O brilho eterno de lembranças esquecidas

September 17, 2017 | Autor: Adriana Moellmann | Categoria: Cultural Studies, Cultural Memory, Cinema, Fiction, Audiovisual
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BRILHO ETERNO DE LEMBRANÇAS ESQUECIDAS

Adriana Moellmann

Palavras-chave: memória, cinema, conhecimento.

Resumo: Neste texto, abordo memória nas imagens do cinema. Imagens e locais
de memória nem sempre reconhecidos, mas presentes e atuais,
independentemente de sua cronologia. Imagens da memória em filmes
considerados não um simulacro das coisas, mas uma escrita do pensamento.
Nesse sentido está a possibilidade de aprendizado e construção de memória e
memórias pelo sujeito dentro de uma sala de cinema. Memória e cinema não
são temas esgotáveis em uma vida e, sobretudo, não neste texto. Com essa
consideração, proponho olhar a memória e suas imagens em um lugar
específico da produção cinematográfica: o filme Brilho Eterno de uma Mente
sem Lembranças.

Feliz é o destino da inocente vestal. Esquecendo o mundo e
por ele esquecida. Brilho eterno de uma mente sem
lembranças. Toda prece é ouvida, toda graça se alcança.
(Alexander Pope apud Brilho Eterno de uma Mente sem
Lembranças)[i]


Olho o pequeno, e ele narra o mundo em sua imensidão. Narra vidas em
reminiscências. Um vidro de perfume pode levar ao sentimento de uma época
há muito passada, mas não terminada: "Na Provença, a rosa guarda o segredo
de nossas lendas."[ii]. O perfume sugere não só fragrância, mas também e,
sobretudo, lembrança.

Olho o imenso e o seu enquadramento. É tudo muito grande, mas tenta-
se recuperá-lo em um comprimido. Nas farmácias, encontram-se remédios
criados para melhorar ou aumentar a memória de uma pessoa. Esqueceu de
pagar as contas, de buscar a roupa na lavanderia (uma imagem corriqueira
nos filmes americanos e europeus), de comprar farinha de trigo para fazer
aquele bolo maravilhoso? Esqueceu de comprar o pão do café da manhã
seguinte e foi para casa ver A novela? Péssima memória, que 25mg de uma
substância mágica prometem remediar. Literalmente.

O que é infinito em reminiscências – a memória individual e coletiva
– encontra-se enquadrado nos corriqueiros atos de esquecimento do
cotidiano. Ou associado a documentos em um arquivo. Obras de arte em um
museu. Arquitetura antiga nas cidades. A memória de todos e cada um está em
todos esses lugares reconhecidos como de memória, mas também em outros, de
forma não tão explícita. Essa memória de um e de todos não está parada,
produto de um passado que já aconteceu e não pode ser reprisado. O momento
passado não é revivido. Ele foi e não retorna: "Os recordadores são, no
presente, trabalhadores, pois lembrar não é reviver, mas refazer. É
reflexão, compreensão do agora a partir do outrora; é sentimento,
reaparição do feito e do ido, não sua mera repetição" (BOSI, 2004, p. 20,
grifo nosso). A lembrança, então, não é uma reprodução do passado, mas uma
nova produção, a partir dele, no presente.

O que é infinito em reminiscências pode se encontrar também em outro
enquadramento, o de uma tela de cinema. Retângulo de dimensões definidas,
nele são projetados filmes. Histórias narradas por meio do enquadramento
também três por quatro de uma câmera. Histórias escritas para serem
contadas por uma forma de enquadramento em um determinado tempo em locais
específicos – as salas de cinema. Neste artigo, porém, a proposta é focar
como a narrativa cinematográfica, construída em enquadramentos espaciais e
temporais, no entanto, extrapola as molduras em que criada e é, do mundo,
não a sua reprodução, mas sim uma produção. Imagens projetadas em uma tela
consideradas não "uma cópia verdadeira ou fantasioso simulacro das coisas
[...], mas como escrita do pensamento" (LUZ, 2002, p. 21). Histórias
ficcionais – baseadas ou não em fatos reais – que são um acréscimo ao
pensamento sobre o mundo. Acréscimo produzido pela construção do pensamento
em cada sujeito.

Rogério Luz (2002) refere que o foco de um estudo sobre o cinema não
está necessariamente nele, cinema, mas na produção de pensamento que
proporciona cada filme. O foco estaria no espaço subjetivo em que é
possível a construção cognitiva do pensamento. Pensamento formulado pela
significação aberta a cada sujeito. Pensamento não necessariamente dito ou
referido, mas constituinte de cada um. Leituras diferentes que fazem parte
de um pensar individual, mas que são parte também do seu pensamento sobre o
mundo.

