O Álbum de Desenhos de Villard de Honnecourt: uma articulação entre o Desenho de Observação e o Desenho Arquitectónico
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O Álbum de Desenhos de Villard de Honnecourt: uma articulação entre o Desenho de Observação e o Desenho Arquitectónico Villard de Honnecourt’s Sketchbook: a link between the Observational Drawing and the Architectural Drawing Shakil Yussuf Rahim1 e Ana Leonor Madeira Rodrigues2 3
CIAUD , Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa Rua Sá Nogueira, Pólo Universitário, Alto da Ajuda, 1349-055 Lisboa, Portugal
Resumo: O objecto de estudo do presente artigo é o Álbum de Desenhos de Villard de Honnecourt (século XIII). O estudo procura entender a articulação simultânea e sobreposta, que o desenhador realiza, num mesmo caderno, entre dois tipos de desenho: desenho de observação e o desenho arquitectónico. Os desenhos apontam para uma análise visual entre a observação natural e a geometria prática, como recursos para a produção da arquitectura. As inflexões entre desenho de observação e desenho arquitectónico envolvem uma nova capacidade de domínio criativo, com parâmetros visuais partilhados que ultrapassam os diferentes temas (figura humana, animais, arquitectura, construção, mnemónicas, engenhos). Villard alarga-se da sua condição medievalista ao ensaiar o desenho como probabilidade da arquitectura, que o coloca na antecâmara dos desenhadores Renascentistas. Palavras-Chave: Desenho de Observação, Desenho Arquitectónico, Geometria Prática, Villard de Honnecourt Abstract: The case-study of this article is Villard de Honnecourt’s Sketchbook (XIII century). The study seeks to understand the simultaneous and overlapping joint that the draughtsperson acomplishes, in one same notebook, between two types of drawing: observational drawing and architectural drawing. The drawings show us a visual analysis 1 Arquitecto pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa (FAUTL). Docente de Desenho na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa (FAUL). 2 Pintora pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa (ESBAL). Coordenadora de Departamento e Professora de Desenho na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa (FAUL). 3 Centro de Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design. Artigo concluído em Janeiro de 2015.
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between natural observation and practical geometry, as resources for the architecture production. The inflections between observation drawing and architectural drawing involving a new capacity of the creative field, with shared visual parameters that exceed the different themes (human figure, animals, architecture, construction, mnemonics, devices). Villard widens its medievalist condition when testing the drawing as probability of architecture, which puts him in the antechamber of the Renaissance draughtspersons. Keywords: Observational Drawing, Architectural Drawing, Practical Geometry, Villard de Honnecourt
1. Introdução Villard nasceu em Honnecourt-sur-Escaut4, uma pequena cidade na Picardia, nas margens do rio Escalda, localizada em torno de uma abadia beneditina5. Pouco se sabe sobre a sua vida, mas parte do mistério da sua identidade pode ser entendido através dos desenhos que nos deixou. O seu pensamento visual continua a fazer eco na história, pelos valores de novidade, disciplina e antecipação dos novos tempos. Para Villard de Honnecourt o desenho é a possibilidade de perceber a organização do que observa. O seu album de desenhos é um companheiro de trabalho e um compêndio pessoal onde se aventura em descobertas e associações visuais. A densidade e variações de tipos de registos, mostram o espírito de um desenhador inquieto e global. A obra de Villard revela o interesse pelo progresso, pela curiosidade intelectual, e o despertar da experiência da natureza 6 . Funde a Observação com a Geometria, não apenas como fim, mas essencialmente como recursos para a produção arquitectónica. O álbum de desenhos é uma exploração activa e criativa dessa informação cruzada e derivada. Neste objecto de estudo, o presente artigo investiga as inflexões e as consequências de cada um desses 4 Próximo a Cambrai, Saint-Quentin e Amiens (Norte de França). 5 BARNES, Carl F Jr. Villard de Honnecourt, The Artist and his Drawings – A Critical Bibliography. Boston: G. K. Hall, 1981. 6 BRANNER, Robert. Villard de Honnecourt, Reims and the origin of gothic architectural drawing. In Gazette des Beaux Arts, 1963, pp. 129-146.
