte-americanas, já que os dois públicos diferem em hábitos e preferências. A afinidade do formato com o apresentado pelos reality shows que encantavam os norte-americanos seria uma garantia a mais de que The Office, com uma adaptação textual, pudesse atrair a audiência. The Office, além de ser uma comédia situacional sobre pessoas vivendo seu dia a dia em um escritório, é uma comédia acerca da fascinação contemporânea pela reality TV: tudo pode ser gravado e todos podem ser observados, inclusive os telespectadores. Se essas séries estão em conformidade com as características do documentário é irrelevante. O que é significativo é que as audiências estão mais acostumadas a serem entretidas por programas que

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misturam as características de gêneros factuais e ficcionais. (MILLS, 2005, p. 65, tradução nossa)48

Além de The Office (NBC, 2005-presente), Parks and Recreation (NBC, 2009-presente) e Modern Family (ABC, 2010-presente) são exemplos de sucesso de púbico e crítica. No próximo capítulo eles servirão de objeto de análise dessa hibridização com reality shows no universo dos sitcoms.

                                                                                                                          48

“Whether any of these series conforms to the characteristics of documentary is irrelevant;

what’s significant is that audiences have become more accustomed to being entertained by programmes which mix the characteristics of factual and ficcional genres.”

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4. CAPÍTULO 3. O SITCOM E A LINGUAGEM DA REALIDADE ESPETACULARIZADA Os códigos de linguagem audiovisual relacionados ao gênero documental foram incorporados ao sitcom com grande êxito a partir dos anos 2000. Neste capítulo será possível analisar os detalhes dessa hibridização e suas implicações na construção dos momentos cômicos. Através da análise de The Office, Parks and Recreation e Modern Family, será possível compreender como o humor se apropria das características documentais e o rompimento que isso representa no universo do gênero, bem como o que essas linguagens significam em seu contexto cultural.

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4.1 A presença da câmera Nos sitcoms estudados, as escolhas de captação representam mais do que uma escolha estética para parodiar o formato documental: aqui, a câmera comenta e interfere de uma forma diferente na leitura da ação. Inicialmente, o novo estilo de captação será comparado ao uso de múltiplas câmeras fixas do sitcom tradicional, permitindo compreender a ruptura que esses novos programas representam para o gênero. É a transição de uma câmera totalmente expositiva para uma câmera de personalidade própria que transparece curiosidade, identifica-se com personagens e faz julgamentos de conduta. O esquema three-headed monster, ou “monstro de três cabeças”, inaugurado por I Love Lucy (CBS, 1951-1957), ditou a participação das câmeras em sitcoms como a representar o olhar a partir de três pontos fixos na audiência, com movimentação geralmente limitada ao zoom e ao pan. Enquanto uma, centralizada, cobre as personagens em um plano mais aberto, as outras duas, laterais, dão conta dos planos fechados nas personagens.

Figura 13. Exemplo do esquema three-headed monster em I Love Lucy. O three-headed monster permite que os atores consigam gerar duas risadas a partir de uma piada apenas por meio da montagem permitida pelo esquema: em uma situação com mais de uma personagem contracenando, a audiência ri do que foi dito de engraçado por um deles e ri também da reação dos demais. Esse efeito de causa-consequência é central no sitcom.

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A pouca mobilidade das câmeras resulta em uma menor liberdade dos atores. Percebe-se que as cenas são coreografadas dentro do cenário, respeitando limites que estariam fora do campo de captação do three-headed monster. Além disso, a centralização torna-se um fator importante: a mise-emscène é articulada de modo a fazer com que as ações principais ocorram no centro do cenário. Por esse motivo é tão comum ter um sofá no meio da sala das famílias retratadas em sitcoms. O sofá ajuda a centralizar as ações partindo-se do princípio de que seja um ponto de encontro das personagens.

Figura 14. O sofá centralizado no set de sitcoms: The Cosby Show (NBC, 198492), Full House (ABC, 1987-95), The Fresh Prince of Bel Air (NBC, 1990-96), Married with Children (FOX, 1987-97), Friends (NBC, 1994-2004) e The Big Bang Theory (CBS, 2007-). Nos novos sitcoms, a força centrípeta do sitcom tradicional torna-se centrífuga, ao passo que a câmera demonstra certo esforço para acompanhar a ação, constantemente fugindo do enquadramento. A câmera possui maior liberdade e nos é permitido conhecer os ambientes em ângulos mais abertos, bem como é mais recorrente a mudança de cenários, sem que o episódio tenha que, impreterivelmente, contar com uma locação específica. No caso de Friends, a casa da Mônica, a casa do Joey e o Central Perk (café) são os três cenários

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construídos de modo a acomodar uma plateia presente. Algumas ações podem até acontecer em ambientes alhures nos episódios do programa, mas raramente um episódio não mostra pelo menos uma das três locações, de forma a não quebrar definitivamente o formato de audiência presente do sitcom. Três padrões de captação são estabelecidos no novo sitcom: a câmera na mão, a câmera voyeur (despercebida pelas personagens) e a câmera fixa nos momentos em que as personagens tecem comentários como se fossem entrevistadas, nos planos de confessionário. Os planos de ação fazem constante uso de chicote e de plano/contraplano, dando preferência a close-ups e planos médios.

Figura 15. The Office (temporada 3, episódio 20) – momento em que as personagens não percebem a captação. A decupagem do novo sitcom pretende simular uma captação espontânea, com o próprio operador da câmera sugerindo surpresa e curiosidade através dos movimentos. O uso de câmera na mão, transparecendo improviso e ausência de pré-decupagem, também está presente na reality TV. “A reality TV, com sua característica câmera instável na mão, dá a impressão de uma ação espontânea, não mediada, capturada enquanto acontece” (DOVEY, 2000, p. 57). Foco impreciso e correções no enquadramento também contribuem para a construção dessa proposta. Para dar a The Office os ares da programação factual, a equipe dos operadores de câmera era a mesma de reality shows como Survivor, revela

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Greg Daniels, em entrevista para o Washington Post em 2005. Os operadores de câmera vão aonde têm interesse. Então eles não têm plena certeza de onde devem estar e você vê as coisas no momento certo. Esses acidentes felizes acontecem porque eles seguem seus instintos. (BOOTH, 2005, tradução nossa)49

Savorelli alega que as escolhas de enquadramento e, portanto, as escolhas sobre qual elemento da ação enfatizar, bem como o uso do zoom e de outros movimentos, são propriedades de uma câmera que não apenas registra o acontecido, mas o comenta (SAVORELLI, 2010, p. 82). A câmera dialoga com as personagens e dita a leitura desses sitcoms ao lado da montagem. A câmera e a montagem são, nesse caso, o principal condutor do ritmo da comédia, ao contrário de sitcoms tradicionais, nos quais esse papel era principalmente exercido pela claque e pela montagem. Sendo uma câmera que exprime opiniões acerca do que acontece na diegese, ela se aproxima mais das personagens, frequentemente fechando o enquadramento em seus rostos, como quem busca detalhes minuciosos de suas emoções. Tal técnica é bastante utilizada em melodramas. O three headed monster, por outro lado, não costuma fazer uso dos close-ups. No episódio 25 da sexta temporada de Friends, Chandler pede Mônica em casamento. Por serem dois protagonistas da série, trata-se de um momento comovente, que não gera risadas. Mesmo assim, o afastamento permanece, sendo uma característica da linguagem desse sitcom. Enquanto Chandler faz um discurso para Mônica, a câmera fecha o plano progressivamente em um suave zoom in. Abaixo é possível ver os enquadramentos mais fechados de ambos, ao final do efeito.                                                                                                                           49

BOOTH, William. With “The Office”, NBC goes off the beaten laugh track. The Washington Post, de 20 de março de 2005. Disponível em: . Acesso em: 5 jan. 2013. “The camera guys from the reality show are going wherever they're interested. So the cameraman isn't 100 percent sure where he's supposed to be, and you get things at just the right moment. You get these happy accidents, because they follow their instincts.”

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Figura 16. Chandler pede Mônica em casamento em Friends. Em Parks and Recreation, Ben pede Leslie em casamento no quinto episódio da quinta temporada. De modo semelhante ao exemplo acima, os enquadramentos de plano e contraplano são progressivamente fechados por um zoom in. Agora, contudo, o enquadramento atinge o caráter de primeiro plano, e as emoções de ambas as personagens ficam em maior evidência, algo que ocorre usualmente nos novos sitcoms.

