O Artista e o Livro - o Autor e o Objeto

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O ARTISTA E O LIVRO - O AUTOR E O OBJETO Estudo da relação entre o autor único e o livro ilustrado ou A expressão do autor único através do livro ilustrado, entendido como um lugar de exploração da relação simbiótica entre texto e imagem e do seu potencial semântico

Resumo O presente trabalho pretende demonstrar de que forma pode ser representada uma identidade autoral através do objeto-livro. Este é um livro que atravessa os territórios da arte, da literatura, do design, da banda desenhada, entre outros possíveis, fugindo a categorizações e baralhando as tipologias tradicionais. Os dois pilares deste estudo são o Livro e a Autoria, e a análise destas e outras questões relacionadas servirá para fundamentar o processo desenvolvido na vertente prática do nosso projeto. Esta reflexão pessoal será acompanhada de exemplos de livros e autores que são referências na área de estudo definida.

Palavras-chave Livro, Autor, Controle, Apropriação, Identidade.

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ÍNDICE Introdução ...................................................................................................................................01 Capítulo 1 – O Livro 1.1 Forma e Função ........………...……………………………………………….………...........05 1.2 As origens do livro ..................................................................................................................06 1.3 Livro ilustrado .........................................................................................................................07 1.3.1 Introdução ..............................................................................................................07 1.3.2 Tipologias, classificações e critérios .....................................................................08 1.3.3 Organização interna – imagens .............................................................................10 1.3.4 Organização interna – textos .................................................................................11 1.3.5 Semântica, leitura e autoria ...................................................................................12 1.4 Livro de artista ........................................................................................................................14 1.4.1 Introdução ..............................................................................................................14 1.4.2 O livro como prática artística ................................................................................15 1.4.3 Definições e fronteiras ..........................................................................................16 1.4.4 O livro como ideia e forma ...................................................................................17 1.4.5 Precedentes, poética e filosofia .............................................................................19 1.4.6 Elementos estruturais ............................................................................................23 1.4.7 Perspetivas futuras ................................................................................................25 Capítulo 2 – A autoria 2.1 Contextualização ....................................................................................................................27 2.2 Crítica contemporânea da autoria ..........................................................................................28 2.3 A Morte do Autor (Roland Barthes) ......................................................................................32 2.4 O que é um Autor (Michel Foucault) .....................................................................................33 2.5 Breve história do autor ...........................................................................................................35 2.5.1 A tradição oral .......................................................................................................36 2.5.2 O manuscrito medieval .........................................................................................37 2.5.6 A invenção da imprensa ........................................................................................37 2.5.4 Os direitos de autor ...............................................................................................38 2.5.5 O Romântico .........................................................................................................40 2.5.6 A crítica formalista ...............................................................................................40 2.5.7 O cinema e a banda desenhada .............................................................................41 2.5.8 A morte e o renascimento do autor ......................................................................43 2.6 A Arqueologia do Saber ........................................................................................................45 2.6.1 A análise discursiva de Foucault ..........................................................................46 2.6.2 Contributos da análise discursiva .........................................................................48 2.6.3 Autoria, controle e poder .....................................................................................51

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Capítulo 3 – Case studies 3.1 Introdução .............................................................................................................................53 3.2 The Unstrung Harp (Edward Gorey) ....................................................................................54 3.3 The Cage (Martin Vaughn-James) .......................................................................................55 3.1 O Peregrino Blindado (Eduardo Batarda) ............................................................................57 3.2 Sai do meu filme (Tiago Manuel) ........................................................................................60 3.3 Outros livros e autorias ........................................................................................................63 Capítulo 4 – Projeto prático 4.1 Conceito ...............................................................................................................................65 4.2 Aspetos formais e iconográficos ..........................................................................................66 Conclusão ..................................................................................................................................71 Bibliografia .............................................................................................................................. 75

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INTRODUÇÃO Originalmente, o tema da investigação começou por ser a relação entre o autor único e o livro ilustrado, mas com uma atenção especial à questão da narrativa. Para estudar essa relação seriam considerados diversos livros, de diferentes autores. Livros criados por iniciativa própria e que afirmam uma identidade autoral, cuja riqueza semântica e abrangência tipológica dificulta a catalogação. Se a ideia inicial era perceber como o autor único concebe o livro ilustrado, de que forma constrói uma narrativa híbrida, ou em que medida esta autoria se distingue de um trabalho colaborativo, o rumo da investigação acabou por originar uma série de outras perguntas, confirmando a necessidade de delimitar o âmbito da mesma. A quem se destinam estes livros? São livros de artista? Quem é o público-alvo? A autoria é individual ou partilhada? Como é representada a autoria? Quais são as caraterísticas do livro ilustrado incatalogável? Como é óbvio, não se trata de saber quem os compra e porquê. O ênfase é colocado no autor e na necessidade de perceber para quem são concebidos estes livros. Um escritor escreve, de forma mais ou menos explícita, para um público, real ou imaginado. Naturalmente, este pode ajudar a determinar a temática do livro, o formato ou género e, finalmente, a identidade do autor. Neste caso, o autor é simultaneamente escritor e ilustrador, separação nem sempre fácil de produzir e, em muitos casos, supérflua ou irrelevante. No entanto, as questões referidas continuam pertinentes e adquirem novas tonalidades. Qual é a finalidade do livro? Quais os seus formatos ou géneros? Quem é o público imaginado deste autor único? De que forma é representada esta autoria particular? Como representa o autor único a sua identidade enquanto autor? Estas questões permitem, desde logo, identificar os dois principais pilares da investigação – o autor total e o livro ilustrado –, que estão na base da questão central, entretanto redefinida: de que forma o autor único representa a sua identidade autoral através do objeto-livro? Em primeiro lugar, trata-se de averiguar tipologias. Que livros e que autores? Diferentes livros e diferentes autorias implicam diferentes conceções de crítica e de história. Conforme veremos, o livro ilustrado está normalmente associado a públicos mais jovens, tem motivações mais ou menos comerciais e é de fácil categorização, sobretudo porque na maioria dos casos obedece a formatos e géneros tradicionais, perfeitamente delimitados pela indústria e mercado livreiros. Os livros produzidos por um único autor que, pela sua complexidade, ambiguidade ou dificuldade, escapam a esta hierarquização requerem uma crítica mais especializada, atenta às suas idiossincrasias e desvios. Esta não será ainda a forma mais adequada de delimitar o universo de livros que interessa a este estudo, contudo revela a perigosa diversidade de territórios abrangidos pelo “livro ilustrado”, que pode ser entendido como o livro ilustrado tradicional ou como um “livro de artista”. Toda a bibliografia e estudos sobre o livro referem que o livro ilustrado nasceu com o códex e só conquistou um terreno próprio no século XIX, atravessando os territórios do pedagógico, do enciclopédico e do infanto-juvenil. No século XX deu origem a múltiplas experiências, definindo um género que em inglês se designa por picture book. Como veremos mais à frente, o livro de artista teve uma série de precedentes, mas parece ter nascido realmente com as vanguardas russas, que produziram objetos-livro totalmente concebidos e estruturados pelo seu autor único, exprimindo uma “política de autor”1. Contudo, as fronteiras são, muitas

                                                                                                               

1 A política dos autores foi um termo criado nos anos 50 pelos jovens críticos da revista Cahiers du Cinéma para apresentar uma perspetiva da crítica cinematográfica. Para estes teóricos da Nouvelle Vague os grandes realizadores eram artistas ou "auteurs", da mesma

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vezes, difusas e o livro ilustrado pode abranger diferentes territórios. Se acrescentarmos a este mapa a banda desenhada, o romance gráfico2, a fanzine, e outras tipologias de livros que promovam o casamento de texto e imagem, a definição tornar-se-á mais complexa e o esforço de classificação mais difícil. Estes livros fogem às classificações habitualmente aplicadas aos livros ilustrados, revelando uma marca autoral muito vincada que é, muitas vezes, a caraterística que os distingue. É, aliás, frequente a utilização de termos como “livro de autor”, “ilustração de autor”, ou outros semelhantes, para classificar este tipo de trabalho mais pessoal. Por outro lado, a forma como a maioria deste livros são publicados é igualmente reveladora da sua diferença, sendo frequentes as edições de autor com tiragens limitadas e as apresentações em contextos não literários. É como se estes livros tivessem um espaço exclusivo, à parte de todos os outros, que podem mais facilmente ser incluídos num género, formato ou coleção. Não se trata de afirmar a superioridade do trabalho solitário sobre o trabalho colaborativo. É óbvio que Where the Wild Things Are (1963), de Maurice Sendak, não seria o mesmo livro se as ilustrações fossem feitas por outro ilustrador – seria outro livro. O objetivo nunca será fazer juízos valorativos – infundados ou irrelevantes –, mas procurar a diferença na abordagem singular que é o trabalho de um único autor, com um programa e uma identidade próprios. O livro ilustrado concebido por autores em colaboração não é objeto de estudo desta investigação, embora fosse interessante analisar de que forma se produz a univocidade do objeto-livro produzido por várias pessoas. No entanto, apesar do autor único ser o tipo de autoria que nos interessa, o tema da univocidade continua a revelar-se pertinente. Mais do que comparar autorias, é importante analisar de que forma o livro com textos e imagens do mesmo autor consegue produzir uma "voz" e perceber a escolha do objeto-livro como meio privilegiado para afirmar a tal "política de autor". Neste aspeto, os estudos sobre os livros de artista serão de grande utilidade. Tendo em conta a variedade de abordagens possíveis ao objeto-livro – tantas quantas os autores e os livros conhecidos –, seria empobrecedor limitar este estudo a um período específico. Por outro lado, não se tentará fazer uma lista de autores ou livros, mas antes apresentar uma forma de conceber o livro e representar a autoria, procurando as suas origens, possibilidades e inovações. Assim, dada a natureza desta investigação, optou-se por definir como objeto de estudo um conjunto limitado de livros – os case studies –, cujos autores, apesar da versatilidade, apresentam uma relação especial com os livros e o tema da autoria. As diferenças entre estes autores são muitas, mas todos eles produzem segundo as suas regras, controlando na íntegra o processo de criação e produção. Definidos os objetos e considerada a questão temporal, torna-se necessário encontrar uma metodologia crítica adequada. Tendo em conta que a autoria é o tema principal, o recurso ao trabalho de Michel Foucault torna-se indispensável, sobretudo aos livros O Que é um Autor? (1992), onde é analisada a forma como a autoria se estabelece e se explica quem tem legitimidade para atribuir ou reclamar a autoria, e A Arqueologia do Saber (1969), que oferece um conjunto de ferramentas que permitem analisar criticamente os diferentes modos como a informação pode ser apresentada graficamente, representando significados, identidades ou autorias.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              forma que os grandes romancistas, poetas, pintores ou compositores. O filme seria semelhante ao seu realizador, uma obra de arte única e pessoal, como uma pintura ou um livro. Alexandre Astruc refere em “Naissance d’une nouvelle avant-garde: La câmera stylo” (1948) que o autor “escreve” com a câmera. Esta abordagem seria retomada por Truffaut no artigo “"Une certaine tendance du cinéma français"”. 2 A propósito da tradução para português do termo “graphic novel” ou da distinção entre romance gráfico e banda desenhada poderá ser interessante ler o artigo de Pedro Moura em http://lerbd.blogspot.pt/2015/04/coleccao-novela-grafica-coleccao.html

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No capítulo 1 começaremos por explorar o suporte onde é representada a autoria que nos interessa – o livro. A partir de Para ler o livro ilustrado (2011), de Sophie Van der Linden e The Century of Artists’ Books (2004), de Johanna Drucker, procurar-se-á fazer um resumo da história do livro com imagens e referir as suas tipologias, olhando com principal atenção para o picture book tradicional e o livro de artista. Dado o caráter híbrido e elusivo dos livros em estudo, será necessário visitar, ainda que rapidamente, outros territórios importantes, como a banda desenhada e o romance gráfico – géneros que contribuem de forma inequívoca para algumas propostas inovadoras de livros que juntam texto e imagens.3 Será igualmente importante referir a importância do design gráfico neste trajeto, dada a forma como muitas vezes o autor concebe o objeto-livro e opta por determinadas soluções de composição ou formato. A partir desta contextualização será possível analisar mais eficazmente os livros que escapam às classificações convencionais, apurando géneros e subgéneros, e refletindo sobre outras questões importantes, como a finalidade do livro ou o público-alvo. Em seguida, no capítulo 2, procuraremos analisar a problemática da autoria no âmbito do livro ilustrado, começando por aclarar as diferentes maneiras como este conceito é aplicado/considerado no universo literário. De uma forma geral, todos os estudos sobre a autoria referem as ideias de M. Foucault e R. Barthes. Muitas dessas interpretações partem de leituras fragmentadas e descontextualizadas dos textos que tratam a questão da autoria de forma mais direta – A Morte do Autor (1984), de Barthes, e O Que é um Autor? (1992), de Foucault. Ambos propõem esquemas de análise crítica de grande utilidade, embora seja necessário entender o contexto em que foram produzidos e a relação com o corpo de investigação dos dois autores. Por outro lado, a reflexão sobre a autoria deve partir de uma compreensão histórica do conceito, uma vez que o mesmo assume ao longo do tempo significados muito diferentes. Assim, será apresentado um resumo da história da autoria, aflorando essencialmente os temas da atribuição e da influência, para depois analisar criticamente a reconquista contemporânea do conceito face às leis do mercado. O objetivo da primeira parte deste estudo, constituída pelos dois primeiros capítulos, é apresentar o contexto teórico do tema. Na segunda parte, o objetivo é apresentar a metodologia de análise crítica para depois a aplicar nos case studies definidos. Tendo em conta as "distorções habituais" na aplicação do método de Foucault, usaremos como referência o close-reading do livro onde é exposto, A Arqueologia do Saber (1969), efetuado por Mário Moura na sua tese de doutoramento, intitulada O Big Book - Uma Arqueologia do Autor no Design Gráfico.4 Assim, no capítulo 3, procuraremos aplicar o seu esquema conceptual aos livros ilustrados concebidos por um único autor, através da análise dos livros escolhidos. Finalmente, o capítulo 4 apresenta e trata criticamente o livro que constitui a componente prática do nosso projeto, analisando aspetos conceptuais, formais e técnicos. Este capítulo assume, por isso, a forma de um relatório que, em conjunto com a base teórica fornecida pelos capítulos anteriores, permitirá chegar a algumas conclusões e, idealmente, dar origem a novas perguntas.

                                                                                                               

3 Para esta visita foram importantes diversas leituras de artigos e páginas da Web, além de obras especificamente dedicadas à banda desenhada, como Understandig Comics (1993), de Scott McCloud, Theory of Comics & Sequential Art (1985), de Will Eisner ou The System of Comics (1999), de Thierry Groensteen. 4 Mário Moura parte do estudo crítico de publicações feitas por designers gráficos sobre o seu próprio trabalho na segunda metade da década de 1990, para compreender o papel que a autoria desempenha dentro da área disciplinar do design gráfico, na sua história, crítica e prática. A sua investigação foi muito útil para este estudo, não apenas por tratar um tema próximo e fazê-lo de uma forma consistente e sustentada, mas também pela metodogia usada na análise de livros com texto e imagem.

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CAPÍTULO 1 – O LIVRO Como analisar o álbum ilustrado? Que ferramentas utilizar neste objeto que traz características tanto da literatura quanto da ilustração, apresentando elementos das histórias em quadrinhos e do cinema? Como construir uma análise que não seja o resultado de um malabarismo desajeitado de teorias emprestadas dessas diferentes mídias?” (LINDEN, 2011) 1.1 FORMA E FUNÇÃO

O livro pode ter diversas funções ou objetivos – informar, comunicar, apresentar, provocar. Pode ser classificado segundo vários aspetos – pelo conteúdo, pelo formato, pela linguagem. Pode estimular novas criações, metáforas da sua própria forma – como os livros de artista ou as abordagens conceptuais na escultura e na performance. As novidades tecnológicas reinventam permanentemente a sua forma e a forma como o lemos. O livro electrónico, o hipertexto, a interatividade e as novas funcionalidades em rede transformam a nossa noção de livro e constituem um desafio ao livro como o entendemos, já com alguma nostalgia: em papel, impresso e encadernado, produzido em série através de processos industriais, editado e distribuído através de editoras e livrarias, lido na biblioteca ou carregado numa mochila. Ainda assim, a discussão atual em torno do seu fim não parece fazer sentido, uma vez que nunca se publicaram ou produziram tantos livros, de todos os géneros e tipologias. Apesar da adaptação aos formatos electrónicos, livros, jornais e revistas em papel continuam a ter leitores. A portabilidade do livro e a facilidade do seu manuseamento – sem botão on-off, apps ou wifi – continuam a assegurar um papel importante para o livro em várias áreas: informação, ciência, didática, entretenimento ou arte.5 Como produto intelectual, encerra conhecimento e expressões individuais ou coletivas. Mas é também uma forma, uma estrutura, um objeto com caraterísticas e cânones específicos – e esses aspetos também podem ser objeto do trabalho intelectual ou artístico. Por outro lado, é um produto de consumo. A produção é realizada através de meios industriais e a distribuição é feita através de circuitos comerciais. As tarefas no processo de produção de um livro estão claramente definidas e os livros enquadram-se normalmente em tipologias conhecidas e consolidadas. Não é um objetivo deste estudo fazer a história exaustiva do livro ou descrever todas as suas formas, tipologias ou funções. O foco são livros com caraterísticas específicas. Ainda que, como iremos ver mais à frente, sejam vários os territórios abordados pelos livros em estudo, podemos dizer que se tratam de livros com texto e imagem, independentemente de serem classificados como livros ilustrados, álbuns, livros de artista ou narr3ativas visuais. Estas categorias partilham a mesma história, fundada na possibilidade de utilizar o livro como um volume portátil, composto por páginas encadernadas que contêm texto e imagens e formam

                                                                                                               

5 No livro Não contem com o fim do livro, de Jean-Claude Carrière e Umberto Eco, é apresentada uma conversa sobre a história e o futuro dos livros, intermediada pelo jornalista Jean-Philippe de Tonnac. Os autores percorrem cinco mil anos de história, defendendo a imortalidade do objeto como o conhecemos, apesar dos e-books e da internet. Se "carregar" livros num aparelho electrónico portátil os protege do pesadelo de O Nome da Rosa – onde os volumes são consumidos pelo fogo –, devemos considerar, como afirma Carrière, que não há “nada mais efémero do que os suportes duráveis”. Hoje ainda podemos ler um texto impresso há cinco séculos, mas somos incapazes de ler e ver cassetes ou CD-ROM com poucos anos de idade, a não ser que guardemos os velhos computadores ou gravadores de vídeo. Ainda segundo Eco, “se a memória visual e sonora do século XX se apagar durante um blackout, ou de outra maneira qualquer, sempre nos restará o livro”.

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uma publicação unitária. Não surpreende, portanto, que muitos aspetos históricos referidos por Johanna Drucker no livro The century of artists books sejam também apresentados por Sophie Van der Linden em Para ler o livro ilustrado, como aliás acontece com outros trabalhos de investigação sobre o livro, e mais particularmente o livro com texto e imagens. Tanto o livro ilustrado como o livro de artista evocam as duas linguagens e ambos podem constituir propostas de significação articulada, requerendo do leitor uma apreensão conjunta do que está escrito e é mostrado. Texto e imagem requerem atenção, conhecimento dos respetivos códigos e um esforço de interpretação. Mas ler um livro que articule texto e imagens de uma forma dinâmica e não redundante não se resume a ler texto e imagem. Requer também a apreciação do uso de um determinado formato, de enquadramentos, de conceitos, de relações estruturais, etc. Além disso, a sua leitura produz associações dos mais diversos géneros e frequentemente exige do leitor o conhecimento de determinados códigos literários ou visuais. Esta visão global é, como já referimos, a base para muitos trabalhos de investigação sobre o livro. No entanto, apesar da diferença ao nível das motivações e objetivos, estes estudos partem de uma definição do livro não apenas como um objeto capaz de produzir sentido, mas como um conjunto coerente de interações entre textos, imagens e suportes. As histórias do livro ilustrado ou do livro de artista não estão ainda escritas. No entanto, têm surgido nos últimos anos importantes contributos para ambas. Apoiados em algumas dessas pesquisas, tentaremos apresentar algumas referências fundamentais para a compreensão da evolução do livro com texto e imagens. 1.2 AS ORIGENS DO LIVRO

O formato do livro tal como hoje o conhecemos, o codex, sucedeu ao volumen (rolo) no período romano e foi concebido para conter um texto. No entanto, a imagem ganhou um espaço cada vez maior e em muitos casos tornou-se até predominante. Dos mais antigos até aos contemporâneos, o status e a função da imagem foram sendo alterados, redefinindo tipologias e desafiando classificações tradicionais. Obviamente, a história do livro é também uma história de inovações técnicas que permitiram melhorias no acesso à informação, no manuseamento e na produção dos livros.6 Para perceber as mudanças na relação entre as duas linguagens é fundamental observar a forma como evoluiu a produção e impressão – conjunta ou separada – de textos e imagens de um livro. As inovações tecnológicas permitiram aumentar o número de imagens no livro e repensar a sua articulação com o texto, considerado nas primeiras publicações o elemento principal. Em 1835 Rodolphe Töpffer realizou desenhos acompanhados de texto manuscrito, definindo o seu trabalho como obras "de natureza mista":

Ce petit livre est d’une nature mixte. Il se compose d’une série de dessins autographiés au trait. Chacun de ces dessins est accompagné d’une ou deux lignes de texte. Les dessins, sans ce texte, n’auraient qu’une signification obscure; le texte, sans les dessins, ne signifierait rien. Le tout ensemble forme une sorte de roman d’autant plus original, qu’il ne ressemble pas mieux à un roman qu’à autre chose. (TÖPFFER, 1837)

                                                                                                               

6 Além da bibliografia específica do trabalho, consultamos e cruzamos informação disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Book, http://www.csu.edu.au/faculty/arts/humss/art317/form/briefhist.htm e http://www.britannica.com/topic/publishing

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Esta apresentação de vinhetas articuladas entre si, numa lógica sequencial, faz com que Töpffer seja hoje considerado o inventor da banda desenhada, tendo influenciado a forma como são postos em diálogo a narrativa verbal e os desenhos.7 O desenvolvimento dos procedimentos de impressão possibilitou a multiplicação de obras que abrigam carateres tipográficos e imagens nas mesmas páginas, respondendo às necessidades de criadores, editores e leitores. A evolução do livro ilustrado infantil, por exemplo, contribuiu decisivamente para alterar o papel da imagem no livro e para formar uma visão mais global do livro, atendendo à sua materialidade e manuseamento. Nos últimos anos, o livro de artista e o livro ilustrado inspiraram comentários e análises aos críticos das mais diversas disciplinas, sendo frequente a sua assimilação no discurso literário. Como campos de atividade transdisciplinar, estão sujeitos a uma permanente reconfiguração, suscitada por artistas, críticos, leitores ou bibliotecários. As definições e categorizações produzidas pelos vários agentes nem sempre coincidem e são, muitas vezes, contraditórias. Esta investigação não pretende fazer a história do livro ilustrado ou do livro de artista, apresentando definições e tipologias. O nosso estudo está mais focado na análise das relações entre géneros e subgéneros, e na forma como é representada a autoria ou afirmada a identidade autoral. 1.3 LIVRO ILUSTRADO 1.3.1 INTRODUÇÃO

O livro ilustrado moderno inverteu o papel tradicional dos dois elementos principais. A imagem torna-se predominante e sucedem-se as inovações na sua articulação com o texto, ao nível da organização espacial e da relação semântica. Como obras de natureza mista, levam mais além a relação de imagens e textos sobre o suporte, passando do espaço da página para o livro inteiro. As páginas duplas são vistas como espaços narrativos onde os elementos textuais e visuais se tornam indissociáveis. A composição passa a estar ao serviço da expressão e do efeito narrativo, caraterizando-se por uma grande flexibilidade e versatilidade. A ampliação do espaço e do status da imagem dentro do livro está também relacionada com o desenvolvimento do design gráfico e com as suas inovações ao nível da composição, tratamento tipográfico e combinação de linguagens. Nos livros produzidos a partir do século XX é evidente a noção de design global, havendo uma clara preocupação com todos os aspetos que constituem o livro, nomeadamente a sua materialidade. Por outro lado, com as inovações propostas pelos movimentos de vanguarda do século XX, é introduzida uma nova conceção da imagem, capaz de inúmeras representações e simbologias. O envolvimento dos artistas com os livros é muito variado e dá origem às mais diversas produções: livros fotográficos, livros com imagens abstratas, livrosimagem, livros de artista, romances gráficos, ensaios visuais, etc. A segunda metade do XX é marcada por essa vontade de experimentar e inovar nas técnicas e na articulação de linguagens e, nesse contexto, as pequenas editoras e os próprios autores procuram explorar e propor novos caminhos para o livro, usando a fotografia e estilos pictóricos mais arrojados, produzindo livrosimagem e livros com estruturas não-narrativas, ou destacando o caráter literário de uma poesia híbrida. No entanto, apesar da importância das mensagens visuais ou linguísticas, os conteúdos são trabalhados em fun-

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https://www.lambiek.net/artists/t/topffer.htm

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ção do suporte e da materialidade do livro, alargando a experimentação a formatos, materiais e ao próprio manuseamento do objeto. A aproximação do livro ilustrado às práticas artísticas contemporâneas é uma marca do século XX e está intimamente relacionada com o aparecimento das pequenas editoras e das edições de autor – com a vontade de inovar, de explorar novas técnicas e estilos, de afirmar a liberdade (e independência) criativa.8 O desenvolvimento do livro ilustrado é marcado sobretudo pela progressiva afirmação do espaço e status da imagem, de tal modo que hoje o livro ilustrado é considerado um “objeto visual a priori” (LINDEN, 2011, p. 21), sem limites em termos de tamanho, materiais, estilo ou técnica. A sua produção é cada vez mais elaborada e todos os aspetos são cuidadosamente estudados, contribuindo para a tal visão global do livro. Entendido desta forma, o livro ilustrado requer uma crítica igualmente atenta e cuidadosa. 1.3.2 TIPOLOGIAS, CLASSIFICAÇÕES E CRITÉRIOS

A designação dada aos livros que contêm texto e imagens não é universal e varia de acordo com os próprios livros, o público-alvo ou os países onde são publicados. O livro ilustrado infantil, por exemplo, pode ser chamado de album na França, álbum ilustrado em Portugal ou picture book nos países anglo-saxónicos. Para tornar ainda mais complicada esta questão, o termo álbum é também usado noutras produções, como a banda desenhada, apesar de nenhum dicionário atual relacionar o termo com os livros referidos. Ainda no contexto do livro ilustrado infantil, as tipologias são muitas: livros com ilustração (onde o texto sustenta a narrativa), primeiras leituras (entre o livro ilustrado e o romance), livros ilustrados ou álbuns (onde a narrativa se faz na articulação entre textos e imagens), banda desenhada (que articula imagens compartimentadas, mas solidárias), livros pop-up (que apresentam dispositivos de transformação espacial do livro), livros interativos (que se apresentam como suporte para diversas atividades), entre outros. Como Linden explica no seu livro (2011, p. 26), a classificação dos livros através da forma como são articulados os elementos textuais e visuais é frequentemente difícil, ou mesmo impossível. Distinguir os livros pelo seu conteúdo também parece levantar bastantes dificuldades, uma vez que cada uma das tipologias referidas pode desenvolver qualquer discurso. Contos, poesia ou documentários podem aparecer em livros ilustrados, livros pop-up ou de banda desenhada. Outra distinção frequente é entre livros de ficção e informativos, mas em muitos casos – como acontece com alguns livros didáticos – a informação está "escondida" numa narrativa. Distinguir obras utilitárias e obras de expressão artística e literária também não parece uma solução adequada, já que muitos livros com uma missão essencialmente informativa ou educativa resultam frequentemente de um trabalho original de criação, de exploração plástica ou poética. A distinção entre livros ilustrados, livros de artista ou livros de arte revela-se ainda mais complicada, tendo em conta as propostas transdisciplinares e a forma como os diversos territórios se cruzam. Esta noção da dificuldade em definir fronteiras e limites para o livro é, aliás, uma das ideias-chave do nosso estudo e influenciou a escolha dos case studies. Mais do que difícil, ou mesmo impossível, a demarcação de fronteiras é sobretudo desnecessá-

                                                                                                               

8 Em Para ler o livro ilustrado, Sophie Van der Linden apresenta uma história sucinta do livro ilustrado, transformado em álbum, centrada sobretudo na produção europeia e com particular destaque a autores e editores franceses e ingleses. A história começa na europa, mas os livros tornam-se território para a criatividade e invenção de artistas de todas as origens: “Esse tipo de livro passa por uma ampla efervescência criativa que há não tem limites em termos de tamanho, materialidade, estilo ou técnica, e toda a sua dimensão visual, inclusive tipográfica, é em geral elevadíssima.” (LINDEN, 2011, p. 21)

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ria.9 Outra das fórmulas usadas para distinguir livros de "natureza mista" é a do público-alvo. Apesar de concebidos como livros ilustrados para crianças, muitos livros são considerados pelos adultos como sendo demasiado elaborados, complexos ou herméticos para crianças. Livros que hoje são apresentados como precursores do livro de artista e ocupam um lugar na história da arte foram também pensados para o público infantil. O livro ilustrado para crianças foi e continua a ser, aliás, um território de experimentação por excelência para artistas, fotógrafos ou designers, quer estejam integrados num movimento ou trabalhem de forma independente. William Blake dizia que toda a criança seria capaz de se deleitar ao ouvir os cantos compostos por ele; El Lissitzky convidava todas as crianças a participar na leitura construtiva do livro ilustrado; Kurt Schwitters foi coautor de um livro ilustrado para crianças marcado pelo absurdo dadaísta; os artistas surrealistas reinventaram muitas das fórmulas mais comuns nos livros ilustrados para crianças… Na segunda metade do século XX, com uma produção fortemente influenciada pelo design, destacam-se as propostas de Bruno Munari, Katsumi Kamogata ou Paul Cox. Depois de 1960, Dieter Roth, Marcel Broodhaers e outros artistas conceptuais adoptam o objeto-livro como espaço criativo, transformando o livro num ato plástico e poético que remete para os domínios da estética, da história fragmentada e da narrativa não linear. O livro de artista parece significar, finalmente, a conquista de um novo território, influenciando a produção de livros com imagens. Hoje, o livro ilustrado pode ter vários destinatários e as editoras podem apresentar coleções dedicadas a crianças, jovens ou adultos. Outras preferem uma posição mais abrangente:

Temos como leitores não apenas as crianças, mas todos os pais e adultos que gostam de álbuns ilustrados e da sua forma única de contar histórias. Sabemos que os nossos livros não são por vezes os mais “fáceis”, mas gostamos de pensar que um álbum ilustrado é um ponto de encontro entre leitores de várias espécies, que uns abrirão portas aos outros, que grandes e pequenos saberão encontrar as suas próprias chaves na descoberta de um livro. (texto

de

apresentação

da

editora

Planeta

Tangerina,

disponível

em

http://planetatangerina.com/pt/ola)

O livro ilustrado não é, portanto, um género. Nele podemos encontrar uma linguagem que assimila géneros literários, linguagens e abordagens plásticas. Pode conter uma história policial, um poema ou um conto infantil. Pode ser construtivista, futurista ou conceptual. Pode conter uma narrativa, um poema absurdo ou apenas imagens. Mais do que livros que se destinam a públicos específicos, os livros ilustrados podem ser entendidos como um espaço de expressão para artistas ou ilustradores, podem libertar-se da narrativa e do texto, oferecer uma infinidade de estilos plásticos e novos horizontes ao leitor. Atraem artistas, ilustradores e designers pelas suas qualidades formais e pela liberdade criativa que oferecem, independentemente do públicoalvo a que se estes se dirijam.