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recursos na justa articulação entre o desenho de observação e o desenho arquitectónico. 2. Villard de Honnecourt: O Desenhador No século XIII, Picardia tinha uma localização privilegiada como centro intelectual da Europa, e como importante rota comercial7. Nesta altura, a sociedade europeia ocidental está em forte mudança, com forte crescimento populacional, desenvolvimento das cidades, crescimento de áreas agrícolas 8 e expansão das ordens monásticas9. Neste contexto, pensa-se que a fase inicial de aprendizagem de Villard como desenhador tenha sido enquadrada pelo ensino eclesiástico, realizada nos espólios das bibliotecas das abadias, e direccionado para a Geometria. Villard demonstra um forte conhecimento sobre escritos da Antiguidade, que provavelmente adquiriu das fontes consultadas na Abadia de Corbie 10 . Na época, a Geometria Euclidiana era estudada através dos textos de Boécio (c. 480 – 525), ainda que fosse circunscrito a uma pequena parte da população que estudava o Quadrivium. No geral, o século XIII é alimentado pela divulgação de escritos gregos e por um crescente interesse no conhecimento, com várias cópias de textos técnicos (diversas áreas) em circulavam11. O aumento do uso das línguas locais na escrita, permitiu ampliar a divulgação, e com isso assiste-se a várias traduções de Elementos de Euclides e de outros tratados de geometria aplicada, como a Practica Geometriae ou a Geometria de Leonardo Pisano. A formação geométrica de base, foi fundamental para o que Villard viria a produzir na sua actividade como mestre-de-obras (magister latomus). Este era o nome utilizado, para aquilo que hoje chamamos arquitecto, no sentido de 7 BECHMANN, Roland. Villard de Honnecourt, architecte et ingénieur medieval. In Pour la science, nº 94, 1985, pp. 69-75. 8 Com o desenvolvimento comercial e redução da escassez, o progresso técnico e artístico começa a florescer, num motivante contexto intelectual. A época é marcada, ainda, pelo fortalecimento do poder real e da centralização das instituições sob a autoridade do rei. Philip II (1180-1223) e Louis VIII (1223-1226) tornam Paris a capital do reino, quadruplicando o seu tamanho. Ainda que se verifiquem melhorias, as tensões sociais entre as classes permanecem, assim como a insegurança e várias dificuldades e desigualdades. 9 A expansão das ordens monásticas dá-se por contestação à ordem beneditina, que leva à fundação de Ordem de Cluny e à reforma gregoriana (Papa Gregório VII). Mais tarde e em confronto com a Ordem de Cluny, é fundada a Ordem de Cister (1098), em defesa da austeridade material e espiritual. Villard atravessa estas alterações monásticas, que estavam a ocorrer com forte impacto na região onde vivia. 10 BARNES, Carl F Jr. The Artist and his Drawings – A Critical Bibliography. Op. cit. 11 Idem.
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coordenação integral da obra. O termo arquitecto aparece raramente nos textos da idade media, no entanto a função existia e a sua prática era enquadrada no contexto da construção civil. Durante a Idade Média, o papel do arquiteto ainda não era claramente definido e separado de outras tarefas (projectista, empreiteiro, supervisor , consultor, gestor financeiro) necessárias para a adequada conclusão um programa arquitectónico. Na verdade, o termo "arquitecto" foi várias vezes ignorado e raramente aplicado no período medieval ( ... )12 Como era típico na altura, a aprendizagem prática era realizada directamente no estaleiro de obra, com contacto sobre os sistemas de construção13. Este oficio, para além de outras responsabilidades, incluía também as tarefas típicas do arquitecto. Porém, a sua formação não se esgota entre os dois polos (geometria e construção) que vimos nos capítulos anteriores. Eles são mediados pelas soluções gráficas que relacionam a abstracção da geometria e a objectividade da construção. Os desenhos que produz enquadram-se nesta metodologia. Ainda que não seja possível estabelecer uma cronologia clara, sabe-se que Villard terá viajado motivado pela profissão que escolheu14. Não é contudo claro, se essas viagens seriam para conhecer sítios de futuras construções, ou eram também visitas para conhecer obras de outros autores com objectivos do seu alargamento cultural, per si: A questão central em torno do qual pode ser articulada toda a questão do livro Villard é a seguinte: onde escolheu ele os seus modelos e qual a função que eles desempenham? Em outras palavras, os seus desenhos simplesmente reproduzem outros desenhos, ou são o produto de 12 ROSS, Leslie. Artists of the Middle Ages. USA: Greenwood Press, 2003, p. 66. Tradução livre: During the Middle Ages, it appears that the role of architect was not yet so clearly defined and separated from many pf other roles (designer, contactor, supervisior, consultant, financial negotiator) required for the successful completion of an architectural program. In fact, the term “architect” was rather hazily and rarely applied during medieval period (…) 13 BRANNER, Robert. Op. cit. 14 ERLANDE-BRANDERBURG, Alain. Villard de Honnecourt, la arquitectura y la escultura. In QUIROGA, Yago Barja de (dir). Villard de Honnecourt Cuaderno Siglo XIII. Madrid: Ediciones Akal, 2001, pp. 21-30.