Neste momento mesmo em que escrevo, aprendo o cinema – a televisão
também, de certa forma, mas aqui me refiro a produções cinematográficas –
como parte na construção de uma memória coletiva e individual, posto que
elas não estão separadas, e o limite entre uma e outra não se encontra
visível a olho nu. Isso se esse limite existe. Filmes em uma sala de
cinema[iii] sempre alcançaram a minha existência própria, e eu não entendia
como era possível a alguém tão distante da minha realidade dialogar comigo
tão proximamente, como se conhecesse a minha vida. Este é um ponto: eles
conhecem; essa realidade tão distante é muito próxima. A memória as une. A
memória permite-nos inferir o que não é mostrado ou dito nos filmes;
permite aos espectadores irem além da narrativa apresentada. Volto a
Pasolini: "Ou seja, há todo um mundo, no homem, que se exprime sobretudo
através de imagens significantes [...]: trata-se do mundo da memória e dos
sonhos. Todo o esforço de reconstrução da memória é [...], de um modo
primordial, uma seqüência cinematográfica" (PASOLINI, 1982, p. 138). E,
assim, o cinema e seus filmes videntes podem adquirir, neste instante em
que escrevo – e nos diferentes momentos de leitura deste texto -, outros
significados.

O cinema, próximo e conhecido, mostra para mim, agora, caminhos
esquecidos – pensamentos não manifestados. Procurando os rumos das
lembranças, esquecimentos, memória, recordação, reminiscências, cheguei ao
Ad Herennium, ou, mais precisamente, ele chegou a mim, nas páginas do livro
de Milton José de Almeida. O reconhecimento de um preconceito é difícil,
mas lá estava ele comigo ao ler um trecho desses escritos dos anos 90 a.C
(ALMEIDA, 2004). Pude perceber melhor a minha percepção restrita de memória
quando Ana Smolka, em seu artigo A Memória em Questão[iv], diz que os modos
de pensar a memória também são herdados, e não necessariamente nos damos
conta deles: "Modos que se inscrevem nos nossos modos contemporâneos de
pensar, de falar, de lembrar, de investigar hoje. Modos estabilizados,
muitas vezes esquecidos" (SMOLKA, 2000). Modos que não se constituem uma
somatória, mas uma acumulação. (ALMEIDA, 2004, p. 9). Um acréscimo. As
imagens fantásticas do cinema fazem parte desses modos de conceber a
memória. E também constituem um acréscimo e uma metamorfose no pensar a
memória.

Atribuído a Cícero e dedicado ao estudo da retórica, o Ad Herennium
propõe-se, em certo momento, a explicar a arte da memória em seu aspecto
técnico - mnemotécnica; forma de desenvolver a memória e memorizar coisas
ou palavras. Apresenta um método para lembrar: por meio de associações com
imagens e locais, seria mais fácil realizar a memorização. Na sua leitura
atual, podemos identificar aspectos fundamentais para a contemplação do
cinema e a percepção do seu alcance na contemporaneidade – e a esses
aspectos se dedica Almeida. Juntamente com a leitura que o autor realiza do
Ad Herennium, foi possível encontrar algumas das minhas próprias percepções
a respeito de memória; idéias desconhecidas até que para elas olhei. As
concepções de Cícero sobre memória, na forma como apresentada por Almeida,
estavam presentes nas minhas próprias considerações sem que o soubesse até
então.

Nesse sentido, também se chega ao cinema com o um olhar pessoal,
herdeiro de muitos outros olhares. Daí referir-me, aqui, a individual e
coletivo tão proximamente. O pensamento sobre o que se vê na tela é
herdeiro de muitos outros modos de pensar. A memória pessoal guarda também
as lembranças do mundo. Olhar um filme é, muitas vezes, compreender os
elementos da memória ali presentes, sem uma tentativa de determinar origem
e cronologia. "Na realidade, não há percepção que não esteja impregnada de
lembranças" (BOSI, 2004, p.46). Hugo Mustemberg reafirma, por assim dizer,
o que dito por Smolka ao se referir ao espectador e sua interação com as
cenas projetadas em uma tela de cinema. As imagens estão ali, para os
olhos, mas a percepção de cada um se dará diferentemente: "em última
instância, é a nossa própria memória com seu acervo de idéias que compõe o
quadro" (MUSTEMBERG, 1916, p. 37).