                                                                                                               

9 A propósito do livro O Escapista/The Escapist, de Tiago Manuel, diz Pedro Moura: “(...) se bem que uma bd que vive sempre no limiar de o ser. Provavelmente sem o desejo sequer de o ser. É um trabalho que parece querer valer-se por si próprio, e não como subordinado a categorias, géneros, expectativas de estilo, etc., não obstante lançar pontos de contacto numa série de outros territórios pela sua própria existência”. (Disponível em lerbd.blogspot.pt/2005/07/o-escapistathe-escapist-tim-morristm.html). Alexander Theroux, em The Strange Case of Edward Gorey (2011, p. 7), afirma: “Gorey's is an unclassifiable genre: not really children's books, neither comic books, nor art stills”.

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1.3.3 ORGANIZAÇÃO INTERNA - IMAGENS

Na última década do século passado, em virtude do aparecimento de editoras independentes e propostas inovadoras, as fronteiras entre o livro ilustrado e outras áreas, como a banda desenhada, tornaram-se mais difusas. No entanto, apesar da inovação ao nível da narrativa, apenas muito raramente estes livros questionaram o livro como um todo, trabalhando forma e conteúdo. A evolução dos livros de artista e da banda desenhada experimental deu a conhecer ao livro ilustrado novos caminhos e possibilidades. De facto, a diversidade do livro ilustrado não resulta apenas da liberdade estrutural que oferece, mas das influências cruzadas do livro com ilustração e da banda desenhada – dois polos de enquadramento da imagem. Partindo da terminologia proposta por Sophie Van der Linden (2011, p. 44), apresentamos de seguida as organizações mais frequentes.

Imagens isoladas Neste caso, ao nível da organização interna, imagem e texto aparecem normalmente em páginas distintas, numa estrutura reminiscente do livro ilustrado tradicional. Além disso, as imagens são isoladas porque funcionam separadamente, sem se confrontarem na dupla página. São imagens independentes, que não interagem entre si, estando separadas ao nível da expressão e da narrativa. Estão normalmente rodeadas de texto e são autónomas das imagens precedentes e das seguintes.

Imagens sequenciais A banda desenhada faz o contrário da imagem isolada, propondo sequências de imagens articuladas. Cada vinheta de uma banda desenhada é uma parte do todo – um discurso que se enuncia de forma sequencial. As imagens são solidárias entre si e cada vinheta está intimamente ligada às outras que a rodeiam, articuladas de um ponto de vista icónico e semântico. Muitos livros ilustrados usam as imagens sequenciais sem recorrer aos códigos da banda desenhada. Quando as imagens se relacionam e o sentido se faz pela sua cadência estamos também na presença de imagens sequenciais.

Imagens associadas É possível encontrar outros tipos de imagem no território do livro ilustrado. Muitos livros revelam uma tensão entre o desejo de autonomia da imagem e o seu compromisso com a narrativa. A imagem nesses livros ilustrados afirma-se algures entre a imagem isolada e a imagem sequencial. As imagens não são completamente independentes ou solidárias – são imagens associadas.

Imagens combinadas Este quarto tipo de imagem é mais raro e acontece quando artistas ou ilustradores combinam os tipos de imagem anteriores, revelando um grande domínio da linguagem sequencial e dos códigos visuais. A combinação destes vários tipos de imagem permite criar diferentes ritmos de leitura. Pode fazer o leitor demorar-se numa dupla página cheia de pequenas imagens justapostas, inserindo-o numa narrativa, para na dupla página seguinte mostrar apenas uma imagem emoldurada e um bloco de texto em páginas separadas. Pode também fazer conviver diferentes tipos de imagem numa única dupla página. Este tipo de imagem híbrido permite um 10

maior controle dos tempos, numa lógica de enquadramentos e planos quase cinematográfica, criando um fio condutor invisível que orienta o leitor entre as duplas páginas. Enquanto as imagens isoladas organizam o tempo na alternância com o texto, nas imagens sequenciais e associadas o tempo entre as duas imagens é normalmente determinado pela ação e o desenho assume nesse aspeto um papel fundamental. 1.3.4 ORGANIZAÇÃO INTERNA - TEXTOS E IMAGENS

O livro ilustrado pode incluir, como já vimos, uma grande diversidade de géneros e, como tal, o tratamento do texto pode dar origem a produções completamente diferentes. O texto pode ser mais extenso ou mais curto, dependendo, por exemplo, do público a quem se destina o livro. Pode ser escrito propositadamente para o livro ou existir previamente e ser adaptado. Um livro ilustrado pode conter diferentes usos da componente textual, mas também pode não ter qualquer texto. Neste caso, o discurso não está escrito, mas requer a enunciação. Ainda assim, na maior parte dos casos, o texto dos livros ilustrados é elíptico, curto e incompleto. Artistas e ilustradores veem o livro ilustrado com um conjunto coerente, podendo intervir no formato e materiais usados ou estender a sua criatividade aos espaços da capa, guardas, folha de rosto ou ficha técnica. Este controle total do processo de criação, que inclui os elementos tipográficos, está relacionado com a metodologia do design e é facilitado pelas novas tecnologias de produção, que permitem que o autor concentre em si todas as tarefas envolvidas na criação do livro. Se na maioria dos livros ilustrados muitas destas questões obedecem a uma estratégia de marketing, em algumas produções os criadores assumem o controle total do livro, procurando transformá-lo num conjunto coerente, através da articulação do texto, da imagem e dos elementos paratextuais. No livro ilustrado o texto e as imagens dispõem-se livremente pelo espaço da dupla página. Depois do gesto inovador de Mallarmé em Un Coup de Dés Jamais N'Abolira le Hasard (1914)10, a organização das diferentes mensagens deixou de respeitar a rigidez da compartimentação obrigatória por página. Mais do que um espaço maior para trabalhar o texto e/ou as imagens, a dupla página pode ser explorada em termos de composição, sequência, leitura, tempo, etc. Interessa então perceber quais os tipos de composição mais frequentes, ou seja, quais as formas mais usadas na articulação das duas linguagens, visual e verbal. Partimos, mais uma vez, da proposta de Linden (2011, p. 68).

Dissociação Este é um esquema tradicional de composição que alterna imagens e texto em páginas separadas. É um esquema clássico, uma vez que imagens e texto começaram por estar separadas devido às limitações ao nível das técnicas de impressão. Com o uso dos computadores essas limitações deixaram de existir, mas o esquema continua ser utilizado por muitos autores por diferentes motivos. A leitura é normalmente mais pausada.

Associação Neste caso, no espaço de uma página é possível encontrar pelo menos um enunciado verbal e um enunciado

                                                                                                               

10 Poema cuja combinação inovadora de verso livre e layout tipográfico antecipou o interesse no design gráfico e na poesia concreta durante o século XX. O poema está disposto por vinte páginas e usa vários tipos de letras sobre vastas áreas a branco. Cada dupla página deve ser lida como um único painel, por onde o texto flui livremente, através de percursos irregulares.

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visual. A dobra da dupla página deixa de ser a separação entre estes dois tipos de enunciado, que podem ser mais ou menos misturados, dependendo do efeito pretendido. A leitura é geralmente dinâmica, uma vez que os elementos textuais são quase sempre curtos e rodeados de imagens. Em alguns casos, o texto pode quase fazer parte da imagem, partilhando o mesmo espaço plástico ou semântico.

Compartimentação Este esquema competitivo aproxima-se dos códigos usados pela banda desenhada, dividindo o espaço da página ou da dupla página em várias imagens emolduradas. O texto está próximo ou dentro dessas molduras. Apesar da aproximação à linguagem da banda desenhada, o livro ilustrado usa este tipo de organização de maneira diferente. As imagens são geralmente maiores e em maior número e estão mais condicionadas pelo movimento de continuidade entre páginas.

Conjunção Tal como acontece com esquema de associação, este tipo de composição mistura diferentes enunciados na mesma página. No entanto, as mensagens visuais e verbais leem-se em conjunto, enquanto na composição associativa são normalmente lidas em sucessão. Textos e imagens não se encontram em espaços reservados, mas convivem numa composição geral, muitas vezes em página dupla. Os enunciados estão interligados e não justapostos. Os textos fazem parte da imagem, fundando os dois elementos num enunciado misto. Eles são, portanto, indissociáveis, uma vez que ambos participam no âmbito da expressão plástica e da produção de sentido. Esta organização é próxima da do cartaz e permite construir um discurso mais poético do que narrativo. Além disso, favorece uma exploração menos condicionada das mensagens por parte do leitor.

Estes são os mecanismos mais tradicionais na articulação de diferentes enunciados. Contudo, o livro ilustrado continua a evoluir nas opções de composição. Ao combinar os códigos do livro ilustrado com os códigos da banda desenhada, do livro de artista, do cartaz ou do cinema, os criadores contemporâneos continuam a produzir soluções inovadores, dando a conhecer novos caminhos para o livro ilustrado. Mesmo recorrendo apenas a códigos clássicos, muitos artistas e ilustradores alteram as relações habituais entre os enunciados verbais e visuais, reinventando as formas tradicionais. Um esquema dissociativo não significa, por exemplo, que a ilustração esteja subordinada ao texto ou que os dois elementos sejam redundantes. O livro ilustrado contemporâneo não é apenas uma combinação de imagens e textos. A relação entre estes elementos é de “interdependência”11, uma vez que o sentido emerge da interação entre ambos. O livro ilustrado é texto e imagem no espaço do objeto-livro e para o seu sentido contribuem a disposição dos elementos no suporte, a sequência produzida por textos e imagens, o formato, os materiais, etc. 1.3.5 SEMÂNTICA, LEITURA E AUTORIA

Se as questões relativas ao funcionamento interno do livro ilustrado são relativamente consensuais, o mesmo não acontece com as relações entre textos e imagens. Esta relação é objeto de vários estudos e teorias, que

                                                                                                               

11 “As an art form [picturebook] hinges on the interdependence of pictures and word. On its own terms its possibilities are limitless.” (BADER, American Picturebooks: from Noah’s Ark to the Beast Within, 1976, apud LINDEN, 2011)

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propõem categorias, classificações ou critérios para distinguir vários tipos de livros ilustrados.12 No entanto, estas propostas, na sua maioria, misturam os aspetos formais, temporais, espaciais e semânticos, que talvez devessem ser analisados separadamente. Não pretendemos fazer um estudo exaustivo desses aspetos, embora a relação entre texto e imagem seja fundamental na análise dos livros escolhidos. Além da relação entre enunciados verbais e visuais, importará também perceber as funções que cada um deles desempenha perante o outro.13 Uma outra questão fundamental prende-se com o pontos de vista que são revelados pelo texto e pelas imagens. A noção de focalização aplicada à narratologia permite distinguir quem vê de quem fala. O narrador pode adotar o ponto de vista de uma personagem – focalização interna – , pode assumir um ponto de vista geral sobre a narrativa – focalização externa – ou ser omnisciente se fizer as duas coisas – focalização zero.14 A questão da focalização pode tornar-se mais difícil se o livro ilustrado se aproximar de territórios contíguos, como o livro de artista ou a banda desenhada experimental. Associada à noção de autoria, a pergunta "quem fala?" ganha uma dimensão mais complexa. O narrador é o autor? Qual o papel do autor em relação à narração? A dimensão autobiográfica dos projetos de autor, a importância declarada ou encoberta da autoria, o uso de heterónimos, pseudónimos e anagramas, são aspetos que participam nos pontos de vista assumidos no livro. A relação com o leitor é a outra face da autoria. Quem lê o livro? Quem é o seu destinatário? Seja qual for a mensagem ou o conteúdo do livro, autores e ilustradores procuram a cumplicidade do leitor, ou pelo menos o seu envolvimento. O livro ilustrado apresenta-se frequentemente como uma obra aberta, capaz de sugerir vários percursos de leitura ou aproveitar as suas fronteiras para fornecer pistas ao leitor. Tende a ser cada vez mais complexo, rompendo com hábitos e convenções de leitura, combinando vários enunciados e produzindo diferentes interações dentro do mesmo suporte. No livro ilustrado contemporâneo a relação do leitor com o livro (e com o autor) pode estender-se para além das fronteiras do livro aberto; o sentido pode ser produzido de várias maneiras e não apenas através de uma sequência de páginas consecutivas. O livro ilustrado, como o livro de artista, resiste aos esforços de fixação de regras de funcionamento. A sua versatilidade e flexibilidade contrariam a tentativa de definir modelos e obrigam a uma revisão permanente das ideias feitas. Estas podem funcionar como pontos de referência para a sua análise, no entanto a crítica deverá partir da singularidade do livro e compreender de que forma ele constitui um conjunto coerente de enunciados que, combinados, produzem sentido. A diversidade, juntamente com as mutações provocadas pelas trocas com outras formas de expressão artística, tornam o seu estudo mais exigente, uma vez que as áreas de estudo envolvidas são muitas e variáveis. A forma como o livro ilustrado troca influências com outras áreas de atividade como a ilustração, o design ou a banda desenhada, requer um referencial teórico igualmente amplo e flexível.

                                                                                                               

12 How Picturebooks Work (2001), de Maria Nikolajeva e Carole Scott, Words About Pictures: The Narrative Art of Children’s Picture Books (1988), de Perry Nodelman, Contemporary Children’s Books: Picturing Texts (2001), de Deniel Lewis, L’image dans le livre pour enfants (1975), de Marion Durand e Gérard Bertrand, entre outros. 13 Perante os vários modelos que apresentam vários tipos de relação entre texto e imagem, Linden refere apenas três: redundância, colaboração ou disjunção. A autora pergunta: “será que texto e imagem podem fazer mais do que repetir, completar ou contradizer um ao outro?” (LINDEN, 2011, p. 120). De seguida, indica as funções que texto e imagem podem desempenhar: repetição, seleção, revelação, completiva, de contraponto e de amplificação. (LINDEN, op. cit., p. 122) 14 Este uso do termo “focalização” deve-se a Gérard Genette em Figures III (1972), no contexto da narratologia. Linden recupera esta noção, aplicando-o ao estudo do livro ilustrado. Refere, no entanto, que “os diferentes tipos de focalização apresentados no texto são duplicados, já que entra em jogo um visão suplementar: a da imagem. A focalização do texto pode convergir ou entrar em contradição com a da imagem.” (LINDEN, 2011, p. 131)

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1.4 LIVROS DE ARTISTA 1.4.1 INTRODUÇÃO

O livro é um interface dinâmico, um conjunto estruturado de códigos para usar e aceder a informação, navegando pela experiência de um trabalho autoral. Os livros são objetos absorventes e complexos e, apesar do impacto das novas tecnologias, o seu número é cada vez maior. As tecnologias de impressão digital e offset, a possibilidade de armazenamento virtualmente infinito de dados, a acessibilidade ilimitada aos mesmos e os novos modelos de produção estendem ainda mais a viabilidade do livro impresso para as novas gerações de autores. Por outro lado, o acesso a meios e ferramentas de produção nunca foi tão fácil. As competências especializadas e o acesso privilegiado a equipamento industrial não são mais um pré-requisito para fazer livros de qualquer género, o que tem efeitos positivos e negativos na qualidade dos trabalhos produzidos. No meio de todos os livros produzidos continuam a proliferar os livros de artista, os livros ilustrados, narrativas visuais e trabalhos experimentais de todo o género, o que confirma a vitalidade do objeto. Pequenas editoras e artistas para quem os livros são o foco do seu trabalho continuam a emergir com todos os perfis imagináveis: edições pequenas ou limitadas, trabalhos estranhos, objetos vocacionados para a intervenção social, objetos predominantemente estéticos, peças de cariz popular ou místico, fanzines, livros para crianças – todos fazem parte da cena atual. O livro está também integrado nos programas académicos e currículos de vários cursos, sendo tratado em termos conceptuais, formais e até materiais. A variedade de trabalhos saídos de todos os meios e territórios demonstra bem a sua vitalidade e versatilidade. No entanto, como refere Johanna Drucker (2004), os aspetos da conceção e da análise teórica não conhecem ainda o mesmo desenvolvimento e a atenção dada à história do livro de artista é reduzida. Quem são os críticos ou historiadores? Quais são as zonas de discurso em que esta área específica pode refletir sobre os próprios valores conceptuais? Existem muitos livros e muitos autores/artistas cujos trabalhos e ideias merecem a atenção crítica especializada, sobretudo quando se verifica a interseção de vários domínios artísticos ou quando a forma do livro é potencializada por outros discursos, como a arte conceptual, a fotografia ou a performance. O número de assuntos disponíveis é enorme; questões temáticas, teóricas, estéticas, formais ou tecnológicas, são caminhos possíveis e necessários para um trabalho crítico sobre estes objetos literários e artísticos inclassificáveis – uma forma de arte com valores conceptuais próprios. Apesar da dificuldade em definir os critérios que delimitam a nossa zona de estudo, mais do que aspetos superficiais de produção, trata-se de perceber o que é o livro, como funciona eficazmente enquanto forma de arte – objeto que integra aspetos materiais e conceptuais. Este capítulo pretende, sobretudo, funcionar como uma introdução para algumas maneiras de pensar o livro criticamente, como uma forma de expressão estética, ou melhor, um objeto físico, material, conceptual e esteticamente complexo.15

                                                                                                               

15 A intenção não, por isso, é desenvolver um estudo sistemático do livro, do livro ilustrado ou do livro de artista. Tendo em conta a natureza híbrida dos trabalhos escolhidos, pretende-se sobretudo refletir sobre a forma como territórios contíguos (livro de artista, livro ilustrado, romance gráfico, álbum infantil, álbum de banda desenhada, etc.) convergem para dar origem a trabalhos inovadores e inclassificáveis.

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1.4.2 O LIVRO COMO PRÁTICA ARTÍSTICA

Os livros têm um estatuto firmado no mundo moderno. Com o design convencional do codex, são objetos portáteis, armazenáveis, de fácil acesso. Numa forma extremamente prática, eles armazenam muita informação de uma forma limpa, arrumada e agradável. A sua estrutura simples é apreciada por todos, mesmo os leitores mais casuais ou os que não gostam de ler. Como objetos de um mercado de produção em larga escala, os livros continuam a ser mais valorizados pelo conteúdo do que pela forma; o aspeto físico ou material é secundário. Quando a produção do livro se integra na prática artística, o livro como um instrumento para o trabalho artístico concretiza o seu potencial de longevidade como uma forma de "intermedia" (termo proposto por Dick Higgins)16. Os livros de artista transformam a própria condição do livro, questionam a sua definição, complicando-a de forma permanente e variada. Ao fazê-lo, complicam também o papel do leitor e do crítico, um leitor especializado. Independentemente de serem impressos de forma tradicional ou através dos mais recentes meios de impressão digital, estes livros contribuem para desmontar alguns dos binómios mais convencionais e tidos como inquestionáveis: forma-conteúdo, comum-raro, original-cópia. No entanto, em todos eles é fundamental a presença visual e percetível o entendimento do livro como objeto, sendo frequente o recurso a códigos da pintura, do cinema, da banda desenhada, e o distanciamento em relação aos tradicionais cânones literários. A dimensão conceptual é alargada e os livros são feitos para ser não apenas lidos, mas vistos, sentidos, pensados – ou tudo isso. A sua produção é normalmente muito cuidada e são frequentemente estranhos, complexos e visualmente ricos. É esta complexidade conceptual e riqueza visual que atrai críticos e estudiosos e dá origem aos mais diversos estudos e reflexões teóricas. No entanto, o cruzamento de territórios e discursos dificulta a definição do objeto de estudo e o mesmo livro pode ser analisado em diferentes contextos e segundo os valores conceptuais específicos de várias áreas de criação. Livro de artista, livro ilustrado, romance gráfico, banda desenhada ou trabalho experimental são muitas vezes rótulos aplicados ao mesmo objeto. Estes livros não são apelativos apenas para os leitores adultos e os críticos. As crianças são também atraídas por eles, contribuindo indiretamente para a proliferação de livros que integram preocupações conceptuais, formais e materiais. Neles é possível observar a autocontenção psicológica, implícita no controle autoral sobre o produto criativo. O livro torna-se resultado da independência mental, da autossuficiência e da liberdade criativa. Mais do que um mero objeto literário, revela a intenção de criar um objeto visual arrojado e afirmativo, cujo magnetismo se deve, em grande parte, à sua estranheza e ilegibilidade. O trabalho manual, a singularidade do objeto e a consequente limitação ao seu acesso contribuíram para aumentar o prestígio de muitos objetos artísticos na civilização ocidental. Os livros, contudo, apenas raramente fazem parte dessa lista. Noutras partes do mundo, os livros têm um valor estético primordial e um incalculável poder político e social. Originalmente, muito do seu valor está relacionado com a singularidade e com o trabalho feito à mão. Os livros únicos, criados de maneira a realçar a sua materialidade, têm um caráter quase sagrado, muito centrado em questões estéticas e materiais. Mais recentemente, o valor dos livros

                                                                                                               

16 O conceito de Higgins é apresentado em 1969 no livro foew&ombwhnw, da Something Else Press, uma editora fundada por Higgins, que publicou trabalhos de poesia concreta e de artistas associados ao movimento Fluxus. “[Intermedia] It is not governed by rules; each work determines its own medium and form according to its needs. The concept itself is better understood by what it is not, rather than what it is.” (Dick Higgins, "Intermedia", republicado em Leonardo, vol 34, 2001, p. 49 - 54, com um apêndice de Hannah Higgins).

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reside não tanto no que o livro parece, mas no que faz – na sua interatividade. O seu uso é agora mais fluido e aberto, dado que é entendido como um espaço conceptual ou performativo. Graças ao uso das estratégias convencionais de produção e distribuição, os livros de artista ou trabalhos experimentais também podem ser reproduzidos em série e comercializados. Contudo, apesar desta possibilidade, continuam a surgir os livros únicos, as edições pequenas ou limitadas, numeradas, assinadas, coloridas pelo autor, etc. Como forma de arte, o livro viu o seu potencial ser aproveitado por indivíduos e movimentos artísticos do século XX, como o futurismo, o minimalismo ou a arte conceptual. Por outro lado, o caráter multimédia, a densidade visual e intelectual, e a privacidade emocional, aliados ao baixo custo e à facilidade de distribuição, são atributos que fazem do livro uma forma privilegiada para artistas e criadores de qualquer época, nomeadamente em momentos de crise económica. Ao contrário de outras formas, mais tradicionais, o livro convida ao compromisso, em muitos casos exige-o. Pode olhar para fora dos seus limites ou para dentro de si mesmo, mas em qualquer um dos casos oferece novas perspetivas do que é ou poderá ser arte. Os livros de artista podem funcionar como documentos, arquivos, ensaios, investigações, manifestos, cartas de amor ou de ódio, narrativas ou semi-narrativas, fantasias ou abstrações, e integrar aspetos da pintura, escultura, cinema, fotografia, instalação, performance, banda desenhada, design, literatura, etc. 1.4.3 DEFINIÇÕES E FRONTEIRAS

Os livros de artista atingiram a maioridade no século XX. O livro The Century of Artists' Books de Johanna Drucker fornece uma perspetiva desta forma de arte, propondo uma história das maiores áreas de atividade ao nível da produção de livros de artista durante os últimos cem anos e oferecendo uma estrutura crítica para análise de trabalhos feitos nesta área. A quantidade de trabalhos produzidos nas últimas décadas e a importância que muitos deles tiveram no contexto da arte moderna e contemporânea, fazem com que os livros de artista sejam reconhecidos como uma forma de arte autónoma, e não um produto secundário de outras formas, tidas como principais. Para esse reconhecimento é necessário cruzar aspetos materiais, conceptuais e críticos e ter em conta todas as dimensões históricas pertinentes para a forma de arte que são os livros de artista.17 Eles continuam a proliferar rapidamente e será difícil encontrar uma época de maior interesse no medium, com cada vez mais artistas e autores a contribuir para o seu desenvolvimento. Um dos principais objetivos do livro de Johanna Drucker é mostrar o leque de trabalhos que podem ser agrupados na categoria de livros de artista, refletindo na sua diversidade, especificidade e identidade. Drucker delimita com eficácia algumas linhas de fronteira da categoria, construindo uma estrutura conceptual sólida que permite decidir o que constitui ou não um livro de artista. O que acontece se os interesses comerciais se sobrepõem à criatividade do artista? Ou quando o conceito de livro se perde e é transformado numa outra forma de arte como a instalação, performance ou escultura? Ainda que alguns livros sejam de difícil classificação, muitos trabalhos não são livros de artista, apesar de se apropriarem do conceito do livro e o usarem numa outra forma. O livro de artista é uma forma de legitimação autónoma, uma afirmação de autoridade. Como uma forma de intermedia cruza em si mesmo aspetos conceptuais, formais e materiais de forma crítica, partindo de uma ideia ou visão. Esta definição está próxima de uma possível definição de design, ou

                                                                                                               

17 The Century of Artists’ Books (DRUCKER, 2014) apresenta e analisa exemplos de várias abordagens no âmbito do livro de artista: múltiplos democráticos, objetos raros e auráticos, variações formais, objetos autorreflexivos, explorações verbais, sequências narrativas e não-narrativas, agentes de mudança social, espaços conceptuais, entre outros.