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observação pessoal de Villard? Qual era, na verdade, a função deste diário? É uma colecção que reune diante dos nosso olhos um catálogo um livro de modelos - ou é um espirito original acumulando experiências pessoais que não gostaria de compartilhar? A heterogeneidade do livro adequa-se, quer a uma como a outra situação.15 Qualquer que seja a razão, a viagem foi um motor de conhecimento visual. As suas viagens pela Europa mostraram-se produtivas e em muitos casos foram tema para os desenhos que realizou. Sabe-se que visitou e trabalhou em vários sítios16: Laon, Chartres, Hungria e Lausanne17. Desenhou o que viu e o que o interessou, despertando-o para outras investigações imaginativas e inventivas. Deste forma, a formação técnica, artística e criativa de Villard foi realizada em três sentidos: i) pensamento geométrico puro fundado nos textos clássicos, ii) pensamento operativo por contacto directo com a obra em construção e iii) pensamento critico através do desenho. Esta tríade chega até nós formalizado num álbum de desenhos, que testemunha o seu percurso. Villard articula assim pelo desenho, a erudição e a prática num mesmo objectivo: pensar a arquitectura. 3. O Álbum de Desenhos 3.1. Estrutura, Formato e Organização O álbum de desenhos de Villard de Honnecourt, datado do século XIII, está incompleto, e faz actualmente parte do depósito da Biblioteca Nacional de Paris (tombo Ms Fr 19093). Tem um formato de 14 cm x 22 cm, e configure-se como um bloco de anotações gráficas em sequência e com interrupções temporais18, que pela 15 RECHT, Roland. Le Dessin d’architecture, Origine et fonctions. Paris: Adam Biro, 1995, p. 24. Tradução livre: La question centrale autour de laquelle peut être articulée toute la problématique du carnet de Villard de Honnecourt est la suivante: où choisit-il ses modèles et quelle fonction remplissent-ils? Autrement dit: la plurart de ses dessins reproduisent-ils simplement d’autres dessins, ou sont-ils le produit de l’observation personnelle de Villard? Quelle était, en vérité, la fonction de ce carnet? Est-il un compilateur réunissant sous nos yeux la matière d’un Musterbuch – un livre de modèles -, ou est-il plutôt un esprit original accumulant des expériences personnelles don’t il voudrait nous faire part? Le caractère disparate du carnet conviendrait, il est vrai, à l’un comme à l’autre projet. 16 ERLANDE-BRANDERBURG, Alain. Op. cit. 17 A caminho da Hungria terá passado por Reims e visitado igrejas e mosteiros cistercienses, como Claraval, Cister ou Morimond. O interesse pela arquitectura religiosa é óbvio, por ser o seu mercado de trabalho. 18 BUCHER, François. A rediscovered tracing by Villard de Honnecourt. In Art Bulletin, 59, 1977, pp.
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sua qualidade técnica e pioneira, tem adquirido um tratamento como unidade de informação, próxima à ideia de um tratado desenhado. Possui, ainda anotações em texto e os diferentes projectos são acompanhados com pequenas legendas19 (figura 1).
Figura 1 – Álbum de Desenhos de Villard de Honnecourt. Pertence ao espólio da Biblioteca Nacional de França (tombo Ms Fr 19093). Fonte: Recht, 1995.
