O amor em quatorze versos

May 31, 2017 | Autor: Tamy Macedo | Categoria: William Shakespeare, Maneirismo, Poesia, Luis Vaz de Camões, Renascence
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O amor em quatorze versos: uma comparação entre sonetos de Camões e
Shakespeare
Tamy de Macedo Pimenta (UFF/FAPERJ)

Camões e Shakespeare são escritores consagrados mundialmente e são
símbolos de suas terras natais ao se falar de literatura. A figura do poeta
cego e do dramaturgo ao lado do crânio de Hamlet são espectros inevitáveis
ao imaginário dos nativos portugueses e ingleses, respectivamente.
Isso pode ser observado claramente quando percebemos que o dia de
Portugal coincide com a data em que se assinala a morte de Luís Vaz de
Camões, 10 de junho, enquanto o dia nacional da Inglaterra, 23 de abril,
além de ser o dia de São Jorge, é a data de morte e provavelmente também de
nascimento de William Shakespeare[1]. É importante ressaltar, se tratando
de datas, que os dois poetas foram contemporâneos por dezesseis anos, uma
vez que Camões viveu de 1524 a 1580 e Shakespeare de 1564 ao ano de 1616.
Portanto, dez anos após a morte do escritor português e dezoito após a
publicação de Os Lusíadas (em 1572), Shakespeare começaria sua carreira
como dramaturgo em Londres (em 1590) [2].
O bardo inglês é majoritariamente conhecido por suas peças e Camões
por sua obra épica, apesar de ambos nos terem deixado também sonetos, cada
um encontrando uma maneira de organizar seus quatorze versos. Como um poema
fixo criado no começo do século XIII na Sicília, o soneto (do italiano
sonetto, pequena canção) constitui-se em uma forma famosa e respeitada de
expressão poética. Estruturalmente, esse pequeno poema apresenta uma
dialética por meio de uma argumentação ordenada e progressiva. Além disso,
geralmente contém uma ou mais proposições e uma conclusão.
Há, porém, diferentes modos de organizar os quatorze versos. A mais
conhecida delas, utilizada por Camões, é pela divisão do soneto em dois
quartetos e dois tercetos – o chamado soneto italiano ou petrarquiano.
Shakespeare, por sua vez, escreveu mediante o soneto inglês ou
shakespeariano, estruturado em três quartetos e um dístico.
Os cento e cinquenta e quatro sonetos de Shakespeare foram publicados
em um volume chamado SHAKE-SPEARES SONNETS em 1609, quando o dramaturgo
tinha então quarenta e cinco anos. É didaticamente dividido por críticos em
duas partes: a primeira até o soneto de número 126, na qual predominam
menções a um interlocutor representado por pronomes e até mesmo nomes
masculinos – "he", "him" e "boy" -, e a segunda do 127 ao 152, onde se
encontram menções a uma misteriosa dark lady. Entretanto, nenhuma das duas
partes está relacionada aos últimos dois sonetos, devotados ao Cupido.
Junto a eles, segue-se um longo poema intitulado "A Lover's Complaint" ("A
queixa de um Amante"). Pode nos parecer, hoje, um volume bastante
heterogêneo, mas era um padrão familiar aos leitores ingleses desde a
publicação de Delia por Samuel Daniel em 1592, com cinquenta sonetos, uma
ode e um longo poema ao final chamado "A queixa de Rosamond".
Camões, ao contrário de Shakespeare, não chegou a ver seus sonetos
serem publicados, já que sua primeira edição data de 1595, quinze anos após
sua morte. Não se pode afirmar com segurança quantos sonetos foram escritos
pelo poeta português, visto que a quantidade deles nas edições já variaram
de 380, na edição de Teófilo Braga ao número 119 fixado por Jorge de Sena.
Ao longo de seus versos, o poeta inglês discorre sobre o tempo e a
morte; o português, sobre a mulher e o desconcerto do mundo. Entretanto, a
temática mais recorrente nos sonetos de ambos é, indubitavelmente, o
sentimento amoroso. Conturbados por amores que não lhes devolvem o olhar,
os eu – líricos dos dois poetas encontram na escrita um abrigo onde seus
sentimentos e objetos de amor serão eternizados, já que "Enquanto existir
mundo ou o olhar puder ver,/Meus versos viverão e hás de neles viver."
(SHAKESPEARE, soneto 18).
A descrição da pessoa amada, o conflito entre Amor[3] e desejo carnal
e as angústias sofridas pelo desprezo são algumas das questões abordadas em
ambas as obras. Porém, é sobretudo a própria natureza desse "não sei quê,
que nasce não sei onde,/vem não sei como, e dói não sei por quê" (CAMÕES,
soneto 3) que os versos tentam definir. Dentro dessa perspectiva, há um
soneto de cada poeta que demonstra de maneira exemplar essa busca pela
caracterização do sentir. Comecemos, então, pelo do bardo inglês, no
original e seguido pela tradução em português por Geraldo Carneiro:
SONNET 116
Let me not to the marriage of true minds
Admit impediments. Love is not love
Which alters when it alteration finds,
Or bends with the remover to remove:
O no! it is an ever-fixed mark
That looks on tempests and is never shaken;
It is the star to every wandering bark,
Whose worth's unknown, although his height be taken.
Love's not Time's fool, though rosy lips and cheeks
Within his bending sickle's compass come:
Love alters not with his brief hours and weeks,
But bears it out even to the edge of doom.
If this be error and upon me proved,
I never writ, nor no man ever loved.