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design de autor. Relativamente a este tema, a investigação sobre os Big Books realizada por Mário Moura no âmbito da sua tese de doutoramento é extremamente pertinente e forneceu dados importantes para o nosso estudo. 1.4.4 O LIVRO COMO IDEIA E FORMA

No século XX o livro de artista tornou-se uma forma de arte estabelecida e até essencial. Aparece em todos os maiores movimentos artísticos da arte e da literatura, constituindo-se como uma forma autónoma de desenvolver ideias e trabalhos. Por outro lado, os livros de artista desenvolveram-se como um campo à parte, com uma história partilhada apenas parcialmente com as formas de arte mais tradicionais. A partir de 1945 os livros de artista têm os seus próprios praticantes, teóricos, críticos e visionários. Foram muitos os autores que produziram o seu trabalho mais importante no domínio dos livros de artista e cuja complexidade, riqueza e especificidade poderiam ser objeto de uma análise aprofundada, como acontece com pintores, poetas e compositores. Apesar de tudo, definir o livro de artista continua revelar-se uma tarefa difícil. Qualquer definição única ou fechada continua a mostrar-se elusiva, esquiva, dada a flexibilidade e diversidade do trabalho que é feito segundo essa designação. Parece ser mais viável definir uma área de atividade do que tentar uma definição rígida e definitiva dos livros de artista. Esta área existe na interseção de várias disciplinas, territórios e ideias – não nas suas fronteiras. Um livro de artista é um livro criado como um trabalho original de arte e não a reprodução de um trabalho pré-existente. Integra os meios formais da sua realização e produção com questões temáticas e estéticas. Contudo, esta definição levanta uma série de novas perguntas: O que é um trabalho original de arte? Tem de ser um trabalho único? Pode ser uma edição ou um múltiplo? Quem é o autor? O artista que tem a ideia? Ou o artista que faz todo o trabalho envolvido na produção – imprimindo, pintando, encadernando, escrevendo… E quando há processos técnicos que têm de ser partilhados, cada um dos agentes envolvidos tem de ser tido em conta? Que meios de produção podem ser incluídos na categoria? Litografias, linóleos, fotocópias, offset? E que tipo de acabamento? Encadernado, com argolas, colado, em concertina? O livro tem de ter o formato códex ou pode ser um rolo ou baralho de cartas? Uma escultura de um livro com o título inscrito na lombada? Um conceito metafísico explorado numa performance? Algumas das questões levantadas por Drucker revelam a dificuldade de tentar apresentar uma definição única do livro de artista. Mais do que uma categoria onde são colocados trabalhos que vão de encontro a determinados critérios – e da qual outros são excluídos por falharem a definição – os livros de artista surgem como uma zona de atividade.18 A publicação independente, o trabalho manual, a arte conceptual, a pintura, a banda desenhada, o cinema, a fotografia, a poesia experimental, as artes digitais, o livro ilustrado e o livre d'artiste, são algumas das zonas de atividade que participam na produção de livros de artista. O livre d'artiste, contudo, não é um livro de artista – não opera no mesmo espaço conceptual. Não interroga a forma material e conceptual do livro como parte da sua visão, interesse temático ou identidade. Os livros de artista são quase sempre auto-conscientes da estrutura e significado do livro enquanto forma – não apenas um repositório de informação. Os livres d'artiste são frequentemente fruto da visão de um editor

                                                                                                               

18 “If all the elements of activities which contribute to artists’ books as a field are described what emerges is a space made by their intersection, one which is a zone of activity, rather than a category (…)” (DRUCKER, 2004, p. 2)

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e orientados para o mercado, vistos mais como produto com valor comercial. São produções, mais do que criações – exemplos de uma forma clássica e não interrogações do seu potencial conceptual, formal ou metafísico. Contudo, perante os livros existentes, qualquer tentativa de definição através de critérios rígidos estará condenada ao insucesso, dado que se trata de um campo de atividade heterogéneo e em permanente evolução. Os livros de artista exploram a própria forma do livro como conceito artístico, revelando criatividade, ousadia e originalidade. Não são os meios ou a qualidade de produção, ou o tipo de publicação que determinam se estamos perante um livro de artista. A publicação independente surgiu associada aos domínios literário e político, como forma (ideal) de publicar trabalho inovador ou experimental sem que o lucro fosse o principal objetivo. Durante o século XX, muita da produção modernista e vanguardista surgiu através deste tipo de publicação, uma vez que as grandes editoras estavam pouco recetivas a trabalhos experimentais, estranhos ou politicamente ativos. Isto não que dizer, no entanto, que os livros de artista não possam ser rentáveis e que os artistas não possam ganhar dinheiro com os seus livros, mas o ímpeto que dá origem ao trabalho está mais próximo de um desejo de mostrar uma visão, uma ideia.19 Quase todos os movimentos artísticos do século XX participaram na criação de uma história dos livros de artista. Futurismo, dadaísmo, surrealismo, arte conceptual, minimalismo, arte feminista, e outros movimentos com mais ou menos impacto produziram livros que devem ser vistos como exemplos do envolvimento artístico com o livro como forma, e não como produtos secundários dos movimentos aos quais os artistas estão associados. Muitos destas artistas viram o livro como uma forma de interrogar e não apenas como um veículo para reprodução, desenvolvendo, em muitos casos, uma relação vital e duradoura. O livro foi durante o século XX uma forma de explorar aspetos da arte mainstream que não podem ser expressos em telas, esculturas, vídeos ou performances. Ao combinar estas e outras formas de um modo inovador, o livro torna-se uma forma de intermedia, versátil e diverso. Ainda assim, um livro feito por um artista não é necessariamente um livro de artista. Os critérios usados para definir um livro de artista têm de partir de um observador informado, capaz de determinar até que ponto um livro faz uso integral do seu potencial específico como forma, apesar do caráter esquivo. O livro permite estender as possibilidades das artes visuais, música ou poesia, constituindo-se como uma forma com atributos conceptuais e formais únicos. É difícil, e porventura desnecessário, determinar um ponto de origem único para a história dos livros de artista. O trabalho de Ed Ruscha é muitas vezes apresentado como esse ponto de partida, mas não é difícil encontrar exemplos que o precedem no futurismo russo, no surrealismo ou noutros movimentos de vanguarda, tanto da tradição literária como da artística. O livro de artista é uma forma altamente mutável, que não pode ser definida apenas por caraterísticas formais. Por outro lado, a tentativa de encontrar os indivíduos fundadores de uma determinada tradição é uma abordagem histórica datada e pouco relevante. São muitos os inovadores, as genealogias e os territórios envolvidos para que possa ser apresentada uma visão histórica linear, com pontos de origem únicos. Se no início do século passado, os livros de artista seguem ainda de muito perto os seus contextos artísticos ou literários, na segunda metade do século, sobretudo nos anos sessenta e setenta, tornam-se uma atividade cada vez mais autónoma e prolífica. É também a partir daqui que o conceito de livro é explorado através de outras formas e transformado em vídeos, instalações, performances ou esculturas. As artes afastam-se das categorias mais tradicionais e as possibilidades sintéticas do livro de artista – um género híbrido –

                                                                                                                19

“(…) the desire to make a voice heard, or a vision available, fuels artists’ books.” (DRUCKER, 2004, p. 7)

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são cada vez mais apelativas ao artista dos finais do século XX. Muitos destes trabalhos colocam questões pertinentes sobre a identidade do livro e as suas funções cultural, social, poética ou estética. Contudo, seria difícil entendê-los como livros de artista sem esticar em demasia os parâmetros definidos previamente. Interessa perceber o que é um livro quando funciona como tal, quando proporciona uma experiência visual ou de leitura, uma sequência traduzida num espaço finito de texto e/ou imagens. O livro eletrónico levanta também questões complexas, na medida em que funciona também como uma extensão da forma do livro e oferece novas e interessantes possibilidades ao artista. Não há, portanto, critérios específicos para definir o que é um livro de artista, mas há muitos critérios para definir o que não é ou do que se distingue. Está envolvido com um enorme grupo de atividades artísticas, mas não duplica nenhuma delas. É um género único, cada vez debruçado sobre a sua especificidade, mas sem limites vincados, ao contrário de formas mais tradicionais como a pintura ou a escultura. Existe, como já vimos, na interseção de muitos territórios e exige investigação e atenção crítica para que possa emergir na sua especificidade.

There are no specific criteria for defining what an artist’s book is, but there are many criteria for defining what is not, or what it partakes of, or what distinguishes itself from. (...) a form which draws upon a wide spectrum of artistic activities, and yet, duplicates none of them. (DRUCKER, 2004, p. 14) 1.4.5 “PRECEDENTES, POÉTICA E FILOSOFIA”

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Apesar do livro de artista se ter afirmado na segunda metade do século XX, há uma série de antecedentes importantes. Impressores, tipógrafos e editores tinham já consciência do livro como forma e demonstravamno nas suas produções, produzindo trabalhos interessantes ao nível da forma, da relação entre texto e imagem e soluções técnicas ou estruturais inovadoras. Estes livros revelam critério na escolha do papel, das tintas, das técnicas de impressão e encadernação, mas não são livros de artista. São importantes para uma investigação séria sobre os livros de artista, mas não devem ser utilizados na sua conceptualização, uma vez que estão ausentes as componentes filosófica e poética essenciais. No entanto, diversos precedentes genuínos para a prática conceptual dos livros de artista podem ser encontrados nos trabalhos de William Blake, William Morris ou Stéphane Mallarmé, autores que contribuíram ativamente para a história intelectual do livro. O trabalho destes autores é uma parte da história do livro como forma de expressão artística. As suas inovações formais estenderam os parâmetros da relação do artista com o livro, entendido já como objeto de interrogação e não como mero instrumento de apresentação. Esse é um aspeto fundamental no trabalho de Mallarmé, que viu o livro como um projeto metafísico, uma solução poética para problemas filosóficos, traduzidos nas relações entre linguagem e forma, ideias e existência. Mallarmé abordou também o tema da autoria quando afirmou que o livro vive sozinho, sem a ligação ao autor. Para ele O Livro21 não se baseava em funções culturais ou psicológicas, mas funcionava como uma investigação metafísica do objeto – um espaço conceptual onde a forma e a própria experiência humana se concretizariam (DRUCKER, 2004, p. 21-37).

                                                                                                               

20 Este é o subtítulo do segundo capítulo do livro de Johanna Drucker, que pedimos emprestado em virtude da sua assertividade e abrangência (DRUCKER, 2004, p. 21) 21 “(…) Une proposition qui émane de moi tant, diversement, citée à mon éloge ou par blâme — je la revendique avec celles qui se presseront ici — veut, sommaire, que tout, au monde, existe pour aboutir à un livre.” (http://fr.wikisource.org/wiki/Variations_sur_un_sujet/Le_Livre,_Instrument_spirituel)

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Ao apontar os precedentes históricos no âmbito da produção de livros e da investigação do livro como ideia, é possível alargar o horizonte da zona de atividade dos livros de artista antes mesmo de referir as suas múltiplas possibilidades e atributos. O livro tem um inesgotável potencial cultural e metafórico, e mesmo os formatos mais funcionais podem inspirar através de formas, materiais, acabamentos, etc. Cada livro é uma metáfora, um objeto de associações, de significados históricos e culturais, de espaços poéticos ou espirituais, e todas estas caraterísticas fazem parte do repertório dos livros de artista, livros nos quais a forma e a intenção temática são apenas os aspetos mais evidentes da sua totalidade como ideia. Várias formas de atividade gráfica usaram a expressão artística antes do século XX. Durante o século XIX, na França, na Inglaterra e outras partes da Europa, jornais, revistas e cartazes promoveram a aproximação e colaboração de escritores, artistas, pensadores e criativos. No entanto, é no início do século XX que os livros se tornam objeto de uma visão artística experimental e um veículo único para sua concretização. Isto acontece nas vanguardas russas, talvez porque muitos artistas construtivistas e suprematistas possuíam um talento híbrido (DRUCKER, 2004, p. 45). Os pintores e os fotógrafos deviam escrever e os escritores deviam ser capazes de fotografar ou criar imagens. Além disso, envolveram-se no teatro, na música ou na dança, enfatizando uma arte sinestésica – capaz de representar uma ideia ou sensação através de vários media – e estabelecendo as primeiras estruturas conceptuais para trabalhos transdisciplinares. A importância dada pela estética simbolista às práticas interdisciplinares e à identidade conceptual e espiritual do livro teve uma grande influência no início do século passado. No entanto, esta estética, bem como outras do final do século XIX, foi contestada pelas vanguardas do início do século XX. O movimento Arts and Crafts, por exemplo, foi visto como ultrapassado e criticado pelos artistas emergentes. Ainda assim, estes movimentos tiveram uma grande influência nas vanguardas modernistas, chamando a atenção para diversos aspetos da criação e produção de livros: o conhecimento ao nível dos materiais e técnicas de impressão, a importância dada à forma do livro e ao layout das páginas, o tratamento tipográfico, etc. Além disso, estes movimentos demonstravam também um interesse por formas híbridas, produtos de relações entre diferentes formas de arte. O futurismo russo, que evoluiu separadamente do futurismo italiano, foi também um campo fértil para a arte através do livro e deu origem a diversos objetos inovadores. Os futuristas russos sintetizaram e inventaram linguagens, partindo da fragmentação cubista para criar trabalhos com uma identidade nacional pronunciada. Muitos dos livros feitos no contexto do futurismo russo nasceram do mesmo ímpeto que deu origem aos livros de artista dos anos 60 e 70, do mesmo desejo de produzir livros baratos, com os meios disponíveis e em formatos totalmente controlados pelos artistas e escritores. Estes trabalhos assinalam o início do desenvolvimento do livro de artista como forma, com uma base conceptual que põe em causa a produção convencional dos livros – de natureza funcional, informativa ou comercial. O livro tornou-se uma forma de expressão artística, mais do que um mero modo de reprodução preso a formatos e convenções. Depois da revolução russa, o construtivismo propôs uma estética próxima do design gráfico ou das artes aplicadas, mais do que da literatura ou das belas artes. O livro passa a ser entendido como uma forma independente de expressão artística, onde não há obstáculos à integração de imagens e linguagem, experimentação formal e inovação artística (DRUCKER, 2004, p. 47). A transformação da sociedade russa na União Soviética reconfigurou completamente o lugar da arte e literatura na cultura depois de 1920. Os trabalhos produzidos no contexto do debate estético iniciado depois

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da revolução tiveram uma grande influência no tratamento da tipografia e da fotografia, lançando as bases para o design gráfico. O livro é visto como uma forma vital, de fácil distribuição e ideal para uma expressão direta. É introduzida a noção do múltiplo, o livro circula facilmente, é trocado, dado ou vendido. Não há grandes editoras ou lucros e a maioria dos trabalhos mostra que os artistas podem produzir livros através do seu talento e das tecnologias disponíveis. Algumas das colaborações entre artistas e escritores deste período deram origem a livros originais e inovadores, livros que habitam novos espaços conceptuais e apresentam novas formas. Além disso, outras formas de comunicação e exploração artística – como o cartaz, o panfleto ou o jornal – permitiram também a experimentação ao nível da tipografia e do tratamento da página, aspetos que influenciaram ativamente a produção de livros (DRUCKER, 2004, p. 50). Os livros criados na União Soviética tornam-se o palco de inovações conceptuais. Transcendem os limites da linguagem convencional para exprimir significados, ideias e emoções através do texto – imagem, significado e som. São muitas vezes objetos herméticos, difíceis e inacessíveis à crítica, mas demostram a compreensão do livro como forma e a atenção a todos os seus aspetos. O trabalho de El Lissitzky para o livro For the Voice de Mayakovsky (1923)22 é um dos melhores exemplos de integração destes aspetos, inovando no tratamento tipográfico e na estrutura das páginas, de influência construtivista. Nunca nenhum livro "literário" tinha sido pensado do mesmo modo, combinando elementos visuais, materiais e poéticos. É um trabalho completo, em que cada elemento é uma parte consciente do todo e funciona em relação com a estrutura do livro. A exploração tipográfica e a inovação na combinação de texto e imagem deste e outros livros tiveram uma grande influência nos trabalhos de outros artistas e contribuíram decisivamente para o desenvolvimento do design gráfico como atividade autónoma (DRUCKER, 2004, p. 56). O surrealismo partilha a visão experimental do livro, usando os materiais da linguagem e da imagem ao serviço de uma nova visão, próxima dos ideais futuristas e dada, mas com uma sensibilidade diferente. Os trabalhos em forma de livro resultavam quase sempre de colaborações e promoviam a articulação entre textos e imagens de uma forma completamente nova. Essa relação deixa de ser mimética ou imitativa como acontecia nos livros ilustrados do século XIX. No entanto, muitos destes livros eram fruto de iniciativas editoriais para quem as formas convencionais de articulação entre texto e imagem se mantinham intocáveis. Apesar de promoverem uma nova forma de relacionar esses elementos ao nível do conteúdo, a forma como eram produzidos aproxima-os da tradição do livre d'artiste e do livro ilustrado, mais do que do livro de artista. O trabalho de Max Ernst é um exemplo de integração experimental de conceito e conteúdos, usando uma estrutura tradicional para desenvolver um trabalho inovador e de acordo com os preceitos surrealistas (DRUCKER, 2004, p. 60). Os seus livros são exemplos notáveis de narrativa e forma, reveladores de uma visão pessoal, criativa e independente.23 As publicações comerciais também contribuíram para a expansão dos vocabulários formais, sobretudo através dos livros fotográficos. Muitos não são livros de artista, mas têm em conta o conceito de livro como forma específica e são influenciados pelas descobertas dos artistas de vanguarda. Esta associação ao álbum fotográfico mantém-se pertinente na classificação atual dos livros com imagens. O picture book inglês é chamado álbum em Portugal e na França. No século XX, o livro tornou-se um objeto transdisciplinar e a prá-

                                                                                                                22

Disponível em formato digital em http://www.wdl.org/en/item/9609/ “Une semaine de bonté ("A Week of Kindness") is a graphic novel and artist's book by Max Ernst, first published in 1934. It comprises 182 images created by cutting up and re-organizing illustrations from Victorian encyclopedias and novels.” (http://en.wikipedia.org/wiki/Une_semaine_de_bonté). 23

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tica artística experimental influenciou as publicações comerciais e a indústria do livro. A expressão artística colaborou com o design gráfico, resultando em trabalhos com maior valor comercial, mas com uma motivação conceptual ou estética. Muitos destes livros foram considerados vanguardistas, experimentais e inovadores porque quebraram as convenções formais associadas à produção de livros, mostrando novas possibilidades visuais, verbais, gráficas, fotográficas e estabelecendo novos parâmetros para a conceptualização do livro como forma de arte. A articulação do significado através de processos de justaposição, movimento e sequência das fotografias distingue estes livros de simples coleções de imagens, portefólios ou álbuns fotográficos (DRUCKER, 2004, pp. 62-63). Como já vimos, a ideia de um artista poder criar um livro unicamente através de meios que estão ao seu alcance e sob o seu controle é uma caraterística marcante das vanguardas do século XX. No entanto, a ideia do livro como múltiplo democrático afirma-se nas atividades artística e literária apenas depois de 1945. Apesar da importância das inovações tecnológicas surgidas no século XIX, não se pode dizer que seja essa a causa da democratização do livro. No entanto, é essencial perceber de que forma o desenvolvimento das técnicas de impressão e produção, mais acessíveis e baratas, afetam a produção de livros, sobretudo no pósguerra (DRUCKER, 2004, p. 69). Este é um período em que os happenings e as performances substituem a pintura e a escultura como modos privilegiados de expressão artística. Outros movimentos, como o letrismo na França, ou a poesia concreta no Brasil e Alemanha, deram origem a um vasto conjunto de trabalhos experimentais, apesar de manterem um caráter essencialmente literário. A afirmação da arte conceptual, do minimalismo, da arte pop, dos movimentos feministas ou ativistas também estimulou a produção de livros de artista, muitas vezes através de sínteses híbridas de várias estéticas e pontos de vista. Apesar de distintos, estes grupos tinham em comum com os primeiros movimentos de vanguarda uma conceção libertadora e transformativa da arte e um desejo de comunicar através de métodos pouco tradicionais. A arte é cada vez mais sobre ideias e conceitos e menos determinada por meios ou técnicas particulares. As formas híbridas ou os intermedia tornam-se a norma, não a exceção, e os livros contêm imagens, textos, símbolos ou materiais, num formato acessível, flexível e variável, expressando ideias pessoais, políticas ou abstratas (DRUCKER, 2004, p. 70). Na segunda metade do século XX muitos artistas começaram a fazer livros como primeira atividade artística, sem constrangimentos ao nível da forma e do conteúdo. É o caso de Edward Ruscha e Dieter Roth, cujos trabalhos, apesar das influências e ligações a trabalhos anteriores, assinalam um marco importante na história dos livros de artista. Ambos exploraram de forma sistemática e inovadora o potencial da forma do livro numa série sustentada de projetos. Além disso, ainda que de forma contrastante, os dois contribuíram para a definição do livro de artista como uma edição barata ou um múltiplo democrático. As edições limitadas e de baixo custo colocaram o ênfase no processo, contribuindo para a desmaterialização e dessacralização do objeto artístico e permitindo ao artista apresentar trabalho fora da galeria e do museu (DRUCKER, 2004, pp. 71-78). A publicação independente surge como uma alternativa para o desenvolvimento de trabalhos alternativos ou pessoais. Isto não significa que os livros de artista tenham de ser publicados em edições baratas e em pequenos números, como não têm de ser publicados em formatos reduzidos ou em contextos de produção específicos. Apesar da ideia do múltiplo democrático se ter tornado um paradigma nos livros de artista, não pode ser usada como critério para definir se estamos ou não na presença de um livro de artista. Nem todos os

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livros de artista são edições ou múltiplos produzidos com materiais baratos e tecnologias de reprodução em offset. O livro de artista pode ser um objeto único ou uma edição muito limitada. A utilização de processos ou materiais mais dispendiosos não o coloca na categoria dos livres d'artiste. Os livros de artista podem ter uma dimensão mais espiritual, podem ser livros alterados, originais que funcionam como palimpsestos, objetos fetichistas ou autobiográficos. Podem ser extremamente codificados e complexos, objetos místicos a decifrar. Nestes casos, a simples existência do livro parece contribuir para o seu significado, realçando a sua presença e forma (DRUCKER, 2004, p. 93). Estes objetos únicos também podem ser arquivos privados, memórias pessoais, coleções, diários ou explorações formais – expressões diretas da visão de um artista. Podem ser produzidos através da alteração física ou conceptual de objetos pré-existentes (ready mades), pondo em causa as convenções dos livros e o seu valor histórico e cultural. Um dos melhores exemplos do livro alterado é o trabalho A Humument de Tom Phillips, inspirado pelas técnicas literárias de William Burroughs. Phillips partiu de pressupostos semelhantes, trabalhando sobre um livro escolhido através de critérios previamente definidos, uma novela vitoriana chamada A Human Document (1892), de William Mallock. Outros trabalhos – como a versão de Un Coup de Dès de Mallarmé (1969), por Marcel Broodthaers – fazem uma transformação essencialmente conceptual de uma peça anterior, reafirmado as suas premissas originais através de uma visão original e inovadora. Buzz Spector desenvolveu projetos de investigação do livro como imagem, símbolo ou metáfora, abordando assuntos relacionados com a literatura, a autoria e a linguagem. Os exemplos são muitos e The Century of Artists’ Books revela a sua diversidade na forma e no conteúdo. 1.4.6 ELEMENTOS ESTRUTURAIS

Um livro é uma organização complexa de elementos materiais e conceptuais. Apesar de existirem outras formas, a mais comum e versátil é a do códex. Para que sejam livros de artista, os livros têm de estar ligados à sua forma e função básicas, proporcionando o acesso a conteúdos ou ideias através de uma determinada estrutura e sequência. Esta é uma definição flexível, capaz de incluir outras soluções: acordeão, panfleto, folhas soltas numa caixa, pop-ups, livros com recortes, dobras, transparências, etc. O modo como a estrutura do livro pode operar em espaços electrónicos deve também ser considerada neste pequeno resumo sobre as variações do códex, uma vez que os novos media reinventam a forma do livro tradicional. O hipertexto, os documentos editáveis, a interatividade e a diferente lógica espacial transformam a nossa perceção do livro e estimulam o desenvolvimento de novos padrões de pensamento e criatividade. Um outro aspeto importante em muitos livros de artista é auto-consciência dos elementos que constituem a sua estrutura, podendo envolver um humor autorreflexivo ou interrogações filosóficas sobre a identidade do livro. A problematização das convenções de leitura é uma caraterística frequente em muitas destas produções e explorada das mais diversas formas, apoiando-se em convenções literárias ou gráficas, ou na sua combinação. Outros livros, apesar de usarem apenas imagens, são predominantemente narrativos na sua estrutura. Trabalhos de artistas como Franz Masereel ou Lynd Ward, por exemplo, complicam a distinção entre livros de artista e livros feitos por artistas para publicação comercial, sendo frequentemente integrados nos discursos da banda desenhada ou do livro ilustrado. Existem também livros de imagens sem narrativas ou variações de géneros datados como a fotonovela.

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O livro é sempre uma forma visual, ainda que o componente visual essencial esteja na mente e não nos olhos do leitor (DRUCKER, 2004, p. 225). Por outro lado, o livro pode também ser terreno para exploração verbal. A função mais valorizada no livro pela sociedade é, aliás, a ideia do livro como documento de texto: livro de receitas, dicionário, agenda, manual, código, romance, etc. Como acontece com as imagens, os meios envolvidos neste tipo de projetos são vários e podem envolver caligrafia, diferentes técnicas de impressão, carimbos, stencil, texto gerado por computador, etc. Enquanto alguns livros usam linguagem, outros são realmente escritos e aproximam-se do ensaio, da narrativa ou da poesia. Nestes, a linguagem é apreciada pelas suas propriedades materiais e linguísticas, e todos os seus aspetos – ritmo, textura e tempo – formam a substância do livro. Finitude e sequência são elementos estruturais de qualquer livro. Os limites de um livro são tão vincados que apenas podem ser suspendidos através de determinadas proposições conceptuais ou quando se trata de um livro electrónico. O uso da sequência, por outro lado, é muito variável e não se restringe ao formato do códex (DRUCKER, 2004, p. 257). Alguns livros recorrem a convenções para construir sequências. A forma do livro de banda desenhada é um exemplo de combinação altamente funcional de elementos visuais e verbais. As convenções para separar ou integrar estes elementos estão solidamente codificadas e os resultados obtidos por muitos artistas envolvidos em trabalhos pessoais, comerciais ou alternativos constituem um legado único para os artistas que pretendem fazer livros. Mais do que contar uma história, este recurso a convenções ou géneros já existentes parte, sobretudo, de uma vontade de questionar a própria forma ou a noção de narrativa. A forma pode suportar-se nas convenções da banda desenhada para construir uma sequência, mas sem produzir uma verdadeira narrativa. A divisão da página e o percurso construído orientam a leitura no espaço e no tempo, mas é um avanço suportado mais na lógica formal do que conceptual. Apesar do caráter artístico e experimental, alguns destes livros são integrados no arquivo da banda desenhada tradicional (DRUCKER, 2004, p. 260). O mesmo parece acontecer com o livro ilustrado. É preciso dizer também que nem todas as narrativas são lineares ou simples. A complicação de uma narrativa pode ocorrer ao nível das relações entre texto e imagem ou na própria estrutura do livro. Por outro lado, o tratamento da narrativa pode estar mais próximo da tradição literária ou da tradição artística (DRUCKER, 2004, pp. 269-270). Como já vimos nos trabalhos surrealistas, a linearidade aparente pode ser posta em causa pela fragmentação da narrativa e pela forma como texto e imagem se articulam. A sua relação não é de duplicação; mais do a soma das partes, trata-se de uma síntese única. As possibilidades são infinitas e hoje podemos falar em narrativas polissémicas ou complexas – trabalhos complicados, cuja sequência não limita o número de leituras ou significados24. A estrutura pode ser clara, a identidade visual e as relações entre elementos inquestionáveis, mas a composição das páginas, os desenhos ou os textos sugerem muitas vezes o caos, a dúvida ou ambiguidade. A linguagem pode até ser essencialmente verbal, mas aproxima-se de outras linguagens, como a poesia, o teatro ou a performance. O movimento no livro pode ser linear e progressivo, mas nas páginas é polivalente e espacial, mais do que unidirecional. A narrativa oferece ao leitor inúmeras leituras possíveis, através da sua organização formal interna e das relações entre temas, personagens ou pontos de vista. A mesma noção de narrativa não-linear pode ser encontrada em projetos de documentário, onde a complementaridade das páginas acontece de forma indireta.

                                                                                                               

24 Johanna Drucker usa o termo “polysemiotic” para caraterizar estas narrativas: “There is no linear path, no singular reading, and the elements play off each other in a continual montage producing the “polysemiotic” effect.” (DRUCKER, 2004, p. 272)

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As sequências visuais podem também ser não-narrativas, estruturadas através de uma lógica gráfica ou um conceito previamente determinado. Alguns trabalhos resistem a uma classificação definitiva, podendo ser vistos como quase-narrativas ou semi-narrativas. Isto pode dever-se tanto a questões estruturais – pode um "baralho de cartas" ser um livro? – como temáticas ou formais. Esta problematização é uma marca dos livros de artista dos finais do século XX e assenta na fragmentação das convenções na narrativa – o sentido de lugar, tempo, ação e personagens. Assim, além das variações físicas do livro, são opções de montagem e composição que contribuem para sequências indeterminadas ou narrativas ambíguas. A sequência e narrativa são elementos relacionados, mas não redundantes, na estrutura de um livro. Tempo e movimento podem ser sugeridos a partir de componentes visuais, verbais e materiais, ou através da sua combinação (DRUCKER, 2004, p. 284). 1.4.7 PERSPETIVAS FUTURAS

Os livros de artista tiram partido da eficiência do formato do códex e da sua capacidade de conter informação visual, verbal, literal e metafórica. A forma prática e elegante contribui para a duração do livro no tempo, mas é pelo carácter íntimo e direto da experiência de comunicação que se explica a sua longevidade. Apesar da finitude material, o processo de olhar e ler leva-nos a uma rede labiríntica de associações, confirmando o seu potencial metafórico. O sucesso pode estar relacionado com as qualidades formais, com a força de uma visão pessoal ou com o modo como são explorados o espaço conceptual e a produção de significado, mas os livros de artista mais bem sucedidos são aqueles que integram os aspetos de produção e conteúdo de uma forma tão dinâmica que essas distinções se tornam irrelevantes ou supérfluas. Todos revelam, no entanto, um conjunto de tensões críticas intrínsecas, inerentes à estrutura do livro: a tensão entre a sequência fixa do formato do códex e o efeito expansivo, não linear e espacializado de ler e ver o livro; a que existe entre a sua aparente convencionalidade e a capacidade de se reinventar através da prática artística; por fim, a tensão entre a simplicidade da sua forma convencional e a ilimitada complexidade produzida através da relação entre os diversos elementos que o constituem (DRUCKER, 2004, p. 359). Os livros de artista adquiriram uma identidade própria, que sintetiza as tradições da produção do livro, o espírito das publicações independentes e a ideia artística conceptual do múltiplo em todas as variações possíveis, numa forma que não existia antes. Ao contrário dos media mais tradicionais, que têm uma história mais longa, o livro é o novo híbrido, cuja identidade continua a emergir como uma forma distinta, apesar da influência das formas que o precedem (DRUCKER, 2004, p. 360). Analisando a sua história, é interessante observar como o livro desempenhou um papel importante em diversos movimentos artísticos, tendo participado em estéticas tão distintas como o futurismo russo, a arte conceptual ou a arte pop. A sua difusão aconteceu através de galerias, museus, livrarias ou simplesmente de mão em mão. Enquanto os media mais tradicionais são vistos como ultrapassados, os livros continuam a revelar uma enorme vitalidade e versatilidade. No ensaio Intermedia (1965) Dick Higgins refere que, entre todos os modos de representação no mundo da arte, os livros são a única forma com capacidade para conter desenhos, textos, performances, encenações várias, registos ou documentos, fotografias, etc. Além disso, como são geralmente uma forma reprodutível, contribuem para a expansão da arte através dos meios mecânicos de reprodução, do múltiplo, de produções em série – uma forma que não era considerada legítima antes do século XX. Acessíveis ou raros, múltiplos ou

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únicos, os livros são um marco incontornável da arte do século XX, embora ainda conservem muito do seu caráter marginal, não canonizado. Paradoxalmente, numa altura em que se discute o fim do livro impresso e da sua cultura, as inovações tecnológicas permitem novas abordagens à forma do livro, novos modos de criar e de produzir, e o número de livros é cada vez maior. Como Drucker refere na conclusão do seu livro, o papel poderá tornar-se um bem raro e as tecnologias de impressão poderão sofrer grandes transformações, mas o potencial do livro como forma criativa continuará certamente disponível para ser explorado, não havendo limites, regras ou parâmetros definitivos para a sua construção ou classificação (2004, p. 364).