As folhas foram encadernadas e costuradas, num único volume de fácil transporte e usabilidade, o que mostra o seu carácter de caderno de consulta20. Actualmente, o caderno tem capa castanha em couro, com folhas de pergaminho, de várias espessuras, com desenhos nas duas páginas da folha e que devido à transparência da folha, são visíveis as marcas de tinta21 entre páginas: No século XIII, o arquitecto trabalhava em pergaminho, um material caro, com tamanho limitado e com planimetria condicionada. Não era possível ter grandes superfícies planas, como os fornecidos pelo papel. Para os desenhos finais podiam ser montados em esquadrias de madeira, mas era um processo desconfortável e pesado, principalmete quando se tratava de grandes dimensões. 315-319. 19 Era comum, nesta época, a maioria dos documentos oficiais, escritos técnicos ou obras literárias, fossem escritas em latim. Villard substituiu o latim pela sua língua nacional. Este novo procedimento começava a ser comum nesta altura, e foi desencadeado nesta zona do globo (região de Champagne e Picardia). 20 BECHMANN, Roland. Villard de Honnecourt, architecte et ingénieur medieval. Op. cit. 21 Villard utilizava a grafite para registar o esquiço preliminar, e de seguida desenhava com tinta de cor sépia para delinear o contorno.
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Os arquitetos da Idade Média procuravam, pois economizar o suporte; mas também queriam ganhar tempo ( ... )22 Supõe-se que 8 folhas foram perdidas, porque uma anotação do século XV presente na última folha indica que tinha quarenta e uma folhas (frente e verso)23. Subsistem pouco mais de 60 páginas, numeradas de 1 a 33. A denominação dessas trinta e três folhas de pergaminho de pele do porco aparece com um numeral seguido das letras r ou v. A letra r indica a página da direita do livro aberto (recto folio) e a letra v indica a página da esquerda do livro (verso folio). A ordem com que as páginas estão actualmente pode não ser a original. Os seus diferentes proprietários, ao longo do tempo, poderão ter alterada a organização inicial dada pelo autor24. O facto de folhas terem desaparecido pode reforçar esta ideia. De notar ainda, que as páginas do caderno têm certos desenhos e textos tardios, nomeadamente do século XV, que pertencem a outros autores25. 3.2. Natureza, Tema e Análise Gráfica A natureza dos desenhos é diversa e abrange desde desenhos de detalhe analítico a esquemas gerais e diagramáticos. Quanto à classificação pelo tipo de projecção é utilizada a ichnographia (planta), a ortographia (alçado), e de forma empírica a scenographia (perspectiva). Quanto à velocidade do traço, a produção engloba desde esquiços rápidos a desenhos tendencialmente demorados 26 . A gramática utilizada é, fundamentalmente, a linha de contorno, sendo a mancha continua muito pouco utilizada. A precisão gráfica e a qualidade dos desenhos são notáveis. A geometria da linha alterna entre a vibração orgânica da curva livre no 22 BECHMANN, Roland. Los dibujos técnicos del Cuaderno de Villard de Honnecourt. In QUIROGA, Yago Barja de (dir). Villard de Honnecourt Cuaderno Siglo XIII. Madrid: Ediciones Akal, 2001, p. 53. Tradução livre: En el siglo XIII el arquitecto trabajaba sobre pergamino, material costoso, de dimensiones limitadas y planimetría relativa. No era posible disponer de grandes superficies planas como las que proporciona el papel. Para los dibujos definitivos se podían emplear plaquetas de madera ensambladas, pero resultaba incómodo y pesado cuando se superaban ciertas dimensiones. Los arquitectos de la Edad Média procuraban, pues, economizar el soporte; pero tambíen querían ganar tiempo (…) 23 BARNES, Carl F Jr. Villard de Honnecourt, The Artist and his Drawings – A Critical Bibliography. Op. cit. 24 Idem. 25 CAGNE, Claude. L’album de Villard de Honnecourt. Disponível em: http://www.lesconfins.com/album_villard_de_honnecourt.pdf. Acedido em 3 de Dezembro de 2014. 26 BUCHER, François. Op. cit.