Figura 17. Ben pede Leslie em casamento em Parks and Recreation. Bret Mills alega que o distanciamento em sitcoms tradicionais como Friends é uma forma de provocar um afastamento, tanto espacial quanto emocional que, dentro desse formato, favorece a comédia (MILLS, 2005, p. 41), o que pode ser relacionado à teoria de Bergson discutida no primeiro capítulo e à aversão da comédia pela emoção. No exemplo acima, entretanto, é possível ver que o novo sitcom, nesse caso através do híbrido com o gênero documental, consegue ressaltar os momentos de empatia com as personagens. Ao mesmo tempo, o

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cômico acontece de forma diferente. B.J. Novak, ator e roteirista de The Office, em entrevista ao The Washington Post em 2005, comenta que “a câmera é tão próxima, tão sutil, que quando um ator pisca ele está fazendo uma piada”50. Nos sitcoms com códigos de programação televisiva factual, a câmera na mão, com movimentos incertos, escondida ou diante das personagens, é capaz de construir piadas apenas pela decupagem. Ela se identifica, zomba, entrega as personagens, além de ser uma confidente. Desenha a história percorrendo o cenário como um curioso e entrega aos títulos uma dinâmica divertida e veloz. Apesar de a câmera estar sempre em evidência, enquanto elo entre as personagens e os espectadores pela troca de olhares, ela nunca pode ser vista. Sua existência é subjetiva e nenhum ângulo que poderia revelá-la é utilizado. No décimo episódio da segunda temporada, em Modern Family, há uma cena em que Phil está do lado de fora de um carro. O olhar subjetivo da câmera está na posição do passageiro e, pelo ângulo, em um rápido momento, o aparato poderia ser visto pelo retrovisor do carro. Mesmo analisando frame a frame, não há nenhum rastro da imagem da câmera refletida. O foco foi cuidadosamente trabalhado para ocultá-la. Outro exemplo de como a presença da câmera enquanto equipamento é um tabu está no primeiro episódio da sétima temporada de The Office. A cena de abertura é um flash mob feito pelos funcionários da empresa, que dublam a música Nobody but Me da banda Human Beinz. Uma câmera passeia em um único plano-sequência pelo escritório durante toda a performance. Quando a música acaba, Andy olha para a câmera e pergunta: “Essa valeu, Toby?”. Revela-se então que Toby, o profissional do RH da empresa, estava filmando. Ouvimos a voz dele em off falando com Andy, mas não o vemos e, novamente, não vemos a câmera.

                                                                                                                          50

NOVAK apud BOOTH, William. With “The Office”, NBC goes off the beaten laugh track. The Washington Post, 20 mar. 2005. Disponível em: . Acesso em: 5 jan. 2013. “The camera is so close, so subtle, that when an actor blinks, he’s writing a joke.”

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A presença da câmera, no entanto, provoca mudanças no comportamento das personagens. Estas, quando estão cientes de que suas ações são capturadas, tentam passar uma imagem idealizada de si mesmas. O caso mais recorrente é Michael Scott, em The Office. Michael Schur, em entrevista para o A.V. Club, comenta esse efeito em The Office e Parks and Recreation: [...] é o que queremos a partir disso, que é mostrar as diferentes formas pelas quais as pessoas se comportam quando estão diante das câmeras ou não. [...] Nós nunca dissemos para os atores de Parks and Recreation como eles deveriam se relacionar com a câmera. Deixamos isso emergir organicamente. Tem sido muito interessante ver as diferentes formas com que eles fazem isso. [...] Leslie Knope quase nunca se relaciona com a câmera. Você nunca pensaria isso, porque em primeiro lugar ela é a personagem principal do show e a personagem análoga seria Michael Scott, que está constantemente falando com a câmera. Mas ele é o cara que se preocupa muito com o que as pessoas pensam dele, e ela não. Ela é muito confiante. (tradução nossa)51

Schur explica que foi necessário apontar no roteiro os momentos de interação com a câmera apenas nas primeiras temporadas. A partir dessa primeira experiência, os atores já sabiam quando deveriam fazê-lo. Para ele, essa é uma dimensão nova explorada nesses tipos de comédia que não seria possível em um sitcom tradicional. Trata-se de uma informação a mais que o espectador tem a respeito da personalidade das personagens. Como mencionado anteriormente, nos três programas citados a premissa é a de que existe uma equipe de documentaristas ou de reality shows registrando seus cotidianos, mas essa equipe nunca dá um sinal sequer sobre sua existência.                                                                                                                           51  VANDERWERFF, Todd. Michael Schur walk us through Parks and Recreation’s third season. A.V. Club, 25 jul. 2011. Áudio disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2012.

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Nem mesmo as personagens comentam qualquer coisa a respeito. Tanto esse assunto é um oculto na diegese, que constitui uma premissa conceitual nas apresentações formais dos projetos. É possível saber disso apenas por meio dos sites oficiais e das resenhas, uma vez que nem mesmo nos episódios-piloto qualquer contextualização é dada. Em raros momentos, as personagens endereçam à câmera e àqueles(as) que chamam de “you”. Na legenda brasileira, esses momentos são traduzidos como “vocês”, apesar de “you” na língua inglesa poder ser singular ou plural. Sem um índice maior do que está por trás das câmeras, é incerto se eles se referem a “você” ou “vocês” quando rompem a quarta parede. Durante as cenas confessionais, as personagens alternam entre o olhar direto para a câmera e para um ponto logo ao lado dela, como se houvesse um entrevistador oculto. “Durante a ação, a presença da câmera é percebida através dos olhares dos personagens e também por elementos proxêmicos, mecanismos que relacionam a câmera como o simulacro de um receptor” (SAVORELLI, 2010, p. 67). A câmera, assumindo um papel ativo e relacionando-se diretamente com os espectadores, pode ser uma ferramenta de forte imersão por seu caráter subjetivo. Em 2011, Hank Stuever, do The Washington Post, questionou: “Quando as personagens dialogam com a câmera, com quem e para quem elas estão falando?”. Eis a conclusão do colunista: Não existe nenhum documentário aqui. Nenhum reality show forjado. Não existe motivo para a câmera estar na empresa Dunder Muffin (The Office), na prefeitura de Pawnee (Parks and Recreation) ou nas cozinhas e salas da família Pritchett (Modern Family). Não existem câmeras. Em vez disso, essas personagens estão com (e sendo observadas por) Deus, ou por uma vaga dica de um Deus. Elas fazem o que as pessoas modernas aprenderam a fazer: elas estão fazendo monólogos internos. Elas sentem a presença de uma câmera. De alguma forma, não estamos nós todos fingindo estar em nosso próprio reality show? Em um meio tão antigo quanto as redes de TV, um mockumentary pode ser visto como uma interpretação de uma

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omnisciência sobrenatural? Isso significa que a audiência assiste do céu? (STUEVER, 2010, tradução nossa)52

A câmera dos supostos documentaristas, no entanto, pode funcionar como uma “porta de entrada” para o espectador diretamente dentro da ação. Arlindo Machado, em O sujeito na tela, fala sobre esse poder de imersão da câmera subjetiva, descrita por ele como um dos mecanismos mais utilizados para esse objetivo. Segundo Machado, o uso da câmera subjetiva faz com que o espectador sinta-se “dentro” da cena, incorporando o olhar de uma personagem virtual ou potencial. Mesmo quando eu vejo através da mediação dos olhos das personagens (ou do Ausente, se quiserem), a relação emocional, a empatia que estabeleço com estes mediadores vai depender de um emolduramento criado pelo conjunto do texto fílmico e esta relação é complexa porque inclui também, além da transfusão de olhares, a intervenção da maquinaria sonora e do papel significante da montagem. (MACHADO, 2007, p. 83)

Compartilhamos, portanto, da curiosidade da câmera e nos identificamos com a forma pela qual ela percorre a ação. Jim é a personagem em The Office que mais dialoga não verbalmente com a câmera. Quando ele está off screen e a câmera busca sua reação com um chicote, recebendo o olhar direto da personagem, a sensação é a de que há uma cumplicidade entre os dois, um acordo. O que sugere, portanto, o emolduramento criado pelo conjunto do texto nesses casos? Com quem a audiência estabelece essa empatia? Há uma relação de cumplicidade entre a câmera e Jim. Ou, quem sabe, entre nós. Nós, os espectadores, através da câmera, reagimos de volta para Jim, concordando com ele. Trata-se da personagem perfeita para essa identificação de sentimentos,                                                                                                                           52

STUEVER, Hank. “Modern Family”: Hank Stuever discusses mockumentary TV. The

Washington Post, 16 maio 2010. Disponível em: .

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afinal ele é bonito, simpático, engraçado e muito menos insensato ou desajustado do que os demais colegas da empresa Dunder Mifflin. Sendo assim, a câmera comenta pelo espectador, em provável sintonia com Jim. Já quando Dwight, o maluco obsessivo do escritório, endereça à câmera, percebe-se

um

afastamento

desta,

que

frequentemente

denuncia

suas

esquisitices. Já quando Jim ou Pam (o equivalente feminino de Jim em termos de “normalidade”) sofrem, a câmera sofre com eles. Seja com uma estabilização no movimento ou através da montagem, que opta aqui por prolongar o plano. O ritmo acelerado de cortes e mudanças de enquadramento do sitcom decresce nesses momentos. Ana Maria Balogh, pesquisadora de audiovisual vinculada à Universidade de São Paulo, em prefácio à obra organizada sobre o humor, fala sobre o distanciamento nas obras de comédia: Um tanto cínico, não se deixando levar pela catarse proposta pela arte clássica, o humorista prima por uma queda pelo distanciamento brechtiano que lhe permite ver o outro sob novos ângulos. Muitas vezes,

ângulos

cruéis

que

nos

mostrem

preferencialmente

desajeitados, desairosos, um olhar com câmera alta, debochado, não solidário, devidamente alheio e crítico. Todo realizador ligado às artes visuais é um voyeur profissional e, no caso do humor, como observado, especialista em detectar o que não desejamos mostrar; trata-se de um paparazzo felliniano, da comicidade. (BALOGH in DOS SANTOS; ROSSETTI, 2012, p. 12)

No final da sétima temporada, quando Michael Scott despede-se de Scranton e deixa a série, vemos a personagem no aeroporto tirando um microfone do tipo lapela da roupa. Ele então olha para a câmera e pergunta: “Ei, vocês me avisam se algum dia isso for ao ar?”. Assim, Michael Scott despede-se do cameraman e, consequentemente, de nós. Durante oito temporadas, esse foi um dos poucos momentos dentro da narrativa que o espectador teve para questionar quem era aquela equipe de filmagem, ou para lembrar dessa premissa inicial, que se perde durante tantos episódios sem nenhuma menção.