SONETO 116
Não tenha eu restrições ao casamento
De almas sinceras, pois não é amor
O amor que muda ao sabor do momento,
Ou se move e remove em desamor.
Oh, não, o amor é marca mais constante
Que enfrenta a tempestade e não balança,
É a estrela-guia dos barcos errantes,
Cujo valor lá no alto não se alcança.
O amor não é o bufão do Tempo, embora
Sua foice vá ceifando a face a fundo.
O amor não muda com o passar das horas,
Mas se sustenta até o final do mundo.
Se é engano meu, e assim provado for,
Nunca escrevi, ninguém jamais amou.


O poema abre com uma declaração que, no original, fala da não admissão
de impedimentos ao casamento de mentes sinceras, traduzidas como "almas".
Há, portanto, a consciência de que o Amor encontra-se na mente e que se ele
é verdadeiro, não deveria se impedir por motivo algum que o casamento entre
os amados se realizasse. É inevitável aos leitores das peças de Shakespeare
se lembrar de Romeu e Julieta, que, embora mortos pouco tempo depois,
conseguiram se casar. Também logo ao começo do poema aparece o que vai
percorrê-lo por inteiro: a presença de palavras negativas. Desse modo, ao
Amor se ligam frases que caracterizam o não-amor: No primeiro quarteto,
nega-se ser Amor o amor que sofre mudanças e, portanto, entende-se o Amor
como um sentimento inalterável. No segundo quarteto, essa tese é reafirmada
pela metaforização do Amor em uma marca fixa e em uma "estrela-guia", que
enfrenta tempestades sem se balançar. No último quarteto, ocorre uma
contraposição entre o sentimento amoroso e o ser amado, já que enquanto o
último é vítima da foice do Tempo, o Amor "se sustenta até o final do
mundo". À mancha gráfica dos quartetos unidos, opõe-se o dístico final,
levemente afastado, funcionando como a chave de ouro do soneto. Nesses
últimos versos, a voz do Eu volta a se manifestar claramente por meio de
uma provocação, já que, segundo ele, se o que ele diz for provado como
engano, ninguém nunca amou e nem ele escreveu. No original, o fato de
coexistirem três palavras com valor negativo em uma mesma frase – o que é
considerado gramaticalmente incorreto em língua inglesa – só enfatiza o
fato do eu – lírico esperar discordância em relação ao que ele declara,
protestando veementemente contra essa oposição. E o próprio soneto responde
por que: Se o Amor é constante por ser superior ao Tempo e o homem nunca
pode vencer sua foice, o Amor é inalcançável ao homem. Portanto, o Amor é
grandioso demais para as limitações do corpo humano. Aprisionado em sua
condição, o Eu do soneto só consegue defini-lo da única maneira possível ao
homem: pela negação, pelo o que o Amor não é.
Camões segue um caminho semelhante em seu famoso soneto de número 5.
Vamos a ele:
Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.