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desenho de observação e o rigor do traçado da linha no desenho de construção civil. Os temas tratados por Villard são diversos e situam-se entre estudos de observação e aplicações criativas no âmbito da produção de artefactos e edifícios27. Baseado na análise de Roland Bechmann 28 , a diversidade temática pode ser dividida nas seguintes categorias: 1. Figura Humana; 2. Animais; 3. Arquitectura; 4. Construção Civil; 5. Mnemónica; 6. Máquinas e Engenhos; 7. Outros. A figura humana apresenta um correcto conhecimento de anatomia e proporção (figura 2). O desenho de figura centra-se no detalhe do rosto e na construção da figura inteira. Pode-se dividir em 4 categorias gerais: figura religiosa (Cristo, Virgem, apóstolos, clérigos), figura civil (rei, cidadão), figura militar (guerreiro, cavaleiro) e figura alegórica (orgulho, humildade). A figura religiosa tem um grande predomínio29, quer isolada, quer na riqueza visual das composições e episódios narrativos em que aparece representada. A relação entre as figuras demonstra o entendimento sobre a sobreposição como recurso de profundidade, e a sugestão de movimento como expressão do gesto. De notar, o dinamismo das poses e a correcta marcação das diferenças volumétricas na rotação da figura. A articulação entre corpo vestido e corpo despido, seja na representação do corpo vivo 27 O projectista no século XIII era muito versátil. Organizava a construção desde os aspectos tecnológicos da execução até à gestão financeira. A necessidade de montar o estaleiro de obra permitiu desenvolver interesse pelos assuntos de física mecânica, padronização de componentes, segurança no trabalho, metodologias de gestão de tempo, economia de horas de trabalho, planeamento das fases de execução. 28 A análise de Roland Bechmann incide os diferentes temas tratados por Villard de Honnecourt. Durante vários anos, Roland Bechmann, historiador e arquitecto, estudou o álbum de desenhos de Villard. O seu trabalho como arquitecto, com vários projectos na Europa e em África, permitiu ter uma visão prática sobre os problemas de construção. Esse conhecimento ajudou a interpretar os desenhos de Villard, e entender a evolução tecnológica da construção durante a Idade Média. Bechmann realizou viagens ao sítios onde Villard desenhou, com o objectivo de melhor perceber os desenhos, e assim conseguir desencriptar o álbum nos seus objectivos. 29 BARNES, Carl F Jr. The drapery-rendering technique of Villard of Honnecourt. In Gesta, 20, nº 1, 1980, pp. 199-206.
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ou da estatuária, apresenta uma competência técnica no desenho do nu e das vestes. Os panejamentos mostram um cuidado expressivo acentuado, devido ao tratamento meticuloso a que foram sujeitos 30 (figura 3). Assim como, o trabalho gráfico do cabelo e da barba no desenho do rosto. Para além da ampliada representação do corpo orgânico, surgem desenhos de corpo geometrizado, reduzido à sua expressão estrutural e decomposto por polígonos.
Figura 2 – Representação da figura humana. a. Os doze apóstolos (folio 1v, à esquerda). b. O triunfo da igreja (folio 4v, ao centro). c. Flagelação de Cristo e a sua condução perante Pilatos (folio 28v, à direita). Fonte: Biblioteca Nacional de França.
Figura 3 – Detalhe na representação de panejamentos. O rei justiceiro (folio 13r). Fonte: Biblioteca Nacional de França.
30 Idem.
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Os animais representados são de vários tipos (figura 4), por vezes sozinhos outras vezes relacionados com a figura humana. A sua representação segue com fidelidade as relações de proporção, diversidade morfológica, e captação do instante e do movimento. Tal como na figura humana, para além do modelo vivo também surgem representados animais de pormenores construtivos e decorativos31. De entre os muitos animais, encontramos: cavalo, urso, leão, touro, falcão, cão, ovelha, caracol, porco espinho.
Figura 4 – Desenho de animais. a. Diversos animais e planta de labirinto (folio 7v, à esquerda). b. O leão e o porco espinho (folio 24v, à direita). Fonte: Biblioteca Nacional de França.
