O Brasil e as literaturas africanas: percursos
Descrição do Produto
O Brasil e as literaturas africanas: percursos (Para Caderno de Sábado de ‘Correio do Povo’ de Porto Alegre, em janeiro de 2015) Susana Ventura O crescimento do interesse dos leitores brasileiros em relação à África é sinal claro da nossa maturidade social.
Desde o final do século XIX, o Brasil esteve continuamente pensando
sobre si mesmo e nos últimos anos as reflexões sobre a componente africana de sua formação levaram a um aprofundamento de questões sobre afrodescendência e sobre a África como ponto de origem de parte do contingente humano que formou o país e da cultura aportada por ele.
No que diz respeito às literaturas africanas, foi nas principais
universidades brasileiras, que, a partir do início dos anos 1970, iniciou-‐se o estudo sistemático das poucas obras que chegavam às livrarias e também daquelas que, jamais editadas no Brasil, vinham do exterior nas malas de professores, colaboradores e amigos, para circularem de mão em mão por grupos de estudantes.
As independências das antigas colônias eram, então, recentes ou estavam
em processo (caso de Angola, Moçambique e das demais colônias portuguesas, que só em 1975 conquistaram-‐nas).
Nos países recém libertados, passados os primeiros tempos de
reestruturação, apareciam os escritos silenciados durante tanto tempo; já naqueles em que a guerra prosseguia, circulavam na clandestinidade e contavam com a teia de solidariedade formada por simpatizantes para alcançarem terras distantes onde a publicação era possível. É o caso do notável Luuanda, livro de contos do escritor angolano José Luandino Vieira, que teve uma primeira edição rodada numa gráfica de Belo Horizonte, Minas Gerais.
As décadas de 1980 e 1990 viram o crescimento dos estudos
universitários e, como os professores são os mais poderosos agentes que as sociedades têm, através deles deu-‐se o principal da disseminação do interesse e do conhecimento das literaturas africanas que permeava assim, pela primeira vez, todo o tecido social brasileiro.
Parte desses professores também se fizeram presentes nos grupos
editoriais nacionais e ainda outros migraram para a área cultural, onde passaram a incluir autores africanos em seus projetos.
Como resultado, o semear constante deu em bela colheita: mais livros por
editoras brasileiras, mais gente falando/pensando/sentindo/conhecendo melhor a África através de sua literatura.
Antonio Candido tão bem nos falou da literatura como ‘sonho acordado
das civilizações’. No campo das literaturas africanas, o sonho acordado trouxe ao Brasil do último quartel do século XX vozes que nos falavam tão transparentemente que parecíamos mesmo irmãos que, separados por alguma circunstância, voltavam a se encontrar.
No meu campo específico de estudos -‐ as literaturas produzidas nos
países africanos de língua portuguesa -‐ as obras de Ana Paula Tavares, José Luandino Vieira, Corsino Fortes, Germano Almeida, Paulina Chiziane, Luís Carlos Patraquim e Mia Couto mobilizaram estudos, projetos e afetos.
A convivência possível, viabilizada primeiro por bolsas de estudos que
permitiram o meu deslocamento e depois continuada graças ao avanço tecnológico que nos colocou em rede, fez com que a leitura e o trabalho crítico pudessem ser complementados por conversas e reflexões escritas que hoje cruzam o Atlântico com a velocidade permitida pela internet.
Mais fermento nesta receita, que já era boa, foi trazido na primeira década
deste século pela Lei 10.639/2003, que determinou o estudo das questões sobre África e afrodescendência em todos os níveis de escolarização. A Lei empoderou a sociedade brasileira, que foi uma vez mais mobilizada e legitimada a pensar as questões em torno da imensa e não suficientemente conhecida contribuição da cultura africana à sua identidade.
Por outro lado, a existência da Lei vem pressionando em direção à
produção de material escrito para seu efetivo enraizamento, o que, esperamos, traga ainda mais avanços na percepção do conhecimento da África pelos brasileiros, colaborando para uma ampliação do nosso conhecimento sobre o Brasil, considerado em sua complexidade.
Durante anos trabalhei sobre diferentes obras de autores africanos de
língua portuguesa, com ênfase para aquelas dos autores que já citei. Foram
muitos os cursos de formação, cursos livres, trabalhos em graduação e pós-‐ graduação universitária para alunos dos cursos de Letras, História e Pedagogia, mediação de escritores em eventos literários diversos, escrita de ensaios publicados em revistas da área de crítica literária, participação em bancas de mestrado e doutorado.
