O Antropólogo Viajante do Tempo – contra a irrelevância e a inautenticidade da Antropologia
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O Antropólogo Viajante do Tempo – contra a irrelevância e a inautenticidade da Antropologia Filipe Verde ISCTE-‐IUL Texto de apresentação do relatório de uma Unidade Curricular de Mestrado – Teoria Antropológica: Objectivismo, Relativismo e Verdade -‐, lido no âmbito das Provas de Agregação – Fevereiro 2015.
Acontece na ciência o mesmo que na vida. Às vezes, por razões mais ou menos fortuitas, atravessamos experiências que nos transformam, que marcam um antes e um depois, experiências que para descrever usamos palavras como revelação, iluminação, esclarecimento. Tive uma experiência dessa natureza quando, algures pelo caminho de aprendizagem do ofício antropológico, comecei a ler autores que, apesar de não fazerem parte do cânone da disciplina, haviam chegado a ideias que, foi-‐me evidente, eram decisivas para o modo como eu a entendia, a podia entender. Os autores em causa são Martin Heidegger e Hans-‐ Georg Gadamer. Assim, e inevitavelmente, a hermenêutica fenomenológica tornou-‐se inspiração e o guia do meu trabalho como antropólogo, desde a escrita da tese de doutoramento até aos dias de hoje. Porque falo disso?, porque são essas ideias que organizam a UC cujo relatório apresento nestas provas. Teoria Antropológica – Objectivismo, Relativismo e Verdade. Quando há alguns anos discutia essas ideias com alunos de um curso de doutoramento no Brasil, uma estudante caracterizou-‐as como propondo uma mudança paradigmática na antropologia. Creio que assim queria dizer que lhe propunham uma concepção do
conhecimento antropológico muito diferente daquela a que até então tivera acesso. Não penso que devam ser descritas nesses termos, como uma ruptura paradigmática, porque a antropologia sempre foi pluriparadigmática e também e cada vez mais anti-‐paradigmática, e vai continuar a ser assim, a bem da sua diversidade. Independentemente da sua diferença em relação a outras concepções do conhecimento antropológico, a concepção que defendo e apresento nas aulas resulta da forma como entendi o que era para mim a minha disciplina no ato mesmo de a praticar. O meu objectivo aí é facultar aos alunos uma crítica da tradição antropológica que a permita libertar, e eu sei que isto são palavras fortes que é preciso saber defender, de um principio estrutural de inautenticidade e de irrelevância e de os trocar pelos seus contrários. Para fazer perceber o que quero dizer quando falo de inautenticidade e irrelevância vou, copiando um hábito da filosofia, apresentar um caso hipotético, chamemos-‐lhe uma narrativa ideal-‐típica. Vamos supor que não há qualquer memória histórica da Grécia Antiga – que a história tudo varreu excepto as pedras de algumas ruínas. Vamos supor também que a história produziu ainda assim uma sociedade industrial e tecnológica com a capacidade de construir uma máquina do tempo e que, apesar da sua não relação histórica com a Grécia, é muito semelhante à nossa própria sociedade. Decide-‐se assim mandar alguém à península grega de há 2500 anos. Quem mandar? Um antropólogo, claro, afinal é ele o especialista da diferença e o que possui os instrumentos para superar os obstáculos inerentes a essa diferença. E assim ele parte, e um ano depois regressa, após o que escreve uma monografia resultante do seu trabalho etnográfico no passado. Como se chamaria e sobre o que seria essa monografia? Uma possibilidade provável, eu diria muito provável, era que fosse algo como Oráculos, Sacrifícios de Bois e Rituais Orgiásticos numa sociedade da europa de há 2500 anos... Porque é essa história imaginária significativa? Porque ela me parece ter muito de real quanto ao modo como os antropólogos entendem a sua disciplina e a praticam. Partindo do postulado relativista da incomensurabilidade dos planos