De volta ao Ad Herennium, nele pode-se identificar a distinção entre
memória natural e memória artificial: "A memória natural é aquela que está
inserida em nossas mentes, nascida simultaneamente com o pensamento"
(CÍCERO, 90 a.C, in ALMEIDA, 1999, p. 67). Aborda ele, nesse ponto, uma
memória fisiológica que não tem lugar preciso no cérebro, mas com a qual
nasceríamos. Nela, por exemplo, é possível colocar a culpa pelo
esquecimento do guarda-chuva na poltrona do cinema. O local biológico da
memória, porém, não se encontra visível na anatomia humana: "Estes
conhecimentos estão retirados num lugar mais intimo que não é lugar"
(AGOSTINHO in SMOLKA, 2000, P. 187).

Conforme o Ad Herennium, a memória artificial – a que me referirei
mais especificamente adiante - se destina a evocar a lembrança das coisas
por meio da representação do objeto a ser recordado nos locais e imagens
da memória. A partir daí, é contada uma história a ser lembrada
posteriormente. Formam-se imagens que representam o objeto da lembrança.
Palavra chave aqui, representação: para lembrar algo, busca-se a ajuda do
que remete a esse objeto, mas que não o é. Imagens que contam uma história
a ser lembrada, localizada em diferentes e inúmeros locais da memória. As
representações, também, aparecem impregnadas de lembranças (BOSI, 2004, p.
46).

O cenário, os cheiros, os personagens, os sentimentos podem ser os
mesmos, mas, no entanto, a pessoa, em si, não o é mais. Outros caminhos por
ela foram percorridos a partir do momento vivido e, apesar da sensação de
dejá vu que os objetos de memória trazem, a vida é outra. Os caminhos de
lembrança são percorridos com sapatos novos, e assim a caminhada é
diferente. Não sei onde se encontra o passado puro e intacto, em que lugar
ele repousa ou se esse lugar existe, "pois um acontecimento vivido é
finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o
acontecimento lembrado é sem limites" (BENJAMIM, 1994, p. 37). Em
lembranças do que já aconteceu, o passado não é puro, mas permeado das
percepções pessoais e da memória coletiva. Revivê-lo de forma intocada não
se apresenta como uma possibilidade.

O cinema, desde seu surgimento no final do século XIX, tem se
constituído como um desses locais de memória – e um lugar de relevância -,
com suas imagens em movimento; espaço de lembranças e esquecimentos, os
quais se encontram presentes mesmo se ausentes do enquadramento da câmera.
Ao sair da sala de cinema, a tela agora escura, o que contou suas imagens
permanece. Ao espectador, é dado completar o significado incompleto do
argumento do filme (PASOLINI, 1982, p. 155). Assim permanecendo, essas
imagens fazem parte da formação individual e em sociedade. Elas
alfabetizam, principalmente levando-se em conta que a produção dessas
imagens se dá em grande escala para um público cada vez maior. Fala-nos
Milton de Almeida:

Para nós (educadores), o texto escrito é sempre o
referencial mais importante, onde se tem a possibilidade de
voltar, pensar, refletir. Uma inteligência do mundo mediada
pela linguagem oral-escrita. Mas não podemos deixar de
pensar que nós mesmos, em parte, e uma maioria, totalmente,
estamos formando nossa inteligibilidade do mundo a partir
das imagens e sons das produções do cinema e da televisão
(ALMEIDA, 1999, p. 8).

Estamos vendo uma educação, não só, mas dominantemente
visual, política e religiosa, cristã e civil, presente hoje
nas IMAGENS e LOCAIS em movimento do cinema, este também
uma Arte da Memória, e uma prática da Memória Artificial.
Hoje, os profissionais das indústrias de imagens não
precisam conhecer o Ad Herennium. De há muito ele habita,
inesquecível e invisível, a nossa memória e a nossa prática
estética e política. (ALMEIDA, 1999, P. 115).



Voltando a Agostinho (in SMOLKA, 2000), pode-se pensar o cinema como
esse lugar mais íntimo a que ele se refere: uma sala escura com muitas
pessoas que se veem diante, em projeção na tela à sua frente, de imagens da
lembrança de um – o realizador do filme – e de todos – a sociedade. Se as
imagens em um filme foram ali colocadas ali de maneira consciente ou não,
nem sempre é possível saber. Se as pessoas que com elas dialogam percebem
essa conversa não falada, também não se pode dizer. Espectador e cineasta,
"participantes cientes e ignorantes" das forças da sociedade e da cultura
que imergem ou emergem em seus objetos de culto (ALMEIDA, 2004, p.22). No
caso deste texto, as imagens em movimento na tela de projeção
cinematográfica.

