O Brinquedo como objeto cultural

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ESSE ESTRANHO OBJETO DE DESEJO: O BRINQUEDO COMO OBJETO CULTURAL Gisela Wajskop Discutir o brinquedo, hoje, parece-me tarefa simultaneamente fácil e extremamente difícil. Por quê? De um lado, parece-me que quando se imagina um brinquedo não é necessário explicitar sobre o que está se falando, passando-se automaticamente a discorrer sobre seus usos, origens ou funções; de outro lado, no entanto, quando a discussão é aprofundada, descobre-se que nem sempre se está falando sobre a mesma coisa e esse dado dificulta a compreensão de todos sobre o que se está a refletir. Para evitar desentendimentos, iniciarei esse artigo definindo o conceito constante no dicionário Aurélio. Para o autor, com o qual concordo, brinquedo está definido de seguinte forma: SM 1. O objeto que serve para as crianças brincarem. 2. Jogo (1) de crianças; Brincadeira : brinquedo de amarelinha; brinquedo de pegar. 3. Divertimento, passatempo, brincadeiras. 4. festa, folia, folguedo, brincadeira. Apesar do termo estar associado tanto à idéia do objeto, como da ação de brincar, vamos nos ater ao primeiro significado e sua assimilação à criança. Ou seja, sugiro que pensemos no brinquedo enquanto objeto de uso próprio da infância, cuja ação lúdica é pura decorrência. Isso posto, podemos nos perguntar o que faz com que um determinado objeto seja qualificado como brinquedo. Como esse objeto pode, simultaneamente, ser um objeto de desejo, portanto, materialização de um sentimento individual nem sempre realizável e servir para a mediação social, fato que implica no contato efetivo entre criança, adultos, ambientes e matérias? Para tentar responder a essas questões, proponho um pequeno mergulho no mundo dos objetos de uso próprio das crianças (ou dos brinquedos)...

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Imaginemos diferentes tipos de bonecas: uma boneca de pano, mantida sob um pedestal de arame, negra, portanto um pequeno bebê às costas; imaginemos uma pequena Alice, com seu vestido azul e avental branco, miniatura de personagem de Lewis Carrol, feita em vinil lavável; imaginemos ainda uma pequena boneca deitada em um bercinho lapão feita em plástico, tecido de couro; por último, pensamos naquele bebê gorducho, de cara de vinil e corpo em espuma, que é lançado todo ano por ocasião do Natal ou da comemoração do Dia das Crianças. Imaginemos, ainda, um pequeno pedaço de pano, especialmente enrolado como se fora

representação de um pequeno humano. Depois de

imaginar todos esses objetos, pensemos sobre as idéias que cada um deles nos trouxe a mente... Esses objetos , porém, se expostos em uma vitrine, seriam apenas bibelôs ou objetos decorativos. O que os torna brinquedos? O fato de que cada boneca nos fez imaginar situações e histórias diferentes é que faz destes objetos, objetos especiais, ou seja, brinquedos. Isso significa afirmar que cada uma destas bonecas traz em si um conjunto de imagens que convida às crianças a brincar e que, portanto, estão associadas a um contexto cultural específico. Portanto, as imagens das quais essas bonecas são portadoras, ou seja, as formas como representam a maternagem de bebês é que criam nas crianças

desejos

em

pegá-las

para,

por

meio

de

gestos

particulares,

transformarem seu significado social em formas singulares e imaginárias. Assim, o que quero dizer é que todo objeto se faz brinquedo, não é brinquedo! Somente a possibilidade de brincar com um objeto é que faz dele um brinquedo. Se um objeto é absolutamente fechado em si mesmo, definindo a priori regras de utilização e manipulação de tal forma que a imaginação esteja ausente, então ele não pode ser caracterizado como um brinquedo. É o caso, por exemplo, de alguns jogos educativos e alguns jogos eletrônicos. A meu ver, toda a gama de brinquedos didatizados e alguns videogames e correlatos podem, e devem, ser 2