da verdade, o antropólogo viajante de tempo fixou a sua atenção nos planos sociais e culturais que lhe confirmam esse postulado de partida, para depois, por recurso a um modelo teórico holista que lhe guia a tarefa de reconstrução contextual, justificar explicativamente porque é que esses outros acreditam no que ele próprio não pode acreditar. E note-‐se que essa história, apesar de imaginária, é inteiramente plausível, como ilustra o trabalho de um classicista – E. R. Dodds -‐ que pretendeu renovar os modos comuns de interrogar o mundo clássico através da assunção de uma perspectiva antropológica – como é que se chama o seu livro?, Os Gregos e o Irracional... O que é que ele trata? Do mesmo que falaria o antropólogo viajante do tempo. O problema, não é preciso dizê-‐lo, é que deter a curiosidade sobre os oráculos quando nesse mesmo tempo e lugar Sócrates discutia criticamente o conhecimento, a justiça e a literatura, parece, para o dizer simpaticamente, uma curiosa indiferença pelos critérios comuns de definição do que é e não é, no plano da curiosidade intelectual, significativo. O que Sócrates e os seus pares discutiam é significativo, relevante, porque informou e foi criticamente integrado, ao longo de tantas e tantas gerações, na forma como ao longo desse tempo e até aos dias de hoje pensamos esses mesmíssimos assuntos. Os oráculos, os sacríficos de bois e as bacantes, bom, são uma curiosidade, de facto algo exótico, que podemos encontrar com os mesmos traços essenciais nos quatro cantos do mundo. Porque é que os nosso antropólogo viajante do tempo relativista e armado de teoria não foi capaz de ouvir Sócrates, sentado ao lado de Platão e Xenofonte? Bom, por isso mesmo, porque é relativista e objectivista, porque a antropologia é filha de dois princípios que não lhe são úteis, que lhe são mesmo prejudiciais. Por um lado, a disciplina, e tudo o que nela se faz sob o nome de teoria, seguiu um ideal explicativo que só cumpre o seu desígnio na medida em que proceda a alguma espécie de naturalização do seu objecto. Mas os objetos da reflexão antropológica não são naturalizáveis sem que assim o que os define e torna interessantes e instrutivos se desvaneça. Naturalizá-‐los é, paradoxalmente, negar a sua natureza, e ao mesmo medo ceder à errónea concepção positivista que
nega a prioridade fenomenológica do sentido sobre o facto e da compreensão sobre a explicação – ilusões que depois de Husserl, Heidegger e das epistemologias pós-‐Popper e pós-‐Kuhn já não estamos autorizados a seguir. Por outro lado, a antropologia tem por ideologia profissional o relativismo cultural – e assim, como diz Marvin Harris, caracteriza-‐se por um “estado de confusão moral e ética caracterizada por juízos de valores camuflados e contraditórios.” Sabendo disso, como todos os antropólogos minimamente sofisticados o sabem, Geertz, num texto famoso, proclamou-‐se não como relativista cultural mas como anti-‐anti-‐relativista. Não é preciso dizer que se trata de um mero jogo de palavras, porque a dupla negação (anti-‐anti) deixa afinal o relativismo incólume e não o impede de ter como consequências coisas muito diferentes das que a antropologia através dele quer reclamar. Pretende ser empírico mas é um postulado, pretende ser objectivo mas é moral (e político), pretende ser razoável mas enaltece o irracional, pretende ser um meio de conhecimento do que é outro quando é afinal o que dele nos aliena. Por último, e para além disso, o relativismo implica a ideia falsa de que a excelência é algo que se realiza em cada particular cultural. Como diz o velho adágio que vem de Herder: “cada mundo contém [conteria] a sua forma própria de perfeição”. Essa universalização da excelência esvazia-‐a de conteúdo porque é uma excelência de quantidade e não de qualidade – e entre diferença e valor, sabemo-‐lo todos, não há uma relação necessária. Na verdade, o efeito do relativismo cultural não é a democratização da excelência, mas a sua negação. Contra ele, há que dizer que as sociedades humanas podem ser alinhadas numa escala de valor em função de serem mais ou menos justas, mais ou menos ou menos livres, mais ou menos informadas e realistas no modo como contemplam o mundo e o homem, mais ou menos capazes de possibilitar o florescimento humano. Não nos esqueçamos dos Iks, nem das sociedades da Nova Guiné, nem da nossa própria história. Martin Hollis disse que “talvez seja preciso um fôlego de etnocentrismo para viver no mundo”, e eu acrescentaria que é preciso também um fôlego de etnocentrismo na antropologia porque sem ele não dispomos de um crivo cognitivo que distinga e hierarquize planos de relevância. Hollis diz isso num texto que tem como título uma questão -‐ “É o universalismo etnocêntrico?” – que mostra bem o quanto