Cinema, um local de memória, e memória, um tema de filmes. Quero
propor ir ao local da minha memória – e de muitos - para observar as
imagens mostradas sob esses olhares referidos. Esse local aqui é o filme
Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, que fala, a mim – como dizer de
outros? -, de amor, perda, riso e, fundamentalmente, de lembranças,
esquecimentos, recordações, memória. Nele reconheci muitos elementos de
como pensar a memória. Por meio dessa produção, o cinema trata do que não
lhe é externo, mas está na natureza da sua produção, divulgação e percepção
pelas pessoas. Um filme, com suas histórias contadas e imagens mostradas,
escapa do enquadramento da câmara que o distingue como cinema e dá sentido
às suas imagens; ultrapassa o aspecto de ilustração que geralmente assume
nas escolas (ALMEIDA, 2004) e se projeta no mundo.

A imagem inicial no silêncio do menu do DVD já informa que o veículo
vem de fora, mas a viagem será pessoal. O casal deitado ao lado de uma
fenda no rio congelado desvela parte da trama do filme, parte que já se
encontra em no espectador: aquele rio, vida que deveria seguir o seu fluxo
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 1991), está parado naquele momento, congelado.
Deitados, olhando para o céu, o casal tem ao lado uma rachadura no gelo. O
rio, naquele momento, não segue o fluxo dos seus caminhos; o congelamento,
porém, não é eterno. A rachadura denuncia a quebra eminente desse estado.
Esse é o momento e o lugar dos dois personagens no recorte feito por quem
narra a história; esse instante de ruptura foi o escolhido para constar no
filme. Importante característica de uma narrativa, o recorte. Há o antes de
a história ser contada e do depois da última página ou do the end
cinematográfico. Muita vida antes e talvez muita poderia ser contada, mas
o momento é esse, e a imagem impressa no pôster do filme já me permitiu –
percepção pessoal que não posso considerar de outros – perceber, num
primeiro contato, parte dessa escolha. Na produção cinematográfica recente,
podem-se encontrar vários filmes que tentam evitar um fim na sua trama.
Diferentemente da narrativa cinematográfica chamada de clássica (MATTOS,
2006) – em que há o início, com a apresentação de uma história; o "meio",
com o desenrolar de uma controvérsia relativa à trama central e que deve
ser resolvida, e o fim, em que a questão encontra uma solução –, algumas
produções deixam em aberto o desfecho da controvérsia projetada na tela.
Filmes que, para muitos, terminam antes do fim. Não há desfecho além do fim
da projeção. Ao espectador, cabe a construção do seu próprio final, se
assim o desejar.

Num primeiro momento da narrativa de Brilho Eterno, a sensação de
estranhamento é forte, tanto para o espectador quanto para o personagem
Joel. Ele não é conhecido, mas provavelmente se sabe quem é Jim Carey – que
o representa –, quem é Kate Winstlet – Clementine. É possível também saber
que se trata de um roteiro de Charles Kaufman. Conhece-se o título da
história e até, conforme as críticas ou resenhas em jornais e revistas,
sabe-se que um personagem quer esquecer o outro. O espectador encontra-se
em uma sala de cinema diante de uma projeção que lhe conta uma história e
tem expectativas sobre o que irá ocorrer. Na cena inicial, como recurso
para contar ao espectador do estranhamento, não há explicações escritas.
Não há título, não aparecem os nomes dos atores, produtores, diretor. Esse
primeiro momento trata do estranhamento de um homem acordando na sua cama,
no seu apartamento, dentro de um pijama desconhecido, olhando a paisagem
fria e seca através da sua janela e se sentindo estranho. Com ele podemos
seguir nesse caminho e com ele é possível também sentir o estranhamento:
"No cinema, a câmera carrega o espectador para dentro mesmo do filme. Vemos
tudo como se fosse do interior, e estamos rodeados pelos personagens. Estes
não precisam nos contar o que sentem, uma vez que nós vemos o que eles vêem
e da forma em que vêem" (BELÁZS, 1945, p. 85).

