O antigo sistema hidráulico do Convento Franciscano de Penedo (Alagoas, Brasil) [The old hydraulic system of the Franciscan Convent of Penedo (Alagoas, Brazil)]

May 30, 2017 | Autor: Virgolino Jorge | Categoria: Water resources, Water Resources Management, Mendicant Orders, Hydraulic systems and structures, Hydraulic and Hydrology, Integrated Water Resources Management, Water Management, Water Supply, Recursos Hidricos, Water use efficiency, Water and Sanitation, Franciscans, Water, Sanitation, and Hygiene, Water Supply and Sanitary Engineering, Arqueología Hidráulica, Hidraulica, Hydrology and Water Resources Management, Franciscan architecture, HIDRÁULICA, Hydrology and water resources, Water Use, Sanitation, Construcciones Hidraulicas, Franciscan Monasteries, Recursos Hídricos, Hydraulique, Arquitectura Hidráulica, Abastecimento De água, Gestion De L'Eau, Water Supply and Sanitation, Ingeniería hidraulica, Architecture of mendicant orders, Gestión integrada de los recursos hídricos, Conventos, Traditional Uses of Water, Hidraulics, Wasserversorgung, Hidraulika, Gestión Integrada De Recursos Hídricos, Aménagements Hydrauliques, Hidraúlica Monástica, Sistemas Hidraulicos, Gestão das águas, Hydraulics Infrastructures, Penedo (Alagoas), Convento Franciscano de Penedo (Alagoas), Integrated Water Resources Management, Water Management, Water Supply, Recursos Hidricos, Water use efficiency, Water and Sanitation, Franciscans, Water, Sanitation, and Hygiene, Water Supply and Sanitary Engineering, Arqueología Hidráulica, Hidraulica, Hydrology and Water Resources Management, Franciscan architecture, HIDRÁULICA, Hydrology and water resources, Water Use, Sanitation, Construcciones Hidraulicas, Franciscan Monasteries, Recursos Hídricos, Hydraulique, Arquitectura Hidráulica, Abastecimento De água, Gestion De L'Eau, Water Supply and Sanitation, Ingeniería hidraulica, Architecture of mendicant orders, Gestión integrada de los recursos hídricos, Conventos, Traditional Uses of Water, Hidraulics, Wasserversorgung, Hidraulika, Gestión Integrada De Recursos Hídricos, Aménagements Hydrauliques, Hidraúlica Monástica, Sistemas Hidraulicos, Gestão das águas, Hydraulics Infrastructures, Penedo (Alagoas), Convento Franciscano de Penedo (Alagoas)
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VIRGOLINO FERREIRA JORGE Universidade de Évora (Portugal) MARIA ANGÉLICA DA SILVA Universidade Federal de Alagoas (Brasil) O ANTIGO SISTEMA HIDRÁULICO DO CONVENTO FRANCISCANO DE PENEDO (ALAGOAS, BRASIL) Resumo: A chegada dos Frades Menores ao Penedo (actual Estado de Alagoas), em Março de 1659, inscreve-se no período áureo da sua expansão missionária pelo Brasil. O convento alagoano de Nossa Senhora dos Anjos é um dos monumentos de maior expressão histórica e significado artístico na paisagem construída estadual, marcado pela graciosidade estética tardibarroca da sua igreja. Apresenta-se aqui os resultados preliminares das nossas diligências e observações acerca das antigas obras hidráulicas do Convento de Penedo. O estudo abrange desde a captação de água potável, em poço próprio escavado na cerca do convento, à distância de 100,00m, até à descarga final dos efluentes domésticos e pluviais, na superfície do solo, beneficiando do regime pluviométrico e da topografia declivosa do local. O saber hidrotécnico adquirido sobre as estruturas históricas em análise, misturado com a nossa experiência de campo, permitiu tecer breves considerações e sustentar alguns juízos e hipóteses, abertos para aplicação ou questionamento futuros que os validem ou corrijam. Tal circunstância reclama o prosseguimento mais aturado das nossas pesquisas acerca da verdade hidráulica, objectivando a merecida visibilidade, reconhecimento e salvaguarda exemplar deste bem comum. Palavras-chave: Franciscanos no Brasil, Convento de Penedo (Alagoas, Brasil), Implantações Franciscanas, Recursos Hídricos, Hidráulica Monástico-Conventual. THE OLD HYDRAULIC SYSTEM OF THE FRANCISCAN CONVENT OF PENEDO (ALAGOAS, BRAZIL) Abstract: The arrival of the Friars Minor in Penedo (in the actual State of Alagoas), in March 1659, is part of the golden age of missionary expansion in Brazil. The Convento de Nossa Senhora dos Anjos in Alagoas is one of the monuments of greatest historic expressiveness and artistic significance in the built landscape of the state, marked by the late baroque aesthetic grace of its church. This study presents the preliminary results of our research and our observations on the old hydraulic system in the convent in Penedo. The study ranges from the captation of drinking water through a well inside the convent wall, dug at a distance of 100,00m from the building, to the final discharge of domestic sewage and rainwater at ground level, taking advantage of the local rainfall and sloping topography. The hydrotechnical knowledge with regard to the historic structures that has been acquired through the analysis, together with our experience in the field, has allowed us to draw some conclusions and to sustain some judgments and hypotheses, which can be put into practice or questioned in the future, and so validated or corrected. Such a circumstance requires us to continue to research in greater detail into the true nature of the hydraulic system, and to seek to achieve due prominence, recognition and exemplary protection for this common asset. Keywords: Franciscans in Brazil, Convent of Penedo (Alagoas, Brazil), Franciscan developments, hydraulic resources, monastic-conventual hydraulic.