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CAPÍTULO 2 – A AUTORIA 2.1 CONTEXTUALIZAÇÃO Uma pintura, um filme, um poema ou um livro implicam uma autoria. No entanto, uma breve análise crítica do conceito de autoria põe a descoberto dificuldades, disputas e polémicas. Originalmente, o tema fundamental desta investigação era a noção de narrativa híbrida – verbal e visual –, concebida por um autor único – o ponto singular de origem – e materializada num objeto – o livro. Os vastos territórios de investigação abrangidos tornaram indispensável uma definição mais precisa do objeto de estudo – o "único assunto” –, delimitando as complexidades do tema e o sentido da investigação. Depois de decidir usar a metodologia de case studies, tornou-se claro que o foco principal deveriam ser os livros. Livros com imagens e textos, que atravessam territórios, inventam linguagens e resultam de uma posição original e pessoal, sem clientes, encomendas ou briefings. Os livros que interessam a este estudo são livros que suscitam dificuldades na catalogação. Livros de artista, livros ilustrados, picture books, álbuns, ensaios visuais, romances gráficos? No sentido de delimitar mais eficazmente o âmbito deste estudo, podemos estabelecer algumas analogias com o cinema de autor, o teatro, a poesia, o ensaio, alguma literatura e alguma banda desenhada, mas mesmo esta distinção não está livre de ambiguidades e dúvidas. Os rótulos apresentam limitações, as fronteiras são virtuais e as interseções multiplicam-se. Martin Vaughn-James inventou o neologismo boovie para um dos seus livros (mistura de book e movie) e chamou romance visual ao seu livro The Cage, assumindo claramente uma distinção em relação ao romance gráfico (graphic novel), normalmente situado no território de uma banda desenhada mais mainstream. Os livros de Edward Gorey resultam de um programa pessoal e parecem exigir uma categoria própria, não podendo ser vistos apenas como livros ilustrados. O aparelho heteronímico de Tiago Manuel é igualmente uma proposta pessoal e os seus autores inventam linguagens diferentes nos livros que criam. O Peregrino Blindado de Eduardo Batarda podia ter sido um livro ilustrado ou uma banda desenhada alternativa, mas acabou por tornar-se num livro de artista.25 Todos estes livros podem ser entendidos como ensaios, gráficos ou visuais, produzidos por um único autor, que assume o controle total do livro, do seu design e produção. São muito diferentes entre si, surgiram em contextos muito diferentes e revelam interesses igualmente distintos, mas partilham muitos pressupostos comuns e são criados por um autor que escreve e desenha as suas histórias (ou não-histórias), de acordo com o seu programa pessoal, e as apresenta num livro – um suporte com caraterísticas e potencial específicos. Todos produziram atividade artística em domínios diferentes, mas viram no livro26 uma extensão da sua obra, um território de exploração e criação, um veículo adequado (ou ideal) ao seu programa artístico, narrativas ou intenções poéticas. Existe em todos eles uma intenção, mais ou menos assumida, de afirmar uma identidade autoral, através de linguagens que combinam texto e imagem. Os livros tornam-se assim demonstrações programáticas, explícitas, de um controle total sobre a criação e o design do objeto-livro – um

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O Peregrino Blindado (The Blind Penguin) foi publicado como livro de artista em 1973 pela Galeria 111, em edição limitada, mas a intenção inicial era ser publicado como banda desenhada de vanguarda pela editora Estampa. Eis a ficha bibliográfica completa: Werner, José Lopez (atribuído a) [Eduardo Batarda], O Peregrino Blindado/The Blind Penguin: As aventuras do Dr. Bronstein – Proezas do Unfriendly Kid – e Outra. Tradução e Adaptação de Batarda Fernandes! Livraria-Galeria 111: Lisboa 1973. 26 Livros que, apesar de promoverem uma “simbiose feliz” (termo usado por Pedro Moura num ensaio sobre O Peregrino Blindado) entre texto (elementos verbais ou estruturados narrativamente) e imagens, poderão ser definidos em termos semióticos como textos, ou seja, passíveis de significação, de leitura e interpretação.

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controle impossível noutras formas e suportes. Os livros escolhidos para análise apresentam um discurso autoral simultaneamente literário e gráfico e exploram das mais diversas formas o tradicional binómio forma-conteúdo, o que requer uma reflexão crítica sobre o objeto-livro e sobre a noção de autoria. Torna-se assim obrigatório investigar a forma como o conceito de autoria é representado nestes livros e perceber como sofreu flutuações ao longo do tempo, refletindo diferentes conceções políticas, éticas, estéticas e epistemológicas. 2.2 CRÍTICA CONTEMPORÂNEA DA AUTORIA O conceito de autoria tem sido exaustivamente examinado por teóricos das mais variadas disciplinas e são muitos os textos que lidam com a noção de autor, sobretudo ao nível da literatura e da crítica literária. Contudo, a noção de um autor que articula texto e imagem para inventar uma nova linguagem, que explora o potencial do livro enquanto objeto artístico ou poético, que atravessa disciplinas e dificulta rótulos e tipologias, requer uma abordagem teórica multidisciplinar, que começa agora a ganhar mais visibilidade e a ser debatida por críticos de várias proveniências e territórios. Partindo da literatura existente sobre o autor, percebemos, desde logo, que o conceito de autoria é alterado em função das tendências políticas, económicas e éticas, muitas vezes antagónicas entre si. A figura do autor pode ser exaltada, rejeitada, criticada, inspirar modelos de conduta ou ser entendida como um exemplo a seguir. No que diz respeito ao livro ilustrado, que habita o "território lamacento" (ROCK, 1996a, p. 237) que existe entre a arte, a literatura e o design, e se afasta do esquema modernista de produção, onde é visto como um produto comercial com um público-alvo definido, a reflexão crítica sobre a autoria torna-se mais complexa. Apesar das diferenças, o livro de artista também suscita dúvidas e diferentes posições. Muitos dos projetos ditos "de autor" têm como referência a teoria pós-estruturalista. Paradoxalmente, a teoria pós-estruturalista, como é desenvolvida nos ensaios A Morte do Autor e O Que é um Autor?, critica de forma feroz a centralidade do conceito de Autor na crítica literária e deixa de considerar o Texto como expressão biográfica de um eu original, de um autor, para o entender como o resultado de citações, apropriações, adaptações, oposições e referências, em jogo permanente umas com as outras, e cujo sentido só se fixaria no momento da leitura. Para Barthes, aliás, a escrita não é um registo passado, mas antes uma ação enunciativa, performativa, realizada a cada leitura do texto. O Leitor, tradicionalmente desvalorizado pela crítica literária, sai assim emancipado desta "Morte do Autor". Dadas as considerações de Barthes e Foucault, podemos concluir que o autor total – que cria trabalhos de natureza mista – está num plano distinto do autor literário. O seu caráter enunciativo e performativo aproxima-o antes do Leitor barthesiano, conclusão que pode ajudar a resolver a aparente contradição entre a teoria pós-estruturalista do Autor e afirmação da autoria. Os autores dos livros escolhidos para case studies assumem um controle total do conteúdo e da forma, transformando a forma em conteúdo ou mesmo pondo em causa a habitual distinção. Texto e imagem concorrem para construir o significado ou conteúdo, que pode ou não ser uma narrativa. Tal como acontece com o autor literário, é necessário que o autor demonstre domínio sobre a linguagem, criando a sua própria linguagem, inconfundível e inimitável. Por outro lado, o aumento do número de projetos "de autor" revela, de alguma forma, a vontade de reagir contra tendências, escolas, estilos ou estereótipos, conferindo uma carga

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autoral e pessoal mais vincada a produtos com uma vocação tradicionalmente comercial ou, pelo menos, mais enquadrados com a indústria literária. Esta é, no entanto, uma questão complexa, uma vez que muitos autores desenvolvem o seu trabalho mais pessoal ao serviço de um cliente, em resposta a um briefing ou até mesmo em colaboração. Também não é possível dissociar a afirmação desta autoria contemporânea das questões técnicas e tecnológicas, bem como da noção de propriedade intelectual e de direitos de autor, ou seja, a autoria definida em termos legais. As perspetivas contemporâneas do conceito de autoria assumem os mais diversos pontos de vista e substituem a figura do autor por metáforas pertinentes. Ellen Lupton, por exemplo, assume uma perspetiva centrada na política e ideologia. Apesar de abordar a autoria no contexto do design, algumas das suas considerações podem ser interpretadas de uma forma mais abrangente, uma vez que opõe à visão nostálgica do escritor ou artista como "ponto singular de origem" (LUPTON, 1998, p. 159, apud MOURA, 2011, p. 38 ) a crítica das vanguardas do século XX, que desafiaram as definições românticas da arte ao integrar os mass media e a produção em massa nos processos artísticos. Partindo do texto O Autor como Produtor, de Walter Benjamin (1934), Lupton apresenta o domínio interdisciplinar dos meios de produção como condição essencial para a atribuição da autoria. O controle acrescido sobre os conteúdos, nomeadamente através das novas tecnologias, permite a aparição do autor como produtor. Enquanto a palavra “autor” está conotada com atividades cerebrais, a palavra “produtor” é mais associada a atividades materiais, e para Lupton é mais adequada à base material da autoria. Em The Education of a Design Entrepreneur (2002), Steven Heller assume um ponto de vista predominantemente empresarial e comercial, onde o controle sobre os conteúdos e a possibilidade de iniciar o processo de trabalho são equacionados através da noção de empreendedorismo. Heller faz mesmo um trocadilho ao juntar as palavras author e entrepreneur para formar o conceito de “authorpreneur”. A autoria tornase uma tendência, substituindo a semiótica e o pós-estruturalismo, e permite distinguir a arte comercial da comunicação visual.27 Para outros autores, em vez de produzir uma mensagem que o leitor absorve de forma passiva, o trabalho autoral convida o leitor a participar ativamente na criação de significados, o que remete para os princípios expostos no texto A Morte do Autor. A ideia da autoria como insatisfação também não é nova e o livro continua a ser encarado como um meio privilegiado para afirmar uma identidade, um universo próprio de ideias e conceitos. Pode até dizer-se que este é o entendimento da autoria por parte de muitos criadores atuais que, dessa forma, integram na prática mainstream um conceito antes polémico e problemático. O conceito continua a produzir visões e interpretações distintas, fruto dos diferentes enquadramentos políticos, económicos, artísticos e até mesmo éticos. Noutros textos a autoria é associada à linguagem. O autor é alguém que demonstra um domínio sobre uma linguagem, tal como acontece com o autor literário. A autoria pode ser concebida como uma reação a um "estilo" anterior, mas também pode ser entendida como uma alternativa à produção artística em geral, uma representação de exterioridade que afirma a identidade do autor, neste caso através do potencial infinito do livro. Se já era um conceito de difícil análise, a autoria tornou-se ainda mais problemática com a aplicação das teorias pós-estruturalistas sobre a "Morte do Autor". Barthes critica o Autor enquanto figura de autoridade e propõe a figura democrática do Leitor. No entanto, muitas das reflexões críticas que partem da sua teoria

                                                                                                               

27 “[a autoria] não é uma construção teórica. [É] uma forma de empreendedorismo que trata de originar conceitos, desenvolvendo-os e colocando-os finalmente no mercado.” (HELLER, 2002, apud MOURA, 2011, p. 41)

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são contraditórias, acabando por colocar o autor num pedestal e esquecendo a neutralidade ou anonimato preconizados pela crítica literária. Será interessante, neste contexto, analisar a forma como os autores se identificam nos seus livros e constatar diferentes opções, programas e posições perante a autoria. O recurso a pseudónimos, heterónimos, anagramas e outras estratégias de identificação ou desconstrução de identidades é um aspeto considerado mais à frente neste estudo. A neutralidade absoluta não existe e essa é uma constatação pacífica. Afinal, os autores afirmam identidades, gostos, convicções políticas ou culturais, mesmo que os nomes indicados nas capas dos livros sejam fictícios ou fruto de uma construção teórica. Para complicar ainda mais este debate sobre a autoria e a neutralidade, poderíamos referir a forma confusa como são hoje considerados os nomes de Roland Barthes e M. Foucault. A polémica poderá ser simplificada se entendermos a autoria como uma forma de reclamar mais controle sobre os conteúdos de um projeto ou, pelo menos, sobre a palavra escrita. Esta conceção revela-se particularmente útil no caso de determinados livros – ilustrados ou de artista. Para começar, estes livros não resultam de uma encomenda; são normalmente projetos iniciados pelos próprios autores. Isto não quer dizer que não seja possível desenvolver um trabalho de autor em função de um briefing, de uma ideia préestabelecida ou mesmo de uma encomenda. Assim acontece no design, na ilustração, na arquitetura, etc. De qualquer forma, no nosso caso, a autoria está associada a um maior controle da palavra escrita, em associação com as imagens e a estrutura do livro. De alguma forma, a autoria é vista como uma forma de transcender definições estabelecidas e potencialmente limitadas. Neste contexto, o livro é objeto das mais variadas abordagens e trabalhos experimentais. O trabalho colaborativo, o uso das novas ferramentas digitais e o cruzamento de territórios mantêm viva a polémica que envolve o conceito de autoria. Continuando esta tentativa de contextualização, é impossível não falar em autoexpressão, na definição do livro como o resultado de uma maneira pessoal de olhar o mundo. Apesar da subjetividade inerente à ideia e de alguma oposição em relação às ideias pós-estruturalistas, o conceito de autoria parece confirmar a sua utilidade apenas quando é entendido como objeto de interpretações diversas e, por vezes, contraditórias. De facto, não há lugar para uma definição uniforme e estanque e, em última análise, o autor poderá não ser a pessoa mais indicada para assumir esse processo de legitimação. Muitos artistas ou designers emergiram do género do livro de artista, onde sofriam menos condicionantes ou limitações. Outros não produziram livros de artista, mas desenvolveram trabalhos que podem ser vistos como experimentais e assumem-se como autores completos, explorando a tipografia, o desenho, a composição da página, a planificação do livro, etc. É o caso de Martin Vaughn-James ou Chris Ware. A expressão dos próprios conteúdos é uma caraterística dos livros de artista, que não obedecem a regras ou códigos que não sejam os do autor. Esta parece ser, aliás, uma das principais motivações dos adeptos do género e explica a sua vitalidade e diversidade. Estes autores totais, criadores de géneros inclassificáveis, apesar de não serem designers gráficos, unificam escrita, tipografia, caligrafia, design de informação, cartoon e referências a estilos gráficos anteriores, ligando estes elementos através das mais variadas estratégias. Em No More Rules: Graphic Design and Postmodernism Rick Poynor (2003, p. 140) refere que Ware, um autor completo, pode ser visto como um exemplo do novo escritor descrito por El Lissitsky no texto Topography of Typography (p. 144), publicado na revista Merz de Kurt Schwitters, em 1923. Segundo Lissitsky, como as palavras escritas são vistas e não ouvidas, o livro deveria transformar-se num objeto mais cinematográfico – “um livro para o qual o tinteiro e pena estariam mortos” (LISSITSKY, 1923, p.23).

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Esta aproximação às vanguardas não é, contudo, uniforme. Alguns autores colocam um ênfase considerável na narrativa, enquanto os movimentos vanguardistas promovem uma crítica sistemática à noção de narrativa, dando maior destaque a questões mais específicas do discurso artístico e produzindo obras mais complexas. A ideia de narrativa é objeto de interpretações completamente diferentes e explorada de forma distinta pelos autores. No caso dos livros que articulam imagem e texto, esta questão assume particular relevância. A obra The Cage de Martin Vaughn-James é um excelente exemplo desta aproximação aos movimentos de vanguarda e da problematização da narrativa, apesar dos elementos visuais serem montados numa estrutura relativamente tradicional.28 De uma forma mais genérica, estes autores individuais dedicam-se à criação de objetos literários e gráficos complexos, oferecendo ao leitor uma maior liberdade na exploração dos significados. Se é certo que ser autor é afirmar uma maneira pessoal de ver o mundo, a conceção de autor não pode limitar-se a uma interpretação psicológica e biográfica, como nos dizem Foucault e Barthes. Outros fatores contextuais, de natureza política, social ou cultural, devem ser considerados na construção de uma identidade autoral. Além disso, é impossível não associar a autoria a uma afirmação de poder ou, pelo menos, a sua intenção. Este poder está, sem dúvida, mais ligado ao controle sobre as palavras do que à questão visual ou tipográfica. Por outro lado, é também uma forma de contestar a autoridade editorial concentrada nas empresas ou na indústria literária. Tudo isto contribui para gerar uma linguagem, uma nova forma de gerir as relações entre a palavra e a imagem, entre a forma e o conteúdo. A autoria é, usando a terminologia de Foucault, uma função bastante fértil, uma vez que é apropriada por interesses diferentes ou ideologias opostas. Pode ser usada para criticar instituições e práticas vistas como marginais. Pode ser usada como ponto de partida para um modelo marxista ou feminista da análise e da prática artísticas. Pode ser uma forma de empreendedorismo individualista, de influência capitalista. Pode ser um modo de ativismo político e social ou um conceito útil à análise teórica e crítica. A autoria é, portanto, um conceito historicamente determinado. Sofreu diversas alterações ao longo do tempo, tendo sido desvalorizada, exaltada, rejeitada e recuperada. É uma noção central na história da arte e na crítica literária e as diferentes formas de a perspetivar estão dependentes da conceção de história aplicada em cada contexto. Como acontece com a noção de história, a noção de autoria é constantemente reformulada e problematizada, alterando a forma como os autores são legitimados. Ambas são apresentadas sob a forma de cânones e estes são permanentemente postos em causa. O cânone mais popular continua a centrarse na figura do criador heroico, cuja biografia e psicologia influenciam decisivamente a obra, apesar de não haver um único modo de estabelecer historicamente um autor. A autoria que interessa a este estudo carateriza-se também por um inegável intelectualismo e, dessa forma, assume-se também como uma afirmação de diferença ou exterioridade numa sociedade onde o antiintelectualismo é cada vez mais frequente. A posição mais comum sugere a inutilidade social ou política do trabalho intelectual – uma atividade marginal, alheada da realidade e apenas para académicos. No nosso caso, esse intelectualismo mede-se, sobretudo, pelas referências a outros autores, estilos, discursos artísticos e linguagens; pelo cruzamento ou fusão de elementos provenientes das mais diversas fontes; pelo recurso a diversos vocabulários, códigos e estratégias narrativas; e pelos níveis de cultura visual ou escrita necessários à

                                                                                                               

28 O ensaio The Ghost of a Character: The Cage by Martin Vaughn-James, escrito por Domingos Isabelinho em 2004 para a Indy Magazine, refere este e outros aspetos pertinenentes para o nosso estudo, nomeadamente a forma como algumas obras são avessas a géneros e fazem uso de determinados códigos para construir objetos de difícil leitura e enquadramento teórico.

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leitura.29 Para melhor fundamentar a necessária reflexão sobre a autoria, tentaremos analisar com brevidade a forma como foi definida e tratada ao longo do tempo, desde a antiguidade clássica até à modernidade. Neste sentido, será fundamental referir acontecimentos decisivos como a invenção da imprensa e perceber de que forma os mesmos contribuíram para a mudança de paradigmas. Nos mais diversos textos sobre autoria são constantes as referências aos textos que M. Foucault e R. Barthes produziram sobre o assunto, pelo que a sua análise crítica se tornará indispensável. Muitas das polémicas, mal-entendidos e objeções à autoria nascem de interpretações simplificadas de A Morte do Autor de Barthes (1967) e O Que é um Autor? de Foucault (1970), assumindo que a autoria é um tema encerrado. No entanto, uma análise mais aprofundada revela que ambos promovem e estimulam a discussão das questões ligadas à autoria e possibilitam uma aplicação interdisciplinar. Por outro lado, as posições de Barthes e Foucault são antecedidas por outras perspetivas críticas que, dada a sua importância, serão igualmente referidas e contextualizadas. Embora esta história esteja essencialmente centrada no autor literário – e apoiada na crítica literária –, o debate sobre a autoria será alargado a outras áreas como o cinema, o teatro, o livro ilustrado e a banda desenhada. Como já vimos, o controle da palavra escrita é fundamental na nossa definição de autoria, mas os case studies definidos revelam claramente a importância da interdisciplinaridade no autor total. 2.3 A MORTE DO AUTOR (ROLAND BARTHES) A morte do Autor proposta por Barthes tem sido utilizada para fundamentar diferentes interpretações do conceito de autoria. Pode dizer-se que há duas teorias principais que partem do mesmo argumento barthesiano e que são completamente opostas. A morte do Autor e a sua substituição pelo Leitor servem para justificar uma valorização camuflada do autor e, de forma contraditória, para afirmar que a autoria, no sentido tradicional, é um conceito ultrapassado e até indesejável. Esta contradição resulta de leituras muitas vezes superficiais do texto de Barthes e justifica um cuidado particular na aplicação das ideias presentes no seu discurso. É também curioso verificar que o texto de Barthes foi muitas vezes interpretado a partir da vida do próprio autor, quando essa ideia é precisamente um dos alvos da sua crítica. Para Barthes o texto não deveria ser interpretado, mas desenredado como um novelo (1967, p. 147) - um ato que acontece sempre no presente e revela o papel performativo do leitor. Ao recuperar a figura do xamã, Barthes define o autor como uma espécie de mediador, alguém que não cria a sua narrativa, mas a retoma numa performance e a atualiza nesse ato performativo (p. 147). Esta é a essência do Leitor proposto por Barthes, em oposição ao modelo de autoridade originado pela descoberta do indivíduo, pela filosofia humanista e pela economia capitalista, onde o texto passa a ser considerado uma mercadoria da qual o autor é proprietário. Esta crítica do capitalismo e da autoria como forma de propriedade tem como objetivo mostrar que o conceito de autoria não é indispensável, mas antes fruto de uma necessidade historicamente determinada. Para Barthes não interessa quem é o autor do texto. Com este argumento, tornam-se dispensáveis as ideias de génio criativo, de originalidade, do autor como ponto singular de origem. Esta teoria redefine a própria ideia de texto, que é visto assim como uma enunciação – um enunciado atuali-

                                                                                                               

29 Note-se que os autores dos livros escolhidos para case studies assumem, de forma mais ou menos explícita, uma postura intelectual e os seus livros revelam uma certa erudição, visível nos conteúdos abordados, nas citações artísticas ou literárias, na riqueza semiótica e iconográfica.

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zado a cada leitura – e não como o registo de algo que já foi. Além disso, Barthes rejeita a ideia de originalidade e apresenta o texto como um conjunto de citações e fragmentos, de múltiplas origens, que se encontram e relacionam no Leitor. Mallarmé, que também propunha o desaparecimento da figura do poeta, e os escritores surrealistas, que defendiam a escrita automática ou coletiva, são dois exemplos da morte do Autor sugeridos por Roland Barthes. Mais do que criticar a autoria como um modo de desenvolver um determinado trabalho, Barthes ataca sobretudo a autoria como uma categoria histórica e crítica, pondo em causa as estratégias tradicionais da produção escrita, nomeadamente a forma como é atribuída a propriedade e são estabelecidos cânones. Deverão os discursos históricos ser construídos em torno de um cânone de indivíduos? Apesar de generalizada, esta é uma conceção limitada e redutora, que promove uns e esquece outros, além de excluir outras questões importantes. No entanto, o esquema fornecido por Roland Barthes para a crítica do autor é demasiado geral e não facilita, como é pretendido, a aplicação a outras disciplinas. Foucault desenvolve um esquema mais completo e uma metodologia mais adequada aos objetivos deste estudo. 2.4 O QUE É UM AUTOR? (MICHEL FOUCAULT) No livro As Palavras e as Coisas Foucault propunha-se “encontrar as regras pelas quais eles [autores] tinham formado um certo número de conceitos ou de teorias que se podem encontrar nas suas obras” (1970, p. 31). O objetivo não era, portanto, descrever a obra desses autores ou perceber o que pretendiam dizer. Para Foucault, o aparecimento do Autor corresponde a um “momento forte da individuação na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da filosofia também, e na das ciências” (p. 33). No entanto, o conceito e o género foram sempre tratados como categorias secundárias, colocadas num plano inferior em relação ao autor e à obra, as unidades primárias. Percebe-se assim a intenção de Foucault quando diz que "(...) não chega, evidentemente, repetir a afirmação oca de que o autor desapareceu.(...) Trata-se sim de localizar o espaço deixado vazio pelo desaparecimento do autor, seguir de perto a repartição das lacunas e das fissuras e perscrutar os espaços, as funções livres que esse desaparecimento deixa a descoberto" (p. 41). O Que é um Autor? pretende investigar a relação do texto com o autor, mais do que fazer uma história do conceito de autoria. Esta intenção nasce de uma tendência geral do modernismo, na literatura, na arte, no design, etc. Foucault cita Samuel Beckett para demonstrar esta indiferença em relação à ideia de autoria: “Que importa quem fala, disse alguém, que importa quem fala” (p. 34). Esta indiferença, que se traduz numa diminuição do poder do autor, é considerada um dos pilares da escrita contemporânea e levou teóricos e estudiosos a questionar os mecanismos de um conceito até aí inquestionável. Foucault afirma que esta indiferença é um princípio ético, porque “não é inteiramente um traço que carateriza o modo como se fala ou como se escreve; é sobretudo uma espécie de energia imanente, constantemente retomada, nunca completamente aplicada, um princípio que não marca a escrita como resultado, mas a domina como prática” (p. 34). O distanciamento da escrita em relação à expressão e a associação entre escrita e morte são os temas que melhor demonstram esta indiferença em relação ao conceito de autor. No caso da arte, este distanciamento em relação à ideia de expressão traduz-se numa maior preocupação com a forma, conduzindo a movimentos formalistas, mais ou menos indiferentes em relação ao conteúdo. No entanto, a relação forma/conteúdo, que podemos facilmente estender para outros binómios importantes, não é sempre

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igual ou estável, sofrendo, por exemplo, influências políticas. A relação entre a escrita e a morte é antiga, embora tenha variado historicamente. Antes do modernismo a escrita era vista como uma ponte para a imortalidade, uma espécie de legado que o autor deixava à humanidade. Com o modernismo, essa relação inverte-se e a escrita torna-se uma forma de apagamento, um sacrifício da própria vida. Apesar deste apagamento, desta neutralidade do autor – indissociável do distanciamento em relação à expressão –, subsistem outros conceitos problemáticos que impedem uma análise rigorosa do conceito de autoria. Depois da morte do Autor, a atenção da crítica vira-se para a estrutura da obra, análise que se revela igualmente problemática pela dificuldade em definir o que é uma obra. Se não existe uma definição rigorosa do conceito de autoria, como definimos então o que é uma obra? As dúvidas, contudo, não se ficam por aqui. Que critério deve ser adotado para decidir o que faz ou não parte da obra? Nem tudo o que o autor produz poderá ser incluído na sua obra e Foucault conclui que não existe uma teoria da obra. Interessa também referir a forma como o conceito de escrita é abordado por Foucault. Ao promover o apagamento do autor, a escrita produz um "apagamento transcendental", que ironicamente acaba por destacar a originalidade e até respeitabilidade do autor (p. 39-40). Este esforço de neutralização na escrita revela uma imagem do autor, visível através da invisibilidade, humilde mas poderoso. No sentido de contribuir para a resolução destes problemas, Foucault propõe uma abordagem mais rigorosa do conceito de autor e começa pela própria palavra. Tal como um nome próprio, o nome do autor encontra-se entre a designação e a descrição. No entanto, o nome do autor pode ser objeto de transformações no que escreve ou designa. Aliás, o nome do autor limita o texto, constrói fronteiras, uma vez que permite agrupar, delimitar ou até mesmo contrapor textos, assumindo aquilo a que Foucault chama de função classificativa (p. 43-45). Desta forma, a análise da autoria não pode ser restringida à linguística e obriga a considerar o contexto institucional e de poder. Ao atribuir um autor a um texto, confere-se a esse texto um determinado estatuto. Deixa de ser um texto vulgar ou neutro e deve ser enquadrado de forma diferenciada. Foucault chega assim à conclusão que existe uma função “autor", que alguns textos têm e outros não30. Contratos, textos anónimos e cartas pessoais são exemplos de textos sem a função “autor" (p. 47-48). A esta função são atribuídas quatro caraterísticas. Em primeiro lugar, a autoria é definida como uma forma de apropriação, de tornar algo numa propriedade ou mercadoria. A atribuição de um autor a um discurso explica-se pela necessidade de responsabilizar o produtor do discurso. A partir do aparecimento deste sistema de propriedade os discursos adquirem um caráter transgressor e o risco pessoal é transformado num risco formal, regulamentado. Além de limitar o texto, o nome do autor permite organizar e limitar os vários tipos de discurso. A segunda caraterística da função autor está relacionada com a forma como esta é exercida sobre discursos científicos ou literários e como a validade desses discursos depende ou não do reconhecimento de uma autoria. Atualmente, a nossa aceitação ou avaliação de um discurso é feita a partir de quem o produziu, do seu contexto, de uma época, de um conjunto de dados biográficos. O anonimato literário é inaceitável para o leitor moderno e leva ao que Foucault chama o "jogo de encontrar o autor". Esta caraterística revela-se pertinente na análise de autores que

                                                                                                               

30 Os textos (termo usado mais uma vez no sentido semiótico) escolhidos como exemplos revelam claramente a função autor. Dir-se-ia que são conscientes dessa função e exploram-na de diversas maneiras através do livro e de uma linguagem híbrida. O nome do autor é também objeto de jogos, ironias ou construções literárias nos livros de Gorey, Eduardo Batarda e Tiago Manuel. O conteúdo poético ou filosófico e a integração da prática artística no texto, cruzando territórrios contíguos, fazem destes livros objetos com identidades e autorias muito vincadas.