O reconhecimento presente nas percepções dos espectadores acontece
não só por uma história que é contada e mostrada, mas também pelo que se
sabe antes de entrar na sala de cinema, como ressaltado acima. Mas podemos
enfatizar aqui outra forma de reconhecimento, que ocorre por histórias já
narradas, presentes em cada um. Memória que traz o reconhecimento do que
não é dito ou nem mesmo explicitado, mas que forma seu sentido pelo
conjunto, pela montagem final do filme (PASOLINI, 1982). Símbolos e seus
significados aparecem na narrativa; velhos conhecidos em uma nova trama.
Personagens que aparentemente são estranhos, mas sentem um reconhecimento
mútuo, assim como o espectador reconhece o que está diante de si, na tela
iluminada pelas imagens em projeção.

[...] a experiência do espectador que está na platéia na
verdade não se limita às meras sensações luminosas e
sonoras que lhe chegam até os olhos e ouvidos naquele
momento: ele pode estar inteiramente fascinado pela ação
que se desenrola no palco e mesmo assim ter a cabeça cheia
de outras idéias. A memória, sem ser a menos importante, é
apenas uma fonte dessas idéias.

Efetivamente, a memória atua evocando na mente do
espectador coisas que dão um sentido pleno e situam melhor
cada cena, cada palavra e cada movimento... (MUNSTERBERG,
2003, P.P. 36/37).



Vê-se, ali, o que já se pode reconhecer antes de entrar no cinema:
uma pessoa solitária, triste, e podemos fazer essa aferição sem a
necessidade de um texto, escrito ou falado, a título de esclarecimento.
Essa imagem reconhecida não precisa de legendas. A esse reconhecimento
recorre o realizador do filme. A paisagem ao redor, as expressões do
personagem, as suas roupas e postura: com e além do texto falado, podemos
ter inúmeras e diferentes percepções do que vemos e ouvimos. Com essas
percepções, as imagens e diálogos e sons e músicas ultrapassam o espaço da
tela, da sala de cinema, da existência individual e chegam aos lugares da
memória de cada espectador.

Aos dezoito minutos do início da transmissão, o filme se mostra em
sua titularidade e autoria. Revela o nome dos seus autores. Há o título.
Os atores. A música. A história. Ao nos dirigirmos a um cinema, já sabemos
que se assistirá a uma obra de seus realizadores, a uma história
representada pelos autores e atores. Aquelas pessoas na tela estão
representando seus personagens nessa narrativa específica; não estão elas
ali em sua vida cotidiana. São personagens, e, para a composição deles, o
ator também entra com as suas memórias: a natural, ao decorar o texto, a
capacidade física de memorizar as suas falas; a artificial, ao decorar suas
falas, relacionando a escrita com imagens, e ao compor em representação o
personagem. O trabalho do ator envolve-se em memória. O "trabalho" do
espectador também.

Ao se pensar memória, não há como traçar uma linha contínua e reta. O
aparecimento de rupturas e lugares desconhecidos pode ser uma das poucas
certezas. O filme discute diversos aspectos sobre a memória, e, sem que
isso apareça como conseqüência lógica, sua narrativa também não é contínua
e reta. Aparecerão rupturas e descontinuidades. Assim se desenrola a trama
do filme. Em narrativa e imagens, os caminhos da memória se encontram aqui
presentes: início e fim não ocorrem a partir de seqüências lógicas. O
entendimento da narrativa é proporcionado a cada cena. Pelos momentos
iniciais do filme, assim como no transcorrer da história, é possível,
porém, perceber esse andar descontínuo. Surgem quebras ao se caminhar pelas
lembranças, ao se recordar. Para Joe, não é diferente o seu passar pela
memória pessoal. A memória, no filme, é externa e fisiológica. Nele,
ela pode ser localizada em um espaço do cérebro perfeitamente reconhecível.
Aparecem os sujeitos específicos para fazer o trabalho de apagar as
lembranças: a firma Lacuna – se sutileza era a intenção, ela morreu nesse
nome –, empresa comercial legitimada em consultório médico, assim
caracterizada em seus horários, médicos e auxiliares de jaleco branco e
promoções à época do natal, tempo de lembranças. Lacuna, a firma, defende
que, ao mapear as emoções de Joe por meio dos objetos da sua lembrança, o
antigo e suas emoções impedem o novo. Joe está em sua cama, desacordado. À
sua volta, no ambiente conhecido do seu apartamento, pessoas estranhas e
uma parafernália técnica esquisita e impossível executam a tarefa de
mapeamento da sua mente: para Lacuna, as lembranças são registradas
fisicamente no cérebro e dali podem ser extraídas com técnica e
conhecimento. Trata-se de um processo de limpeza. The Spotless Mind, do
título original em inglês, refere-se a uma mente sem manchas, maculada,
pura. A proposta é limpar a mente, e a vida da pessoa, das manchas
adquiridas na vivência e não mais desejadas. A perda de memória é comparada
a uma noite de bebedeira, e as lembranças são definidas como "nada de que
vai sentir falta".