somos sempre etnocêntricos, até quando, em nome do nosso universalismo, o pretendemos negar. Como disse Coleridge, “nenhum de nós é tolerante naquilo que o afecta profunda e completamente.” O que o ideal objectivista e metodológico, por um lado, e o relativismo cultural, por outro, determinaram, foi que se deixasse para trás a mais humana, complexa e necessária das noções, tão inequívoca e ao mesmo tempo tão indefinível: a noção de verdade ou, simplesmente, a verdade. Procurar os critérios gerais do verdadeiro, ironizava Kant, é como tentar ordenhar um bode, sabendo como sabia que, no entanto, independentemente da impossibilidade de definir esses critérios, é muitas vezes possível dizer sobre algo que sim, é verdade. Sim, é verdade que as experiências estéticas nos movem e transformam o modo como nos compreendemos; sim é verdade que o carácter é uma virtude; sim é verdade que a justiça é um ideal humano; sim é verdade que nenhum ser humano pode dispensar a referência, uma referência dir-‐se-‐ia contínua ainda que tantas vezes no background, à própria verdade. Não assumindo a verdade como o horizonte crítico do conhecimento que procurou produzir, a antropologia caiu no mesmo que toda a reflexão humanista caiu quando pretendeu, como disse Jacques Barzun, tornar-‐se teórica e científica – caiu no que ele chama de falácia da “misplaced significance”, ou seja, de um enviesamento da curiosidade em direção a planos de irrelevância e de inautenticidade. Contra isso há que evocar o dito de Goethe, segundo o qual “uma ação ou evento detêm interesse não porque podem ser explicados mas porque são verdadeiros.” Algo que o nosso etnógrafo viajante do tempo nunca entendeu, não sendo assim capaz de perceber que o que era significativo no mundo grego eram todas as instituições excepto aquelas para que olhou... Porque, como vimos há pouco, é isso que a história nos ensina. Talvez essa “misplaced significance” -‐ significância deslocada -‐, tenha condicionado não apenas o encontro imaginário do etnógrafo viajante do tempo, mas muitos dos encontros concretos que os etnógrafos reais tiveram pelas aldeias do mundo. Talvez tenha tornado a antropologia globalmente menos fecunda e com menos valor prático do que poderia ter tido. Sem dúvida tornou-‐a demasiado teórica. Porventura algumas dessas aldeias teriam também um Ágora
onde circulavam ideias a que valia a pena ter dado maior atenção. Pretendendo tornar a antropologia tão universal e ecuménica que pudesse abarcar sob o rótulo de racionalidade (sociológica ou cognitiva) tudo que desafia o seu próprio entendimento dessa racionalidade, o antropólogo em certo sentido concebeu a interpretação verdadeira de falsidades, e a explicação sensível de absurdos, como a sua maior conquista. É esse erro fundamental de perspectiva que a hermenêutica fenomenológica permite contornar. Ela permite-‐nos considerar a nossa relação com o que é culturalmente outro não segundo o modelo espúrio de uma objectividade impossível e de um relativismo não menos impossível e quantas vezes irresponsável, mas pelo ângulo da inocência de toda a tradição humanística. Pelo ângulo de uma curiosidade genuína pelo que sendo outro é também concebido como um mesmo, e portanto como interlocutor eventual de uma troca de ideias que se tece em torno de questões e finalidades que são comuns. Uma troca de ideias que se deve suportar, que tem por condição, um mútuo comprometimento com a verdade ou a possível verdade do que se diz e do que se ouve, a verdade que é portanto o crivo crítico que nos permite distinguir entre as situações em que vale ou não vale a pena travar esse diálogo. Como é também o crivo crítico das interpretações que através dele tecemos sobre os assuntos e temas em discussão. É desse diálogo que pode resultar o que Gadamer chama de fusão de horizontes, uma extensão e aprofundamento do campo do visível, do compreensível, do entendimento do que é ser-‐se humano e das diferentes questões – éticas, políticas, epistemológicas, estéticas -‐ em essa condição se expressa. Como diz Gadamer “o reconhecimento de nós mesmos no que nos é estranho e a capacidade de tornarmos esse estranho na nossa casa são o movimento básico do espírito, cujo ser consiste apenas em retornar a si a partir do que é outro.” Uma frase que descreve afinal o movimento que está por detrás da consciência histórica e da curiosidade humanística, que sempre se alimentaram desse movimento – desse diálogo -‐ que ao transportar-‐nos para lá do horizonte limitado da nossa situação existencial nos faz mover, nos educa e nos forma – o que os alemães chamaram de Bildung e conceberam como o desígnio último da educação humanística. Os românticos viram a história, a arte