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Na nona temporada de The Office, ao ar em 2013, pela primeira vez em novos sitcoms, sobretudo nos que parodiam o gênero documental, a câmera é finalmente revelada aos espectadores. Os realizadores da série aproveitaram um momento de dificuldades no relacionamento de Jim e Pam para introduzir na narrativa um operador de microfone que se apaixona por ela. Junto à aparição de Brian, o espectador teve acesso a outros membros da equipe de filmagem, bem como a ângulos mais crus da câmera. Além disso, fica claro que Brian já tinha uma amizade com Jim e Pam de muitos anos. O espectador pode perceber, então, que certas coisas fugiram à captação dos supostos documentaristas e que não foi possível assistir à integralidade da vida das personagens no escritório durante as temporadas.

 

Figura 18. The Office quebra a quarta parede no episódio 12 da 9a temporada.    

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Figura 19. Após o surgimento de Brian (operador de áudio) na narrativa, o espectador vê ângulos mais crus da câmera. Neste caso, a câmera estava apoiada no chão sem que a operassem. Quando, portanto, a questão de quem está por trás das câmeras se resolve, as personagens passam a esboçar uma maior preocupação com o que é capturado. É como se antes, sendo a câmera um aparato repleto de subjetividades na narrativa, ela não tivesse o poder de interferir na história. No final do quinto episódio e começo do sexto, na nona temporada, Oscar, contador homossexual da Dunder Miffin, beija um candidato a senador que está noivo de outra funcionária do escritório, Angela. Ao perceber a presença da equipe de filmagem, logo após beijá-lo, Oscar entra em pânico por ter seu segredo revelado. Isso encerra o quinto episódio. No início do episódio seguinte, Oscar fala com as câmeras como quem falasse com a equipe de filmagem, pedindo que tais imagens não fossem divulgadas. Em contrapartida, no último episódio (18/19) da quarta temporada, Phillys, uma das vendedoras da Dunder Miffin, descobre Angela (noiva de Andy na época, outro funcionário da empresa) e Dwight em um encontro secreto em um dos depósitos. Nessa ocasião, a preocupação de Angela não é o fato de a

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equipe de cinegrafistas saber do ocorrido, e sim a de que Phillys não revele o que viu para o atual noivo. Ou seja, dentro da narrativa, a câmera só assume o papel de entidade delatora de um reality show na última temporada, quando a quarta parede é quebrada dessa nova forma e a equipe surge na história.

Figura 20. Temporada 9, Episódio 18. Funcionários de The Office repreendem a câmera/equipe após perceberem que foram filmados sem que soubessem. É uma questão de aguardar se outros sitcoms que trabalham com a equipe de documentaristas como premissa vai seguir o mesmo rumo. Segundo Esther Breger, colunista de TV do New Republic, eles não parecem apontar para isso: Apesar de compartilharem do mesmo DNA de The Office, é difícil imaginar Modern Family ou Parks and Recreation tentanto tal intrusão. Parks and Rec entusiasticamente abandonou qualquer pretensão de que haja uma equipe de documentário pendurada em torno dos escritórios da prefeitura de Pawnee [...]. As personagens ainda falam diretamente com a câmera, embora não tão frequentemente como

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faziam inicialmente, e as características do mock-doc estão mais na sobrancelha levantada de Adam Scott e no sorriso de Aziz Ansari (olhando para a câmera). Em Modern Family o dispositivo de enquadramento é ainda mais divorciado de suas origens. A família é completamente inconsciente de câmeras e as cabeças falantes são apenas uma ferramenta para transmitir monólogos interiores das personagens e fornecer rápidas ironias. (BREGER, 2013, tradução nossa)53

Figura 21. A sobrancelha levantada de Adam Scott e o sorriso de Aziz Ansari direcionados para a câmera (respectivamente, Ben e Tom em Parks and Recreation).

                                                                                                                          53

BREGER, Ester. “The Office” is Ending, and Maybe the Mockumentary Sitcom Should Go With It. New Republic, 16 maio 2013.. Disponível em: . Acesso em: 25 set. 2013. “Though they share "The Office"'s DNA, it is hard to imagine “Modern Family” or “Parks and Recreation” attempting such an intrusion. “Parks and Rec” has enthusiastically abandoned any pretense that there is a documentary crew hanging around the offices of Pawnee’s city hall. (Imagine how excited Aziz Ansari’s Tom Haverford would be if he thought he had a chance to be the next Kardashian.) The characters still speak directly to the camera—though not nearly as often as they did at first—and the mock-doc’s presence is registered largely by Adam Scott’s raised eyebrow and Aziz Ansari’s gleeful mugging. On “Modern Family,” the framing device is even more divorced from its origins: The family is completely unaware of cameras, and the talking heads are just a tool to convey characters’ inner monologues and provide some fast irony.”

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4.2 A montagem A montagem é determinante para o timing da comédia. Ela está intimamente relacionada ao formato dos novos sitcoms, pois proporciona a narrativa não linear e evidencia as reações e contradições, peças-chave da construção do cômico nesses programas. Em The Office, os realizadores pensaram a decupagem minuciosamente para que a paródia documental fosse a mais fiel possível. No 16º episódio da quarta temporada de The Office, um dos funcionários, Stanley, grita com Michael, o chefe. Michael sente-se muito ameaçado pelo tom de voz levemente agressivo de Stanley e tenta evitá-lo de todas as formas possíveis após o ocorrido. Durante um depoimento de Michael sobre o incidente para a câmera, vemos uma inserção de Michael indo até o banheiro e percebendo que, para isso, teria que passar por Stanley. Michael então anda na direção contrária, desce escadas, atravessa o estacionamento, sobe outras escadas por um anexo e finalmente chega ao banheiro. Tudo isso para não passar por Stanley no escritório. Michael Schur revela que The Office tinha tanto cuidado para captar apenas o que fosse possível e manter o senso de realidade do programa que o diretor do episódio, Randall Einhorn, fez vários testes para saber se um cameraman conseguiria seguir o trajeto de Michael para que as cenas pudessem integrar o episódio. Já em Parks and Recreation e Modern Family, essas regras são suavizadas, como comenta Michael Schur em entrevista: [Em Parks and Recreation] tínhamos essencialmente uma regra principal agora, que é: você não poderia filmar nenhuma cobertura de forma que seria possível ver a outra câmera. Tradicionalmente, se você está falando aqui, existe uma câmera ali que cortaria para uma câmera acima do seu ombro. Mas uma câmera captaria a outra. Então nunca deixamos nossos diretores pensarem em planos nos quais você veria outras câmeras. Até mesmo essa regra, eventualmente, nós quebramos. Porque se um diretor vinha com um plano maravilhoso

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que realmente ajudasse a contar a história, nós diríamos para usá-lo (“Ah, screw it!”). Agora, nós nunca teríamos feito isso em The Office, pelo menos não nos primeiros anos. Em Parks and Recreation afrouxamos as regras porque não estávamos, como em The Office, tentando treinar as pessoas que não estavam acostumadas ao falso documentário. Sentimos que depois de quatro anos de The Office e com o Modern Family estreando, as pessoas estivessem mais acostumadas com esse estilo. Não precisávamos dar às pessoas um novo vocabulário visual. ( VANDERWERFF, 2011, tradução nossa)54

Para parodiar o gênero documental, outros recursos são utilizados nos três programas, como, por exemplo, sobrepor uma imagem inapropriada com um blur quadriculado.

Figura 22. The Office, temporada 9, episódio 8. Dwight tem sua nudez coberta por um efeito típico de programação não ficcional.                                                                                                                           54

VANDERWERFF, Todd. Michael Schur walk us through Parks and Recreation’s third season. A.V. Club, 25 jul. 2011. Áudio disponível em: . Acesso em: 13 set. 2013.