Momento descontínuo e de ruptura, as lembranças de Joe aparecem para
o espectador no momento em que são apagadas, em uma ordem cronológica
decrescente na sua mente: as mais recentes surgem primeiramente, até chegar
às mais antigas. No entanto, essas lembranças são conhecidas pelo
espectador ao mesmo tempo em que toma contato com outros tempos e locais da
narrativa, externos ao que acontece com o personagem. Aqui, outra
possibilidade apresentada pelo cinema: ir a lugares a que não se pode
chegar fisicamente, estar em tempos que não são possíveis de se vivenciar.
Ao longo da narrativa, Joe e o espectador se posicionam em suas lembranças
e caminham pela memória do personagem enquanto ela é apagada. O espectador
está também fora da mente de Joe, observando os outros acontecimentos. A
história é conhecida em um momento, e se pode voltar ao passado para
conhecer também a sua anterioridade. Noções de tempo e distância podem ser
trabalhadas na narrativa cinematográfica de modo diferente de como são
vivenciadas. O que ocupa espaço na imaginação é representado em imagem,
sons e história. Aparece aos olhos do espectador e ultrapassa o limite
físico da tela de cinema ao dialogar com as percepções de cada um: "o
cinema pode fazer a ponte para o futuro ou para o passado, inserindo entre
um minuto e o próximo um dia daí a vinte anos. Em resumo, o cinema pode
agir de forma análoga à imaginação: ele possui a mobilidade das idéias, que
não estão subordinadas às exigências concretas dos acontecimentos
externos..." (MUSTEMBERG, 1916, p. 38).

Ao passar por suas memórias, dentro de si, Joel conversa com as
lembranças e as posiciona em diferentes locais da sua memória. Coloca
outras vozes em seus pensamentos. Luta contra um procedimento externo sobre
o qual não tem mais controle e reage com a sua imaginação. Como assegura,
diante daquelas cenas, que aquilo não é real? Cinema, ficção, tela,
espectador, realidade, personagem, narrativa, imaginação, percepções
memória, reminiscências: caminhos não lineares durante a projeção de um
filme no seu tempo cronológico.

O passado não pode ser recuperado, mas o personagem o revive no seu
presente: um Joe grande, escondido embaixo da mesa, coloca Clementine nas
suas lembranças de criança. Momentos diferentes em tempo da sua existência
estão mesclados ali, criança e adulto, sem uma distinção clara. Fatos
passados que são recuperados no dilema vivido no presente. Os fragmentos da
sua vida aparecem representados na colcha de retalhos sob a qual se
recolhe, nu, com as lembranças de Clementine. Sua vivência não é um
contínuo, assim como a sua memória. Momentos cronológicos distintos que
andam juntos em sua existência e não são lineares, apesar da sua colocação
em um tempo e espaço. Lembranças desses momentos que também não são
lineares e fazem parte da existência de Joe. Enquanto desacordado,
observando suas próprias lembranças, as quais são sequencialmente apagadas,
ele interage com o mundo externo, com o que acontece no seu apartamento
enquanto dorme. Ele não está ausente do que ocorre ao redor; percebe uma
trama que lhe diz respeito mesmo desacordado. Ao enfrentar suas lembranças,
depara-se com a existência ao seu redor, mesmo sem encará-la visualmente.
Os acontecimentos externos e internos se confundem. Joel, nesse momento,
assemelha-se aos espectadores que, na sala de cinema, o observam.