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recorrem a nomes falsos, heterónimos, anagramas e outros engenhos literários para identificar o responsável pela obra – estratégias que, no entanto, podem ter motivações completamente distintas. A terceira caraterística mostra que a função autor depende da construção de "um certo ser racional a que chamamos autor" (p. 50). Segundo Foucault, este processo sofre variações históricas, mas é possível encontrar aspetos que se mantêm constantes na formação de um autor. Não chega um nome para garantir a validade de um texto, como já referia S. Jerónimo na obra De Viris Ilustribus. S. Jerónimo propõe quatro critérios: qualidade, coerência, estilo e período histórico em que o autor viveu. Os mesmos critérios continuam a ser usados atualmente na crítica literária e a construção do autor, através da sua biografia e de aspetos psicológicos, permite analisar e explicar a construção da obra, as suas mudanças, contradições e relação com outras obras. A última caraterística descreve o modo como o texto do autor apresenta invariavelmente determinados elementos gramáticos ou conjugações verbais que, ao funcionar de forma distinta nos textos onde está presente a função autor, contribuem para a construção do autor. Esta questão assume particular relevância nas obras de ficção, onde o autor se desdobra em múltiplos "eus" ou “esconde” a autoria. Nestes casos, a autoria e a sua problematização podem mesmo ser integrados no objeto artístico ou fazer parte do programa de um autor específico.31 2.5 BREVE HISTÓRIA DO AUTOR É possível aplicar algumas das ideias expostas nos textos de Barthes e de Foucault aos livros e autoria em estudo, mas em primeiro lugar é necessário perceber de que forma o conceito de autoria evoluiu ao longo do tempo. Tendo em conta a complexidade desta história, será feito um breve resumo do conceito de autor desde a Grécia Antiga até à atualidade, procurando analisar as diferentes conceções do autor literário, entendido como modelo teórico para a aplicação do conceito de autor em áreas como as artes plásticas, o cinema ou a banda desenhada. Através desta história geral do autor, para a qual foi novamente fundamental o contributo da tese de Mário Moura, será possível perceber que a noção de autoria depende em grande medida das condições de produção associadas a uma linguagem específica e mostrar como o conceito de autoria se foi alterando em função das grandes inovações na produção de linguagem, resultantes de transformações maiores nas sociedades – a adoção da escrita, que marca a passagem de uma sociedade oral para uma sociedade literária, e a invenção da imprensa, que inicia o processo de industrialização da produção e reprodução da linguagem escrita. Depois de analisar o modo como, em diferentes momentos, se processa a atribuição de obras literárias, será possível chegar à conclusão que a noção de autoria, e por consequência de obra, é uma construção cultural, situada num determinado período histórico, e não uma categoria do próprio objeto, fixa e imutável. Esta breve e concisa história do conceito de autoria permitirá enquadrar adequadamente a forma como se interpreta a autoria nos nossos dias, tanto na literatura como noutras áreas criativas. A ideia de autor, tal como hoje a entendemos, é relativamente recente. Este facto é referido por Barthes e Foucault e supõe uma distinção relativamente a modelos precedentes de atribuição. Ambos associam o nascimento do Autor ao aparecimento das sociedades industrializadas, quando o texto passa a ser visto e tratado como uma mercadoria. Assim, a noção contemporânea de autor parece ter sido originada pela massifica-

                                                                                                               

31 Edward Gorey usou anagramas, pseudónimos e trocadilhos com o seu nome; Eduardo Batarda apresenta José Lopez Werner como autor d’O Peregrino Blindado e Batarda Fernandes como tradutor; Tiago Manuel construiu um sistema de heterónimos em torno das suas iniciais.

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ção da reprodução literária e transformações consequentes no estatuto legal do autor e na forma como o autor é representado nos seus textos. A consideração da ideia de autor como uma construção recente, diferente de processos anteriores de atribuição de produções literárias, origina algumas dificuldades na abordagem histórica, uma vez que aplicar a noção de autoria a períodos históricos distintos se traduz numa metodologia anacrónica. De facto, como iremos confirmar, a necessidade de atribuir um trabalho a alguém não é universal e a própria noção de obra é tão problemática como a noção de autoria – os conceitos são complementares e interdependentes. Desta forma, para evitar fragilidades metodológicas, será privilegiada a análise do contexto em que um determinado trabalho literário é produzido e, a partir daí, analisado o modo como é processada a atribuição. 2.5.1 A TRADIÇÃO ORAL A análise das dificuldades de atribuição literária em sociedades orais, tendo como referência a identidade de Homero, é importante para perceber a evolução do conceito de autoria e até mesmo alguns problemas associados ao conceito atual de autoria. Desde logo, confirmando o que já foi dito acima, é incorreto aplicar a ideia contemporânea de autoria ao poeta Homero, dada a dificuldade em atribuir a Odisseia e a Ilíada a um autor singular e, sobretudo, porque a produção artística da época se desenvolvia num enquadramento de atribuição completamente distinto daquele que é usado atualmente para textos literários. Ou seja, o estatuto do poeta na cultura oral não coincide com a noção atual de autoria. A atribuição da autoria de Homero é objeto de inúmeros estudos e especulações. Os seus trabalhos foram escritos ou são fruto de uma cultura oral? Deverão ser atribuídos a um indivíduo, a um conjunto de indivíduos ou a um povo inteiro? Algumas abordagens críticas da poesia de Homero revelam também o preconceito que existe em relação à oralidade, privilegiando a linguagem escrita. De facto, durante muito tempo, acreditou-se que as obras conservadas através da tradição oral seriam o vestígio de uma tradição literária desaparecida. A investigação sistemática sobre este e outros textos, a partir do período romântico, permitiu contestar esta teoria e reenquadrar os autores inseridos em sociedades orais. Alguns destes estudos apresentam o trabalho do poeta como o resultado de uma tradição oral complexa, encontrando na oralidade a causa de muitas opções estilísticas – métodos que ajudavam a memorizar o poema sem, no entanto, impedir o improviso performativo. A partir do momento em que o poema é passado à sua forma escrita, estes processos deixam de fazer sentido e, ao permanecer no texto, passam a ser associados a questões de estilo ou excentricidade dos autores (ONG, 1982, apud MOURA, 2011, p. 88-89). Apesar de Homero ser tradicionalmente visto como um indivíduo, alguns teóricos definem Homero como um conjunto de declamadores, ou seja, como uma tradição oral. Individualmente, Homero poderia sido um declamador brilhante, o que levaria ao registo dos poemas na sua forma escrita. A partir daqui podemos concluir que nas sociedades orais a relação entre criação individual e criação coletiva é complexa, desde logo porque permite a coexistência de ambas as modalidades. Se no caso das sociedades literárias esta relação é, na verdade, uma oposição, na tradição oral o poeta pode ligar uma série de poemas ou canções, o que nos deveria levar a considerar a originalidade na performance e não do poema em si, atualizado e modificado a cada declamação. Por outro lado, neste contexto, a obsessão na busca pelo original é limitada pela impossibilidade de recuperar o trabalho de várias gerações de poetas e cantores, dos quais existem poucos ou nenhuns

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registos. Contudo, este processo não se verifica apenas na tradição oral. As disputas de autoria e atribuição de alguns trabalhos de Shakespeare, por exemplo, são reveladoras desse esforço de construção retrospetiva do autor. Tal como refere Mário Moura (2011, p. 90), a ideia de uma figura criativa original que influencia os criadores seguintes pode ser encontrada no Ion de Platão que, recorrendo à metáfora magnética, apresenta a ideia de influência entre poetas, numa sequência que termina no poeta maior, cuja inspiração é de origem divina. A conceção do ato criativo como algo que transcende o indivíduo é recorrente no debate sobre autoria e atribuição, seja por inspiração divina (como acontece na Idade Média) ou por uma força desconhecida que se apodera do criador (período romântico), entendido assim como um veículo de uma autoridade superior. Esta ideia continua no modernismo, embora a influência seja terrena, uma vez que o ato criativo resulta de um determinado contexto cultural e das suas condições de produção. A ideia de transcendência na génese do ato criativo remete implicitamente para outra discussão importante: a distinção entre o ato criativo desinteressado e a criatividade exercida como atividade profissional, que pode ser aprendida e é remunerada. 2.5.2 O MANUSCRITO MEDIEVAL Os textos do frade franciscano São Bonaventure sobre a atividade literária são muitas vezes usados para explicar a forma como a autoria é concebida na Idade Média, ou melhor, como a autoria é dividida em quatro funções: scriptor, compilator, comentador e autor. Apesar de apenas o auctor poder escrever as suas próprias palavras, nenhuma das categorias é destacada.32 Além disso, o auctor medieval representa um modo de autoridade distinto do autor contemporâneo. O auctor medieval é o fundador dos princípios e das regras e não alguém que se dedica à criatividade verbal – um conceito semelhante ao fundador da discursividade de Foucault. O papel atribuído ao auctor – cuja autoridade vem de Deus e é, por isso, inquestionável – distingue-o do escritor vernacular. O auctor medieval usa as línguas clássicas e representa uma autoria neutra e impessoal. Esta distinção entre auctor e escritor vernacular explica-se também pelo contexto de reprodução manuscrita dos livros, que se reflete na sua apresentação de um modo completamente distinto do livro impresso33. No entanto, apesar de respeitarem a tradição, alguns escritores medievais procuravam já afirmar-se como criadores individuais, com um estilo próprio e uma interpretação original da literatura de referência. Outros, porém, opunham-se a essa tradição e, dessa forma, afirmavam-se também como indivíduos. Começa assim a formar-se uma noção de autoria que se define pela oposição à tradição, pela ligação à ideia da autoria como uma atividade profissional e pela utilização das línguas vernáculas. Desta forma, o autor aproxima-se cada vez mais do leitor. 2.5.3 A INVENÇÃO DA IMPRENSA

                                                                                                               

32 Esta abordagem sobre a autoria na Idade Média é apresentada de uma forma acessível no livro The Author (The New Critical Idiom) de Andrew Bennet, publicado em 2005. Bennett explora os conceitos de autoridade, posse, originalidade e "morte" do autor para produzir um estudo acessível sobre a autoria. A autoria na era medieval é também objeto de análise no ensaio de Donald Pease, intitulado “Author” e publicado em 1995. Pease emprega na sua história do autor uma série de termos ou conceitos-chave que situam o autor entre o "sujeito autónomo" e "sujeito culturalmente situado". 33 A utilização contemporânea de texto manuscrito volta a conferir ao livro um caráter mais pessoal, aproximando o texto do leitor, ao mesmo tempo que permite promover diálogos ou integrações entre os elementos – verbais e visuais – que constituem o livro. Gorey, Batarda, Tiago Manuel e M. Vaughn-James escrevem à mão os textos dos seus livros.

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Com a invenção da imprensa no século XV, os processos de atribuição sofrem mudanças radicais. Além de permitir a produção virtualmente infinita de cópias de um livro, os processos de reprodução mecânica obrigaram à fixação prévia e definitiva dos conteúdos, o que afetou profundamente a noção de autoria. Ao introduzir o conceito de produção em série, a imprensa constituiu, aliás, o primeiro exemplo da indústria moderna. Ironicamente, a invenção que tornou possível a industrialização da produção do livro foi também responsável pela origem da noção moderna de autoria, que privilegia a inovação e originalidade. A produção do livro impresso não se limita ao ato de impressão e requer uma divisão de tarefas cada vez mais especializadas: edição, tradução, planificação, etc. O trabalho de revisão dos textos acontece antes da impressão, o que reforça o caráter definitivo dos mesmos. Apesar das mudanças, a intertextualidade caraterística da tradição oral e do texto manuscrito não desaparece por completo com o aparecimento da imprensa. No entanto, apesar da troca de referências e comentários, o livro adquire uma nova identidade, sendo visto como um produto ou mercadoria. A própria estrutura do livro, com a introdução de prefácios, notas de rodapé, índices e outros elementos paratextuais, torna-se cada vez mais especializada. A divisão do livro em espaços destinados aos vários participantes na produção dá lugar a uma hierarquia de funções, onde o autor tem a primazia. Se no caso do texto manuscrito, os processos de criação, tradução e revisão resultavam numa autoria indefinida, a produção do livro impresso promove uma divisão do trabalho que se traduz numa separação física dentro do livro e transforma o modo como é feita a atribuição, aumentando a responsabilidade individual. A imprensa retirou a narrativa do plano auditivo da cultura oral e colocou-a num plano espacial. A necessidade de decidir de forma definitiva a composição de uma página abre novas possibilidades de organização e leitura do livro e o aspeto visual da linguagem não é menos importante que o texto em si. A espacialidade e materialidade do livro tornam-se terreno para experimentação, dando maior liberdade ao autor e provocando o aparecimento de novos géneros literários. Este controle autoral reflete-se na forma como são tratados o texto, a narrativa, a composição, ou seja, todos os aspetos relacionados com a produção do objeto literário, e acabaria por tornar-se uma das marcas do modernismo e dos movimento de vanguarda. A poesia futurista é um exemplo desta literatura que explora as possibilidades técnicas da imprensa. Muitos autores atuais continuam a encarar este controle simbólico sobre o aspeto físico do livro como uma maneira de afirmar uma identidade autoral forte e criativa. Este é uma aspeto comum em livros onde os elementos textuais e visuais colaboram no desenvolvimento da narrativa: livros de artista, livros ilustrados, álbuns de banda desenhada, romances gráficos – géneros próximos no universo conceptual do nosso estudo. A partir do momento que o discurso passa a ser tratado como um texto e não como uma voz, a forma de abordar o livro por parte do autor é alterada a vários níveis. A natureza deste autor é completamente distinta da do performer oral. O autor pode agora esboçar o texto, fazer alterações, repensar um capítulo, consultar outros textos e fontes. Embora se mantenha alguma subjetividade na produção do texto, o escritor tem um controle maior sobre o mesmo até ao momento em que este é finalizado e encaminhado para reprodução. O livro impresso tem um caráter fixo, definitivo, e o texto é uma unidade fechada, com princípio, meio e fim. Com a invenção da imprensa, a narrativa torna-se mais complexa e apresenta uma consistência que não era possível nas tradições oral e manuscrita. O autor tem agora a possibilidade de representar a sua voz particular, com um ponto de vista fixo e coerente. Além disso, com o aparecimento da imprensa, nasce tam-

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bém a noção atual de público, que não poderia existir nas culturas da oralidade ou do manuscrito. O público que nasce com a imprensa já não é uma audiência presencial e representa um conceito mais abstrato. Os temas tornam-se elementos definidores de um público, entendido assim como o interlocutor para a voz singular do autor. É neste contexto que surgem o autor especializado e a crítica profissional. A circulação de um número cada vez maior de textos transforma a originalidade numa caraterística decisiva na produção literária e intelectual, uma vez que também se torna frequente a comparação entre textos e autores. Enquanto na Idade Média a grande maioria dos textos consistia em comentários às verdades inquestionáveis do auctor, com a invenção da imprensa é cada vez mais valorizada a ideia de mudança em relação à produção literária anterior, sendo incentivada a descoberta, a inovação e a originalidade. A noção contemporânea de autoria nasce com a utilização de processos industriais de produção, mas é também uma reação a essa mesma industrialização. Se, por uma lado, a autoria se transforma na afirmação de uma individualidade através do livro impresso, de conteúdo fixo e definitivo, por outro, é uma reação pessoal contra o livro produzido em série, a especialização e a profissionalização da escrita dele decorrentes. A profissionalização da escrita era, aliás, desprezada e vista como uma ameaça à distinção entre a aristocracia e o povo. A valorização da produção literária amadora até ao século XVII impediu o aparecimento da autoria enquanto categoria profissional, definida juridicamente. A escrita profissional acontece mais tarde, a partir do momento em que a produção literária se torna lucrativa, deixando de depender do apoio de mecenas e aristocratas e acompanhando a ascensão da burguesia. 2.5.4 OS DIREITOS DE AUTOR O aparecimento de uma autoria individual explica-se também pela necessidade de salvaguardar um texto contra a reprodução do mesmo por terceiros e dá origem a uma série de leis que regulam os direitos de autor e os direitos de cópia. Esta legislação protege os direitos morais de um autor específico, bem como a circulação e reprodução da propriedade intelectual, independentemente da autoria original, transformando a autoria numa propriedade, um produto ou mercadoria. Esta associação entre o ato criativo e a ideia de propriedade é, aliás, uma das caraterísticas fundamentais da autoria moderna. Esta mudança resulta do crescimento do capitalismo, da industrialização da produção literária, do nascimento de novos públicos e da profissionalização do autor. A autoria, agora definida como uma categoria profissional, não é apenas a responsabilidade pelo ato criativo – é também a propriedade do seu produto, a propriedade intelectual. A definição legal deste tipo de propriedade, de natureza comercial, vai ao encontro dos interesses de diferentes protagonistas da produção e indústria literárias. Os direitos de autor asseguram a sobrevivência económica do autor e protegem o seu trabalho da cópia não autorizada. Por outro lado, a propriedade intelectual passa a ser vista como um bem transmissível, que pode ser ou não propriedade do autor. O nascimento do copyright no início do século XVIII foi determinante na evolução do conceito de autoria, transformando uma graça concedida pelo rei num direito legal. No entanto, a mesma legislação foi usada frequentemente para censurar ou limitar a produção e circulação de obras e autores e visava sobretudo garantir a defesa dos lucros dos editores. A possibilidade de transferir ou vender os direitos de autor transforma definitivamente a produção literária numa mercadoria. A definição de produção literária como propriedade mantém aceso o debate sobre a relação entre o

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comércio e arte, iniciado já na Grécia Antiga com as referências à incompatibilidade entre a produção artística e o trabalho remunerado. Com a invenção da imprensa, a crescente profissionalização das atividades criativas e o declínio do mecenato, o debate ganha ainda maior intensidade. Estas mudanças levam os criadores a redefinir as suas estratégias, o que, além de alterar a natureza da sua produção, transforma também a sua crítica. Ironicamente, surge nesta altura uma ideologia estética que refere a transcendência da obra e a autonomia do autor como condições para a originalidade desse mesmo autor e da sua produção. No contexto desta ideologia de autonomia da arte há, no entanto, diferentes posições e muitas contradições. Para alguns autores a obra só poderá ter valor artístico se não tiver valor económico e, como tal, opõem-se a uma arte útil e remunerada. Naturalmente, esta perspetiva tem raízes políticas e nasce de uma tensão entre a arte ao serviço da classe dominante e arte que lhe reage. Ainda assim, o autor tem alguma liberdade para definir a sua estratégia e assumir uma posição própria dentro do universo literário. 2.5.5 O ROMÂNTICO A conceção romântica do ato criativo é uma reação contra as consequências da sociedade industrial. No entanto, essa posição relativamente à produção artística em contexto comercial e à definição da autoria como propriedade privada é, de certa forma, contraditória, uma vez que é, ela própria, um resultado da sociedade industrial. Ainda assim, o ato criativo é concebido como impessoal e desinteressado, fruto do génio ou de uma entidade que transcende o autor e lhe dá inspiração. O individualismo é cada vez mais exaltado, num percurso que começa no afastamento da ordem social, económica e religiosa da Idade Média e culmina no pensamento iluminista, segundo o qual as leis e a sociedade se fundam precisamente no indivíduo. Com o declínio do mecenato e a definição da autoria como trabalho intelectual, o ato criativo é cada vez mais autónomo, não sendo mais obrigado a respeitar e repetir os temas e estilos de uma determinada tradição. Assim, a autoria passa a ser sinónimo de originalidade absoluta e de génio. O autor produz trabalho original que depois é copiado ou imitado. É um visionário, alguém que está à frente do seu tempo, sendo frequentemente rejeitado pelos seus contemporâneos que não estão preparados para compreender as suas criações. A conceção romântica do autor está relacionada com a ideia clássica do poeta como profeta, sendo a fé transferida da esfera divina para o progresso e a modernidade. Ao contrário do que acontecia na Idade Média, acredita-se que a sociedade melhora progressivamente. 2.5.6 A CRÍTICA FORMALISTA A individualidade como garantia do progresso e da originalidade é objeto de crítica a partir de meados do século XIX. A ciência e a filosofia contribuem para uma nova perspetiva sobre o indivíduo que, afinal, não é completamente livre, mas depende de sistemas biológicos, sociais, políticos e económicos. As novas teorias e ideias no campo das ciências, da filosofia e da política, influenciam decisivamente a crítica literária e a arte ao longo do século XX. Além disso, o aparecimento da crítica académica profissional contribuiu também para a deslocação do autor para fora do centro de criação literária e para a atenção sobre outros aspetos considerados mais importantes na análise das obras. Mais do que a personalidade do autor, os seus gostos, a sua história, intenções ou influências, à nova crítica literária exigem-se metodologias rigorosas de análise, cen-

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trados na forma do texto, na composição e na interpretação. Assim, o autor deixa de ser o único responsável pela interpretação do seu texto e é legitimada a crítica académica como produtora de interpretações igualmente válidas e com maior cientificidade. Começa desta forma o caminho que levaria à morte do Autor e consequente nascimento do Leitor, declarados por Roland Barthes. A questão da influência, indissociável da criação artística, também é fundamental para a nova crítica literária. Através da sua produção literária, o autor mantém viva a tradição, atualizando-a. O significado completo não pode ser atingido exclusivamente pelo autor, mas também na relação com os autores anteriores. Para as novas abordagens teóricas não interessa, portanto, a personalidade individual do autor, mas a capacidade de apagar a sua personalidade no ato criativo. O crítico não deve estudar ou avaliar o caráter ou a biografia do autor, mas a sua obra. Assim, no final do século XIX, a crítica académica profissional começaria a desenvolver modelos rigorosos de análise baseados nas questões formais, dando menos importância aos aspetos biográficos ou psicológicos dos autores. Essa seria, aliás, a tendência dominante na crítica literária durante o século XX, evidente no Formalismo russo e no New Criticism anglo-saxónico. Há em ambos uma crítica do monopólio das interpretações do texto por parte do autor, que pode ser facilmente percebida como uma forma de legitimar outras interpretações desses textos e a própria atividade do crítico profissional, cuja cientificidade e neutralidade contrastam com a personalidade e envolvimento do autor. A morte do autor permite o nascimento do leitor e, mais especificamente, do leitor especializado – o crítico. 2.5.7 O CINEMA E A BANDA DESENHADA O debate sobre a questão da autoria acontece sobretudo com maior intensidade no domínio da literatura. No entanto, a discussão acontece noutras áreas de criação artística enquadradas em estruturas industriais de produção. Como é representada a autoria em cada uma delas? Relativamente à banda desenhada, a forma como a autoria é representada não é sempre igual, sendo que, por exemplo, o universo da indústria norte-americana de banda desenhada é completamente distinto do cenário europeu. A produção de comic books assenta numa divisão de trabalho bastante vincada, onde as tarefas que merecem a designação de autor têm sofrido uma evolução permanente ao longo da sua história. Para comprovar este facto bastaria analisar a ficha técnica de vários comic books e constatar a diferença no destaque dado aos vários intervenientes no processo. Ao analisar estes exemplos, comparando-os com a teoria e história da autoria na literatura, percebemos rapidamente que o problema da autoria está presente nas várias áreas criativas, estejam elas mais ou menos sujeitas a interesses comerciais e à divisão de tarefas. No caso do cinema, a teoria do Auteur revela bem a importância de questões como a atribuição e propriedade do ato criativo, discutidas intensamente desde os seus primeiros anos. Apesar da discussão sobre a questão da autoria estar mais associada a determinados grupos ou círculos literários, nomeadamente franceses, o tema acompanha o cinema praticamente desde o primeiro dia. Em 1913, na Alemanha, era já usada já a expressão Filme de Autor, revelando um distanciamento em relação ao cinema de entretenimento e pondo em destaque a polémica em torno da autoria do filme. Enquanto na França a autoria era nesta altura atribuída normalmente ao realizador, os argumentistas do Autorenfilm alemão reclamavam que a autoria deveria ser atribuída aos escritores. Este intenso debate sobre a questão da autoria continua durante o século XX, dando origem a novas teorias e manifestos. O texto Naissance d’une nouvelle avant-garde: la Caméra-Stylo, publi-

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cado por Alexandre Astruc em 1948, defende a autonomia do cinema, entendido como uma linguagem específica, e sublinha a necessidade de afirmar uma individualidade forte na criação do filme. O autor do argumento deveria também ser o seu realizador, afirmado-se assim como um autor completo. Este não é um cinema que apenas ilustra um conteúdo escrito previamente, mas que cria o próprio conteúdo. A analogia entre a câmara e a caneta é, aliás, bastante reveladora. François Truffaut continua a polémica no ensaio Un Certaine Tendance du Cinema (1954), mantendo a afirmação da especificidade cinematográfica de Astruc, mas sublinhando a necessidade de utilizar um vocabulário próprio para produzir um discurso crítico sobre cinema. Desta forma, Truffaut pretende também demonstrar que a autoria no cinema não pode ser derivada de outras áreas de criação, mas ser ela própria definida de acordo com a especificidade da linguagem e os mecanismos de produção. Truffaut ataca os filmes centrados no argumento, nomeadamente as adaptações literárias, aos quais opõe um cinema de autor, onde o realizador é a figura central.34 Toma como exemplo um conjunto de realizadores ligados ao cinema norte-americano que conseguem desenvolver um trabalho original e afirmar um estilo próprio – uma identidade –, apesar de integrarem a estrutura industrial de produção dos grandes estúdios de cinema. A Política dos Autores é, mais do que uma teoria, uma reação ao cinema comercial e uma tentativa de afirmar o cinema como uma arte autónoma e anti-ideológica. Na França, esta polémica viria a ter um impacto mais limitado, dado o ambiente político e a instrumentalização do cinema que se seguiu. Além disso, é também na década de sessenta que se torna popular o conceito pós-estruturalista da Morte do Autor, tornando mais difícil a afirmação de teorias que defendam a ideia de autoria. Ainda assim, com o ensaio Notes on the Auteur Theory in 1962, Andrew Sarris resume os princípios da Auteur Theory, transformando uma polémica local numa teoria, ainda que vaga. O seu artigo propõe uma hierarquia de realizadores em três círculos concêntricos: o primeiro é o da competência técnica, o segundo é o do estilo pessoal e o terceiro – e mais importante – o do significado interior. A estes três círculos correspondem os diferentes tipos de realizador: técnico, estilista e autor. A política dos autores, também chamada de Auteurism acabaria por revelar-se contraditória, uma vez que ao promover a figura do realizador no contexto de produção industrial valorizava os filmes como obras de arte, o que vai de encontro aos interesses dos estúdios e da lógica capitalista da produção industrial. Na indústria da banda desenhada norte-americana acontece algo semelhante. Inicialmente, os argumentistas e desenhadores não eram sequer identificados e as editoras produziam revistas com personagens e histórias que eram sua propriedade. Os direitos de autor pertenciam às editoras e os argumentistas e artistas eram trabalhadores contratados, sendo frequente e normal o seu anonimato. A Disney é um dos melhores exemplos desta estratégia comercial. Contudo, tal como no cinema e em muitas outras áreas, começa a despontar uma política de autores que promove alguns dos agentes criativos, humanizando o processo de produção e aproximando editoras e leitores. Os destaques vão mudando ao longo do tempo como uma consequência das mudanças no processo de atribuição, alternando entre editores, desenhadores e argumentistas. Atualmente, o maior destaque é dado aos argumentistas, apesar de existir em muitos casos uma divisão igual de créditos pelos vários intervenientes no processo de produção. No caso das editoras independentes, é bastante valorizado o autor completo, que ilustra o seu próprio argumento e detém os direitos das personagens criadas.

                                                                                                               

34 Este conceito do realizador como alguém que coordena, controla e produz significado através da conjugação de vários aspetos (argumento, personagens, fotografia, cenários, iconografia) é comparável ao do autor completo de livros intermedia. Curiosamente, os autores dos case studies definidos revelam uma grande proximidade com a literatura, as artes plásticas e o cinema.

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Além de ser mais vantajoso para a editora em termos económicos, esta autoria singular parece conferir ao livro uma respeitabilidade autoral mais forte e distinta do esquema de produção industrial caraterístico dos comics. Apesar da banda desenhada ter uma história relativamente curta, existe já muita literatura crítica sobre o meio, onde as ideias de Foucault e Barthes são também aplicadas com frequência. Os livros Understanding Comics: The Invisible Art, de Scott McCloud (1993), The System of Comics, de Thierry Groensteen (1999), Of Comics and Men: A Cultural History of American Comic Books, de Jean-Paul Gabilliet (2005), Reading Comics and What They Mean, de Douglas Wolk (2007) ou o mais recente Comics Art (2014), de Paul Gravett refletem sobre este medium com dispositivos, inovadores e liberdades próprios. 2.5.8 MORTE E O RENASCIMENTO DO AUTOR O debate em torno da questão da autoria não é exclusivo da teoria literária francesa, nem explorado apenas por Barthes ou Foucault. Foi, aliás, um tema central no panorama crítico do século XX. As contribuições dos dois autores foram decisivas não só pelo conteúdo dos seus textos, mas porque permitiram a criação de outros textos sobre o assunto, tornando-os em algo semelhante ao que Foucault chamou de "instauradores da discursividade". As abordagens teóricas ao tema da autoria acabam sempre por referir as suas teses, ora para sustentar uma nova teoria, ora para contrariar as suas ideias. Também neste pequeno estudo sobre a autoria somos obrigados a revisitar as ideias de Barthes e Foucault, confirmando o que parece agora ser um esquema recorrente: depois da sua morte, o autor é ressuscitado permanentemente. Mas não poderá o nascimento do Leitor, através da Morte do Autor, ser entendido como a afirmação do próprio crítico enquanto autor? É também interessante observar que os dois autores iniciaram os seus percursos com críticas radicais à noção tradicional de autoria, mas ambos acabariam por produzir trabalhos de natureza pessoal ou autobiográfica. As teorias de Barthes e Foucault não se circunscrevem ao campo literário. Ao contrário da crítica formalista, não se limitam a analisar os textos, deixando de lado a biografia, a sociedade e a política, mas assumem uma postura que é facilmente enquadrável com um momento político e social específico. A associação das suas ideias a determinados eventos políticos revela a forma como a Morte do Autor era interpretada como uma crítica da autoridade e do individualismo. A genealogia da ideia de autor está obviamente associada à figura do sujeito individual, uma vez que o termo "autor" dá origem a questões relacionadas com a autoridade, nomeadamente se um indivíduo é a fonte da autoridade. Além da crítica da autoridade e do individualismo, Barthes desenvolve também uma reação ao tipo de crítica dominante no pensamento francês da época, influenciado pela fenomenologia. É, aliás, neste contexto teórico dominado pela fenomenologia que Barthes e Foucault começam as suas carreiras. Com a aplicação das teorias linguísticas de Saussure à investigação antropológica, Lévi-Strauss contribui para uma mudança importante, demonstrando que uma teoria concebida originalmente para o estudo da linguagem poderia ser usada como um modelo para o pensamento filosófico e crítico em geral. Ao afirmar que o significado não é inerente às coisas, mas emerge das relações entre elas dentro de um sistema, Saussurre promove implicitamente a defesa do sistema acima do indivíduo. Os estudos linguísticos de Saussure influenciam profundamente a economia e a política e a mesma crítica do individualismo pode ser encontrada nas ideias de Marx. Aplicada ao trabalho criativo, também funciona como uma crítica dos seus modelos produtivos.