O desenho de Arquitectura centra-se no edificado e nos detalhes decorativos, principalmente do edificado religioso. Villard faz uso de projecções ortogonais32 para realizar estudos e levantamentos em plantas, cortes, alçados e pormenorização. Está presente com nitidez, o pensamento abstracto ligado à transformação codificada entre a observação e a projecção linear. Os exemplos são variados. Como a planta da igreja de St. Stephan de Meaux, o alçado da rosácea da igreja de Lousanne, a planta do presbitério da igreja de Vaucelles, os alçados interiores da capelas da abside da Catedral de Reims, os arcobotantes da catedral de Chartres, os desenhos de pavimento de igreja na Hungria, entre outros33 (figuras 5 e 6). De 31 BARNES, Carl F Jr. Villard de Honnecourt, The Artist and his Drawings – A Critical Bibliography. Op. cit. 32 RECHT, Roland. Op. cit. 33 ERLANDE-BRANDERBURG, Alain. Op. cit.
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notar o carácter pioneiro de, pelo menos um dos desenhos, que cria uma simulação tridimensional do alçado da torre da catedral de Laon, que em muito se assemelha à ideia de perspectiva34: (...) uma torre de relógio desenhada em uma perspectiva ingênua, que pode ser o resultado de um desenho de cópia do natural. Nela se estabelece um jogo geométrico na vertical a partir de um quadrado, passando depois por dois octógnos, até chegar a outro quadrado e rematar finalmente num pináculo. As hipotéticas perspectivas dos planos horizontais – com todas as reservas que se deve ter nas interpretações gráficas – parecem ter uma certa homogeneidade vertical. Algo semelhante ocorre no alçado da torre da catedral de Laon [folio 10r] (…), onde o plano mais baixo aparece como uma linha horizontal, enquanto que os restantes já têm profundidade. Trata-se, pois, de um primeiro método de perspectiva; uma semelhança com a perspectiva, mas que não chegou a passar de uma intenção de copiar o mais fielmente possivel a realidade visual.35 Para além de preocupações estruturais e de organização espacial, vários detalhes decorativos são desenhados. A maioria deles apresentam uma morfologia orgânica, com um rendilhado de folhagens, que se aproxima dos aspectos decorativos dos capiteis coríntios36 (figura 7).
34 A invenção da perspectiva artificialis só acontece dois séculos depois, na renascença italiana, com os contributos de Brunelleschi e Alberti. 35 SAINZ, Jorge. El Dibujo de Arquitectura. Barcelona: Editorial Reverté, 2005, pp.127-128. Tradução livre: (…) una torre de reloj dibujada en una perspectiva ingenua que puede ser fruto de haberse copiado del natural. En ella se estabelece un juego geométrico en vertical a partir de un cuadrado, pasando después por dos octógonos, hasta llegar a otro cuadrado y rematar finalmente com una aguja. Las hipotéticas perspectivas de los planos horizontales – con todas las reservas que han de tenerse en las interpretaciones gráficas – parecen tener cierta homogeneidad vertical. Algo semejante ocurre en el alzado de la torre de la catedral de Laon [folio 10r] (…), en la que el plano más bajo aparece como uma línea horizontal mientras que los demás ya tienen escorzos. Se trata, pues, de um primer acercamiento a la perspectiva; una perspectiva que se veía pero que no llegó a pasar de un mero intento de copiar lo más fielmente posible la realidad visual. 36 Num dos desenhos, Villard chega a transformar o cabelo e a barba do rosto em folhas, criando uma composição alusiva ao detalhes decorativos.
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Figura 5 – Desenhos de arquitectura. a. Alçado “perspectivado” de torre de relógio (folio 6v, à esquerda). b. Duas plantas de igrejas (folio 15r, ao centro). c. Desenho de pavimento de igreja na Hungria, pilar de catedral de Reims e rosácea de Notre-Dame de Chartres (folio 15v, à direita). Fonte: Biblioteca Nacional de França.
Figura 6 – Desenho de alçados. a. Alçado interior das capelas absidiais da catedral de Reims (folio 30v, à esquerda). b. Vista de arcobotantes da catedral de Reims (folio 32v, à direita). Fonte: Biblioteca Nacional de França.
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Figura 7 – Detalhes decorativos. a. Rostos com folhas e ornamentos (folio 5v, à esquerda). b. Ornamento para cadeira de coro de igreja (folio 29r, à direita). Fonte: Biblioteca Nacional de França.