CONGRESO INTERNACIONAL EL FRANCISCANISMO: IDENTIDAD Y PODER BAEZA-PRIEGO DE CÓRDOBA (2015), 415-426

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Nota histórico-artística

A chegada dos Frades Menores ao Penedo (localizado na região sul do Estado de Alagoas, a par do rio de São Francisco), em Março de 1659, inscreve-se no período áureo da sua expansão missionária pelo Brasil. Os primeiros Franciscanos acomodaram-se em recolhimentos modestos e improvisados, onde viveram até à edificação com “pedra e cal” do seu novel convento, iniciado em Outubro de 1682 (Fig. 1). A transferência definitiva dos frades ocorreu no mês de Março de 1694, embora o cenóbio estivesse ainda muito incompleto1. As obras de conclusão da morada, cujo autor do debuxo inicial nos falta, avançaram de modo lento e ao ritmo consentido pelos recursos económicos e financeiros disponibilizados, como doações, privilégios, etc. Há várias datas gravadas no complexo arquitectónico que testemunham essa morosidade e auxiliam a leitura sequencial e o estudo histórico das actividades construtivas, com diversas etapas, melhoramentos e ampliações, que se estenderam até ao primeiro quartel do século XIX2. Os obstáculos oficiais à admissão de noviços e o encerramento obrigatório das casas de Noviciado conduziram ao declínio progressivo da Ordem na zona, o qual ditou o termo da fraternidade penedense, entre os anos de 1883 e 1893. Entrementes, o convento foi utilizado como hospital. A restauração da Província, através de frades alemães oriundos da Saxónia, permitiu a reabertura das instalações e acautelou a continuidade da presença e do labor doutrinal e pedagógico franciscanos em Penedo. O convento de Nossa Senhora dos Anjos3 é um dos monumentos de maior expressão histórica e significado artístico na paisagem construída alagoana, marcado pela graciosidade estética tardibarroca da sua ornamentada igreja (Fig. 2). Mercê dessa afirmação singular, de importância sociorreligiosa e valor cultural cimeiros, como reconhece e sublinha a literatura da especialidade4, este imóvel seráfico e igreja principal da cidade foram classificados pelo IPHAN – Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional, em 29 de Dezembro de 1941.

Rede hidráulica geral

O estudo do sistema hidráulico de um convento medieval ou moderno pressupõe o conhecimento da topografia e das características hidrogeológicas que influenciaram a