e a viagem como fonte dessa experiências formativas, que a antropologia o seja também, quando e se o conseguir ser. Ter da antropologia um entendimento humanístico e não teórico e metodológico significa deixar para trás noções como explicação, estrutura, função, causa, necessidade (e os seus avatares mais modernaços), e substituí-‐las pelas categorias de senso comum, juízo e gosto – e num segundo plano, de aplicação e Phronesis. São essas dimensões não metodológicas que sempre nos guiam quando lidamos com as entidades como as que como antropólogos inquirimos. Entidades institucionais, ontologicamente subjetivas, i.e., que existem na e pela interpretação, em razão de um consenso compreensivo sobre o seu sentido e finalidades. Entidades que portanto são sempre elas próprias na medida e na condição em que o sejam sempre diferentemente – e que assim evadem toda a tentativa de pensar o conhecimento que delas podemos ter, ou que elas nos possam facultar, nos termos dualistas e viciados da oposição entre objectivismo e relativismo. É que a consciência é histórica e não metodológica, e, como o mostrou Heidegger, a nossa relação à história é mais fundamental do que a nossa relação à natureza. Creio que na generalidade das UC dos cursos de mestrado em antropologia, aqui no ISCTE como noutras universidades do mundo, se reproduz a velha ideia da antropologia que sintetizo citando uma das suas grandes autoridades contemporâneas, Tim Ingold. Cito: “A primeira preocupação do antropólogo não é julgar a verdade de uma proposição mas compreender o que ela significa dado o contexto é que é produzida.” Na UC de que aqui falamos defende-‐se que é também possível tornar a primeira preocupação do antropólogo julgar a verdade (ou não verdade) da proposição, independentemente do contexto em que é produzida e em função de julgamentos e critérios que são irrevogavelmente os seus e os do seu mundo. Um antropologia assim guiada é uma antropologia que pode ser descrita e entendida do modo como Nagel, a partir do pragmatismo, descreve a ética: “não há axiomas, apenas questões que procuram ser o mais amplamente compreensíveis possível, e respostas de crescente sofisticação que atraem um campo amplo de acordo e desacordo, seguidas de novas questões. A
finalidade é construir gradualmente uma perspectiva que todas as pessoas razoáveis possam partilhar.” Uma perspectiva que espero, portanto, que os estudantes possam partilhar, não doutrinariamente porque nunca se trata de criar paradigmas, mas como exemplo da dimensão crítica e também construtiva que todo o trabalho académico deve comportar. À sua luz a definição mais nobre de antropologia seria a que a apresentaria como a disciplina que trouxe mundos humanos a que chamámos de primitivos ou exóticos à condição de Clássicos, em função da sua capacidade de nos ensinar coisas que só com eles poderíamos aprender, mundos que durante demasiado tempo teimámos a olhar a partir de categorias (como as racional e irracional) que no-‐los tornaram distantes e baços – apesar de todas intenções em contrário. Da perspectiva dos estudantes, penso poder dizê-‐lo, é sem dúvida uma cadeira surpreendente, incitadora e que os convida à liberdade. À liberdade de fazer um trabalho de mestrado como tantos fazem, legitimamente, e às vezes muito bem, seguindo as regras comuns e metodológicas da antropologia, ou de arriscarem uma outra antropologia, uma antropologia que, digamos assim e pedindo de empréstimo os termos de Bernard Williams, procura substituir os diálogos nocionais (onde apenas de trocam sentidos) por diálogos genuínos (onde se trocam e alargam os horizontes sempre plurais, e históricos, da verdade).
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