Faltava um trabalho que me aproximasse de uma das minhas áreas
preferenciais de estudo: a do conto popular. Assim, acolhi com alegria o convite feito no início de 2013 pelos editores Rosa Maria Zuccherato e Jeosafá Fernandez Gonçalves, da editora Nova Alexandria e seu selo Volta e Meia, para a elaboração de um livro de contos populares dos países africanos de língua portuguesa. Assim surgiu O tambor africano e outros contos populares dos países africanos de língua portuguesa (São Paulo: Volta e meia, 2013), uma coletânea de histórias recontadas a partir da tradição popular de Angola, Cabo Verde, Guiné-‐Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Penso que essa coletânea, lançada em dezembro de 2013, tem ajudado na construção do conhecimento brasileiro sobre a questão ao permitir a aproximação dos leitores ao rico imaginário dos cinco países africanos que têm o português como língua oficial. Língua que é troféu de guerra, nas palavras de José Luandino Vieira, e que foi capaz de aplainar diferenças regionais em prol de projetos nacionais que só puderam ser levados adiante a partir de 1975.
As histórias que escolhi para recontar foram originalmente coletadas por
folcloristas, professores e missionários religiosos a partir do século XIX, em línguas diversas. Na medida do possível, incluí material de pesquisas recentes, já realizadas no período pós-‐independências, para que se possa entender que histórias contam as pessoas hoje, no século XXI e pensar sobre as possíveis relações dos contadores/ouvintes/leitores com a tradição.
No que diz respeito aos leitores brasileiros, esperei, com a publicação
desse livro, oferecer contato inicial com o rico acervo narrativo dos países africanos de língua portuguesa, e ajudá-‐los a perceber tanto laços com os contos populares brasileiros quanto colocar as obras literárias dos autores africanos mais conhecidos e lidos no Brasil em perspectiva. Busquei recontar histórias bem variadas: contos etiológicos e lendas, histórias de cunho filosófico ou de
sabedoria e, ainda, narrativas com reis, rainhas, príncipes e princesas, para além das esperadas fábulas.
Ao escrever sobre suas pesquisas em torno de contos populares a
britânica Angela Carter nos ensinou que eles ‘constituem a mais vital ligação que temos com o universo da imaginação de homens e mulheres comuns, cujo trabalho criou o mundo’.
Quando falamos em África essas palavras se tingem de outras tonalidades,
uma vez que o trabalho daqueles homens e mulheres se deu também sob a terrível marca da escravidão. Nos contos presentes no livro descortina-‐se uma sociedade organizada, complexa e questionadora da ordem do mundo. Homens, mulheres, crianças, animais, sol e lua dialogam, refletem e resolvem dilemas que são comuns a toda a humanidade: casar-‐se, avançar para o futuro, fugir de uma autoridade opressora e desmedida, negociar com o que não se pode vencer diretamente.
No breve panorama que traço neste artigo é necessário ainda lembrar a
ampliação do número de publicações de obras de autores africanos no Brasil, a abertura editorial para a publicação de ensaios sobre a África, o aumento do número de trabalhos acadêmicos (mestrados e doutorados) sobre literatura, cultura, economia, história, educação dos países africanos, muitos deles chegando igualmente à publicação seja em formato livro seja em acervos eletrônicos disponibilizados gratuitamente pela internet. Em tempos de rede mundial de computadores, também a multiplicação de blogs, de jornais eletrônicos e das redes sociais estreitaram os laços do público leitor brasileiro com a realidade africana e com os produtores de arte e cultura.
Finalmente, o aumento do número de Festivais Literários e Feiras de
Livros tem ampliado a possibilidade do público brasileiro encontrar-‐se com autores, ilustradores, cientistas políticos e ensaístas de diversos países da África.
Observar os percursos dos livros e dos professores e outros profissionais
que se dedicaram à divulgação das literaturas e culturas africanas no país é um trabalho que deixa pesquisadores e observadores plenos de esperança e da certeza de que é possível fazer, pouco a pouco, um trabalho que mude a percepção sobre um continente até poucos anos ignorado e sobre a imensa
contribuição que seus homens e mulheres, trazidos em condição de escravos, trouxeram ao Brasil. Susana Ventura é pesquisadora ligada ao Centro de Literaturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa (CLEPUL) e ao Centro de Pesquisas sobre os Mundos Ibéricos Contemporâneos (CRIMIC), da Sorbonne (Paris IV). Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP (2006), com tese sobre os romances de Mia Couto e José Saramago. Ensaísta e professora, é também autora, entre outros, dos livros Convite à navegação: uma conversa sobre literatura portuguesa (São Paulo: Peirópolis, 2012) e O tambor africano e outros contos dos países africanos de língua portuguesa (São Paulo: Volta e Meia, 2013). Seu livro de ensaios Ciranda de escritas: ensaios sobre as literaturas de língua portuguesa tem conteúdo aberto na internet através do Google Books.
Lihat lebih banyak...
Comentários