1 Cf. FR. ANTONIO DE SANTA MARIA JABOATAM, Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Chronica dos Frades Menores da Provincia do Brasil, 2ª parte, vol. II, livro V, cap. III, Assembléia Legislativa do Estado de Pernambuco, Recife, 1980, págs. 603-604 (Fac-simile das edições de 1859, 1861 e 1862). 2 As memórias cronográficas seguintes, possivelmente, fixam o término das respectivas campanhas de obras: 1759 (frontaria da igreja); 1783 (ala norte do claustro); 1784 (arco da capela da Ordem Terceira); 1811 (verga da portaria) e 1820 (ala sul do claustro). 3 Também conhecido por Convento de Santa Maria dos Anjos, conforme assinala a epígrafe da divina padroeira no cume do alçado frontal da igreja. 4 Ver, por exemplo, GERMAIN BAZIN, A arquitetura religiosa barroca no Brasil, vol. 1, Editora Record, Rio de Janeiro, 1983, pág. 124 (ed. original: 1956). Para uma visão conjunta da arquitectura conventual franciscana nordestina, consultar os recentes trabalhos de ALBERTINA MARQUES PIRES BELO, As Ordens Terceiras de São Francisco na Zona da Mata. Implantação da Província Franciscana de Santo António do Brasil ao longo dos séculos XVII e XVIII, 3 vols., tese de doutoramento em História, ramo de História da Arte, Universidade Lusíada de Lisboa, 2011, policopiada, IVAN CAVALCANTI FILHO, The Franciscan Convents of North-East Brazil, 1585-1822. Function and Design in a Colonial Context, 2 vols., tese de doutoramento, Universidade de Oxford, 2009, policopiada, e NUNO SENOS, Franciscan Patronage in Northeastern Brazil (1650-1800), tese de doutoramento, Universidade de Nova Iorque, 2006, policopiada.

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escolha do sítio ocupado. Essa compreensão técnica especializada ajuda também a análise funcional e integrada do programa hídrico na organização do desenho arquitectónico e no concerto espacial do instituto, ou seja, na sua conformação hidráulica. A ausência de documentação primária conhecida, relativa às obras hidráulicas do Convento de Penedo, dificultou ou impediu o exame mais preciso da sua trajectória e extensão, o qual melhorava também a história construtiva deste conjunto franciscano e a identidade do local na paisagem urbana. Não obstante essas limitações e entraves, alargados também ao reduzido quadro temporal e aos meios facultados para as nossas pesquisas in situ, procedemos ao reconhecimento e ao estudo dos dispositivos hidráulicos e dos circuitos internos e externos dos encanamentos antigos desta casa religiosa, desde a captação de água potável, em poço próprio, até à descarga final dos efluentes domésticos e pluviais, na superfície do solo5. Apresenta-se aqui os resultados preliminares dessas diligências e observações directas e visuais, exploradas até aonde as circunstâncias de trabalho possibilitaram, e que reclamam o contributo da Arqueologia para a sua identificação mais ampla e aprofundada, mormente nos espaços de dúvida6. O saber hidrotécnico adquirido sobre as estruturas históricas em análise, misturado com a nossa experiência de campo, permitiu tecer breves considerações e sustentar alguns juízos e hipóteses, abertos para aplicação ou questionamento futuros que os validem ou corrijam, por demonstração objectiva e factual mais segura.

Captação de água potável

Até à data em que a cidade de Penedo passou a dispor de uma rede pública de águas, a comunidade franciscana local era abastecida por água subterrânea, explorada directamente num poço tradicional escavado na cerca do convento, à distância de meia centena de metros, aproveitando as características do lençol freático a sudeste, no sopé das traseiras do casario (Fig. 3). A profundidade do olho é de 6,80m, relativamente à altimetria actual do terreno, e a sua planta tem um desenho de perímetro circulado, com 1,90 x 1,80m de lado. A superfície interna do poço está revestida, até à altura de 5,50m, com uma pasta argilosa hidrófuga que a protege de fissuras e fracturas e evita a absorção da água. A parede terminal, que se eleva 1,30m e é formada por uma alvenaria de tijolos maciços, correspondia à boca da captação; hoje, tem o exterior soterrado (Fig. 4). A água era extraída e elevada da “cacimba”7 por um balde, com o auxílio de um sarilho, de uma roldana ou de uma picota. Devido à construção e ao alteamento posteriores do muro oriental do recinto, cujo limite fica afastado 6,70m do topo do aquífero e acompanha a Rua Siqueira Campos, aquela área foi entulhada e aplanada, subindo o seu nível médio cerca de 5 Os trabalhos de prospecção foram realizados entre 16 e 21 de Setembro de 2014 e tiveram o apoio dos seguintes membros do Grupo de Pesquisa “Estudos da Paisagem” da Universidade Federal de Alagoas: Érica Aprígio, Louise Cerqueira, Náiade Alves, Vanine Borges, Ana Luíza Mendonça, Fábio Nogueira e Yury Souza. Bem hajam, todos, pela empenhada ajuda, reflexão colectiva e partilha de saberes! 6 Agradecemos o diálogo interdisciplinar – breve, mas frutuoso – que mantivemos com os arqueólogos Flávio de Aguiar Moraes e Daniela Ferreira. 7 Designação local para os poços pequenos ou rasos escavados no solo, a fim de extrair água do manto freático.