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Neste contexto, a noção de autoria seria um dos objetos da crítica, até porque não se resume a uma tarefa no esquema de produção literária, mas também é entendida como uma forma de propriedade. Se no caso da produção industrial os meios de produção devem estar na posse dos trabalhadores e os lucros devem ser distribuídos igualmente por todos, no trabalho intelectual deve acontecer a mesma coisa. O escritor, artista ou designer deveria também tomar posse dos meios de produção e recusar a tradicional divisão de trabalho. O artista deveria ser capaz de escrever e o escritor capaz de fotografar. Esta é também a proposta de Walter Benjamin nos textos O autor como produtor (1934) e A obra de arte na era da sua possibilidade de reprodução técnica (1935).35 As teorias de Barthes e Foucault apoiam-se no esquema estruturalista de Saussure para propor uma literatura que não fixa a propriedade do texto e do seu significado num autor, mas a distribui pelos leitores a cada nova leitura. A origem política desta ideia é apresentada no texto A Morte do Autor, que acaba por se traduzir numa reação contra o prestígio do indivíduo, considerado o corolário da ideologia capitalista e confirmado na literatura pela importância dada ao autor. Barthes investiga também as relações entre escritor, leitor e crítico, e propõe um novo objeto teórico – o Texto36 –, aplicando as ideias marxistas ao estruturalismo. O Texto de Barthes não substitui a Obra, nem se opõe a ela. O Texto compreende não só a Obra, mas todos os significados que nascem das múltiplas leituras. O Texto não é propriedade de um Autor, nem lhe pode ser atribuído; não é fechado – cresce e multiplica-se em rede, continuando a englobar o Autor, que faz parte desta rede. A noção de Texto desvaloriza a importância da distinção entre escrita e leitura e pode ser interpretada como uma forma de apropriação. Em teoria, o Texto pertence a todos; no entanto, o crítico parece ser o único que se dedica à sua interpretação. A afirmação do Leitor barthesiano acaba por se traduzir na afirmação do crítico neste processo de apropriação/interpretação. Desta forma, o conceito de autoria, tradicionalmente associado a uma origem única, é problematizado, uma vez que a autoria conhece novos protagonistas e assume novas configurações. Em 1970 Foucault escreve o ensaio O Que é um Autor? com o objetivo de analisar de forma mais rigorosa o funcionamento da autoria. O ensaio é também uma resposta à proposta de Barthes. Enquanto este apresenta a morte do autor e propõe o nascimento de uma nova figura autoral – o leitor (e, consequentemente, o crítico) –, Foucault procura responder à pergunta que dá o título ao ensaio – como se estabelece a autoria e de que forma funciona? Foucault dispersa a autoria num conjunto de várias autorias – científica, literária, editorial ou biográfica – que podem existir na mesma obra. Ao fazê-lo, a noção de obra torna-se, tal como já acontecera com Barthes, pouco rigorosa ou mesmo inadequada para suportar uma análise da autoria. Assim, torna-se necessário formular ferramentas de análise que sustentem a nova metodologia. No livro A Arqueologia do Saber (1969) foram apresentadas algumas dessas ferramentas, analisando os conceitos de livro, autoria, obra, entre outros, e a forma como eles se dispersam pelos vários tipos de discurso. Se o trabalho de Foucault é frequentemente associado à crítica do poder e à análise da forma como este funciona nas várias práticas e instituições, também a autoria, entendida como uma forma de autoridade,

                                                                                                               

35 Esta questão foi referida no capítulo 1, a propósito das produções de artista e escritores russos antes e depois da revolução. Estes artistas recorriam aos meios disponíveis para produzir os seus livros, responsabilizando-se pela sua criação, produção e divulgação. A ligação a outras atividades como a tipografia, a fotografia ou o design permite a estes autores produtores um maior controle sobre o processo de criação e produção dos seus livros. Neste contexto de transdisciplinaridade são frequentes as coloborações entre as várias artes ou áreas criativas. Além disso, um artista podia desenvolver outras atividades em simultâneo, como o design, teatro, arquitetura, fotografia, etc. 36 Esta conceção semiótica do texto, de origem barthesiana, foi já referida nas páginas 38 e 46, tendo sido aplicada a livros onde é usada uma linguagem mista. Por outro lado, a noção de texto como uma rede de múltiplos significados e interpretações, alargada permanentemente pelo leitor/crítico está também relacionada o grau de erudição de uma obra.

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pode ser enquadrada nesta ideia de poder – um poder onde dominante e dominado participam ativamente. Um autor mais forte exerce uma forma de poder sobre autores mais fracos, que se pode traduzir como influência. Em Foucault, contudo, os autores fracos ou influenciados participam na construção da influência e do autor forte que os influencia. Se, por um lado, muitos dos novos modelos de autoria, alternativos ao modelo tradicional e dominante, parecem contrariar a Morte do Autor de Barthes, por outro, podem ser enquadrados na teoria de Foucault, para quem a autoria funciona de forma diversa nas várias práticas discursivas. De facto, em algumas abordagens literárias a identidade e a biografia do autor são indispensáveis para a interpretação e análise crítica da obra. Esta relação entre autoria e identidade é fundamental, por exemplo, na crítica literária de textos feministas. A autoria é um tema complexo. A forma como é representada ou atribuída tem sido objeto de intensos debates e polémicas ao longo do tempo nos vários domínios científicos. Com este resumo da história do conceito de autoria pretendemos, sobretudo, demonstrar a sua complexidade, referir alguns aspetos fundamentais e apresentar ideias importantes na análise de livros onde são representadas autorias singulares. 2.6 A ARQUEOLOGIA DO SABER Feita a história breve da autoria em geral, torna-se agora necessário explicar a metodologia crítica escolhida para a análise da autoria nos nossos objetos de estudo, usando como base o esquema teórico proposto por Foucault no livro A Arqueologia do Saber (1969). Foucault define os seus livros como caixas de ferramentas que podem ser usadas, por exemplo, para pôr em causa sistemas de poder. Contudo, a metodologia não pode ser aplicada de forma rígida, dispersa ou fragmentada, contrariando as suas intenções originais. Foucault critica a aparente unidade física do livro impresso, visto tradicionalmente como um protótipo para a unidade do discurso profissional. Apesar de parecer um objeto completo e autocontido, o livro é, na realidade, um sistema de dispersão, ou seja, está disperso numa rede de outros textos. O livro é, por isso, o modelo para questionar o conceito de disciplina (território)37. A investigação sobre a autoria está integrada numa investigação mais alargada, relacionada com os vários tipos de discurso, e a sua crítica integra-se no estudo mais abrangente das noções de poder e autoridade. Apesar de muitos dos seus textos tratarem diretamente a questão da autoria, é no livro A Arqueologia do Saber que é exposta de forma sistemática a sua metodologia. Ao analisar a forma como é vista a história das disciplinas – revelando ruturas e descontinuidades que não podem ser enquadradas num modelo de aperfeiçoamento constante –, Foucault apresenta uma redefinição das unidades tidas como inquestionáveis: a obra, o texto, a disciplina científica e, claro, o autor. Este processo de redefinição começa por questionar o que é um documento, de que forma um documento é legitimado, fornecendo um suporte à história. Que documentos são validados ou excluídos? a quem cabe essa decisão? O método proposto por Foucault não vê a história como uma procura das origens – de quem foi o primeiro a produzir num estilo ou uma ideia –, mas como uma forma de perceber de que maneira os estilos e ideias se relacionam, dispersam e divergem. Desta forma, o seu estudo foca-se sobretudo nos problemas teóricos suscitados pelos conceitos de descontinuidade, rutura, limite, série e transformação na história das ideias, das ciências, do pensamento ou do conhecimento. Põe também em causa os grandes tipos de discurso: a literatura, filosofia, religião, ciência – unidades recentes e de aplicação delicada a outros perío-

                                                                                                               

37 Esta é também uma ideia chave para o nosso estudo, que se propõe refletir sobre livros inclassificáveis, avessos a géneros e definidos como uma forma de intermedia.

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dos históricos. Ainda assim, as unidades mais problemáticas para Foucault são as de livro e de obra – unidadeschave para o nosso estudo. Foucault questiona a própria materialidade do livro e sua suposta unidade discursiva, distinguindo os dois aspetos. Ou seja, a unidade material do livro não garante a unidade discursiva do mesmo, embora a suporte. Ao contrário do aspeto material do livro, as margens do discurso não estão completamente definidas. Apesar do título, da estrutura e da forma, o texto do livro está sempre ligado a outros textos, outras frases ou discursos38, formando mais um nó numa rede. Foucault questiona também o conceito de obra. A noção de um conjunto de textos que que podem ser agrupados através de um nome próprio – o do seu autor – não é completamente transparente – exige escolhas, interpretação. Afinal, quais são os trabalhos que devem fazer parte dessa obra? quais devem ficar de fora? qual o critério? É frequente, por exemplo, um artista ou designer distinguir o trabalho feito individualmente do trabalho desenvolvido de forma colaborativa. De uma forma geral, Foucault apresenta como pilar do seu método a ideia de dispersão – a dispersão que põe em causa a unidade discursiva das ciências, da obra, do livro e do autor. O método analítico proposto por Foucault é distinto das análises linguística, psicológica ou biográfica. Ao descrever os acontecimentos discursivos procura-se determinar porque surgiu um enunciado e não outro. Ou seja, o enunciado não é apenas língua ou sentido, mas também materialidade, registo. Esta é uma questão importante porque permite que a análise se foque não apenas em textos, mas também em imagens, ou em linguagens híbridas. Segundo Foucault, portanto, a unidade de um conjunto de enunciados não se forma a partir dos objetos de que tratam, de um estilo, dos conceitos com que se relacionam e dos temas que abordam, mas das regras que permitem o aparecimento e a mudança destes objetos ao longo do tempo. 2.6.1 A ANÁLISE DISCURSIVA DE FOUCAULT O enunciado é o pilar fundamental da análise discursiva proposta por Foucault. O enunciado distingue-se da proposição, da frase, do signo e de outras unidades, posicionando-se antes como função que se exerce verticalmente em relação a essas unidades. Esta definição do enunciado permite estabelecer uma relação com as outras áreas disciplinares: a lógica, a gramática e a semiótica. O enunciado, ao contrário da frase ou da proposição, permite analisar a organização espacial – composição – de um texto, integrando-a na análise discursiva. É um "elemento residual" (Foucault 1969, p.123), o que fica das proposições, frases ou elocuções. Mas, para existir, os signos não podem ser dispostos acidentalmente ou de forma arbitrária – têm de fazer parte de um determinado discurso. Desta forma, o seu método permite tratar o discurso e a sua representação gráfica como um todo, ou seja, não apenas o que é dito ou escrito, mas também a composição do texto e a relação entre texto e imagem. Este é, aliás, um dos motivos que justificam a importância da metodologia de Foucault para o nosso estudo sobre a autoria singular no domínio do livro com texto e imagens. Com o objetivo de analisar as formações discursivas, Foucault apresenta o seu método, começando por fornecer as definições de discurso e enunciado e colocando em causa as noções clássicas de obra e de livro, juntamente com a dimensão psicológica do autor. Enquanto a noção de discurso pode compreender o domínio geral de todos os enunciados, um conjunto determinado de enunciados ou um tipo particular de discurso, o enunciado permite relacionar o contexto com as frases, proposições ou elocuções. A dificuldade sur-

                                                                                                               

38 Os enunciados que constituem o discurso de um livro podem ser verbais, visuais, ou mistos. A associação deste discurso a outros discursos (produzidos no contexto de outras disciplinas mais ou menos próximas) põe em casa a unidade discursiva da obra.

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ge, entretanto, na forma como o enunciado se relaciona com o contexto e com o sujeito. A existência de um enunciado não pode, por exemplo, depender da intenção do sujeito. Essa dependência levaria a crítica a procurar no objeto a intenção do autor, em detrimento do próprio objeto. Por outro lado, o contexto também é fundamental, uma vez que as mesmas frases ou proposições em contextos diferentes produzem enunciados distintos. A função enunciativa tem um grande impacto na conceção de autoria, dada a relação que existe entre o enunciado e o sujeito. Podemos referir, como exemplo, a existência de vários sujeitos/personagens dentro de um romance que correspondem, na verdade, a um único sujeito enunciativo – o autor do romance. Por outro lado, a função enunciativa presente num menu de restaurante é completamente distinta e o sujeito neutro que enuncia não é, naturalmente, um autor literário. Segundo Foucault, o sujeito enunciativo é “um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente preenchido por indivíduos diferentes; mas esse lugar, em vez de ser definido de uma vez por todas e de se manter igual ao longo de um texto, de um livro ou de uma obra, varia – ou antes, é suficientemente variável para poder perseverar, idêntico a si próprio, através de várias frases, ou para se modificar com cada uma delas.” (p. 135). A função enunciativa não pode existir sem que esteja associada a um domínio. Os enunciados, ao contrário das frases e proposições, só existem na relação com outros enunciados. Este é um aspeto que nos interessa, sobretudo pela forma como um livro remete direta ou indiretamente para outros livros, à semelhança de um enunciado cujas margens estão sempre povoadas de outros enunciados. O enunciado não é livre, neutro ou independente, mas faz sempre parte de um conjunto, de uma rede, produzindo aquilo a que Foucault chama de "jogo enunciativo"39, na medida em que um enunciado se relaciona inevitavelmente com outros, cita, prolonga e inspira. O enunciado tem também sempre uma existência material, não é uma abstração. Esta materialidade não significa que o enunciado seja obrigatoriamente um objeto, podendo ser uma frase dita ou um gesto. Não se trata de um mero suporte, mas de algo que é essencial na definição do próprio enunciado. Bastará dizer que a mesma frase dita ou escrita, agora ou há cem anos atrás, constitui enunciados distintos. Da mesma maneira, podemos acrescentar que uma frase isolada ou em articulação com uma ilustração não constitui naturalmente o mesmo enunciado. No entanto, o enunciado pode ser simultaneamente singular e repetível, como é o caso do livro reproduzido em sucessivas edições. Ainda assim, só é repetível em condições muito específicas. Enquadrado no domínio da literatura, um livro pode ser um enunciado produzido por determinado autor e, como tal, repetível. Contudo, se o mesmo livro for enquadrado no domínio do design podemos entendê-lo como um enunciado produzido por outro sujeito enunciativo – o designer do livro, por exemplo. O enquadramento da investigação ou análise num domínio é, portanto, essencial. O enunciado é um elemento fundamental para estudar a autoria. Contudo, a função enunciativa não está relacionada com uma necessidade de procurar intenções do sujeito, segundos sentidos, outras camadas. O que Foucault propõe é descobrir quais são as condições que permitem que algo seja enunciado, entre todas as enunciações possíveis. Foucault reflete também sobre a suposta "exterioridade" do enunciado. O discurso é normalmente visto como exterior a uma verdade mais profunda, mais essencial, ou seja, próxima da origem. Esta verdade mais secreta deveria ser decifrada através da interpretação. O método proposto por Fou-

                                                                                                               

39 Poder-se-ia dizer que o “jogo enunciativo” produzido pelos livros que interessam a este estudo é mais complexo do que é produzido por um livro ilustrado tradicional, promovendo ligações a outros discursos (filosofia, literatura, banda desenhada, design, livros de artista, etc.) que tornam a leitura e a interpretação mais exigentes.

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cault, contudo, pretende analisar os enunciados na sua dispersão natural, sem os remeter para uma suposta interioridade. De acordo com as suas palavras, os enunciados devem ser tratados "não como resultado ou rasto de outra coisa, mas como um domínio próprio que é autónomo" (p. 165). Desta forma, também se entende que o discurso não é uma simples tradução de um pensamento, seja ele coletivo ou individual. Não se trata, afinal, de saber quem fala, quem é o responsável pelo discurso, mas de perceber que o discurso acontece de uma maneira e num lugar específicos. Foucault continua a explicação sobre a natureza do discurso e dos enunciados, referindo os aspetos da sua acumulação e manutenção. Estes não acontecem apenas em função de um percurso histórico, mas pela ação permanente e conjunta de práticas, técnicas e instituições. Por outro lado, qualquer enunciado pressupõe um a priori histórico, "um campo de antecedentes por referência aos quais se situa, mas que ele tem o poder de reorganizar e de redistribuir segundo relações novas" (p. 171-172). Não se trata de saber se o enunciado é verdadeiro ou falso, se é muito ou pouco original, mas antes de perceber se um conjunto de enunciados surgem no mesmo campo conceptual. A peça final da análise discursiva de Foucault é o arquivo – conjunto de sistemas de enunciados (acontecimentos e coisas) – e o estudo do arquivo é a arqueologia – sistema que faz aparecer os enunciados. O objeto deste estudo sobre a autoria, um tipo particular de autoria, é o arquivo dos livros com texto e imagens, que vivem nos limites dos géneros literários, incatalogáveis, sem público-alvo. São livros ilustrados, edições de autor, livros de artista, romances visuais, poesia visual, objetos híbridos – livros que se relacionam com o cinema, a arte, a banda desenhada, a poesia, o ensaio, ou que podem ser tudo isso. Não se pode dizer que os livros que constituem este arquivo falem da mesma coisa, tenham objetivos semelhantes ou apresentem uma unidade discursiva. Na realidade, é o facto de todos eles serem objetos autónomos, com regras e motivações próprias, e portanto distintos, que os aproxima, os constitui neste nosso arquivo. 2.6.2 CONTRIBUTOS DA ANÁLISE DISCURSIVA Depois da descrição resumida da metodologia proposta por Foucault, torna-se agora necessário aplicar os seus princípios à análise dos livros com textos e imagens concebidos por um único autor, procurando perceber se definem, no seu conjunto, um discurso. O discurso não é, no entanto, algo que resulta do objeto considerado, mas algo que forma esse objeto. Segundo Foucault, o discurso é: “ora domínio geral de todos os enunciados, ora grupo individualizável de enunciados, ora prática regulamentada dando conta de um certo número de enunciados” (1969, p. 118). O nosso estudo trata claramente de um grupo individualizável de enunciados: os livros. No entanto, o facto de resultarem da combinação de áreas ou disciplinas diferentes faz com que possamos também falar de discurso enquanto uma prática regulamentada. Podemos dizer que o discurso que nos interessa está na periferia (ou interseção) dessas práticas regulamentadas. Assim sendo, o discurso associado aos livros em estudo inscreve-se igualmente no domínio geral de todos os enunciados, uma vez que está intimamente ligado a outros discursos – artes plásticas, banda desenhada, cinema, literatura, poesia. Os livros escolhidos como case studies são formados no cruzamento de discursos associados a diferentes áreas e esse é um dos seus aspetos mais distintivos. Veja-se, por exemplo, a ligação de Gorey ao teatro e ao ballet, de Eduardo Batarda às artes plásticas, de Tiago Manuel e Martin Vaughn-James à banda dese-

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nhada e ao cinema. Tendo em conta que se trata de autores que escrevem, ilustram e, na maioria das vezes, se responsabilizam pelo design dos seus livros, assumindo um controle total ou quase total desses objetos, o cruzamento de discursos é evidente. No entanto, não é o cruzamento de discursos que faz desses livros objetos inovadores, diferentes, estranhos ou difíceis. Mais importante é a maneira como esses discursos se cruzam através de um único autor, construindo o discurso autoral e produzindo um objeto com uma identidade fortemente vincada. O âmbito do nosso estudo não está relacionado com um discurso específico, caraterizado por uma unidade disciplinar, mas com os resultados que podem surgir da interação de discursos distintos no livro, através de uma autoria singular. A análise discursiva não pode reduzir o discurso a um conjunto de práticas associadas à palavra. Como sabemos, num livro não são apenas as palavras que comunicam e no esquema discursivo dos livros ilustrados não é apenas o texto que deve ser analisado. Por outro lado, não se pode isolar e analisar separadamente as diferentes vertentes discursivas do mesmo objeto. Foucault inclui na sua definição de enunciado objetos como listas ou configurações de imagens e texto sobre a página, revelando, desde logo, a possibilidade do discurso conter não apenas a escrita – teórica ou crítica – mas também o próprio objeto –, neste caso o livro. Naturalmente, estas são questões polémicas, uma vez que a crítica, a teoria ou a pedagogia procuram controlar as práticas discursivas e até mesmo a legitimação de autores, o que confirma a importância dos conceitos de poder, autoridade e controle no estudo da autoria. A análise discursiva permite, a partir dos livros, perceber como é representada a noção de autoria e como essa função tem um papel decisivo na criação de uma identidade autoral. Põe em causa o rigor das reflexões baseadas nos tradicionais binómios forma/função, forma/conteúdo ou imagem/texto, porque mesmo estes constituem enunciados que são utilizados de forma distinta em épocas ou discursos diferentes. A autoria no livro ilustrado não pode ser vista como um "estilo". Quando nos referimos ao livro de artista a questão parece menos confusa, dado que o artista é inequivocamente um autor e, dessa forma, o livro de artista é um livro de autor. O conceito de autoria aplicado ao livro é semelhante ao conceito de autoria aplicado ao cinema de autor, também ele alvo de debate. Para usar a terminologia de Foucault, a função autor é historicamente determinada, pelo que os esquemas discursivos que legitimam autorias devem ser analisados com rigor. Importa assim perceber quais são as regras enunciativas que aproximam os livros em estudo e os agrupa num "quase-género". O objetivo é perceber como funcionam os mecanismos de legitimação, atribuição e autoria em determinados livros, que podem ser ilustrados, de artista, de banda desenhada ou outra coisa. Para isso, procuraremos, em primeiro lugar, enumerar alguns esquemas gráficos da função autor, tendo por base a metodologia de Foucault. Em Isto não é um Cachimbo (FOUCAULT, 1973), o autor aborda a relação entre a palavra e o texto, normalmente reduzida a uma expressão de intenções prévias. Foucault demonstra, a partir de algumas obras de Magritte, que a forma como as imagens e os textos interagem na página de um livro influencia o sentido de ambos os elementos. Dito de uma forma simples, se os mesmos textos e imagens forem dispostos numa página de duas maneiras distintas o resultado pode ser dois enunciados muito diferentes. Os quadros de Magritte são entendidos como caligramas que, segundo Foucault, têm três objetivos: "compensar o alfabeto; repetir sem o recurso à retórica; e prender as coisas na armadilha da dupla grafia"

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(p.22). Assim, a escrita é disposta no espaço da página sem a habitual indiferença ao branco do papel, reduzindo a importância do fonetismo e valorizando o desenho "que é necessário traspassar para seguir, de palavra em palavra, o esvaziamento de seu texto intestino" (p.22). Outro aspeto importante na definição de caligrama é a hierarquia entre palavras e imagens sobre a página: não é possível ler e ver em simultâneo. Com o modernismo esta separação clássica entre representação plástica e referência linguística é problematizada e a relação entre arte e linguagem tornar-se-ia mesmo um dos aspetos fundamentais do discurso modernista. Obviamente, esta não é uma questão apenas estética, mas também política. A afirmação de um autor é também a afirmação do direito a pensar e controlar o processo criativo, tantas vezes subordinado a briefings, interesses comerciais ou outros. Ou seja, é também afirmação de poder, ação política. A identidade do autor é construída através de determinadas configurações gráficas e dificilmente poderá ser considerada uma criação monolítica e egocêntrica. De facto, ela resulta da enunciação de um conjunto de identidades e referências que interagem de maneiras distintas, como se tratasse de um coro ou orquestra, onde as diferentes vozes ou instrumentos produzem paralelamente um enunciado. Por outro lado, no que diz respeito aos livros em estudo, a identidade autoral também é construída através de opções de design, de paginação, de escrita e de edição, ou seja, através do controle total, ou quase total, sobre o próprio trabalho e, em alguns casos, sobre o objeto produzido. Naturalmente, o grau de controle discursivo sobre o livro enquanto objeto varia de autor para autor e as estratégias de enunciação de autoria são muitas. No entanto, em todos os casos a autoria surge como uma forma de controle, que é enunciada nos planos literário, gráfico e editorial. Mas se, em alguns casos, o autor controla quase totalmente todas as fases de produção do livro, em muitos outros essa produção é partilhada com outros agentes, que podem ou não partilhar a autoria. Como sabemos, o mito do artista continua a ser muito resistente à divisão dos créditos e essa é também uma questão sensível noutros territórios: cinema, literatura ou banda desenhada. O mundo dos comics norte-americanos, dada a divisão de tarefas e as mudanças na forma como são vistos e valorizados os vários agentes envolvidos, é um exemplo pertinente. A identidade não é, portanto, uma construção unificada, mas algo que está disperso numa imensa rede de enunciações e referências. Seja individual ou coletiva, a autoria está necessariamente ligada às noções de apropriação e influência. O trabalho criativo de qualquer autor implica sempre uma apropriação de trabalhos de outros autores, de referências, numa rede dispersa que contribui decisivamente na enunciação de uma identidade. A apropriação não é cópia ou plágio, antes influência e reformulação a partir das ligações que são estabelecidas entre autores e obras. Influência e apropriação são aqui entendidos de uma forma positiva, como um contributo para criar algo novo, num contexto de dispersão, e não como força que condiciona os objetos ou os seus autores. Este é também um dos objetivos do nosso estudo – perceber como são representadas nos próprios objetos a apropriação e a influência. Enquanto na influência um objeto afeta o outro de uma forma mais subtil ou passiva, no caso da apropriação a relação é mais agressiva, uma vez que um objeto absorve o outro, apropriase dele. Qualquer uma noções implica uma forma de poder que se exerce nas relações entre autores maiores e menores, dominantes e dominados. No entanto, de acordo com o esquema de Foucault, todos têm um papel ativo no processo.40

                                                                                                               

40 Náo seria difícil identificar alguns antecedentes ou influências de vária ordem para os artistas que escolhemos como case studies. Os livros remetem para outros autores, outros livros, outros enunciados, estabelecendo uma complexa rede de significação. Picasso dizia

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2.6.3 AUTORIA, CONTROLE E PODER Interessa agora aplicar a análise discursiva aos objetos em estudo e perceber como os enunciados, estratégias gráficas e formas de organização interna são usados para construir o discurso autoral. O formato, a estrutura, as linguagens, os códigos – tudo está ao serviço deste autor singular. O livro é visto como terreno de experimentação e a sua forma constitui desde logo um enunciado, uma das possibilidades para a representação da autoria. O autor pode, por exemplo, usar para efeitos narrativos zonas do livro que habitualmente são destinadas a outro tipo de informação (ficha técnica, guardas, lombada, folha de rosto, etc.). Normalmente, a interação entre os diversos elementos é complexa e não raras vezes apela a um certo grau de erudição – conhecimentos de literatura, arte, história, cultura popular, etc. A separação clara entre texto e ilustrações também não é sinónimo de uma menor complexidade, como aliás já vimos com o quadro de Magritte e podemos comprovar em The Cage de MVJ. O nosso objetivo não é fixar um conjunto de tipologias recorrentes, mas antes procurar, caso a caso, as evidências que apontam para um controle total do livro, como objeto e como conteúdo. Qualquer livro está longe de ser uma continuidade a priori, antes resulta de uma série de operações que visam enunciar graficamente essa unidade. A forma como é enunciada contribui para fixar a identidade de um autor, isolando a sua voz do suporte material do livro. A continuidade gráfica contribui para representar no livro a unidade autoral – aquilo a que podemos chamar de voz do autor e que também significa uma afirmação de posse. Já vimos que, segundo Foucault, a relação entre texto e imagem pode produzir enunciados capazes de alterar o valor lógico dos mesmos, tomados separadamente. É também possível falar de um esquema de poder, ou melhor, de hierarquia entre os vários elementos. As imagens podem estar subordinadas ao texto, os dois elementos podem existir ao mesmo nível ou pode o texto estar subordinado às imagens, invertendo a estrutura tradicional e fazendo aumentar a complexidade das hierarquias: imagem como ilustração, imagem como legenda, texto como ilustração, texto como legenda, etc. A questão da hierarquia está intimamente relacionada com o percurso do leitor no livro, que pode ou não ser feito de uma forma linear, de acordo com a sua estrutura. Se em muitos casos o leitor é convidado a ler um texto para só depois procurar as imagens, alguns livros apresentam sistemas mais dinâmicos, com diferentes níveis de complexidade – o leitor pode escolher percursos de leitura alternativos ou, dito de outra forma, o livro enuncia a identidade de vários tipos de leitores. A questão da hierarquia torna-se ainda mais complexa quando os dois elementos estão articulados de tal maneira que dificilmente poderiam funcionar isoladamente. Neste caso, e mesmo sabendo que é impossível ler e ver em simultâneo, ambos os elementos parecem fazer parte de um programa maior e o enunciado resulta dessa linguagem híbrida, como acontece muitas vezes com a banda desenhada. Podemos também acrescentar que a articulação de várias linguagens nos objetos em estudo não está limitada aos domínios da arte e da literatura, mas que se pode estender de uma forma mais ou menos explícita a outros territórios, nomeadamente o design gráfico. Já vimos como estes domínios se cruzam na obra de Chris Ware, para referir apenas um exemplo. De alguma forma, as fronteiras são esbatidas na criação destes livros que, assim, produzem novos enunciados e confundem classificações tradicionais. É importante relembrar que a interação não tem de ser necessariamente gráfica e o uso de uma estratégia tradicional na relação entre texto e imagem pode ter um carácter subversivo ou antagónico. A maioria dos livros de Gorey obede-

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              que “bons artistas copiam, grandes artistas roubam”. O roubo é uma forma de apropriação. No capítulo 3 esta questão será mais aprofundada.