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Em relação à montagem, existe uma complexa fragmentação temporal: planos de ação alternam-se com planos de confessionário e flashbacks. Os planos de confessionário têm uma posição temporal incerta, ou seja, nem sempre podemos concluir quando exatamente o depoimento foi dado para as câmeras em relação ao tempo dos planos de ação. Outra forma de fragmentação temporal utilizada em alguns casos assemelha-se à linguagem popularmente encontrada em videologs. Elipses no mesmo quadro, deixando os diálogos sem respiro, têm sido utilizadas para dar ritmo e intensificar situações cômicas, como quando as personagens se contradizem, o que é bastante recorrente no roteiro desses sitcoms. Um exemplo é quando Leslie Knope, no décimo episódio da segunda temporada de Parks and Recreation, é abordada durante uma caçada por um policial depois de ter supostamente atirado em um colega de trabalho, que feriu-se levemente. Ao perceber que o policial era extremamente machista, Leslie começa a dar várias desculpas irônicas, trabalhando os clichês associados às mulheres. Cada uma de suas frases tem uma interpretação diferente: “[...] Eu pensei com minhas partes íntimas / Estava andando e senti nojo / Achei que ia ter chocolate! / Eu nem me lembro! / Estou usando um novo sutiã que fecha na frente, então ele abriu e me arremessou / Eu só quero ter bebês! / Isso não aconteceria se eu tivesse um pênis!”, entre outras. Entre uma ironia e outra, a câmera faz elipses temporais com cortes de mesmo enquadramento. O tempo passado entre uma manifestação de Leslie e outra é impreciso. Michael Schur, co-criador de The Office e Parks and Recreation, ressalta como os programas com decupagem estilo “câmera única” têm um jeito particular de fragmentar a narrativa. Constantemente, quando uma personagem, em diálogo, refere-se a algum evento passado, acontece um corte para um flashback e testemunhamos o evento como uma inserção. Após o flashback, o plano anterior, ou seja, o tempo presente da narrativa, é retomado. É comum também que a voz da personagem assuma o caráter de voz over enquanto o flashback é mostrado. Segundo Schur, essa é a forma pela qual esses shows contam uma história e dão uma deixa para a risada da audiência em shows como Family Guy

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e 30 Rock55. Já em sitcoms como The Office, essa fragmentação acontece nos confessionários, quando vemos o depoimento das personagens para a câmera, ou para supostos entrevistadores. Esse rompimento pode ser utilizado para fazer uma piada, para auxiliar em elipses temporais na história, explicando o que acontece, ou para mostrar o que uma personagem realmente sente sobre algo, ou finge sentir. Evidenciar as reações das personagens pode ser encarado, sob determinado prisma, o substituto para a claque. Se as risadas da plateia procuravam uma conjunção com o momento do riso nas casas dos espectadores, a reação das personagens, em sitcoms que utilizam códigos de linguagem factuais, passa a ser o momento em que a estranheza/surpresa/etc. de quem está na diegese corresponde a uma reação emocional do espectador, muitas vezes risível. É a pausa narrativa para a digestão do momento cômico ou dramático que acabamos de acompanhar.

Figura 23. Modern Family (temporada 2, episódio 22) – Phil percebe que suas filhas fingiram arrumar o banheiro mas na verdade apenas socaram no armário os objetos, que caem no chão. A câmera acompanha a ação e a reação da personagem em plano-sequência. No sitcom tradicional, a inserção das risadas de uma audiência (presente ou não) nos estúdios, dividindo a quarta parede com aqueles que assistem aos programas em casa, é a proposta de uma experiência coletiva. Bergson afirma                                                                                                                           55  VANDERWERFF, Todd. Michael Schur walk us through Parks and Recreation’s third season. A.V. Club, 25 jul. 2011. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2013.

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que “Não desfrutaríamos do cômico se nos sentíssemos isolados. O riso parece precisar de eco. [...] algo começando por um estalo e para continuar ribombando, como o trovão nas montanhas” (BERGSON, 1983, p. 28). Nos novos programas, durante a ação, os olhares dos espectadores cruzam com o de uma personagem em cena. Ela nos olha como quem quer nos dizer “você viu isso?” ou “vê o que eu tenho que aguentar?”. Além disso, há o privilégio de enquadrar essa personagem em um canto e ouvir, com exclusividade (em relação às demais personagens), seus sentimentos e reflexões, em confessionários. Mais à frente, em sua obra “O riso”, Bergson diria: “o riso oculta uma segunda intenção de acordo, diria eu quase de cumplicidade com outros galhofeiros, reais ou imaginários” (BERGSON, 1983, p. 28). Esse estilo de decupagem aproxima o espectador das personagens de tal forma que é possível rir com eles, ou deles, pois há uma forte identificação com a personagem, sendo que esses sitcoms possuem a premissa de uma invasão de privacidade. Aqui o cômico fica, portanto, ligado à familiaridade, à conexão cultural. A responsável por construir essa conexão é a câmera e o novo papel que ela agora adquire nas comédias televisivas. Ao pensar em uma transposição dessa nova forma de fazer sitcom para a tradicional, é possível perceber que o áudio das risadas e as reações em geral da audiência (claque) entrariam na montagem no momento em que a personagem esboça uma reação para a câmera, como na figura anterior com os exemplos de Parks and Recreation, ou até mesmo quando o enquadramento ressalta uma reação sem que a personagem enderece à câmera, como também é comum. Ou seja: em vez de uma plateia – legítima ou não – reagir à piada com os espectadores, uma personagem reage. São duas formas de trabalhar o mesmo mecanismo desse tipo de comédia. A questão é que a forma utilizada pelos novos sitcoms parece conectada com a linguagem de reality shows. A reação também é uma das ferramentas de atração que fundamenta o ápice cômico de situações em inúmeros realities, como Extreme Makeover (ABC) e Queer Eye for the Straight Guy (NBC). Annete Hill, pesquisadora de

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audiências da mídia na University of Westminster, comenta a importância da reação dos participantes em reality shows: A essência dos programas baseados em estilo de vida é o envolvimento de pessoas comuns e de seu lazer comum (jardinagem, culinária, moda, decoração) com experts que transformam o ordinário em extraordinário. Geralmente, a transformação de pessoas ou lares é relacionada a uma competição, só que ganhar não é o que conta e sim o momento da surpresa, a revelação, quando pessoas ordinárias respondem aos resultados finais. (HILL, 2005, p. 22, tradução nossa56)

Ao empregar uma câmera com características documentais, o sitcom permite que as reações das personagens periféricas à ação principal também sejam capturadas. Em sitcoms tradicionais, a reação de personagens como a da mal-humorada April Ludgate, que em Parks and Recreation dialoga muito com a câmera de forma não verbal, passaria despercebida ou teria que ser exagerada. Os sitcoms analisados não são tão calcados em diálogos quanto o sitcom tradicional, até mesmo por permitir um maior uso da subjetividade de olhares e reações no texto. Com a maior recorrência de silêncios, a reação das personagens assume grande importância no texto, substituindo parte dos diálogos e complementando as gags por si só. O afastamento cômico nesses títulos é explorado através da dualidade de atitudes das personagens, alternando entre os momentos em que possuem consciência da presença da câmera ou não. Greg Daniels comenta a exclusão da claque em entrevista: “[a claque] lhe diz onde as piadas estão. Mas remova a claque e você não saberá onde está o humor. Este poderia ser um plano de reação. Eu vou assistir e rir

                                                                                                                          56

“The essence of lifestyle programming is the involvement of ordinary people and their ordinary

leisure interests (gardening, cookery, fashion, home improvement) with experts who transform the ordinary into extraordinary. Usually, the transformation of people or homes is linked to competition, but it isn’t the winning that counts, but rather the moment of surprise, or ‘the reveal’, when ordinary people respond to the end results.”

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em um momento diferente de outra pessoa (DANIELS apud BOOTH, 2005, tradução nossa)57. Para Aristóteles, a tragédia mostra os homens melhores do que são, e a comédia, piores (DOS SANTOS, 2012, p. 19). A câmera dos sitcoms, evidenciando a dissimulação das personagens, mostra quão desajustadas e neuróticas são as pessoas no universo de The Office, Parks and Recreation e Modern Family. As personagens mudam seu discurso, às vezes radicalmente, de acordo com o nível de enunciação no qual operam. Em The Office, Steve Carrell interpreta Michael Scott, o gerente regional da Dunder Mufflin em sua filial de Scranton, Pensilvânia. A premissa de Michael é tratar-se do chefe que faz besteiras absurdas em nome de ideologias que ele defende em frente às câmeras. Frequentemente vemos Michael em seu escritório discorrendo com convicção sobre suas ideias, ressaltando também que ele é um chefe adorado por seus subordinados. Logo em seguida, vemos que suas empreitadas foram um fracasso. Aqui a montagem privilegia essa contradição. O uso do zoom é frequentemente utilizado para enfatizar objetos ou pessoas da diegese que “entregam” as contradições de uma personagem, como no caso de Dwight, o maior excêntrico de The Office. Quando Dwight profere um de seus discursos enfatizando suas qualidades de líder, a câmera vai buscar o contraponto cômico na reação de seus colegas, todos com cara de desaprovação ou deboche, seja através de um chicote ou de um corte. Em Modern Family, Gloria, colombiana e mãe superprotetora, certa vez sente ciúmes de seu filho porque ele preferiu tomar o achocolatado que sua namorada fez. O segredo, diz a garota, é colocar uma pitada de sal. Quando o casal sai de cena, Gloria toma um gole do achocolatado com sal e faz cara de                                                                                                                           57  BOOTH, William. With “The Office”, NBC goes off the beaten laugh track. The Washington Post, 20 mar. 2005. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2013. "tells you where the jokes are . . . but take the laugh track away, you don't know where the humor is. It could be a reaction shot. I'll watch and laugh at a different place than someone else."

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nojo. Corta e vemos Gloria falando enraivecida para a câmera em confessionário: “Estava uma delícia”.