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1,30m, até atingir o rebordo do poço, como se observa presentemente (Fig. 5). A antiga fonte de provisão hídrica encontra-se hoje abandonada e semi-oculta pelo plantio, mas mantém a sua potencialidade freática ainda activa e copiosa, com 4,00m de cota da água retida (medição feita em Setembro de 2014)8.

Transporte, armazenamento e distribuição de água

Por definição estatutária, uma fraternidade menorítica caracteriza-se por um agregado comunitário diminuto e de vida regular activa e itinerante. Logo, o seu padrão médio de consumo e uso diários de água doméstica era baixo, o que podia dispensar a fábrica de onerosas obras de arte para o seu transporte e disponibilização, se a fonte estivesse nas imediações e no espaço cercado conventual, garantisse potabilidade e assegurasse a desejada auto-subsistência do quotidiano cenobítico. Foi o caso do secular Convento de Penedo, cujo poço de aprovisionamento primitivo se encontra na horta da propriedade e perto dos pontos de consumo na zona residencial, porém, em ladeira suave de cota inferior à do conjunto edificado. Perante as características fisiográficas do terreno, a adução de água nativa era feita manualmente ou por tracção animal, com recurso a recipientes apropriados ao seu carrego e transporte. Nas dependências mais necessitadas de alimentação hídrica, como a cozinha e o refeitório, há cantareiras inseridas nas paredes, onde se guardava o vasilhame que permitia armazenar a água e conservá-la fresca, para as diferentes funções quotidianas e mantimento do habitat religioso, por exemplo, cozinhar, dessedentar, etc. (Fig. 6). O fornecimento de água límpida aos lavabos da sacristia e do refeitório, para os rituais de purificação das mãos, era assegurado também manualmente (Fig. 7). A higiene individual dos frades (abluções, tonsuras, etc.) e a lavagem de roupa leve faziam-se na casa do lavatório, abastecida por um depósito de enxurrada, ambos contíguos e anexados ao alçado sul do refeitório (Fig. 8) 9.

Evacuação de esgotos pluviais, domésticos e fecais

O traçado dos caminhos internos das águas usadas e de precipitação é elementar e a sua solução técnico-construtiva reflecte a matriz típica de um pequeno sistema hidráulico conventual da Idade Moderna, planificado e concretizado à escala e economia de um estabelecimento franciscano coevo10. Funcionava por acção gravítica e destinava-se, essencialmente, a assegurar a rotina e os afazeres domésticos de cada dia  e o asseio da comunidade11. 8 A localização deste ignorado poço foi-nos comunicada por Marcos Lobo, empregado de longa data no Convento, a quem estamos muito reconhecidos. 9 A casa do lavatório tem as dimensões exteriores de 6,00 x 4,40m. O depósito media exteriormente 5,40m de comprimento e 2,00m de largura; desconhece-se a sua profundidade. 10 Não admira, pois, que Frei Jaboatão tivesse menosprezado os aspectos hídricos, quando redigiu a sua memória acerca do Convento de Penedo. Cf. FR. ANTONIO DE SANTA MARIA JABOATAM, ob. cit., págs. 603-605. 11 O modo de implantação dos edifícios regulares no flanco sul da igreja conventual está directamente vinculado ao relevo favorável à circulação e ao escoamento das águas, o que facilita o desempenho eficaz do plano hidráulico geral. Ademais, esta exposição meridional permite também obter melhor insolação dos aposentos, aproveitar o máximo de luminosidade natural e estar protegido dos ventos. A concordância destes factores práticos da ocupação espacial, cómoda e conveniente para a salubridade e o bem-estar comunitários, testemunha a escolha acertada do assentamento franciscano de Penedo, igualmente, na área central urbana e em encosta com vistas amplas e amenas sobre a paisagem do rio de São Francisco. Para um confronto