O caminho percorrido pelo personagem na sua memória deixa
transparecer a luta pelas suas lembranças. A recusa ao esquecimento a que
ele próprio se propôs. E, mais que recusa, o filme diz da impossibilidade
de apagamento dessas lembranças. Mesmo que não conscientes, elas não podem
ser apagadas. O momento não é passível de repetição: uma conversa revivida
no momento presente do esquecimento tem significado diferente de quando
aconteceu a primeira vez. Joe chega, então, dentro da narrativa em que se
encontra, à ultima lembrança a ser apagada, o dia em que conheceu
Clementine – o último acontecimento associado a ela nessa jornada de
apagamento decrescente. Observa a partir de um ponto externo e interno os
acontecimentos daquele dia. Situa-se neles em sua cabeça e os vê à
distância. Ao mesmo tempo em que presente nas lembranças, ele fala delas
como se estivesse de fora. Ao mesmo tempo em que as encena, a sua fala é a
de alguém que vê um filme: as cenas não ocorrem na vida considerada real,
mas pertencem a ele, e sobre elas ele conversa com a memória de Clementine.
O lugar físico das lembranças não é concreto, mas a presença do outro é
real para Joe. Eles adentram uma casa deserta na praia. Não entram pela
porta da frente, mas por uma entrada secundária, a janela, a qual
atravessam assim como a luz do dia no exterior (CHEVALIER & GHEERBRANT).
Cercados pelos objetos da memória de outros, essa lembrança também
desmorona, as paredes da casa desabam, o mar inunda aquele espaço. Nesse
momento, acontece a determinação dos dois de mudar a lembrança do dia e
evitar o seu apagamento. O encontro aparentemente casual dos dois no dia
seguinte nos leva de volta ao início do filme. O momento, então, é o
presente da narrativa, mas a ele pode-se retornar diferentemente. Diante
das mesmas cenas do início do filme, o nosso pensamento sobre elas é outro.
A construção da narrativa realizada por quem conta a história e por nós
mesmos mudou a cena. A narrativa retorna ao seu momento inicial, porém, já
sabemos o que aconteceu. O sentir dos personagens e seu estranhamento são
nossos conhecidos agora, diferentemente dos momentos iniciais da projeção.

No momento em que os acontecimentos tomam outro significado para o
espectador, por meio da lembrança do que foi visto, as lembranças de outros
personagens retornam também. A memória de todos os clientes do
esquecimento, Lacuna, encontra-se registrada e não está perdida. São outras
histórias; não foram contadas naquele momento, mas existem, no registro em
fita cassete, pela voz dos que escolheram esquecer. Elas serão devolvidas
através de cartas enviadas pelo correio. Lembranças de pessoas em um
envelope, em uma fita cassete, voz e testemunho registrados que não são
contestados pelo caráter de realidade do registro. Joe e Clementine, ao
ouvirem suas fitas, não podem duvidar da sua voz, embora o que ela lhes
conta seja estranho. O registro de voz, naquele momento, é uma evidência
maior. Embaixo do colchão, Joe encontra um objeto de lembrança, desenho de
Clementine feito por ele: outro registro a lhe assegurar que o relato
ouvido da fita fez parte de sua vida. Voz e imagem registradas atestam as
lembranças esquecidas pelos dois personagens.

As imagens em movimento do cinema trazem consigo uma forte impressão
de realidade, no sentido de que aquilo que a pessoa está vendo "é" mais do
que "parece ser" (ALMEIDA, 2004). As imagens em movimento têm uma
proximidade do real que não é diminuída pelo caráter de obra ficcional de
um filme. A complexidade do que são essas imagens para nós foge às páginas
deste artigo. A um aspecto, no entanto, quero me referir, e ele se situa no
que aqui tenho discutido: as imagens em movimento de um filme relacionam-se
à memória dos seus realizadores na forma como são apresentadas, nunca em
uma linearidade e não necessariamente conscientizadas pelos "donos" das
lembranças. Essas imagens conversam também com as lembranças dos
espectadores. Ao mesmo tempo externas às pessoas que as vêem, "quando
apresentadas em uma tela no alto e à sua frente, essas imagens são
internalizadas na cadeia de significados que vão se formando [...] sem uma
ordem", apesar de as imagens e diálogos serem emitidas linearmente,
seqüência de imagens em um tempo cronológico (ALMEIDA, 2004, pp. 9 e 10). O
espectador entra em contato com tudo que lhe mostra e narra o filme e, ao
mesmo tempo, relaciona-os consigo mesmo e com o mundo. O filme, então,
distante fisicamente na tela, faz parte também da vida dos seus
espectadores. "No cinema, a distância permanente da obra desaparece
gradualmente da consciência do espectador e, com isso, desaparece também
aquela distância interior que [...] fazia parte da experiência da arte"
(BALÁZS, 1945, p. 84).