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4.3 Uma análise do som O som, nos sitcoms analisados, tem um papel importante na construção da paródia dos formatos factuais televisivos. Nesta análise, é possível olhar para a trilha musical e os diálogos/ruídos separadamente e entender como o uso desses elementos interage com a proposta cômica. Raramente nos deparamos, nesses títulos, com uma trilha musical não diegética, ou seja, que não possa ser ouvida pelas personagens ou que não tenha sido gerada por estas e aparelhos de som em cena. A trilha musical não diegética está nos momentos finais de cada episódio de Modern Family, resgatando a tradição de sitcoms mais antigos que costumavam propor uma reflexão de encerramento. Em The Office e Parks and Recreation, a música não diegética está presente apenas na abertura, com a exceção de finais de temporada e em raros momentos especiais.   Essa limitação significa a perda de uma ferramenta potencial de leitura da imagem. A música não diegética tradicionalmente alerta o espectador para momentos cômicos, tristes etc., mudando a forma como ele compreende a sequência apresentada. Além disso, em sitcoms tradicionais, particularmente, é muito comum o uso de música não diegética para designar elipses temporais. Um exemplo bastante popular dessa linguagem é Seinfeld (NBC, 1989-1998), no qual os slaps

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de contrabaixo entre uma cena e outra tornaram-se uma das

características mais marcantes da série. Aliando essa limitação em relação ao uso de música não diegética com a queda do uso da claque, é possível afirmar que os produtores desses sitcoms precisaram buscar em outros elementos, sonoros e visuais, um guia de leitura para o espectador. Isso explica as opções já discutidas anteriormente de planos mais fechados mostrando a emoção das personagens e do endereçamento à câmera, que facilitam a compreensão do espectador sobre o teor emocional das cenas:                                                                                                                           58

Técnica que extrai um som percussivo de contrabaixos elétricos.

  114  

O

recente

abandono

da

claque

por

muitos

dos

sitcoms

(particularmente na Grã-Bretanha) tem um grande significado. A combinação de um estilo visual diferente da estética teatral tradicional e a remoção da claque resultam em textos que precisam sinalizar suas intenções cômicas de uma forma diferente, ou lidar com a possibilidade de a audiência não apenas perder as piadas, mas não perceber que se trata de um sitcom. [...] O abandono da claque representa a evolução mais significativa no gênero. (MILLS, 2005, p. 51).59

O desuso da claque é a evolução mais significativa, sobretudo porque representou, durante décadas, a característica sonora não-diegética e de linguagem em geral mais marcante do gênero. Como citou Bret Mills acima, possivelmente os produtores tiveram dúvidas se a audiência compreenderia que The Office era um sitcom por não apresentar claque. Quando possui claque, o foco do espectador costuma manter-se na história contada, e o riso cria uma atmosfera cômica, sem que o espectador preste atenção em todos os momentos em que é possível ouvi-la. Por vezes esse código está tão assimilado que um espectador pode assistir a um episódio inteiro de sitcom e não lembrar se ouvia risadas entre as piadas ou não, como comentado no final do capítulo anterior. A importância da claque na construção do humor remete a hábitos de consumo de comédia em ambientes anteriores à televisão, como os teatros. Vladimir Propp procurou entender, em sua obra Comicidade e riso, o porquê de o riso ser algo contagiante. Para ele, como comentado no primeiro capítulo, nós rimos quando transferimos nossa atenção do caráter espiritual para as formas                                                                                                                           59

[…] “the recent abandonment of the laugh track by much sitcom (particularly in Britain) is

meaningfull. The combination of a visual style unlike the traditional theatrical aesthetic and the removal of the laugh track results in texts which must signal their comic intent in a different way, or lay themselves open to the possibility not only of audiences failing to spot all the jokes, but of failing to realise they’re watching a sitcom at all”

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exteriores de manifestação, que por sua vez revelam os defeitos daqueles que observamos. “O riso é um sinal sonoro desse deslocamento de atenção” (PROPP, 1992, p. 181). Assim que esse sinal é percebido por outras pessoas, elas também podem deslocar o olhar, ver o que antes não percebiam e começar a rir. Sobre o teatro de comédia, Ivo Bender diz: “De fato, o riso coletivo confere ao gênero a qualidade de celebração ruidosa em que a alegria e a convivência feliz são as marcas distintivas” (BENDER, 1996, p. 18). Propp afirmava, no entanto, que “o autor não deve nos transmitir o objetivo do seu relato através de artifícios como uma linguagem que revele que a intenção é fazer rir” (PROPP, 1992, p. 206). Ou seja: o riso viria da plateia e contagiaria a própria plateia, sendo um artifício gerado do público para o próprio público. A claque de sitcoms contraria essa afirmação de Propp, sinalizando o que é engraçado na cena. Mas a claque funciona há décadas, apesar de novos sitcoms conseguirem provar que ela não é indispensável para o formato. De fato os produtores parecem ter enfrentado dificuldades para encontrar outro elemento que substituísse a leitura que a claque permitia. Sitcoms como The Middle (ABC, 2009-), entre muitos outros, aboliram a claque mas utilizam exageradamente a trilha musical para guiar o espectador: em momentos emotivos ouve-se uma melodia doce; em momentos engraçados, ouve-se uma música debochada, divertida. É como se esses títulos tivessem recorrido a uma linguagem de programas de TV infantis ou novelas mexicanas, sendo dois expoentes desse tipo de uso da trilha musical, para sinalizar os momentos cômicos e dramáticos. Outro gênero que utiliza a música para guiar a leitura é a reality TV. Sobretudo por não trabalhar com atores ou com grandes acontecimentos, muitas vezes a trilha musical ajuda a construir o teor das cenas e a quebrar a monotonia dos diálogos e ações dos participantes. Como a premissa desses programas é a de ausência de ensaio e participação de pessoas “comuns”, uma pós-produção mais trabalhada não costuma quebrar a confiança dos

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espectadores de que trata-se, em algum nível, de reality, mesmo que espetacularizada. Mas como The Office, Parks and Recreation e Modern Family pretendem reproduzir a linguagem televisiva factual e claramente são peças ficcionais, os recursos de pós-produção em excesso poderiam descaracterizar a premissa inicial da paródia. Curiosamente, entretanto, a restrição ao uso de música diegética gera alguns dos momentos mais engraçados desses sitcoms. No 11º episódio da quarta temporada de Parks and Recreation, Leslie Knope, durante as eleições de Pawnee, faz uma entrada triunfal por um tapete vermelho com sua equipe para um comício dentro de uma pista de patinação no gelo. Ouvimos Get on Your Feet da Gloria Estefan vindo de alto-falantes, uma música muito feliz com letra motivacional. A música está editada para durar até que Leslie chegue com sua equipe em um palanque no meio da pista. Após alguns passos no tapete vermelho, ele acaba. Todos param. A música silencia. Tom Haverford, colega de Leslie, diz que houve uma restrição orçamentária para colocar o tapete em toda a extensão do percurso. Todos começam, então, a andar em passos mínimos até o palanque, para evitar escorregar. A música editada toca novamente. Uma das personagens cai, outras se desequilibram e Leslie consegue chegar até o palanque. Uma vez lá, não há como subir nele, também pelas restrições orçamentárias. Leslie é empurrada para cima da plataforma pelos colegas que estão sem apoio, escorregando no gelo. Enquanto Leslie rola para cima do palanque, a música toca novamente. O contraste da situação ridícula de Leslie e sua equipe com a música feliz de Gloria Estefan é hilário. Na terceira temporada de The Office, Michael Scott acredita ter conseguido um trabalho no escritório principal da Dunder Miffin, o que depois mostra-se falso. Para despedir-se de seus colegas, Michael pega um pequeno aparelho de som e coloca uma música ao estilo daquelas que tocam na última cena de filmes dramáticos ou seriados policiais, algo com ares de “missão cumprida”. Ele se despede muito brevemente e deixa a sala com a música tocando no aparelho, em cima de uma mesa, para que sua saída seja triunfal. A

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qualidade da música no pequeno aparelho é péssima, o que faz com que a cena fique ainda mais engraçada.