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A maior concentração de águas pluviais localiza-se no espaço claustral e provém das coberturas dos edifícios, pelo que a sua drenagem obrigou ao desenho de uma rede colectora eficaz e adequada àquela ampla superfície e condições hídricas (Fig. 9). Para o efeito, uma caleira aberta percorre o perímetro interno do pátio e recolhe as águas descarregando o caudal acumulado num colector-mor, que parte do diedro sudoeste do claustro em direcção às latrinas12. Essa conduta principal, onde afluíam também as canalizações secundárias das águas servidas oriundas do lavabo do refeitório e dos despejos da cozinha e, certamente, os esgotos pluviais captados na faixa poente fronteira a esta dependência, incrementando o seu débito, atravessava inferiormente as sentinas e desaguava no exterior, à superfície (Figs. 10 e 11). As antigas “privadas”, concebidas segundo os melhores princípios higiossanitários de então, localizam-se no extremo sudoeste do casario habitacional, na contiguidade das celas dos frades, e têm acesso directo pelos respectivos corredores do sobrado da clausura (Fig. 12). As divisórias ou retretes individuais, cujo prospecto se encontrava já adulterado, foram recentemente demolidas (ano de 2013). Perante as evidências materiais primevas e de acordo com a nossa reconstituição, de início, haveria sete retretes dispostas ao longo da face lateral nascente deste amplo compartimento de planta rectangular, que era iluminado por três janelas de cantaria, uma aberta no outão sul e duas no poente. As divisórias mediam cerca de 1,50m de profundidade, 0,90m de largura e 2,20m de altura. Os assentos eram de madeira, tinham um orifício circular central com 0,30m de diâmetro e estavam encastoados nas paredes, à altura de 0,40m do pavimento. Os dejectos (fezes e urina) caíam a 7,70m de profundidade, no referido canal de escoamento, cujo fluxo de montante promovia a sua higienização (Fig. 13)13. Este curso de águas mortas era ainda reforçado pelos efluentes de dois canos defrontados (de data posterior?), que desembocam no adutor-mor e cuja procedência efectiva desconhecemos (Fig. 14). Decerto, recolhiam os sobejos dos supracitados depósito e casa do lavatório bem como os de um tanque vizinho que estava adossado ao muro poente da cintura conventual. Notam-se, ainda, vestígios deste demolido reservatório de águas da chuva que permitem averiguar a sua capacidade de armazenamento (cerca de 15,00m³ ou 15 000 litros)14. Aquelas duas caixas-d’água, além de servirem outros usos, constituíam também uma reserva de segurança para manter o saneamento das latrinas inodoras, em períodos de estiagem forte ou numa emergência hídrica. A evacuação final dos efluentes gerais processava-se a céu aberto e decompunham-se naturalmente, beneficiando das condições climáticas e do regime pluviométrico assim como da topografia declivosa do local, a jusante. Com as obras de abertura de uma via pública adjacente, a sul do convento (actual Rua Sabino Romariz), e a construção do muro de arrimo de terras da cerca retraída, executadas ao redor com estabelecimentos monásticos e conventuais europeus, veja-se, por exemplo, JOSÉ MANUEL DE MASCARENHAS, MARIA HELENA ABECASIS e VIRGOLINO FERREIRA JORGE (edits.), Hidráulica Monástica Medieval e Moderna, Fundação Oriente, Lisboa, 1996. 12 Esta caleira perimetral (cerca de 16,00 x 14,00m de lado), de secção rectangular, mede interiormente 0,27m de largura e tem uma profundidade variável entre 0,10 e 0,20m. 13 A conduta tem um perfil transversal de secção em forma de “U” recto, com 0,28m de lado. O leito é lajeado e os muretes são obrados com tijolos maciços. 14 O tanque localizava-se no gaveto da Rua Sete de Setembro com a Rua Sabino Romariz. El franciscanismo: Identidad y poder. Congreso Internacional (2015), 415-426. ISBN: 978-84-938148-7-8

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de 193015, a morfologia da área intramuros foi transformada e alteada pelos aterros efectuados. Em consequência disso, ficaram obstruídas a extremidade do colector emissário e a sobreposta abertura vertical na parede das instalações sanitárias, que permitia o acesso de pessoas àquele espaço, para vistorias e limpezas periódicas de manutenção ou reparações no canal excretor. A libertação dos resíduos domiciliários e pluviais passou a fazer-se por tubagem subterrânea ligada à rede geral de esgotos urbanos. O compartimento térreo da “caza necessaria” mantém-se ainda em razoável estado de integridade, na sua forma e traçado. O vão de arco pleno rasgado na parte baixa do alçado sul é de factura tardia. Possibilita a iluminação e o arejamento naturais daquele “autoclismo”, com 8,65m de comprimento e 1,08m de largura úteis, e também a serventia actual de pessoas ao seu interior.