Ao irmor a um cinema para assistir a um filme, vemos e podemos
identificar elementos relacionados a essa ação: o se dirigir a um lugar
próprio e específico, a bilheteria onde se compra o ingresso, as outras
pessoas no lugar indo ao mesmo filme ou a outros, os cheiros de uma sala de
cinema, a pipoca, as conversas, a sala com suas cadeiras, a escolha de um
bom lugar, o escuro, as propagandas e trailers, o filme que escolhemos
assistir, suas imagens, atores, história, formato da narrativa, o fim e as
nossas reações são que presenciamos. Há, porém, outros incontáveis,
imprevisíveis e desconhecidos elementos, que mudam de pessoa a pessoa e
que, sem sabê-los especificamente, só podemos imaginar: o primeiro encontro
com alguém tão esperado, duas horas para se esconder do mundo, a briga na
bilheteria com o casal de trás, a expectativa com o filme a ser mostrado, o
tédio por estar num lugar indesejado... Elementos externos que podem ser
identificados. No entanto, as reticências vão além da imaginação e de
qualquer tentativa de determiná-las, pois que se referem à vivência de cada
espectador e à construção de um pensamento que nem sempre é reconhecido ou
manifestado.

Penso que não precisamos determinar, esgotar, enquadrar essas
reticências. Olhá-las, identificá-las e conhecê-las, na medida do que é
mostrado, é também um caminho de conhecimento da própria existência e dos
lugares das próprias lembranças. Caminho percorrido por Joe e Clementine, o
qual eu também atravesso. Caminho que leva aos lugares da memória: a
projeção dessa narrativa fílmica se encerra com os dois personagens na
"sua" praia nevada de Montauk, ao som do tema do seu relacionamento,
Everybody Got to Learn Sometimes.[v] Musica e imagens e história e
lembranças que passam a fazer parte do espectador antes mesmo de aparecerem
os créditos finais. Fim da obra, continuação da vivência.

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[i] Citação de Alexander Pope, retirada do Bartlett's Familiar Quotation
pela personagem Mary e por ela referida no filme Brilho Eterno de uma
Mente sem Lembranças.
[ii] Propaganda da perfumaria L'Occitane, distribuída pelo correio em junho
de 2005, para o lançamento de uma linha de cosméticos.
[iii] Refiro-me neste texto, mais especificamente ao cinema americano.
[iv] SMOLKA, Ana Luíza Bustamante. A Memória em Questão, Uma Perspectiva
histórico-cultural. In:________ Educação e Sociedade – Revista
Quadrimestral de Ciência da Educação. CEDES, Unicamp, Campinas, número
especial 71, 200º, 2ª edição. Nesse artigo, a autora trata da memória
enquanto prática social, referindo-se a diferentes modos, em diferentes
épocas, de enfocar a memória. Seu objetivo é ver como esses enfoques estão
presentes na elaboração coletiva da memória na contemporaneidade.
[v] Everybody Got to Learn Sometimes, música de James Warren, cantada no
filme por Beck.

Referências bibliográficas
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Autores Associados, 1999. 159 p.

________. Imagens e sons, a nova cultura oral. 3 ed. São Paulo: Cortez
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BELÁZS, Béla. Nós Estamos no Filme. 1945. MUNSTERBERG, Hugo. 1916. In:
XAVIER, Ismail (org.). A Experiência do cinema. Antologia. Rio de Janeiro:
Edições Graal: Embrafilmes, 1983.

BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
(Obras escolhidas; v. 1).

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade – Lembrança de Velhos. 12 ed. São Paulo:
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CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. O Dicionário dos Símbolos. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 1991.

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2002.

MATTOS, A.C. Gomes de. Do cinetoscópio ao cinema digital: breve história do
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PASOLINI, Píer Paolo. Empirismo Herege. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982.

SMOLKA, Ana Luíza Bustamante. A memória em questão: uma perspectiva
histórico-cultural. In: ______________. Educação & Sociedade, Revista
Quadrimestral de Ciência da Educação. Unicamp, SP, 2000 . Volume especial
71.

TARKOVSKI, Andrei Arsensevich. Esculpir o tempo. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.



Filmografia

Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (titulo original: Eternal
Sunshine Of The Spotless Mind). EUA,/2004. Duração: 108 min. Direção:
Michel Gondry. Produzido por Focus Features.

O Mágico de Oz (título original: The Wizard of Oz). EUA/1939. Duração: 101
min. Direção: Victor Fleming. Produzido por Warner Bros / Family
Entertainment.

Possessão (título original: Possession). EUA/2002. Duração: 102 min.
Direção: Neil LaBute. Produzido por Warner Bros Pictures.
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