Figura 24. Leslie sofre com as restrições orçamentárias de sua campanha ao som de Gloria Estefan. Outro recurso muito utilizado é o silêncio. Esses sitcoms são um exemplo bastante interessante para a análise das múltiplas significações que o silêncio traz para a cena. Ele acompanha momentos dramáticos, geralmente em maior duração, e momentos cômicos para reforçar situações de constrangimento, por exemplo. Um pequeno momento de silêncio parece muito maior em cena quando uma personagem é pega fazendo algo que não deveria ou quando uma piada sem graça é contada. O desconforto que o silêncio gera traz um grande potencial cômico ou dramático para as cenas, e sua leitura é tão simples quanto a de músicas que revelam a intenção da cena para o espectador. Em termos de repertório audiovisual, talvez a audiência esteja mais acostumada com músicas tristes ou felizes para ditar a leitura da cena, ainda mais em programas de comédia. Mas na vida “real” o silêncio provavelmente já adquiriu uma significação bastante clara por experiências individuais. “Adoro as pausas

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desconfortáveis. São melhores do que uma fala. É mais real”, diz Greg Daniels em entrevista para o The Washington Post60. Em relação aos diálogos e ruídos, em The Office a captação segue uma linha semelhante à câmera no que diz respeito à simulação de um registro único e espontâneo. Ouvimos diferenças de volume de acordo com a movimentação da personagem, esbarrões no microfone e todo tipo de erro que lembra o espectador da existência desse aparato. No entanto, raramente vemos o microfone. O aparato geralmente é mostrado em cenas dramáticas. Como descrito anteriormente, quando Michael Scott deixa a série, em seu último episódio, a câmera o segue até o aeroporto. Lá ele se despede fazendo uma alusão ao documentário gravado (“Se isso algum dia for ao ar, me avisem!”). Ele então tira o microfone de lapela e entrega a alguém que está por trás das câmeras. Em outro momento do sitcom, Pam passa mal e Jim a leva para o hospital. Antes de entrar na sala do médico para saber o que Pam tem, Jim tira o microfone. O espectador é deixado no silêncio, podendo apenas espiar o que acontece na sala através de um vidro, do lado de fora. Vemos Jim surpreso e logo em seguida os dois se abraçando felizes. O episódio acaba. Subentende-se que Pam está grávida, mas o programa trabalha a subjetividade nesse final. Outra forma pela qual The Office trabalha a questão dos microfones é deixando subentendido que as personagens esquecem-se dele. Ocasionalmente o programa destaca as limitações do formato documental, quando personagens fecham portas e impedem o acesso da equipe de filmagem, criando um senso de privacidade. Apesar disso, todos os microfones geralmente permanecem ligados junto às personagens, permitindo que o espectador ouça o que acontece, mesmo sem vê-las. O mesmo acontece para cenas em que a câmera as espiona sem ser notada por elas.                                                                                                                           60

BOOTH, William. With “The Office”, NBC goes off the beaten laugh track. The Washington Post, 20 mar. 2005. Disponível em: . Acesso em: 5 ago. 2013.

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Figura 25. The Office. Jim abraça Pam em um consultório médico. O espectador é deixado no silêncio, podendo apenas espiar de fora da sala e deduzir o que acontece. Mesmo que em menor escala, a presença ou não de microfones, bem como a das câmeras, também altera o comportamento das personagens. É comum estas esquecerem que utilizam lapela o tempo todo e imaginem que não estão são alvos da captação dos documentaristas apenas porque as câmeras estão ausentes. Na nona temporada de The Office, oitavo episódio, Dwight anda casualmente com Angela na rua e repentinamente a empurra para dentro de um carro onde está um amigo dele que supostamente é um espião. Este amigo pergunta se “é seguro falar”. Dwight, então, responde: “Esta equipe de documentaristas tem seguido cada um de nossos passos nos últimos nove anos, mas não os vejo. Acho que estamos seguros”. A câmera momento os filma de longe, utilizando o zoom e capturando suas imagens através das janelas do carro. Mas Dwight e Angela esquecem que ainda utilizam os microfones e suas vozes são perfeitamente audíveis. A audiência, portanto, ouve totalmente o diálogo, o que não prejudica a captação de informações pelos supostos documentaristas. Na quarta temporada, Michael Scott namora Holly, uma colega de trabalho. No quinto episódio, os dois fogem das câmeras e entram em uma

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pequena sala do escritório, fechando a porta. É possível ouvir sons que parecem beijos e Holly dizendo que não queria fazer isso em frente às câmeras: “Você acha que eles ainda nos ouvem?”. Michael responde: “Não, estamos sozinhos!”. Outro exemplo de que os microfones são geralmente esquecidos e ajudam o espectador a atravessar as portas fechadas pelas personagens em busca de privacidade. Já em Parks and Recreation e Modern Family, a captação de som tem uma característica mais transparente, não lembrando o espectador do uso do aparato. Nesses casos, o som auxilia na construção da comicidade contemplando características de pós-produção dos documentários e também dos reality shows, como o uso do bip. Tradicionalmente, o bip é um som estridente e contínuo que mascara informações presentes nos diálogos das personagens que não sejam adequadas ou permitidas, como palavras inapropriadas ou menções a determinada marca/produto. No terceiro episódio da quarta temporada de Parks and Recreation, a apresentadora do programa de TV local, Joan Calamazzo, está em uma festa completamente bêbada pois acabara de ser deixada pelo marido. Em determinado momento da festa, Tom e Ben, trabalhadores da prefeitura de Pawnee, recebem da apresentadora uma proposta bastante obscena. Os detalhes sórdidos da proposta, no entanto, são mascarados por longos bips: “I wanna take you both home and (bip – 1 segundo) bend you over and just (bip – 9 segundos) at the same time” (“quero levar ambos para casa e [bip] baixá-los e apenas [bip] ao mesmo tempo”). O uso dos bips, sobretudo do imenso bip de 9 segundos, torna o que é dito por Joan muito mais apavorante e, consequentemente, engraçado do que se ouvíssemos todas as palavras do diálogo. E essa afirmação é do próprio Michael Schur em entrevista ao On the Media, na qual ele revela que os produtores testaram a mesma cena com e sem o uso do bip.

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4.4 O confessionário Novos sitcoms como The Office, Parks and Recreation e Modern Family usam um recurso comumente conhecido como talking heads (cabeças falantes), que representa uma segunda maneira de quebra da quarta parede, além dos olhares e expressões endereçadas à câmera durante as cenas. Nesses casos, em uma quebra na temporalidade da narrativa, as personagens falam diretamente com o espectador ou com supostos entrevistadores, geralmente expondo pontos de vista sobre as ações que acabamos de ver. É como se o espectador fosse um confidente das personagens e tivesse informações privilegiadas relacionadas àquele universo, para que assim pudesse fazer uma leitura diferenciada das cenas que seguem na edição. Em The Office e Modern Family, para dar esses depoimentos, as personagens surgem respectivamente em uma sala específica e no sofá da casa. Trata-se de um lugar recorrente para o momento confessional. Eventualmente, as personagens falam com a câmera durante as cenas, principalmente durante as ações externas. O espectador tem a ideia de que, estando fora do escritório e das casas, as personagens de The Office e Modern Family precisam improvisar lugares alheios para falar com a câmera, o que sugere que os depoimentos ocorram em um tempo próximo em relação à ação. Parks and Recreation, por outro lado, não tem nenhum espaço tradicional para esse fim, podendo acontecer em qualquer ambiente. Apesar disso, raramente o que é dito pelas personagens é ouvido e contestado por outras. O tom usado pelas personagens de Parks and Recreation com a câmera sugere que elas procuram uma maior preservação de suas intimidades diante das câmeras, e que estão mais conscientes em relação à possível exposição de sua vida na televisão.

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Figura 26. Parks and Recreation, temporada 5, episódio 21. Leslie Knope endereça à câmera. Para Antonio Savorelli, apesar de o depoimento direcionado à câmera ser uma característica documental, esses programas parecem ter maior inspiração na forma pela qual os reality shows exploram momentos confessionais, principalmente por criar, na maioria das vezes, um isolamento para que as personagens possam falar livremente, instigando um depoimento mais íntimo. Além da reality TV, o videolog (denominação que funde video e blog, mais comumente um tipo de diário on-line ou site pessoal) é outro fenômeno que explora o endereçamento direto dos espectadores. Trata-se da forma mais popular de produção caseira de vídeos para a internet. A partir da popularização do Youtube em 2005/2006, a plataforma foi tomada por videologgers e suas confissões, que compreendem vídeos com poucos recursos, baseados em relatos sobre assuntos diversos dados diretamente à câmera, geralmente gravados com uma webcam. Jean Burguees e Joshua Green, pesquisadores da Queensland University of Technology e do Massachusetts Institute of Technology, respectivamente, lançaram um dos primeiros títulos que debatem exclusivamente o Youtube,

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chamado Online Video and Participatory Culture. Em sua pesquisa, os autores trouxeram o depoimento de jovens produtores de vídeos caseiros para a web, nos quais eles falam sobre suas motivações. Uma das entrevistas é com Liza Mizel e Adi Frimerman, autoras do video Hey Clip. Nós apenas ligamos a webcam e dançamos de forma engraçada... Eu perguntava por que gostavam e eles diziam: “Porque é real”. Você pode ver que é caseiro, que somos muito espontâneos e naturais – dançando, nos divertindo. Isso faz com que as pessoas se lembrem de quando eram jovens e dançavam em frente ao espelho. (BURGUESS e GREEN, 2009, p. 26)

Figura 27. Frames de Hey Clip, vídeo do Youtube. O espelho, nesse caso, é a câmera e, consequentemente, os olhares de múltiplos usuários do Youtube. Hey Clip obteve 33.833.700 visualizações61 até outubro de 2013. Os relatos endereçados diretamente para as lentes das webcams parecem servir como um estímulo à interação. O número de comentários em vídeos desse gênero supera consideravelmente aqueles presentes em vídeos com maiores números de visualizações, como videoclipes e trechos de programas de TV (BURGUESS; GREEN, 2009). Burguess e Green relacionam o fenômeno dos videologs com práticas antigas de círculos familiares e sociais em geral:                                                                                                                           61

TASHA. Hey Clip. Disponível em: . Acesso

em: 22 out. 2013.