Considerações finais

Devido à introdução dos serviços públicos de distribuição de energia eléctrica, de abastecimento de água e de saneamento básico na cidade de Penedo, o antigo programa hidráulico do convento dos Menores de São Francisco caiu em desuso e sofreu modificações radicais por equipamentos electromecânicos e hidropressores de bombeamento e ramificação16. Procedeu-se à sua reforma e melhoria, com a desactivação de parte do itinerário primevo e a reconfiguração de novos percursos hídricos, bem como a derriba ou o abandono de alguns órgãos associados, de molde a adaptar o desenvolvimento e a eficácia do sistema às modernas exigências funcionais de habitabilidade e conforto dos usuários. Tal renovação afecta o olhar retrospectivo e aumenta as dúvidas de leitura, o que condicionou as certezas e comprometeu as nossas interpretações críticas quanto à verdade hidráulica primitiva. Presentemente, o poço freático do quintal e o receptáculo inferior do bloco das latrinas constituem duas estruturas utilitárias de valor histórico e técnico especiais. Elas auxiliam não só o entendimento genérico das obras hidráulicas da secular instituição franciscana penedense, mas também o da sua própria fábrica e espacialidade arquitectónica, na qual se integram ou articulam e são coetâneas. Por conseguinte, o percurso da rede hídrica foi pensado em função da orgânica interna do edifício, completando-o e valorizando-o. Saibamos garantir a salvaguarda e a valorização cultural, atempadas e perduráveis, destes escassos e discretos exemplares ancestrais ainda remanescentes, todavia, desfigurados e em decadência silenciosa. Eles são propriedade de uma Ordem bastante carecida de memórias e texturas significativas e de estudos analíticos acerca do património hidráulico herdado dos seus cenóbios de outrora. Pelo seu interesse e riqueza de pluralidade dimensional, este despercebido e ameaçado acervo de iniciativa e engenho dos Frades Menores impõe cuidados, apreço e respeito histórico que o resgatem do olvido. A merecida visibilidade e reconhecimento destes bens comuns constituem um estímulo e um convite para a prossecução sistemática e mais aturada das nossas investigações. 15 Cf. MARCELINO CANTALICE, Igreja e Convento de Nossa Senhora dos Anjos. Datas e dados de sua história, Penedo, Alagoas (Brasil), pág. 11. Texto policopiado e sem data. 16 Agradecemos a Marcelino Cantalice as informações prestadas acerca destas benfeitorias.

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Referências bibliográficas

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Fig. 1 – Penedo, Convento Franciscano. Prospecto

Fig. 2 – Penedo, Convento Franciscano. Vista interior da igreja

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Fig. 3 – Penedo, Convento Franciscano. Planta de localização

Fig. 4 – Penedo, Convento Franciscano. Aspecto interior do poço

Fig. 5 – Penedo, Convento Franciscano. Vista exterior do poço

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Fig. 6 – Penedo, Convento Franciscano. Aspecto interior da cozinha

Fig. 7 – Penedo, Convento Franciscano. Lavabo do refeitório

Fig. 8 – Penedo, Convento Franciscano. Casa do lavatório

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Fig. 9 – Penedo, Convento Franciscano. Vista do clausto

Fig. 10 – Penedo, Convento Franciscano. Colector-mor de evacuação de águas

Fig. 11 – Penedo, Convento Franciscano. Rede de evacuação de águas (a tracejado: proposta) El franciscanismo: Identidad y poder. Congreso Internacional (2015), 415-426. ISBN: 978-84-938148-7-8

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Fig. 12 – Penedo, Convento Franciscano. Aspecto exterior do bloco das latrinas

Fig. 13 – Penedo, Convento Franciscano. Planta e corte das latrinas (reconstituição)

Fig. 14 – Penedo, Convento Franciscano. Vista interior da caixa das latrinas El franciscanismo: Identidad y poder. Congreso Internacional (2015), 415-426. ISBN: 978-84-938148-7-8

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