Os desenhos de construção civil estudam técnicas através da Geometria Prática e Aplicada. Com o objectivo de antecipar a precisão dos trabalhos, existia uma preocupação técnica no estudo do traçado e corte das pedras, como uma ciência aplicada à construção – a Estereotomia. Parte dos segredos e sucesso da profissão, passava por dominar esta tecnologia. Os desenhos de Villard mostram esse conhecimento. São conhecimentos práticos de cantaria e carpintaria decorrentes do trabalho e acompanhamento de obra (figura 8). Permitiam optimizar os tamanhos e as junções, facilitar o corte e calcular as inclinações37. A informação desenhada não era descritiva de todos os pormenores, funcionava como um esquema ou sumário, por vezes graficamente primitivo, mas formalmente completava o pensamento do construtor38. Era o arquitecto que tornava operacional o desenho. Muitos dos desenhos eram realizados apenas com simples esquemas e notas, para relembrar o sistema39, sem divulgar todos os métodos pessoais. Há, por isso, uma ciência criativa ligada à construção que Villard ensaia nos seus desenhos: 37 SHELBY, Lon. The geometrical knowledge of medieval master masons. In Speculum 47, 1972, pp. 395-421. 38 Estes esquemas geométricos de corte de pedras, mostram já um nível técnico semelhante ao que se encontrou mais tarde, no século XVI, nos tratados de arquitectura. Pelo que nos leva a dizer que os “arquitectos” góticos já tinham a tecnologia desenvolvida não só em termos práticos, mas também como corpo teórico. 39 Idem.
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(...) Sobre a arquitetura gótica, Otto von Simson defendia que os mestres construtores "foram unânimes na homenagem da geometria como a base da sua arte". Certamente, nos documentos medievais preservados podemos ver como alguém chega a identificar a arte com a construção e a geometria; é o caso do Caderno de Villard de Honnecourt ao anunciar o seu conteúdo “como a arte da geometria comanda e ensina" ou para advertir num dos seus fólios que suas propostas são "como a arte de geometria ensina a trabalhar livremente" (...)40
Figura 8 – Traçado e corte de trabalhos de construção civil. a. Modelos de estruturas de madeira para igreja e lanterna monástica (folio 17v, à esquerda). b. Detalhes de construção de pilares e de corte de pedras para a catedral de Reims (folio 32r, à direita). Fonte: Biblioteca Nacional de França.
As figuras mnemónicas são uns dos aspectos metodológicos de maior interesse do álbum de desenhos de Villard. São representações onde se sobrepõe a 40 CABEZAS, Lino. El Dibujo como Invencion. Idear, Construir, Dibujar. Madrid: Ediciones Cátedra, 2008, pp. 75-76. Tradução livre: (…) a propósito de la arquitectura gótica, Otto von Simson opinaba que los maestros constructores “fueron unánimes en rendir tributo a la geometria com base de su arte”. Ciertamente, en los documentos medievales conservados podemos comprobar como se llega a identificar el arte com la construcción e la geometría; es el caso del Cuaderno de Villard de Honnecourt al anunciar su contenido “tal como el arte de la geometria lo manda y enseña” o al advertir en uno de sus folios que sus propuestas son “tal y como el arte de la geometría lo enseña para trabajar con soltura” (…)
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construção matemática à morfologia da natureza41 (figura 9). Villard cria relações gráficas entre elementos do quotidiano, como o corpo humano (rosto, mão) ou o corpo dos animais (flamingos, ovelhas), e figuras geométricas simples e complexas (ângulo recto, o rectângulo de ouro, pentagrama, etc.)42. Este sistema de memória visual servia para recordar a construção geométrica num método de aprendizagem por associação. São “desenhos para trabalho” e não só “desenhos do trabalho”.
Figura 9 – Figuras mnemónicas. a. Métodos de construção geométrica aplicados ao rosto e a animais (folio 18v, à esquerda). b. Esquemas geométricos na figura humana (folio 19r, à direita). Fonte: Biblioteca Nacional de França.