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Em vez de vídeo amador que é explicado atualmente através da noção de “vídeo sobre nada” ou por notoriedade sem talento, ele também poderia ser situado na história muito mais longa da criatividade vernacular – a vasta gama de práticas criativas do dia a dia (do scrapbook para a fotografia familiar até a narrativa que faz parte do bate-papo informal) praticado fora dos sistemas de valor cultural da “alta cultura” ou da prática criativa comercial. Vídeos amadores no Youtube tem tanto a ver com a história social do vídeo caseiro – usado para documentar a vida dos cidadãos comuns – quanto tem a ver com os consumidores exibicionistas aparecendo em talk shows ou na televisão comum. (BURGESS; GREEN, 2009, p. 25, tradução nossa)62

Tanto os sitcoms analisados como os reality shows e os videologs parecem, em conjunção com teorias, apontar para uma nova forma de compreender o coletivo na sociedade, assim como atendem a um novo regime de verdade. Sobre esse novo regime de verdade, assim chamado por Jon Dovey, em Freakshow encontramos um apontamento interessante por parte do autor. Dovey lembra que o sistema judicial é uma fonte de produção de verdade, como sugeriu Foucault em The Will to Knowledge63. Os tribunais foram (e ainda são) replicados à exaustão em programas factuais de TV, principalmente nos Estados                                                                                                                           62

“Rather than amateur video being explained via the notion of the ‘video about nothing’ or by

notoriety without talent, it could also be situated in the much longer history of the vernacular creativity – the wide range of everyday creative practices (from scrapbooking to familiar photography to the storytelling that forms part of casual chat) practiced outside of the cultural value systems of either high culture or commercial creative practice. Amateur video on youtube has as much to do with the social history of the home movie – used to document the lives of ordinary citizens – as it has to do with exhibitionist consumers appearing on talk shows or being made over on ‘ordinary television’.” 63

FOUCAULT, Michel. The Will to Knowledge: the History of Sexuality. v. 1. Vintage Books,

1990.

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Unidos, como forma de reality TV. Até os anos 1990, os tribunais do Reino Unido, por exemplo, permitiam o direito ao silêncio. Quando este foi abolido, juízes e autoridades foram autorizados a inferir a culpa de quem se recusava a falar: ficar em silêncio é ser culpado. Esse desenvolvimento é contemporâneo com um período em que as estruturas da mídia de massa foram fundamentalmente modificadas pela Babel de vozes de pessoas comuns (DOVEY, 2000, p. 104). O apelo do conteúdo “gente como a gente” nas grades de programação das redes de televisão tornou-se amplamente explorado. Sendo o Facebook o site mais acessado do mundo em 2013 64 , torna-se surpreendente o quanto essas publicações parecem cativar consumidores e, simultaneamente, encorajálos a produzir o próprio conteúdo. Não se trata de determinismo tecnológico, mas sim da replicação de um modelo de comunicação instituído pelos próprios participantes, tanto nas redes sociais quanto na televisão. Aqueles que fazem uso das redes ou aparecem em programas de TV, ao se comunicarem de uma forma que gera muita resposta, tornam-se as bases para potenciais fenômenos miméticos. Os participantes dessas plataformas parecem buscar popularidade, no sentido de receberem grande retorno, majoritariamente positivo. Mas existe outra especificidade acerca da popularidade almejada. Uma foto no Facebook na qual 25 familiares teceram comentários elogiosos não é uma foto popular. A popularidade que seduz vem daqueles com grande afinidade e identificação com a pessoa da foto, ou seja, dos que são da mesma tribo. É esta mesma tribo e este jogo de identificações, por exemplo, que costumam determinar os vencedores de reality shows com premiações e votações do público. No universo dos reality shows, a popularidade, a fama e a riqueza seriam a recompensa pela superexposição do cotidiano dos participantes. Quando se expressam por meio audiovisual, não apenas estes nos permitem observá-los como verbalizam seus sentimentos e intenções em momentos de confissão,                                                                                                                           64

GOES, Gisele. Os 20 sites mais acessados do mundo em 2013. Disponível em:

. Acesso em: 18 out. 2013.

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falando diretamente para as câmeras. Os espectadores trabalham como seus confidentes, recebendo informações privilegiadas. Esses espectadores assistem à TV em uma constante avaliação da moral, da sinceridade e da sanidade dos participantes. Vemos os depoimentos em cadeiras imponentes que lembram tronos reais, isoladas em pequenas salas. Os confinados são como reis da atenção do público.

Figura 28. A Diary Room do Big Brother 13, 12 e 10 (Reino Unido). Reality shows e videologs, bem como as redes sociais da internet, fazem parte da conjuntura favorável do início do século XXI para a expressão de pessoas comuns, permitindo que elas ressaltem suas particularidades. Esses produtos parecem exaltar a individualidade dos usuários, o que pode ser percebido nos slogans “Broadcast Yourself” (“Divulgue-se”, do Youtube) e “Be Connected. Be Discovered. Be on Facebook” (“Esteja conectado. Seja descoberto. Esteja no Facebook”). No entanto, segundo Michel Maffesoli, professor na Sorbonne e membro do Institut Universitaire de France, em sua obra O tempo das tribos, o individualismo está em declínio nas sociedades de massa. E os reality shows, videologs e redes sociais estão ligados a essa mudança. Maffesoli, como seus antecessores Gilbert Durand e Gaston Bachelard, discute em suas obras a importância do imaginário na construção da realidade. Podemos compreender a noção de Maffesoli acerca do imaginário na entrevista concedida à revista da Famecos de agosto de 2011:

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A cultura pode ser identificada de forma precisa, seja por meio das grandes obras da cultura, no sentido restrito do termo, teatro, literatura, música ou, no sentido amplo, antropológico, os fatos da vida cotidiana, as formas de organização de uma sociedade, os costumes, as maneiras de vestir-se, de produzir, etc. O imaginário permanece uma dimensão ambiental, uma matriz, uma atmosfera, aquilo que Walter Benjamin chama de aura. O imaginário é uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável. (MAFFESOLI, 2011, p. 3)

Para Maffesoli, o imaginário é geralmente de ordem coletiva e constitui-se pela ideia de pertencimento a grupos ou tribos, partilhando visões e filosofias acerca da vida e das coisas. Sobretudo a partir dos novos canais disponibilizados para a população, conversas que décadas atrás eram privadas, de um indivíduo para o outro, frequentemente dão-se em ambientes públicos e instigam a participação de várias pessoas. A partir da força dessa coletividade, o autor fala sobre a saturação do indivíduo, que ele diz estar relacionada à emergência da persona, o que resulta em um indivíduo plural, com uma infinidade de máscaras à disposição. O individualismo aponta para uma preocupação com o futuro, enquanto o fenômeno das personae seria uma vontade de viver o presente (MAFFESOLI, 2008, p. 9). Existe também uma saturação epistemológica: Há um retorno do sensível, do corpo e da intensidade, só que de forma difusa. É mais vivido do que pensado. É uma ideia de criatividade da existência. Noção de criação da vida como obra de arte e da estetização da vida social. Estética é o compartilhamento de emoções (quaisquer que sejam). Assim temos um outro laço social em jogo. (MAFFESOLI, 2008, p. 9)

No seminário “Sociologia Compreensiva, Razão Sensível e Conhecimento Comum”, apresentado por Maffesoli na PUCRS (maio de 2006), o sociólogo discutiu os anseios dos participantes da reality TV e das redes sociais como uma

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vontade de participar do imaginário coletivo, segundo o artigo de Gracy Craidy publicado na revista Famecos em dezembro de 2006, no qual a professora da ESPM-RS buscou sintetizar o pensamento de Maffesoli durante o seminário: E a privacidade, a qual o francês lembra ser uma invenção burguesa do século XIX, que economizava tudo, desde os bens até a própria intimidade, está com os dias contados. Vide os blogs, reality shows, o Orkut, uma nova onda dionisíaca de obscenidade pós-moderna. Segundo ele, tudo mostra, tudo precisa exibir compulsiva e publicamente, no desejo de partilha. (CRADY, 2006, p. 3)

O autor cita como paradoxo primordial da pós-modernidade a busca pelas origens e fontes, pelo primitivo e bárbaro (MAFFESOLI, 2006, p. 8). A ascensão do modelo confessional sugere uma busca maior por registros pessoais sem a interferência da pós-produção, o que parece estar relacionado com o retorno do primitivo em termos de linguagem audiovisual. A objetividade dos videologs, começando e terminando abruptamente, sem cortes ou inserções, aponta para essa tendência, bem como os confessionários ao vivo do Big Brother Brasil. Também é possível apontar que o desejo de assistir aos participantes de reality shows em ambientes domésticos, com roupas casuais e expondo o cotidiano, muitas vezes sem grandes acontecimentos, está também relacionado a essa busca. Para Jon Dovey, a experiência no contexto doméstico é semelhante a como respondemos aos vídeos amadores quando estes aparecem na TV. Eles aparentam ser mais amigáveis do que a imagem excessivamente produzida da televisão tradicional. “Mais íntimas, menos pretensiosas, mais confortáveis em suas falhas óbvias” (DOVEY, 2000, p. 65). O retorno ao primitivo, ou seja, a imagem sem grandes manipulações aparentes, e o discurso do confessionário das pessoas estão relacionados ao imaginário coletivo vigente, do primitivo e das emoções. Os espectadores que compreendem o público-alvo, tanto na televisão como na web, compartilham do mesmo imaginário coletivo que as pessoas em frente às câmeras, o que gera grande potencial de identificação:

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Pode-se falar em “meu” ou “teu” imaginário, mas, quando se examina a situação de quem fala assim, vê-se que o “seu” imaginário corresponde ao imaginário de um grupo no qual se encontra inserido [...]. O imaginário estabelece vínculo. É cimento social. Logo, se o imaginário liga, une numa mesma atmosfera, não pode ser individual. (MAFFESOLI, 2001)

Expor ideias, tanto como um participante em redes sociais quanto em reality shows, pode estar ligado à vaidade, portanto uma motivação pessoal. Mas vários fatores apontam para a partilha mencionada por Maffesoli. Nossos comportamentos estão inseridos em grupos e nossas atitudes buscam a aprovação deles. Talvez por isso em reality shows e na internet as pessoas sejam frequentemente acusadas de assumir diferentes personae. Buscamos a adaptação para fazer parte. O próprio ato de se “confessar” é uma forma de pertencer a um grupo. No Twitter, rede social com postagens limitadas a 140 caracteres, existe uma hashtag chamada #confissoesdamadrugada. Ela conecta vários depoimentos de ordem bastante pessoal que circulam pela rede social depois da meia-noite. Todos os dias, diversos usuários fazem uso dela.

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Figura 29. Postagens no Twitter com a hashtag “confissões da madrugada”. O discurso dos confessionários, portanto, pode ser visto também como uma forma de buscar a inserção em um grupo, guiado pelo imaginário coletivo. Mais do que a vontade de nos destacarmos enquanto indivíduos, queremos ser adequados para um grupo ou tribo, e o medo da rejeição pode ser um dos principais guias desses discursos.

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Greg Daniels, criador de The Office, chama Jim em uma entrevista de “a janela do espectador” 65 . Jim dialoga frequentemente com a câmera, muitas vezes para confessar. O fato de as personagens endereçarem à câmera tem o efeito de fazer o espectador sentir-se tanto parte da família quanto um observador, segundo Bruce Feiler do The New York Times: “O resultado é um sentimento de ‘quem está rindo de quem aqui?’ que ecoa o maior surrealismo de reality shows como The Kardashians, The Housewives [...]” (tradução nossa)66. Essa família, no caso, poderia ser apenas outra denominação para o conceito de tribo de Michel Maffesoli. Vivemos uma geração de produção de conteúdo audiovisual em que a quebra da quarta parede pode ser considerada uma forte arma para a identificação conteúdo/personagens-espectador.

                                                                                                                          65

JACOBS, Jay S. John Krasinski e Greg Daniels – Shutting Down The Office. Pop

Entertainment.com,

9

maio

2013.

Disponível

em:

. Acesso em: 23 maio 2013. 66

FEILER, Bruce. What “Modern Family” Says About Modern Families. The New York Times, 21

jan.

2011.

Disponível

em:

. Acesso em: 5 abr. 2013. “A result is a feeling of ‘Who’s laughing at whom here?’ that echoes the larger reality-show surrealism that surrounds the Kardashians, ‘The Housewives’.”

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O sitcom tradicional foi criado para ser um entretenimento familiar. O posicionamento das câmeras, simulando uma audiência, estava ligado ao fato de que, nas casas, famílias estariam reunidas diante da TV. A claque seria a reverberação da risada de uma audiência no mesmo lugar dessas pessoas, rindo com elas ou por elas, dando a sensação de uma experiência coletiva dentro dos lares. Já sitcoms como The Office, Parks and Recreation e Modern Family são de um humor voyeur. Adotar características tradicionais do sitcom, como a claque, não faria sentido, pois o ato de espionar algo ou alguém é uma experiência geralmente solitária ou bastante exclusiva. Muito do que fazemos na internet, principalmente nas redes sociais, está ligado a uma forma de espionagem, a um desejo voyeur. Através de um dispositivo, vemos fotos, vídeos e textos a uma distância segura, geralmente em anonimato, o que nos deixa confortáveis para espionar ainda mais. Tanto nos reality shows quanto nos sitcoms mencionados, o anonimato da equipe de filmagem se confunde com o nosso próprio anonimato. E uma dúvida permanece constante: não podemos mensurar quão precisas são as informações que o dispositivo nos entrega ou o quanto sabemos, exatamente porque os espionados, alvos do desejo voyeur, também estão cientes do dispositivo. A consciência de que o realizado será mostrado a terceiros, através da televisão ou de plataformas como Facebook e Youtube, muda em diferentes níveis as atitudes daqueles que pretendem projetar uma imagem própria. Sendo assim, ficamos instigados com a possibilidade permanente de nos surpreendermos. Os sitcoms estudados, produzidos nessa conjuntura, são resultado de uma perspicácia de produtores que vai além da percepção de que o público consome em massa os reality shows e os vídeos pessoais publicados na internet. Títulos como The Office, Parks and Recreation e Modern Family funcionam como uma metáfora do que vivemos em épocas de relacionamentos

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virtuais: sabemos até onde o dispositivo nos permite, percebemos diversas contradições e somos endereçados sem que precisemos dar respostas. A ideia de um monólogo interno não é nova – pense em qualquer musical da Broadway. O que é novo é que estamos todos engajados em expor narrativas de nossa vida, correndo depois do jantar (ou do coito) para compartilhar nossas confissões no Twitter ou no Facebook. (FEILER, 2011, tradução nossa)67

Atualmente a comédia não é, como mencionou Propp em relação aos anos do romantismo, considerada algo baixo. Ainda assim, apesar das grandes audiências no cinema e na televisão, existe uma aversão dos espectadores mais intelectualizados à comédia que se apropria de apelações e exageros de toda espécie. De fato, há filmes e programas de TV que, lotados de repetições, bordões e de nudez sem propósito, estão mais relacionados a consolidar tendências de consumo do que a fazer rir. Outros filmes e programas, com excelentes piadas, muitas vezes são associados a essas comédias apelativas e, mesmo repletas de excelentes ideias, não recebem o prestígio que merecem. O prestígio dos intelectuais muitas vezes se resume às comédias que possuem grandes nomes por trás do roteiro ou da direção. Woody Allen é um bom exemplo. Trata-se de um cineasta que, ao trabalhar com comédia, produz obras incríveis. Mas a dita comédia inteligente também está em outras obras. Uma prova disso é a genialidade de Some Like it Hot (“Quanto mais quente melhor”, 1959) de Billy Wilder, uma comédia simples e cheia de clichês: a loira sexy e ingênua, homens travestidos, velhos tarados. Trata-se de um filme mencionado em incontáveis listas de melhores comédias de todos os tempos,                                                                                                                           67

FEILER, Bruce. What “Modern Family” Says About Modern Families. The New York Times, 21

jan. 2011. Disponível em: . Acesso em: 5 abr. 2013. “The idea of internal monologue is hardly new — think of any ballad in a Broadway musical. What’s new is that we all engage in this sort of running narrative of our lives, rushing off after dinner (or coitus) to share our confessions on Twitter or Facebook.”

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como, por exemplo, a do American Film Institute, na qual consta em primeiro lugar68. O que seria, portanto, uma comédia inteligente? Particularmente, penso que uma comédia inteligente é aquela que surpreende através de analogias e metáforas interessantes a partir de detalhes do cotidiano. Uma comédia que permite ao espectador construir relações novas entre objetos, sejam eles o comportamento de um casal ou um macaco. A complexidade do objeto não determina quão rica é a comédia, mas sim as diferentes visões e conexões que ela traz. São décadas de um gênero muito versátil que já se apresentou de diversas formas e fez inúmeras conexões, ainda mais se levarmos em conta as décadas e o número de produções de sitcoms. Como vimos anteriormente, a mesma piada não funciona duas vezes da mesma forma. Essa renovação do cômico é um exemplo de criatividade e inteligência por parte de roteiristas, produtores, diretores, atores etc. Mesmo que por vezes as novidades não sejam revolucionárias e, no fundo, estejam calcadas nos mesmos princípios, existe algo de novo, pois continuamos rindo. Os estereótipos, a estrutura de roteiro e os ambientes explorados em The Office, Parks and Recreation e Modern Family já fizeram parte, e ainda fazem, de sitcoms tradicionais. No entanto, a forma hibridizada e diferenciada pela qual esses programas mostram as situações cômicas tem muito a dizer sobre novas frentes de consumo e anseios de espectadores. A análise apresentada nesta dissertação, em cada detalhe, utilizou as séries acima mencionadas como um meio para um fim: trazer o debate sobre o que significa, para a comédia e o audiovisual como um todo, a utilização de elementos como a captação sugerindo espontaneidade e o rompimento da quarta parede, em relação ao que é vivido no início do século XXI em outras programações e outros meios, como a internet.

                                                                                                                          68

Disponível em: . Acesso em: 22 ago. 2013.

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Interessante foi perceber a riqueza de cada uma dessas ferramentas, pois a sensação é a de que cada uma delas merecia uma dissertação que colocasse em debate suas características.

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