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cem ao cânone tradicional do livro ilustrado, com o texto e a imagem separados. Contudo, essa relação é potenciada e o enunciado resultante da interação é bem diferente dos que são produzidos apenas pelas imagens ou pelo texto. The Cage é também um óptimo exemplo deste uso alternativo, e irónico, de uma estrutura clássica. Em qualquer caso, o mesmo livro pode conter diferentes modalidades de autoria – as funções-autor de Foucault. Esta existência de vozes distintas pode surgir de uma necessidade ou com vista a uma determinado efeito expressivo, como o desdobramento de um autor em vozes distintas ou o recurso a heterónimos e outras representações da autoria. Apesar da nossa análise incidir sobre o autor único – responsável pelo texto, imagens e design –, pode dizer-se que o livro nunca será um objeto unidimensional, mas algo que resulta da colaboração de diferentes vozes e atores para enunciar uma identidade. Ainda assim, estes livros distinguemse, sobretudo, pelo controle programático exercido pelo autor sobre o livro enquanto objeto e sobre as suas hierarquias. O autor organiza o processo e o discurso, demonstrando de forma evidente a sua posse, a sua autoria combinada.

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CAPÍTULO 3 – CASE STUDIES 3.1 INTRODUÇÃO De que forma pode então um livro enunciar a identidade autoral? Começaremos por distinguir diferentes configurações gráficas, uma vez que evidenciam diferentes enunciações de autoria. Não será possível, claro, identificar a totalidade de configurações que um livro pode assumir, mas tentaremos, a partir dos case studies definidos, isolar um conjunto de discursos de autoria distintos. Como é apresentado o autor? Como se relacionam o autor e o próprio livro com os conteúdos apresentados? Como se relacionam ambos com outros discursos disciplinares? Quais as características do texto e da imagem? De que forma se articulam? Como se relacionam estas opções formais com os conteúdos apresentados? Sugerem ligações, apropriações, influências? Estas questões devem ser vistas como tópicos de referência à produção de breves ensaios críticos sobre os livros escolhidos. A ideia é que possam ser lidos separadamente e, ao mesmo tempo, constituir uma parte importante deste trabalho. Tendo em conta o número crescente de livros, mesmo os inclassificáveis, os case studies escolhidos constituem uma amostra para análise de um arquivo complexo, de livros avessos a géneros, territórios e catalogações – livros criados por um único indivíduo, que articulam texto e imagem para produzir um objeto híbrido, reflexivo, muitas vezes autobiográfico e de digestão demorada. Tendo em conta o tema do nosso estudo, procuramos escolher livros onde as noções de autoria e identidade são também objeto de reflexão, exploração ou ironia. The Unstrung Harp; or Mr. Earbrass Writes a Novel (1953), de E. Gorey, é um olhar sobre a vida literária, o processo criativo e os seus problemas. O livro que constitui a componente prática deste estudo parte de uma reflexão semelhante, de uma história que se conta a si mesma – a história de uma história. Importa pela sua estranheza, complexidade e erudição. O Peregrino Blindado (1973), de Eduardo Batarda, é um livro de artista, situado entre as artes ditas maiores e a banda desenhada experimental, que mistura elementos populares e eruditos numa pseudo-narrativa de difícil leitura. The Cage (1975), de Martin Vaughn-James, é uma obra fundamental. Dá origem a um novo género – a narrativa visual –, afastando-se do universo da banda desenhada e partindo do romance gráfico para trilhar outros caminhos e atravessar territórios. Sai do Meu Filme (2010) é o primeiro livro que Tiago Manuel assina com o próprio nome, despojando-se por momentos do aparelho heteronímico ainda incompleto. É um livro autobiográfico que, além da linguagem única do autor, oferece também uma reflexão sobre a vida, o cinema, a arte e a identidade, através do recurso a diversas estratégias gráficas e icónicas. Estes livros são completamente distintos, criados em contextos muito diferentes e contribuem de forma diversa para a nossa reflexão crítica. No entanto, em todos eles, a enunciação do autor, de uma identidade autoral, manifesta-se através da demonstração de um controle o mais completo possível por parte do autor sobre o livro enquanto objeto. Como já foi dito, trata-se apenas de uma amostra, que esperamos ser significativa.

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3.2 THE UNSTRUNG HARP (EDWARD GOREY) The Unstrung Harp; or Mr. Earbrass Writes a Novel (1953) é normalmente apresentado como um olhar sobre a vida literária: solidão, inspiração, bloqueio de escritor, ciúme profissional e melancolia. Conta a história de um famoso romancista que está a escrever um livro também chamado The Unstrung Harp e parece, por isso, um livro sobre Gorey, ou melhor, sobre Gorey escrevendo The Unstrung Harp. Gorey usa um cânone clássico na organização interna do livro (Fig. 2). A dimensão dos dois elementos – verbal e visual – na dupla página é constante, bem como a sua disposição. Cada página da esquerda contém um parágrafo essencialmente descritivo e cada página da direita apresenta uma ilustração. Os texto e imagem estão, portanto, espacialmente dissociados e todas as imagens são lidas separadamente. No entanto, a leitura é sequencial, uma vez que as imagens são solidárias entre si e funcionam como vinhetas de uma banda desenhada, articuladas de um ponto de vista icónico e semântico. Esta é uma estrutura reminiscente do livro ilustrado tradicional e do cinema mudo. Além de ter desenvolvido uma relação muito próxima com o teatro e o ballet, percetível na composição dos seus livros e nas poses das suas personagens, Gorey era um cinéfilo confesso e um espetador de telenovelas, séries e até publicidades.

Fig. 1 – Capa e contracapa

Fig. 2 – Páginas 35 e 36

A proximidade aos territórios do cinema, do teatro e da literatura contribuiu para construir um universo autoral muito particular, de narrativas estranhas ou absurdas. O título do livro é um exemplo da diversidade de sentidos. Pode ter o significado literal que a ilustração da capa confirma, mas também pode significar irritação ou instabilidade emocional – sentimentos experimentados durante a criação do livro. A ironia continua na contracapa, mostrando a audiência do concerto oferecido por Mr. Earbrass: “Mr. Gorey, Mr. Earbrass and a Knowledgeable Friend” (Fig. 1) Este caráter irónico e absurdo atravessa todo o livro, embora seja mais vincado no texto, revelando a influência do simbolismo e surrealismo literários. Separado das imagens, o texto continuaria a contar a história de Mr. Earbrass. Do mesmo modo, as imagens isoladas continuariam a produzir uma sequência, uma vez que incluem elementos suficientes para que estabeleça entre elas um fio condutor. No entanto, é na combinação das duas linguagens que Gorey constrói o seu universo estranho e particular, de influência vitoriana e eduardiana. Esta linguagem híbrida, hoje estabelecida no álbum, não surge em função de um público-alvo, mas antes de uma proposta autoral com caraterísticas conceptuais e formais específicas, partilhando aspetos do livro ilustrado, do livro de artista e da banda desenhada. As ligações ao cinema, à literatura, ao teatro ou ao ballet são evidentes.

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Algumas ilustrações de TUH não apresentam ligações semânticas óbvias aos blocos de texto, no entanto essa associação é sempre concretizada num local, num sentimento, num gesto ou objeto. Mr. Earbrass aparece em todas as páginas e reforça o papel do narrador e a focalização externa. Gorey explora a personalidade e comportamento da personagem de uma forma quase teatral, ideia reforçada pelo tratamento exímio dos cenários, do vestuário e da iconografia. Se a ligação entre os dois elementos assenta sobretudo na construção da personagem, e dessa forma se torna óbvia, é sobretudo nos pequenos detalhes que nasce a estranheza e ironia. Isto acontece na imagem, mas também no texto. Something Awful ou Collapsed Pudding são nomes de locais frequentados por Mr. Earbrass; The Meaning of the House e The Truffle Plantation são os nomes dos seus primeiros livros; West Mortshire Impassioned Amateurs of Melpomene é o nome de uma companhia teatral; Mr. Clavius Frederick Earbrass é o nome da personagem... O caráter absurdo, de influência surrealista, está presente em alguns detalhes das ilustrações, mas é sobretudo no texto que encontramos os enunciados mais estranhos: Mr. Earbrass começa as suas novelas no dia 18 de novembro de anos alternados; para escrever usa uma camisola de origem esquecida e significado desconhecido; os seus editores querem traduzir as suas novelas para Urdu, etc. O texto refere também aspetos da construção do texto do novo romance de Mr. Earbrass, ou seja, TUH – o livro de Gorey – descreve a criação de TUH – o romance de Mr. Earbrass. No entanto, desta história apenas nos são dados fragmentos – pistas sobre locais, personagens ou enredos que, contudo, não permitem criar uma narrativa dentro da narrativa, levando o leitor a interrogar-se, a procurar sentido onde ele não existe ou, pelo menos, não é dado. Dir-se-ia que TUH está mais centrada no processo de criação do que na narrativa ou na história, ou melhor, a narrativa do texto de Gorey é linear e sequencial, mas não conheceremos nunca a história do novo romance de Mr. Earbrass. Não é só o conteúdo que justifica a nossa escolha de TUH (que poderia recair, aliás, sobre vários livros de Gorey). Tratando-se de um autor completo, Gorey escreve os textos, faz os desenhos e pensa todo o design do livro. Os textos, manuscritos, produzem uma relação ainda mais próxima das ilustrações, consolidando a linguagem do autor e reforçando os aspetos do controle, do poder e da univocidade referidos antes neste estudo. 3.3 THE CAGE (MARTIN VAUGHN-JAMES) The Cage (1975) é um trabalho fundamental no domínio da ficção gráfica, sendo referido e estudado por teóricos de diversas proveniências: livro de artista, banda desenhada, poesia visual… O livro foi publicado pela Coach House Books, uma editora canadiana que procura alaragar as fronteiras do livro com ficção inovadora, poesia e ligações ao cinema e ao teatro. A mesma editora, entretanto ressuscitada, voltou a editar o livro em 2013, num formato mais pequeno e com pequenas diferenças em relação à edição original, nomeadamente a imagem da capa e a cor do papel usado no miolo. Esta edição inclui ainda uma introdução do artista Seth41 e um prefácio de Martin Vaughn-James. The Cage é um romance gráfico, mesmo antes de existir a designação “graphic novel” para o medium. O autor preferiu, no entanto, classificar o seu livro de poesia visual, o que o aproxima mais das artes visuais e da literatura e o afasta do mundo dos comics. A crítica considera-o uma obra prima, pelo seu caráter experimental, vanguardista e singular. De facto, The Cage é uma sequência pseudo-narrativa de imagens e

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http://en.wikipedia.org/wiki/Seth_(cartoonist)

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textos sem um lugar e personagens definidos. No entanto, partilhamos da opinião de alguns críticos que vêem o livro como cenário e o leitor como personagem - ao abrirmos o livro entramos na prisão. A simples presença visual do objeto reforça o peso do título: tal como uma gaiola, o livro guarda algo no seu interior (Fig. 3). Martin Vaughn-James trabalha a narrativa de uma forma semelhante à dos poetas concretos, mas recorre aos códigos da banda desenhada para explorar a relação entre texto e imagem, a noção de sequência e construção de vinhetas. Desta forma, usa as ferramentas disponíveis ao artista visual para produzir um trabalho com uma forte componente poética e filosófica. The Cage reflete o espírito dos anos setenta, constituindo um trabalho de experimentação ao nível da forma e do conteúdo. Pode ser um livro de artista, um álbum de banda desenhada, um poema híbrido, uma narrativa mista, ou tudo isso.

Fig. 3 – Capa e contracapa

Fig. 4 – Páginas 68 e 69

The Cage não tem personagens. Contudo, o leitor percorre a narrativa através do texto e das ilustrações, sem precisar de personagens para estabelecer um fio condutor entre as páginas. Apesar de partilharem a página, imagens e os textos estão separados especialmente e não se duplicam. A imagem não ilustra o texto e o texto não explica a imagem, mas em alguns momentos é percetível a interação entre os dois elementos. É impossível ler o texto e ver as imagens em simultâneo, criando um único espaço mental. Como um elemento não repete o outro, a estrutura do livro assume o mesmo caráter performativo de muitos livros de artista, trabalhos de poesia concreta e banda desenhada experimental ou abstrata. O livro poderia então ser entendido como o registo de uma performance virtual, concretizável se pudéssemos ouvir o texto enquanto vemos as imagens. Se lêssemos apenas o texto, como um longo poema em prosa, ou seguíssemos a narrativa apenas através das imagens a experiência seria também completamente diferente. O livro funciona, nas próprias palavras do autor, como um labirinto. O texto é também ele labiríntico e revela aspetos paradoxais. Apesar da referência à capacidade de resiliência da gaiola/prisão/jaula, as imagens mostram-na numa estado ruinoso (Fig. 4); o texto fala em sequências rápidas, mas o virar de página acontece mais devagar à medida que o texto cresce. Como Seth refere na introdução incluída na edição de 2013, este não é um livro para ser entendido, mas para ser experienciado. Influenciado pelas ideias do Noveau roman42, um movimento literário francês dos anos 50, que rejeita os códigos dos géneros literários clássicos, The Cage não coloca o foco no enredo, na narrativa ou nas personagens. O interesse recai sobretudo sobre os objetos (o mundo), aos quais a história e as personagens deveriam estar subordinados. As persona-

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Nouveau_roman

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gens são fotografias, mobiliário, arquitetura, várias máquinas, roupas, pedras, tijolos, areia, pirâmides. "Man fears time, but time fears only the pyramids" é o título da introdução de Seth. Não nos foi possível consultar a primeira edição do livro (que atingiu o estatuto de obra de culto e é por isso difícil de obter, ou então muito dispendioso), mas sabemos pelas críticas que o formato generoso sublinha a sua materialidade e afeta a experiência de leitura. O papel castanho e texturado das páginas interiores confere ao livro o caráter de um objeto envelhecido, adequado a um trabalho onde o tempo, o desgaste, a decadência e a erosão são aspetos centrais. Se em termos de conteúdo The Cage é um trabalho complexo, a sua organização interna é bastante simples. Existe uma ilustração por página, acompanhada ou não por texto, e a relação entre os dois elementos não é uniforme. O texto pode interagir com a ilustração da mesma página ou com ilustrações anteriores ou posteriores; tanto parece revelar os pensamentos do autor como ir de encontro aos do leitor, produzindo um efeito misterioso e enigmático. Apesar do movimento da esquerda para a direita, vinheta a vinheta, típico da banda desenhada, há um intenso movimento para dentro, enfatizado pelos cenários que aprisionam o leitor. O livro de Vaughn-James pode ser definido como um trabalho de banda desenhada43 e vai de encontro à ideia de “spatio-topia” de Thierry Groensteen (1999), uma vez que seria impossível realizar esta sequência de imagens e textos através de outra forma que não a banda desenhada. Processamos a história emocionalmente e não racionalmente porque não há narrativa. A história não é contada, não há princípio, meio e fim, e no percurso de leitura fica a ideia que algumas sequências de imagens foram organizadas de forma arbitrária. O texto parece comentar as ilustrações, mas nem sempre as que estão justapostas, dando origem a uma complexa rede temporal e espacial que prende o leitor progressivamente. The Cage é poesia, arte visual e, sim, banda desenhada. Apesar das suas inovações e ideossincracias, não o considerar um livro de banda desenhada significaria que o medium está limitado por fronteiras e dominado por convenções. 3.4 O PEREGRINO BLINDADO (EDUARDO BATARDA) O Peregrino Blindado (1973) é um livro de artista. Não pudemos aceder ao livro, mas o artigo O Peregrino Cego de Pedro Moura permitiu uma visita guiada ao objeto e deu a conhecer alguns dados importantes. Algumas das pranchas podem ser consultadas facilmente na internet. No interior de uma caixa decorada encontram-se 50 pranchas em offset, acompanhadas por três gravuras e uma folha onde são fornecidas várias informações. Sabemos que se trata de uma edição limitada de 200 exemplares, numerados, mais vinte, fora de circulação, e numerados de I a XX. O trabalho de Batarda é passível de comercialização, arquivo e até mesmo de exibição. É também um livro de banda desenhada, se entendermos o médium como uma “área da expressão humana e das liberdades criativas, como uma estruturação (no sentido de agencement, de “dispor numa ordem dada”), uma busca de um certo equilíbrio entre a presença da imagem organizada em sequência e a do texto, em que cada um dos elementos conflui no outro para o metamorfosear em algo diferente, integrado no elemento outro”.44

                                                                                                               

43 Scott McCloud (1993) define a banda desenhada como “Juxtaposed pictorial and other images in deliberate sequence, intended to convey information and/or to produce an aesthetic response in the viewer.” 44 Esta possível definição foi retirada de um ensaio sobre o livro de Batarda, de autoria de Pedro Moura, intitulado O Peregrino Cego. Além da análise ao livro, o texto apresenta uma reflexão pertinente sobre as “experiências que apagam os supostos limites entre a banda desenhada (entendida desde logo de um modo amplíssimo) e as ditas ‘artes plásticas’ ou ‘visuais’”.

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Eduardo Batarda desenvolve o seu trabalho criativo na “fluida área” das artes plásticas ou artes visuais e O Peregrino Blindado constitui a sua única experiência em forma de livro, um livro que vive no “espaço intersticial entre as duas realidades”.45 A “capa” 46 do livro apresenta, desde logo, algumas pistas para o jogo de desvios e ironias explorado nas várias partes que constituem o projeto (Fig. 5). Nela são apresentados o autor, José Lopez-Werner, e o responsável pela tradução e adaptação, Batarda Fernandes. É também revelado o título completo do livro: O Peregrino Blindado/The Blind Penguin: As aventuras do Dr. Bronstein – Proezas do Unfriendly Kid – e Outras.47 Além destes elementos, a capa inclui também a imagem de um quadrado subdividido em quatro quadrados menores, onde é possível ver imagens do que será apresentado no interior.

Fig. 5 – Capa/folha de rosto

Fig. 6 – Páginas 15, 24 e 48

A autoria é um dos elementos do jogo d’O Peregrino. O autor do livro é Eduardo Batarda, mas este apresenta Outro como autor – José Lopez-Werner, cuja biografia completa é revelada no texto de apresentação. Há ainda a referência a Batarda Fernandes, o responsável por uma tradução e adaptação indefinidas. O elemento da tradução aparece, desde logo, no título – Peregrino é Penguin e Blindado é Blind. A tradução parece, de facto, uma adaptação, marcada por fatores semânticos, fonéticos ou temáticos. A adaptação pode ser literária, mas pode também ser gráfica. É Batarda Fernandes que faz a adaptação de algo pré-existente? Qual é o seu papel realmente? A tradução/adaptação parece promover um desvio em relação à ideia de um autor anterior. A má tradução ou leitura pode ser intencional ou involuntária, mas a intenção humorística ou irónica é assumida por Eduardo Batarda.48 Como Pedro Moura refere no seu ensaio, José Lopez-Werner poderá não ser um pseudónimo ou heterónimo, mas antes um “humorónimo”. José Lopez-Werner, é um signo vazio, mas cujos contornos se especificam pelos movimentos internos da obra, e que nos permite criar então um espaço fantasmático, anterior, a partir do qual se elaborará então a direcção diferente de Eduardo Batarda. (Pedro Moura)

                                                                                                               

45 Eduado Batarda, Martin Vaughn-James, Tiago Manuel e Edward Gorey não fizeram apenas livros. Todos eles têm percursos mais ou menos vincados nas artes visuais. No entanto, à exceção de Batarda, os livros são para estes autores um meio previlegiado de expressão artística. No caso de Gorey, a aproximação à literatura e aos livros é ainda mais essencial. 46 Esta capa pode ser entendida também como uma folha de rosto, uma vez que é a primeira prancha que o leitor vê depois de abrir a caixa. 47 Este título aponta para a existência de duas personagens principais, ainda que no interior da obra a sua distinção seja posta em causa de forma permanente. 48 A prancha 9 d’O Peregrino apresenta a nota: “Como o leitor compreensivo poderá esquecer, certas dificuldades de tradução são devidas ao abuso, nas versões originais, de expressões idiomáticas em variadíssimas línguas”.

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O Peregrino Blindado, como nos conta Pedro Moura a partir de uma conversa com o autor, é também fruto de limitações ao nível das condições de produção artística. O atelier pequeno, com pouco espaço para pintar e armazenar trabalhos, levou o autor a trabalhar em formatos mais reduzidos e a trabalhar sobre pequenas pranchas de papel com tinta-da-china e aguarelas. Estas estranhas pranchas coloridas (Fig. 6), não totalmente figurativas ou abstratas, foram o primeiro passo para a criação d’O Peregrino, um trabalho satírico que não visa um alvo particular, mas constitui uma paródia do Portugal do seu tempo. Numa altura em que dominavam o abstracionismo, o surrealismo e o neorrealismo, a sua provocação não é apenas política, mas também artística. No seu estilo provocador, Batarda promove uma fusão de elementos provenientes das artes plásticas, do artesanato, da não-arte, construindo um percurso que reage ao esgotamento da abstração e da arte com motivações políticas e acompanha as tendências da época – Pop Art, Nouveau Réalisme e Figuration Narrative. O Peregrino não configura um desdobramento interno à banda desenhada, não é uma tentativa de colocar a banda desenhada num patamar mais elevado, nem resulta do aproveitamento do “lixo cultural” preconizado pela Pop Art. Como acontece com The Cage ou Sai do meu filme, parece tratar-se, sobretudo, do cruzamento feliz de uma vontade criativa individual com os instrumentos e códigos específicos da banda desenhada. Entre a pintura e os trabalhos de ilustração, Batarda começou a desenvolver a “pseudo-narrativa” de uma forma espontânea, sem um programa concreto ou um fim pré-definido, e fornecendo apenas indícios dos elementos narratológicos – personagens, espaço e tempo da acção, intriga, etc. Depois de terminadas as primeiras pranchas em aguarela – a primeira parte do trabalhos – a sequência começou a ganhar forma e surgiu a hipótese de fazer um livro. Martim Avillez, amigo do artista, encarou o trabalho como banda desenhada de vanguarda e propôs a edição em álbum através da editora Estampa. Apesar de ter acedido aos pedidos de fazer mais páginas a preto e branco (Fig. 6) – a segunda parte do livro – e aproximar mais o livro à linguagem tradicional da banda desenhada, o livro acabaria por não ser editado, aparentemente por falta de público ou por suspeitar-se que não seria um projeto rentável. Contudo, estava criada a ideia da edição e algum tempo depois surgiu a possibilidade de fazer um livro de artista através da Galeria 111, em Lisboa. O trabalho ganhou outros contornos e ao longo de dois anos foram acrescentadas três gravuras, uma caixa ornamentada e um texto de apresentação – ficou pronto em 1972. Foram produzidos apenas duzentos exemplares para venda, mas hoje ainda é possível comprar um exemplar d’O Peregrino Blindado na Galeria 111.49 As primeiras pranchas constituem o texto de apresentação, “uma espécie de ficha bio-bibliográfica sobre J. Lopez-Werner (...) assinada por Eduardo Batarda Fernandes lui-même, o ‘apresentador’ e ‘tradutor’ da obra” (Pedro Moura). O corpo visual do trabalho é composto por 41 pranchas, 23 a cores e 18 a preto e branco, organizadas segundo uma sequência. Apesar de podermos organizar as pranchas de outra forma, o autor propôs um percurso de leitura, numerando cada prancha por trás. Parte do jogo? De qualquer forma, é possível reconhecer a continuidade de personagens e o desenvolvimento de estruturações narrativas. Percebemos ações, relações entre personagens, pseudo-diálogos. Segundo Pedro Moura, não se trata de uma “pseudo-narrativa” (expressão de Batarda), mas de “uma narrativa mais descentralizada, isto é, menos atreita a uma lógica aristotélica clássica”. O livro não desenvolve uma história. Há sequência e continuidade, no sentido narrativo, mas o resultado não é uma estrutura coesa e fechada, antes uma rede cumulativa e plástica

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Depois de contatar a Galeria 111 a propósito do livro, soubemos que “O Peregrino Blindado que inclui 2 gravuras custa 500€.”

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que vai permitindo várias leituras – o mesmo tipo de estratégia muitas vezes usado por Eduardo Batarda na sua atividade principal, a pintura.50 De facto, as telas da mesma altura apresentam também divisões na organização interna, articulando espaços simultaneamente autónomos e solidários entre si.51 N’O Peregrino as imagens são organizadas numa sequência e a sua relação é, ao mesmo tempo, de separação e coexistência. Estão separadas através de vinhetas, mas convivem na mesma prancha ou narrativa, estabelecendo-se uma articulação plástica e semântica. Além da organização espacial próxima da linguagem da banda desenhada, Batarda recorre também aos balões, às onomatopeias e às linhas de movimento, ainda que de uma forma por vezes abstratizante, lúdica ou aparentemente sem sentido. Será por isso cego o pinguim? Porque marcha de forma desajeitada sem conseguir ver o fim do seu trajeto? Porque está blindado por uma fé que lhe permite fazer o seu caminho de peregrino apesar das incertezas e dúvidas? Apesar do entusiasmo inicial, o álbum de “banda desenhada de vanguarda” não chegou a ser editado pela Estampa. No entanto, encontrou o seu caminho no território das artes visuais, menos condicionado por fatores comerciais, e ganhou o rótulo de “livro de artista”. 3.5 SAI DO MEU FILME (TIAGO MANUEL) Editado através de uma parceria entre a editora Calendário de Letras e a associação cultural Ao Norte, para comemorar os 15 anos da mesma associação, que se dedica sobretudo ao cinema, Sai do Meu Filme (2010) é a primeira narrativa visual assinada por Tiago Manuel, autor de várias obras sob os heterónimos Max Tillman, Tim Morris, Marriette Tosel, Terry Morgan, Murai Toyonobu e Tom McCay. Segundo o autor, trata-se de “um livro sobre cinema, não propriamente tal como as pessoas o entendem, mas sobre o papel que o cinema teve na vidas das pessoas enquanto elemento libertador". Cruzando memórias de infância com memórias do cinema, Sai do meu filme é um trabalho autobiográfico e constitui um intervalo entre as produções do projeto heteronímico. De acordo com o autor52, o livro surgiu a convite de um cineasta amigo, depois de uma conversa sobre coisas que ambos gostavam. Nasceu assim a ideia de um livro sobre cinema que chegasse a todas as pessoas, ligadas ou não ao cinema. O livro não podia contar quase dois séculos de história do cinema e, por isso, decidiu partir de um conjunto muito reduzido de filmes, mas “que significasse muito para a humanidade e para cada um de nós.” Foi esta motivação que levou à escolha de Charlie Chaplin53 e de três filmes que exploram medos e situações "que nunca mudam" (Fig. 9). Luzes da Cidade porque explora as questões do afeto, da generosidade, da gratidão e do amor. O Grande Ditador porque antecipou muito do que viria a ser o mundo. E Tempos Modernos porque preconizou a sociedade industrializada e a escravidão do homem pela máquina. Segundo Tiago Manuel, estes três filmes continuam a representar o mundo atual, ao

                                                                                                               

50 O artigo de Pedro Moura permitiu-nos entrar n‘O Peregrino Blindado. Além de fornecer importantes dados estruturais e biográficos, apresenta uma proposta de análise do livro, ou melhor, uma das possíveis linhas de interpretação. Uma vez que não nos foi possível ver o livro (completo), o ensaio tornou-se uma fonte essencial para o nosso comentário. 51 Fazemos uso, mais uma vez, do princípio que Thierry Groensteen apresenta como o que define a banda desenhada: a solidariedade icónica. 52 A partir de um pequeno documentário coordenado por Carlos Eduardo Viana, onde Tiago Manuel fala sobre o livro, disponível em http://www.lugardoreal.com/video/sai-do-meu-filme 53 De acordo com Tiago Manuel, “O Bach do cinema é Chaplin. O cinema começava e acabava nele, não havia intermediários. Ele desenhava as próprias cenas dos filmes, ele era capaz de repetir para ele mesmo um papel até à exaustão, até ao detalhe.” O controle total do filme por parte do autor é um aspeto destacado por Tiago Manuel, que adota uma estratégia autoral semelhante, chamando a si todos os aspetos que compõem o livro. À semelhança de Gorey, Vaughn-James e Batarda, Tiago Manuel usa tipografia feita à mão nos textos de Sai do meu filme.