O álbum apresenta uma vertente exploratória e inventiva na procura de entender e criar máquinas para fins específicos (figura 10). Entre os desenhos de máquinas (existentes e inventadas) há uma clara preocupação a nível da funcionalidade dos mecanismos facilitadores das tarefas da construção, de engenhos de automação e acessórios bélicos 43 . Villard utiliza o desenho para explicar as novas possibilidades que ligam uma dada morfologia a uma tecnologia 41 Idem. 42 BECHMANN, Roland. Los dibujos técnicos del Cuaderno de Villard de Honnecourt. Op. cit., pp. 4558. 43 GIMPEL, Jean. Villard de Honnecourt, arquitecto e ingeniero. In QUIROGA, Yago Barja de (dir). Villard de Honnecourt Cuaderno Siglo XIII. Madrid: Ediciones Akal, 2001, pp. 31-43.
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(lançador de setas, a serra subaquática, aquecedor reversível, etc.). Tal como Vitruvio, Villard descreveu também um engenho militar. Assim define Vitruvio este engenho no capítulo XV, livro X da sua obra: “Explicarei agora as regras e simetrias para construir os escorpiões, catapultas e balistas, máquinas inventadas para a defesa dos perigos, e necessidade de conservar a vida…” Villard desenha no seu Caderno um trabuco, arma ofensiva medieval mais poderosa que a catapulta romana.44
Figura 10 – Desenho de máquinas e engenhos. a. Serra hidráulica, arco automático, elevador giratório, entre outros (folio 22v, à esquerda). b. Máquina de corte por baixo de água, modelo de assemblagem de vigas de madeira cortadas, entre outros (folio 23r, à direita). Fonte: Biblioteca Nacional de França.
Vários outros motivos soltos aparecem representados no álbum de desenhos, 44 Idem, p. 37. Tradução livre: Igual que Vitruvio, Villard describió también un ingenio militar. Así define Vitruvio dicho ingenio en el capítulo XV, libro X de su obra: “Explicaré ahora las regras y simetrías para construir los escorpiones, catapultas y ballestas, máquinas inventadas para la defensa de los peligros, y necessidad de conservar la vida…” Villard dibujará en su Cuaderno un trabuco, arma ofensiva medieval más poderosa que la catapulta romana.
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desde objectos, crucifixos, labirintos, espadas, mobiliário ou mesmo figuras enigmáticas. Muitos deles estão isolados, outros integrados em composições. 4. Conclusão Como se pode classificar o oficio de Villard? Arquitecto, desenhador, construtor, gestor de obra, inventor, intelectual, artista ou cientista? Tudo isto? Não há uma resposta. Mas parece claro que conjuga uma experiencia poliédrica, que se aproxima da ideia que temos daquilo que foi mais tarde a designação de “Homem Renascentista”. Não tendo vivido na Renascença, Villard acusa sintomas de um mundo em mudança. Onde a teoria da técnica e a prática da arte comunicam com urgência, na procura da articulação entre as diversas partes do conhecimento45. Neste contexto, a nomeação de Villard como “Homem Pré-Renascentista” parece adequada, no sentido da organização integrada das ideias de arquitectura, e na utilização do desenho, quer de observação quer de produção, como forma de memória gráfica. Por isso, a nomeação de Villard de Honnecourt como desenhador é justa. A necessidade de transformar o pensamento em linhas e manchas, em formato móvel, coloca Villard na vanguarda do desenho como disciplina de integração artística. Villard foi pioneiro da ideia que temos do desenho arquitectónico como antecipação de soluções de Projecto46. Assim como a sua existência simultânea e extensão contaminada com o desenho de observação. A sua análise visual parece alternar entre o que é o desenho do natural e aquilo que é a leitura geométrica do desenho subjacente (ângulo e recta). As inflexões entre o desenho de observação e o desenho arquitectónico criam um novo campo de integração de variáveis visuais dependentes da criatividade. Há um movimento migratório de parâmetros entre estes dois tipos de desenho. Bifurcações a que Villard não é alheio, ao cruzar a disciplina da geometria do edificado com o contorno da natureza. O justificado uso do desenho como probabilidade da arquitectura. Porque tal, como ainda hoje fazemos, provavelmente Villard terá se interrogado: Se não souber desenhar o que vejo, como vou ser capaz de desenhar o que quero que se veja construído?
45 BECHMANN, Roland. Los dibujos técnicos del Cuaderno de Villard de Honnecourt. Op. cit. 46 RECHT, Roland. Op. cit.
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