É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.


É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.


Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?



De forma distinta ao soneto shakespeariano, os versos de Camões
procuram dizer o Amor pelo que ele é, o que é atestado pela presença do
verbo de ligação ao início da maioria dos versos, relacionado ao sujeito
"Amor" que abre o poema. Porém, as afirmações sobre o sentimento amoroso
apresentam intrinsecamente as contradições que a estrutura "Amor é..."
parece afugentar. Através de paradoxos ("fogo que arde sem se ver", "ferida
que dói, e não se sente", "dor que desatina sem doer", etc), antíteses
("...que ganha em se perder"), e até oximoros ("é um contentamento
descontente"), o amor é caracterizado como algo paradoxal e ilógico. A voz
do Eu, mais discreta do que no soneto de Shakespeare, aparece no último
terceto por meio de um questionamento que demonstra a perplexidade do
sujeito diante da natureza contraditória do Amor e, portanto, da
incapacidade desse sentimento ser fixado racionalmente pelo homem.
Assim, percebemos que ambos os sonetos se propõem a dizer o que é o
Amor. Porém, defrontam-se com o problema de como fazê-lo: Como dizer o que
é indizível? Shakespeare, dotado da consciência de que o homem não é capaz
sequer de abarcar a totalidade do sentimento amoroso, opta por definir o
que o Amor não é. Camões, mais atrevidamente, afirma as peculiaridades
desse sentir, utilizando, porém, figuras de contraste que reforçam sua
ilogicidade. Portanto, os versos dos dois demonstram, por um lado, a
incapacidade de o homem entender o que sente e, por outro, a incompetência
da linguagem ao tentar expressar o Amor.
Dessa maneira, Camões e Shakespeare, inseridos temporalmente no século
XVI, já apontam para o fato da palavra não conseguir representar as emoções
e não poder dar conta do que é incompreensível às limitadas prisões
racionais do homem. Creio que isso mostra a modernidade desses dois grandes
poetas, que "Perante o indizível [...] procura(m) fazer falar o silêncio,
resolvendo assim o dilema entre falar e calar-se" (ROSA, 1991, p.21).



Referências:
BRYSON, Bill. Shakespeare: o mundo é um palco: uma biografia. Tradução de
José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
CAMÕES, Luís de. Lírica Completa II. Prefácio e notas de Maria de Lurdes
Saraiva. Vila da Maia: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1980.
FILHO, Leodegário A. de Azevedo. Os sonetos de Camões. Humanitas, Coimbra,
29-30, 1977-1978.
. Data de acesso: Junho de 2013.
ROSA, António Ramos. A Parede Azul – Estudos sobre poesia e artes
plásticas. Lisboa: Editorial Caminho, 1991.
SHAKESPEARE, William. The Sonnets and A Lover's Complaint. Edited by John
Kerrigan. London: Penguin Books, 1999.



















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[1] Não se pode ter certeza sobre a data de nascimento de Shakespeare. O
que se sabe, porém, é que ele foi batizado em 26 de abril e que na época
era costume batizar crianças bem depressa, devido às altas taxas de
mortalidade. Se Shakespeare realmente nasceu em 23 de abril de 1564, um
domingo, a provável data para seu batismo seria 25 de abril, dia de São
Marcos. Porém, algumas pessoas acreditavam que o dia de São Marcos trazia
má sorte, e por isso defende-se a "irresistível simetria" (BRYSON, 2008,
p.30) entre os dias de nascimento e morte de Shakespeare, juntamente com o
dia de São Jorge e o dia nacional da Inglaterra.

[2] Não há precisão de qual peça teria sido a primeira escrita por
Shakespeare. De uma maneira geral, porém, os pesquisadores entendem que
pode ter sido qualquer uma dessas oito: A comédia dos erros, Os dois
cavaleiros de Verona, A megera domada, Tito Andrônico, Rei João ou as três
partes de Henrique VI. (BRYSON, 2008)

[3] Optei por utilizar Amor com letra maiúscula quando me referir ao
sentimento puro e sublime que se contrapõe ao desejo carnal do homem, como
fizeram os dois poetas.
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