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explorar as "questões dos afetos, da solidão, do medo, da guerra e da manipulação". Cada filme é uma porta para um quarto. Resolvido o assunto, fecha-se a porta e o próximo filme é outro quarto, outra porta que se abre. Sai do meu filme é um filme da sua vida, mas o autor avisa que não gosta que as pessoas “se metam à borla" dentro do seu filme: "Sai do meu filme porque este é mesmo meu." Talvez por isso a capa revestida a tecido vermelho, sem imagens, apenas com o título e o nome do autor em maiúsculas (Fig. 7). Apesar de ter terminado o argumento poucos dias depois da conversa com o amigo, o trabalho mais difícil viria a seguir: Isto de transformar imagens mentais, sequências, palavras, ritmos em desenho é muito complicado. (…) Em papel (…) as pessoas temos que as desenhar à vista, temos que colocar as posições, iluminar… temos que fazer tudo exatamente como no cinema. (Tiago Manuel)

Fig. 7 – Capa

Fig. 8 – Página 5

Fig. 9 – Página 23

O livro está divido em duas partes. A primeira consiste numa espécie de introdução textual organizada em cinco “takes” – que correspondem a cinco páginas – e a segunda é a narrativa principal em banda desenhada. Os cinco “takes” iniciais remetem para os textos emoldurados do cinema mudo e revelam memórias nostálgicas da infância de Tiago Manuel, nomeadamente as formas de fugir à missa de domingo e ao castigo da mãe ou as tardes de cinema com o seu “bando”. O cinema era a recompensa do fim de semana, das peripécias necessárias para assegurar a sua cadeira no café, a sala de cinema da altura. A folha de rosto (Fig. 8) que antecede estes pequenos contos introdutórios anuncia a viagem pela memória e a aventura onírica que se seguirá. Este outro filme, a segunda parte, “é o filme de toda a gente, ou uma parcela do filme de toda a gente.” Conta o regresso de um pequeno duende à cabeça do seu dono. Mas o regresso é difícil, o duende perde-se e é um palhaço que o acompanha na viagem, orientando-o. O duende (a infância?) vivia confortavelmente na cabeça do seu dono, até ao dia em que saiu (caiu?) e depois não conseguiu entrar novamente. É o palhaço (o cinema através de Chaplin, um palhaço sério) que lhe mostra "outras facetas do mundo e da vida", facetas que desconhecia porque tinha estado fechado numa cabeça até então. A viagem é longa e apenas no final percebemos que o palhaço é Charlie Chaplin. As lições do cinema cruzam-se com a memória individual, as influências da banda desenhada e os vestígios dos seus heterónimos para construir uma auto-ficção confessional e singular: Os filmes são como a vida. Às vezes, são a paz e a fortuna do princípio ao fim. Alguns começam mal e acabam bem. Muitos são um pesadelo sem intervalo… Posso dizer que

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a minha vida tem sido um pouco de tudo isto. Podemos sempre escolher algumas coisas mas nem sempre está nas nossas mãos ou na nossa vontade a solução para um bom final. No breve tempo que foi a minha infância, tudo começava e acabava na minha cabeça. Depois… depois a minha vida confundiu-se com a vida de toda a gente. O meu destino passou a ser o destino de todos. “Sai do meu filme” é o meu derradeiro esforço para voltar a lugar antigo, na esperança de encontrar algum sonho por realizar... (Tiago Manuel) O cinema é visto pela criança como uma espécie de recompensa, uma fuga ao “peso da terra” e ao “conservadorismo moral e intectual”, como refere Pedro Moura no seu artigo sobre o livro.54 O autor luta contra esse mundo austero e cheio de regras, representado pela figura materna, e o cinema assume um efeito libertador: “As tardes continuavam a ser de aleluia”. Depois de atravessada a primeira camada de memória formada pelo “takes” cinematográficos, o duende abre a porta para a narrativa central, uma aventura onírica reminiscente do Little Nemo de Winsor McCay ou do Boneco Rebelde de Sérgio Luiz55, cujas histórias também se caraterizavam por uma abordagem vanguardista à banda desenhada. A viagem do duende também pode ser vista como uma travessia dantesca, uma descida aos vários círculos infernais, que contrasta com o imaginário infantil das imagens (brinquedos, objetos personificados, linguagem simples), resultando numa “perversidade lúdica” que, como refere Sara Figueiredo Costa56 é uma das “marcas de água” do autor. Sai do meu filme é um livro estranho57, pouco preocupado com questões de catalogação literária, como acontece também com as propostas dos seus heterónimos. Sendo certo que os diferentes autores de Tiago Manuel, que partilham as primeiras letras dos seus dois nomes, têm identidades e campos de ação definidos (todos têm uma pequena biografia), não é menos verdade que partilham também elementos gráficos ou temáticos, ainda que de forma distinta. Esta convergência de estilo ou caráter é aliás comprovada pela presença do mesmo monograma em todas as páginas de todos os seus livros, em nome próprio ou dos heterónimos. Mais do que repetir temas ou elementos estilísticos, Tiago Manuel constrói o seu caminho através de uma abordagem do mundo dos sonhos, da descontrução de aparências e de uma interpretação pessoal da realidade externa, que nos permite pensar os heterónimos como derivações ou ensaios do mesmo criador. Sai do meu filme é uma homenagem a Charlie Chaplin e ao cinema em geral, pelo seu papel na história do homem e da sociedade, mas é também uma reflexão sobre o impulso criador e a função da arte. No final da travessia onírica pelo universo criativo do autor, lápis e pincéis aparecem com uma consciência própria e só com a sua ajuda, como explica o palhaço, poderá o duende voltar a casa, à “cabeça do pintor”. A homenagem é feita também à sua mulher e ao seu gato: "se tinham que entrar num livro meu, pois que entrassem num livro feliz. Este é um livro feliz. (…) onde há esse apelo à vida." Segundo Tiago Manuel, o pensamento que acompanha a primeira lufada de ar fresco quando saímos do cinema depois de vermos um filme é: "Ok, estou vivo." Talvez esse seja também o pensamento do autor quando termina um livro e fecha a porta

                                                                                                                54

http://lerbd.blogspot.pt/2010/05/sai-do-meu-filme-tiago-manuel-ao-norte.html http://pt.wikipedia.org/wiki/Boneco_Rebelde 56 Texto publicado na revista Ler, nº94, set. 2010 57 Curiosamente, este é um adjetivo aplicado aqui e ali a todos os autores escolhidos. O livro de Alexander Theroux sobre Gorey chamase The Strange Case of Edward Gorey; um artigo de João Miguel Tavares sobre Sai do meu Filme no Diário de Notícias tinha por título O estranho mundo de Tiago Manuel. Estranhos, diferentes, intrigantes. 55

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de mais um quarto, um quarto mais íntimo num projeto autoral que cruza narrativa, ilustração, pintura e banda desenhada. 3.6 OUTROS LIVROS E AUTORIAS São muitos os autores cujos livros contribuem para dissolver as fronteiras entre os territórios do livro ilustrado, do livro de artista, da banda desenhada, da ilustração, das artes visuais e outras áreas de criação. Os livros escolhidos constituem apenas uma pequena amostra desse catálogo impossível e um pretexto para analisar a autoria singular no contexto do livro enquanto intermedia. Outros livros poderiam fazer parte da lista. Edward Gorey produziu dezenas de livros que podiam ser enquadrados no nosso estudo, como The Beastly Baby ou The Curious Sofa – uma “história pornográfica ilustrada sobre mobília”. Apesar de ser considerada a sua obra-prima, Martin Vaugh-James fez outros livros de poesia visual além de The Cage, como The Park, ou Three Hours Later. O projeto autoral de Tiago Manuel, com todas as suas derivações heteronímicas, seria matéria mais que suficiente para um único estudo. Outras produções de difícil classificação, oriundas de diferentes áreas criativas, poderiam ser incluídas neste estudo: Maus de Art Spiegelman, Die Stadt de Franz Masereel, Gods' Man de Lynd Ward, Wartelist de Jan Voss, Diário Rasgado de Marco Mendes, Picture This de Lynda Barry, Bleu de Lewis Trondheim, Os animais domésticos de Maria João Worm, Abstraction (1941-1968) de Jochen Gerner, How to look de Ad Reinhardt, A Humument de Tom Phillips, Katz de Ilan Manouach, Playground de Berliac, 100 Scenes de Tim Gaze... Tendo em conta os critérios que levaram à escolha dos livros, esta é uma lista nunca acabada, sujeita a debate e alérgica a consensos. A nossa seleção foi também, claro, motivada por afinidades e preferências pessoais, constituindo uma parte importante da rede de influências do nosso trabalho prático.

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CAPÍTULO 4 – PROJETO PRÁTICO 4.1 CONCEITO Se primeira ideia foi fazer um livro, o primeiro problema foi inventar uma história. Nesta lógica invertida, havia pelo menos algumas intenções formais e de linguagem relativamente definidas. No entanto, dado o tempo que passou desde as primeiras imagens mentais até ao livro terminado, aconteceram vários desvios e mudanças em relação à ideia inicial, sobretudo ao nível do texto e da organização interna das páginas. O que começou mentalmente como livro ilustrado derivou para outra coisa, próxima de um ensaio visual ou de um romance gráfico. A componente textual manteve um papel importante, mas acabou por entrar nas imagens de várias maneiras, fazendo uso dos códigos da banda desenhada, do livro ilustrado, do livre d’artiste – de formas clássicas ou estruturas mais experimentais. A aproximação aos livros de artista surge nesta altura, a partir da vontade de fazer um livro experimental, onde pudessem ser explorados enunciados textuais e visuais e sobretudo a sua relação. O primeiro texto chamava-se O Apanhador de Ideias e era uma narrativa linear simples, com um caráter vagamente doce e infantil. A dificuldade em construir um argumento interessante – ou a tentativa de fazer o livro em torno de uma ideia, mais do que um argumento – acabou por tornar-se um dos temas do próprio livro. Apesar de já conhecer alguns trabalhos de Edward Gorey, a leitura de The Unstrung Harp aconteceu nesta altura como uma coincidência feliz e o livro acabou por confirmar esse contributo. A investigação sobre a autoria e sobre livros acabou por tornar-se também o tema central do livro e o texto, permanentemente reconstruído, tornou-se o pretexto literário para a exploração de questões relacionadas com o processo criativo, a apropriação e a influência. O texto é a história de uma história que não chega a ser contada, que se procura e não se encontra, ou seja, uma história que se conta a si mesma. O clássico writer’s block é o ponto de partida para o texto e é nessa angústia da busca pela originalidade e sucesso que a personagem – o autor – descreve um percurso narrativo e sequencial. Apesar de vagamente elusivo, o texto é simples e a leitura não oferece dificuldades. Os desenhos, contudo, são mais exigentes do ponto de vista semântico e a sua interação com o enunciado verbal dá ao livro uma maior profundidade.

Fig. 10 – Página 7

Fig. 11 – Páginas 16 e 17

Muito do que foi dito nos capítulos anteriores relativamente à autoria singular – nos aspetos do controle, da apropriação e da identidade – e aos livros – ilustrados, de artista ou de banda desenhada – acabou, portanto, por transforma-se na matéria-prima de História de um. O título é, em primeiro lugar, uma referên-

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cia ao caráter incompleto da história, ou melhor, da não-história. A forma como foi colocado no espaço da capa sublinha o vazio e a dúvida (Fig.10). Dentro do livro são apresentados outros exemplos de pseudohistórias, narrativas inacabadas e absurdas que alimentam o tema central e repetem o bloqueio (Fig. 11). Paralelamente, o título evoca ironicamente a questão da autoria e da univocidade do autor. A expressão pode ser lida como História de um (reticências) ou História de um (ponto), revelando neste caso uma unidade autoral que afinal não se confirma no livro, tendo em conta as diferentes estratégias de composição das páginas, de organização do texto e de “estilos” gráficos. Havia também a intenção que cada ilustração pudesse funcionar isolada, retirada da sequência, contando uma história particular. Apesar das diferenças e contrastes na forma como são articulados elementos visuais e textuais, a continuidade de uma personagem, de certos elementos simbólicos, cenários e iconografias oferece ao leitor um percurso de leitura e alimenta a expetativa de uma saída, de um fim para o novelo narrativo. Há claramente uma boa dose de autobiografia neste projeto sobre a autoria e o ato criativo. As diferenças de "estilo", o uso de vários códigos e o jogo de citações, apropriações e referências são fruto de uma atitude experimental, mas sobretudo um produto da história inicial, marcada por incertezas, ambiguidades e dúvidas. Não foi estabelecido um programa rígido para o livro; o texto sofreu diversas alterações enquanto os desenhos foram feitos e mesmo estes sofreram várias alterações em relação aos primeiros esboços. Aparentemente, a personagem não encontra o que procurava no final da história. Pelo menos, é isso que o texto, isolado, dirá. No entanto, apesar das diferenças estilísticas, as imagens parecem enunciar uma história diferente ou a possibilidade de leituras alternativas, contrariando a verdade do texto e a unidade anunciada na capa. 4.2 ASPETOS FORMAIS E ICONOGRÁFICOS O formato escolhido para o livro foi o quadrado. Além de resultar de uma preferência pessoal, o formato quadrado permite trabalhar duplas páginas mais largas e construir composições diferentes dos formatos mais tradicionais (“à francesa”, por exemplo) no espaço da página. Além disso, o tratamento das simetrias e assimetrias assume uma maior importância no formato quadrado. A simetria e perfeição do quadrado fizeram dele o formato ideal para uma história imperfeita e incompleta. O caráter experimental do projeto não impõe um acabamento específico ao livro. Se a opção fosse um livro cosido e encadernado seria mais evidente uma aproximação ao livro ilustrado e o objeto teria um aspeto mais refinado, com papel de qualidade no interior, capa dura e guardas verdadeiras. Mas este tipo de acabamento é fruto também de uma lógica comercial e um padrão da indústria literária. Na banda desenhada, contudo, é frequente um acabamento mais próximo da revista ou brochura, tornando mais barato o preço do livro, dessa forma mais acessível ao público. Assim, recorremos a um serviço web-to-print para produzir uma brochura colada de 48 páginas, organizada em cadernos, com a capa em papel Classic demimatt – Couché mate de 300gr (plastificada) e o miolo em papel Classic demimatt – Couché mate de 170gr. Apesar de um livro poder assumir outras formas – como vimos, por exemplo, com O Peregrino Blindado –, o formato do códex é o mais viável para a construção de uma sequência fixa, garantindo ao mesmo tempo a portabilidade e o fácil manuseamento do objeto. Estes foram também os principais motivos da mudança do formato inicial de 260 x 260 mm para 210 x 210 mm, dimensões mais standardizadas ao nível da produção gráfica.

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Apesar da vontade inicial de usar uma paleta variada, onde a cor fosse mais um elemento aberto à experimentação, o livro acabou por nascer e crescer a preto e branco. O preto e branco acentuam o caráter literário do objeto, valorizam o desenho e a sua ligação ao texto (desenhado) e conferem ao objeto um ambiente específico, próximo da banda desenhada e do livro ilustrado do século XIX. Obviamente, num projeto que incide sobre os temas da influência e da apropriação, podemos também referir a importância dos livros lidos durante o processo, nomeadamente os trabalhos de Gustave Doré, John Tenniel, Max Ernst ou Edward Gorey. Todos os desenhos e textos foram realizados manualmente, com tinta da china, embora tenham sido tratados e organizados a posteriori no programa Adobe Photoshop. O recurso ao tratamento digital foi particularmente útil na correção de pequenos detalhes, na colocação de balões e legendas e no tratamento do texto. À semelhança dos livros apresentados no capítulo anterior, História de um não é um livro de fácil classificação, nem tem um público-alvo claramente definido. Livro ilustrado, romance gráfico, banda desenhada experimental ou narrativa visual são tentativas desnecessárias de definição de um objeto que atravessa diferentes territórios e que pretende representar uma determinada autoria ou identidade autoral. O caráter experimental do livro é assumido e também por aí se explicam determinadas opções formais e de composição. A relação estabelecida entre enunciados textuais e visuais de forma a criar um enunciado híbrido foi objeto desta exploração e foram experimentadas várias soluções ao nível da organização interna das páginas. As imagens também não foram organizadas segundo um único código e o seu status varia ao longo do percurso sequencial do livro. Fazendo uso da classificação apresentada no primeiro capítulo, a partir da proposta de Sophie Van der Linden, podemos encontrar exemplos de imagens isoladas, sequenciais e associadas, fazendo do livro um exercício de combinação. Ao nível da organização de texto e imagem é possível observar os quatro tipos também propostos por Linden: dissociação, associação, compartimentação e associação. A primeira dupla página, por exemplo, apresenta à primeira vista um arranjo clássico de dissociação: texto na página da esquerda e uma imagem na página da direita (Fig. 12). No entanto, o texto volta a aparecer nos nove quadrados (vinhetas?) que constituem a imagem, embora de uma forma mais visual e ambígua. Nas duas páginas seguintes, este duplo caráter do texto é ainda mais acentuado, uma vez que as letras são elevadas a personagens e se tornam elementos polissemióticos (Fig. 13). Na primeira vinheta, por exemplo, a palavra fugiam é construída por letras antropomorfizadas em fuga e sugere uma espécie de montada difícil de domar. As opções de composição mudam ao longo do percurso de leitura, propondo soluções completamente distintas, num cruzamento dos códigos do livro ilustrado, da banda desenhada e do design gráfico.

Fig. 12 – Páginas 6 e 7

Fig. 13 – Páginas 8 e 9

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A utilização de balões de fala ou de pensamento e de legendas, a compartimentação do texto e das imagens em vinhetas e a forma como é tratada a maior parte do texto (o tipo de letra e os destaques), são aspetos que remetem para o território da banda desenhada. No entanto, há uma mistura de diferentes enunciados no mesmo suporte, produzindo um enunciado híbrido: “Os enunciados ficam entremeados, e não justapostos, e os textos, de modo literal, integram a imagem. Sejam elas visuais ou verbais, as mensagens revelam-se conjunta e globalmente” (LINDEN, 2011, p. 69). Tal como acontece com o texto, também os dispositivos da banda desenhada são explorados plasticamente. Um balão pode ter a forma de um tubarão, o padrão de um azulejo pode conter a legenda da imagem e a goteira que separa as vinhetas pode participar da imagem (Fig. 14).

Fig. 14 – Páginas 10, 11 e 20 O uso de todas estas estratégias produz em enunciado misto, entrelaçando mensagens visuais e mensagens linguísticas e tornando o discurso mais complexo e rico de significado. Se o uso de vários códigos, formas de organização das páginas e até estilos gráficos resulta num objeto polissemiótico, a exploração plástica do texto – simultaneamente um enunciado verbal e visual – exige do leitor uma maior cumplicidade, já implicada no texto através do uso da segunda pessoa do singular. O texto é manuscrito e inspirado em tipos de letra usados em banda desenhada (comic fonts). Apenas na capa e na ficha técnica é usado um tipo digital, a Clarendon, um tipo robusto com serifa egípcia e criado em Inglaterra no século XIX. Ao contrário do que acontece com o texto principal, os desenhos apresentam diferentes abordagens gráficas, havendo imagens fotorrealistas, paisagens oníricas, composições abstratas e sínteses de elementos de origens diferentes. A variedade é acentuada pelo recurso a diferentes maneiras de desenhar com a tinta da china. Algumas páginas apresentam uma linguagem mais gráfica, próxima da linguagem da banda desenhada, com linhas de contorno vincadas e preenchimentos a negro, enquanto outras mostram um desenho mais trabalhado ao nível das texturas e volumes (Fig. 15 e Fig. 16).

Fig. 15 – Páginas 28 e 29

Fig. 16 – Páginas 42 e 43

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O facto deste projeto incidir também sobre os temas da apropriação e da influência contribuiu também para a variedade estilística presente no livro. O jogo de citações, referências, inspirações ou homenagens é um dos aspetos centrais deste projeto sobre a autoria. Assim, cruzados com elementos de uma iconografia mais pessoal, aparecem personagens de histórias alheias, retratos de figuras pertinentes para o projeto, imagens que foram apropriadas, descontextualizadas ou alteradas, e citações diretas a pinturas, livros ou fotografias de outros autores. A página 12, por exemplo, apresenta os retratos de quatro figuras importantes: Barthes, Tiago Manuel, Gorey e Foucault (Fig. 17). Na página 15 um dos indivíduos com óculos 3D é Marcel Duchamp (Fig. 18) e na página 19 encontramos Magritte ao lado do rato Mickey e de um autorretrato nosso na pele de cowboy (Fig. 19). A página 21 é uma citação direta das famosas ilustrações de John Tenniel para Alice no País das Maravilhas (Fig. 20), o boneco que habita a página 25 é a personagem principal de The Doubtful Guest de Edward Gorey (Fig. 21) e a ilustração da página 41 é uma versão “customizada” de uma fotografia de Sandy Skoglund (Fig. 22). Tal como referia Foucault58, os enunciados remetem para outros enunciados, só podem existir nessa relação. Não são livres ou independentes e fazem sempre parte de um conjunto, de uma rede, do "jogo enunciativo". Um livro remete para outros livros, da mesma maneira que um enunciado se relaciona inevitavelmente com outros, sejam eles visuais ou linguísticos.

Fig. 17 – Pormenor da pág. 12

Fig. 18 – Pormenor da pág. 15

Fig. 19 – Pormenor da pág. 19

Fig. 20 – Pormenor da pág. 21

Fig. 21 – Pormenor da pág. 25

Fig. 22 – Pormenor da pág. 41

                                                                                                                58

A questão é analisada nas páginas 61 e 62 deste estudo.

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CONCLUSÃO A partir dos primeiros dois capítulos foi possível perceber que os conceitos de Autor e Obra são construções culturais e não categorias do objeto, imunes à história, aos meios de produção, às inovações de linguagem, aos públicos e críticos, ou seja, não são conceitos historicamente fixos. A autoria completa surge como uma opção a partir da invenção do livro, resultando numa autoria escolhida para um formato pré-definido. O que nos interessava sobretudo era perceber de que forma a centralização de um conjunto de tarefas num único indivíduo contribui para desenvolver uma identidade autoral, ou melhor, de que forma é representada uma autoria num livro com textos e imagens produzidos por um único indivíduo. No caso do livro do com textos e imagens a opção por essa centralização existe há muito tempo e o objeto mantém o seu fascínio, especialmente pelas possibilidades conceituais e formais que oferece, continuando, através de fusões e cruzamentos, a potenciar novas linguagens, tipologias, géneros e subgéneros. É neste território de ninguém, de livros estranhos e diferentes, sem casa, sem prateleira ou categoria evidente, que o nosso estudo procura encontrar refletir sobre a autoria, mais concretamente o autor único.59 Partindo dos exemplos apresentados no terceiro capítulo, e tendo em conta a quantidade de estratégias, propostas e abordagens disponíveis, pode dizer-se que sao livros com uma componente conceptual e crítica mais evidente, que os aproxima do domínio das artes, da academia e de uma série de questões difíceis como a autoria, a obra, a criação e a reprodutibilidade. Estes são aspetos que nos transportam para o território do livro de artista e rasgam as fronteiras do livro ilustrado tradicional ou do álbum de banda desenhada mainstream. Não surpreende, portanto, que o mesmo livro ou autor possam ser objeto de estudo e análise por parte de pessoas ligadas a "áreas" ou circuitos distintos, como de resto acontece com todos os nossos case studies. Existe neles uma continuidade entre imagem e texto, entre forma e conteúdo, que revela, mais uma vez, o controle sobre a totalidade do livro como objeto, bem como sobre a sua própria obra. A classificação do objeto é um critério secundário, inexistente ou desnecessário, tal como a noção de público-alvo. Estes livros têm essa proximidade com obras literárias, nas formas do romance, da poesia ou do ensaio – são livros abertos a todos, embora a sua leitura híbrida pressuponha um conjunto de instrumentos, técnicas e conhecimentos, e uma vontade de compromisso por parte do leitor semelhante à do espetador de cinema. O autor singular é o único responsável pela modelação do tempo, por uma representação do tempo sob a forma de um livro, obtida através de estratégias de “envolvência cinemática”60, definindo o livro como uma sequência de imagens que se revelam progressivamente ao leitor. Este tratamento cinematográfico confirma a pertinência da alusão aos princípios da Política dos Autores (França) e do Autorenfilm (Alemanha), e não pode ser alcançado sem um envolvimento maior do autor no processo de edição e produção do livro. Estes livros partem do princípio que o leitor pode percorrer configurações exigentes e interpretar diferentes códigos e convenções, explorando metáforas complexas, jogos literários e referências das mais diversas origens. Os livros que analisámos no capítulo três não pretendem apenas contar uma história e refletem essa erudição ou intelectualismo, remetendo para outros enunciados e promovendo reflexões artísticas ou filosóficas. Além de inovador em termos visuais e estruturais, The Cage pode ser visto como um poema sobre a

                                                                                                                59

De acordo com a afirmação de Gorey (retirada de uma entrevista a um jornalista do The Boston Globe), "Ideally, if anything were any good, it would be indescribable”. No entanto, a partir da análise dos exemplos escolhidos, tentamos aqui apresentar alguns aspetos comuns neste tipo de trabalho autoral. 60 Expressão do designer Bruce Mau, a propósito do seu livro Life Style.

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condição humana. Sai do meu Filme é uma homenagem ao cinema, mas essa homenagem é feita através de um discurso que articula questões históricas, artísticas e filosóficas. The Unstrung Harp é a história de uma história, um jogo absurdo sobre o processo criativo, a linguagem e o universo literário. O Peregrino Blindado é um livro complexo que estabelece uma intrincada rede de citações e referências – pessoais, políticas e, sobretudo, artísticas. Em suma, todos eles partem do princípio que o leitor está preparado para se apropriar de diferentes enunciados e construir a sua própria rede de significação. Ao mesmo tempo, são objetos que enunciam a identidade de autores que assumem um controle total sobre a sua obra e a sua apresentação, incorporando outros discursos no seu discurso, subordinando-os ao seu. As marcas do controle autoral são visíveis não apenas no conteúdo e na forma, mas estendem-se também ao aspeto material do livro e à sua estrutura. É frequente haver uma apropriação radical do espaço do livro, de zonas consideradas neutras ou utilitárias em publicações de outros géneros, mesmo que nesses espaços possam existir diferentes representações de autoria (veja-se o exemplo d’O Peregrino). Estes livros representam identidades complexas, enunciadas através de aspetos conceptuais, formais e materiais, e estratégias de publicação. Ao fazê-lo apresentam também uma identidade ao público, um modo próprio de relação entre texto e imagem e uma estratégia de apropriação em relação a trabalhos de outros autores. Pode dizer-se que a autoria é enunciada mais pela forma singular como é feita a recolha e apropriação de objetos e criadores influentes vindos da mesma área ou de áreas diferentes do que pela presença constante da voz ou obra de um autor. O nosso livro é também um ato de apropriação – de ideias, técnicas, códigos e histórias – por parte de um autor completo, alguém que pretende controlar tanto a forma da publicação como o seu conteúdo. Num trabalho de autor o ênfase é colocado no controle ao nível do conteúdo, distinguindo-o de projetos colaborativos ou mais comerciais. A tentativa de definir os livros de artista é reveladora das dificuldades em estabelecer critérios rígidos para decidir o que pode ou não ser incluído numa categoria. Por outro lado, no universo da banda desenhada, do livro ilustrado e de outras publicações de difícil classificação, há inúmeras propostas que percorrem circuitos comerciais e enunciam um tipo de autoria semelhante, com a mesma intenção de controlar tudo o que envolve a produção do livro, a sua forma e a sua essência – uma ideia. Pode o objeto ser definido pelo contexto em que se afirma? Os livros que escolhemos para case studies vivem na interseção desses territórios, desafiando fronteiras, géneros e tipologias literárias. Foram pensados, concebidos e produzidos por um autor completo, que articulou diferentes linguagens para inventar a sua linguagem e produzir significado, num processo de apropriação e influência. Estes autores adotam, para usar a terminologia de Foucault, uma função-autor próxima do autor literário, porque fazem livros e exploram conteúdos linguísticos, e do autor artista, porque são artistas e inventam linguagens. No entanto, diferem do autor literário na medida em que pensam o livro como intermedia, um objeto capaz de comunicar através da conjugação de aspetos materiais, visuais ou linguísticos. Neste enquadramento, o conceito de autoria assemelha-se ao que é associado a um determinado tipo de cinema, teatro, arquitetura, música ou design. A forma como os discursos das várias disciplinas se cruzam ou relacionam para dar origem a livros inovadores está relacionada com o percurso específico dos autores, com a sua formação e gostos pessoais, e pode traduzir-se de várias formas. William Morris pensava o livro como de um edifício se tratasse, Tiago Manuel utiliza o vocabulário do cinema para descrever o processo de criação do livro, Martin Vaughn–James propõs o termo boovie para os seus livros, Gorey dividia a sua atenção

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entre o cinema, o teatro, a televisão, o ballet e, claro, os livros. O controle total permite-lhes ir além da homogeneidade do estilo, da circunscrição aos géneros dominantes, da narrativa e até mesmo além do livro. Tendo em conta a complexidade do nosso objeto de estudo e a quantidade de assuntos e disciplinas implicados, esta investigação enfrentou algumas dificuldades, desde logo na delimitação do tema e das questões essenciais. No entanto, julgamos ter atingido os principais objetivos, desenvolvendo uma estrutura teórico-crítica para o nosso projeto, sustentada numa pesquisa abrangente e rigorosa. Seria talvez necessário dedicar à banda desenhada a mesma atenção dada ao livro ilustrado e ao livro de artista no segundo capítulo, mas a sua importância acabou por revelar-se apenas durante o projeto. Tendo em conta os objetidos definidos inicialmente, consideramos suficiente a análise dos case studies, mas sabemos que a mesma poderia ter sido mais aprofundada e alargada a outros livros destes e outros autores. Apesar das dificuldades, conseguimos atingir as metas autopropostas: adquirimos e aprofundamos conhecimentos relativos a um arquivo de livros inclassificáveis; compreendemos que a autoria é um conceito em permanente mutação e definido em função do contexto onde é enunciada; entendemos que esta enunciação está relacionada com opções conceptuais, formais e materiais, e com processos de apropriação e influência; e por fim procuramos observar de que modo autores singulares representam uma autoria distinta, produzindo um discurso capaz de pôr em causa as classificações e os géneros literários. Em relação aos objetivos operacionais, devemos referir que o sucesso do História de um dificilmente poderá ser avaliado em função de uma lógica comercial. O trabalho foi apresentado a alguns editores, mas o facto de ser um projeto experimental, feito por um autor desconhecido, difícil de enquadrar numa coleção ou linha editorial, e sem grandes perspetivas de retorno, não facilita a introdução em circuitos comerciais. Além disso, os desenhos parecem ser melhores do que o texto. Este aspeto foi aliás considerado desde o início, bem como outras soluções porventura mais adequadas ao caráter do livro, nomeadamente uma edição de autor, num formato mais económico e numa tiragem limitada. Este trabalho permitiu-nos interiorizar diversas questões importantes relacionadas com o livro e as funções da autoria, e constituiu ao mesmo tempo uma oportunidade para experimentar linguagens e códigos diferentes, alterando o nosso entendimento sobre o objeto, sobre as suas possibilidades formais e conceptuais. História de um é um livro experimental e a nossa primeira experiência autoral. Mais do que contar uma história, o livro é uma expressão artística sobre os temas da criação, do livro e da autoria, tornando-se um mapa visual para o nosso estudo – uma apropriação singular dos seus objetos, formas e intervenientes.

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