caracterizados como exercícios programados. A repetição escravizada que criam nas crianças é resultado da natureza repetitiva característica da tarefa a ser cumprida. Não há aventura, imaginação nem indeterminação em um jogo altamente repetitivo! Esses objetos, portanto, não habitam o mundo aventureiro do brincar! Mesmo os brinquedos industriais, organizados nas prateleiras de uma grande loja são apenas um potencial de brinquedos, não o são ainda! Estes objetos se transformarão em brinquedos apenas quando usados pelas crianças numa situação de brincadeira, utilizados livremente para dar vida aos enredos por elas inventados. Para melhor explicitar, basta nos lembrarmos de uma criança brincando com uma panela e uma colher de pau. O que são esses objetos no armário de uma casa senão apenas utensílios para cozinhar? O que os torna brinquedos nas mãos de uma criança é o seu uso transformado, imaginado em um pequeno tambor ou bateria... É o gesto imaginário da criança que transforma o significado do objeto durante a brincadeira, transformando a panela em um instrumento musical. Desta mesma forma, os brinquedos industriais, já fabricados enquanto tais oferecem um potencial imaginário para as crianças, algo que os adultos de uma determinada sociedade pensam ser a ludicidade infantil. Por exemplo, os bonequinhos de playmobill não devem ser concebidos como a miniaturização nem a imitação de homens reais, mas devem ser vistos como imagens modificadas destes homens, com as quais as crianças poderão inventar suas histórias. A idéia de que um brinquedo é brinquedo por causa da imagem da qual é portadora, portanto, é o que convida a criança a desejá-lo, para transformá-lo segundo necessidades afetivas e sociais que lhe são particulares. Esse processo tem implicações educativas importantes, seja na brinquedoteca, na creche ou na escola! Quer dizer que objetos classificados, organizados em belas e limpas prateleiras decoram o ambiente, mas não permitem o desenvolvimento da imaginação infantil! Ao contrário, escolhidos e selecionados segundo as

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necessidades da ampliação dos conhecimentos das crianças, somando-se aos objetos de suas culturas de origem e colocados ao seu alcance permite a ampliação de um pensamento imaginativo e inventivo. Citamos um exemplo: a criança de um ano que manipula uma boneca pela primeira vez, faz uma exploração sensorial da mesma- aperta, lambe, chacoalha, puxa o cabelo, joga no chão e recolhe-a. Num segundo momento, a imagem da boneca, o bebê, convida-a para um gesto de maternagem próprio à sociedade na qual vive e é possível de ser imitado por meio de seu uso. Esse gesto, porém, será aquele próprio da sociedade e da cultura mais próxima da experiência da criança, como por exemplo, uma criança africana moradora em Paris, carregava sua boneca no dorso, como é característico das mulheres de sua cultura de origem. Numa terceira etapa que impulsiona infinitas outras possibilidades, a criança inicia um diálogo com sua boneca, depois tenta usá-la como parceira em brincadeiras

em

que

outras

crianças

exercem

papéis

complementares,

experimentando novas formas de maternagem características de comunidades diversas que viu ou vivenciou, e assim por diante. Nesse processo, no exemplo dado a boneca é um mediador da criança com o sistema cultural de uma dada sociedade, com as propriedades físicas e materiais dos objetos com as quais essa mesma sociedade se relaciona, assim como possibilita a criação de um espaço imaginário entre as crianças e entre estas e os adultos com os quais convive e nas quais e trocas simbólicas se efetuam através da linguagem. Para concluir, podemos afirmar que os brinquedos constituem-se, hoje, entre outros, em objetos privilegiados da educação das crianças, desde que inseridos numa proposta educativa que se baseia na atividade e interação destas e só tem significado quando utilizados pelas crianças para brincar. Assim considerados, os brinquedos configuram-se, portanto, como objetos mediadores das brincadeiras, podendo ser das mais diversas origens, matérias, formas, texturas, tamanho e cor. Assim, podem ser comprados, quando são 4

concebidos industrialmente ou fabricados ou são artesanais; podem também ter vida curta,quando inventados e produzidos pelas crianças em determinada brincadeira e durar várias gerações, quando transmitidos de pai para filho. Através do contato, manipulação e uso dos brinquedos pelas crianças, há uma aprendizagem multidisciplinar das formas de ser e pensar da sociedade. Ao utilizar determinados brinquedos como bonecas, carrinhos, naves espaciais, etc. as crianças aprendem sobre determinadas formas de se relacionar das pessoas e conhecimentos já conquistados pela humanidade, através das imagens que estes objetos lhes transmitem. Ao lado dos livros, das produções artísticas e das conquistas tecnológicas, tais como cinema, televisão e computador, os brinquedos industriais são, também, objetos portadores de informações que são transmitidas às crianças por meio das formas e imagens que sugerem sobre coisas e personagens. Nessa perspectiva, as creches e pré-escolas poderiam integrá-los no acervo de materiais existentes nas salas, prevendo critérios de escolha, seleção e aquisição de acordo com a faixa etária atendida e os diferentes projetos desenvolvidos na instituição.

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