O CAMINHO DO CENTAURO

May 27, 2017 | Autor: M. Camargo | Categoria: Creative Writing, Industrial And Labor Relations, Business Ethics, Religion, Sociology of Religion, Artificial Intelligence, Philosophy, Ontology, Aesthetics, Political Philosophy, Ethics, Epistemology, Second Sophistic, Philosophy Of Religion, Moral Psychology, Languages and Linguistics, Political Science, Liberalism, Oral history, Oral Traditions, Applied Linguistics, Ecology, Ancient Religion, Postmodernism, Cognitive Linguistics, Aesthetics and Ethics, Ancient Philosophy, Ancient Greek Religion, Moral Philosophy, New Age spirituality, Heraclitus, Sophists, Moral and Political Philosophy, Poststructuralist Theory, Happiness and Well Being, Epicureanism, História e Cultura da Religião, Religious Studies, Moral, Epistemología, Estética, Filosofía, Psicología, Estetica, Ética, Psicopedagogia, Cristianismo, Ética Aplicada, Psicologia Cognitiva, Liberalismo, Filosofia da Religião, Posmodernidad, Comportamiento Humano, Paganismo, Felicidade, Sofística, Autoconhecimento, Psicologia, Aforismos, Bem-estar E Qualidade De Vida, Artificial Intelligence, Philosophy, Ontology, Aesthetics, Political Philosophy, Ethics, Epistemology, Second Sophistic, Philosophy Of Religion, Moral Psychology, Languages and Linguistics, Political Science, Liberalism, Oral history, Oral Traditions, Applied Linguistics, Ecology, Ancient Religion, Postmodernism, Cognitive Linguistics, Aesthetics and Ethics, Ancient Philosophy, Ancient Greek Religion, Moral Philosophy, New Age spirituality, Heraclitus, Sophists, Moral and Political Philosophy, Poststructuralist Theory, Happiness and Well Being, Epicureanism, História e Cultura da Religião, Religious Studies, Moral, Epistemología, Estética, Filosofía, Psicología, Estetica, Ética, Psicopedagogia, Cristianismo, Ética Aplicada, Psicologia Cognitiva, Liberalismo, Filosofia da Religião, Posmodernidad, Comportamiento Humano, Paganismo, Felicidade, Sofística, Autoconhecimento, Psicologia, Aforismos, Bem-estar E Qualidade De Vida
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Descrição do Produto

Copyright by © 2016 Camargo, Marcos H. Todos os direitos reservados

C 172 Camargo, Marcos H. O caminho do centauro / Marcos H. Camargo Londrina: Sintagma Editores, 2016. 212p. ISBN 978-85-62592-29-4 1. Filosofia. 2. Teoria do Conhecimento. 3. Ética I. Camargo, Marcos H. II. Título CDD : 170 CDU : 16

Janaina Barros Revisão

Wanderson Barbieri Mosco Capa e Projeto Gráfico

Gráfica Capital Impressão



Marcos H. Camargo

O CAMINHO DO CENTAURO

Modo de leitura Os aforismos que apresento neste livro são o resultado de muitos anos de reflexões e pesquisas, na busca por um modo sintético e poético de comunicar algumas ideias acerca do estranho fenômeno da vida e do conhecimento humano. Os textos aqui agrupados não servem a um sistema de crenças, nem a uma ideologia candidata à salvação dos homens; não revela verdades eternas que dividem o mundo entre eleitos e infiéis, nem estratagemas que aprisionam as mentes em ingênuas utopias. Os aforismos contidos nesta edição perfazem um conjunto de pensamentos em trânsito, que estão em inconstante evolução. Diferentemente dos compêndios que buscam ser exaustivos quanto aos assuntos que definem, os aforismos são textos sucintos, metafóricos e alegóricos, que não têm a pretensão de esgotar os assuntos que abordam, mas se abrir a várias interpretações possíveis. Não devemos, então, confundir sua breve extensão literária com uma falsa simplicidade de conteúdo, mas determo-nos em seus parágrafos, para fazer emergir deles as mensagens que construiremos para nós mesmos. A apresentação das questões em formato aforístico visa evitar a armadilha da dissecação e da atomização dos discursos filosóficos em prosa – comuns ao desconstrutivismo ocidental –, para deixar ao leitor o trabalho pessoal de completar a

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mensagem, permitindo assim o compartilhamento das interpretações. O aforismo retoma a tradição que remonta à oralidade original, antes da escrita, quando os discursos eram breves e sintéticos, apropriados para a memorização. Resultado da experiência de muitas gerações, a sabedoria implícita nos aforismos por vezes não é imediatamente compreendida. Por isso a necessidade de serem repetidamente lidos e memorizados, até que o leitor capture o ensinamento oculto, por detrás das charadas do texto. Sem me deter apenas nos preceitos do pensamento contemporâneo, os aforismos que apresento aqui certamente refletem influências do Baghavad Gita, do Tao Te King e de outros textos ancestrais que alcancei através de vários estudos. Pautando-me, também, pelo pensamento de Heráclito e Epicuro, apresento este pequeno itinerário das inquietações humanas, em que se destacam alguns temas pertinentes. Com o propósito de estimular a leitura, foram concebidos diálogos fictícios, à maneira da antiga dialética, tendo como personagem central um investigador da condição humana (o Mestre Centauro) e vários outros personagens coadjuvantes, que propõem os temas para a reflexão. As imagens construídas a partir dos textos criam um conjunto de especulações éticas, vistas aqui como sugestões para uma reflexão do eu sobre si próprio, do eu para com os outros e para com o mundo.

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A escolha do título deste livro refere-se ao Centauro mítico, metáfora da condição humana, que mescla o perceptivo (sensível e estético) e o lógico (racional e intelectual) em um só corpo – do mesmo modo como o Centauro é uma mistura de homem e cavalo. Embora os Centauros sejam conhecidos pela sua ira, violência e soberba (tal como boa parte dos homens), também produziram Quíron (Kairon), o sábio e bondoso Centauro, tutor de Aquiles e Jasão – famosa alegoria da capacidade humana de modular sua origem selvagem para conquistar a sabedoria necessária à construção de uma sociedade justa, livre e, sobretudo, ética. O Caminho, que dá ênfase ao título do livro, diz respeito a noções de transitoriedade, fluxo e movimento, que são mais bem avaliadas aqui, do que as noções de coerência, finalidade ou sentido. O Caminho do Centauro é bem isso: uma jornada sem finalidade, que visa muito mais a experiência humana, do que seu destino.

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9 _ Ó, Mestre Natural, fale-me dos dons da terra, de modo que eu possa imitá-los e preencher-me com o gozo da vida. – indagou o aprendiz. _ Eu sou aquele que sempre doa e assim, ofertando, recebo o mundo inteiro dentro de mim. O pintor contém em si todas as pinceladas que formam seu quadro, assim como o compositor tem em si todas as colcheias que brilham em sua sinfonia. Mas pode a pincelada definir o pintor? Pode a colcheia definir o músico? O homem é filho da natureza, assim como são seus filhos todos os elementos do universo. Qual deles mereceria preferência? O pintor cria a pincelada, mas esta não define

o quadro, nem conhece o pintor. O compositor acrescenta uma colcheia, mas esta não contém a sinfonia, nem desvela o teor da melodia. _ Então, não posso penetrar os desígnios da natureza? – perguntou o aprendiz. _ Até onde alcança a sabedoria do homem, se encontra o limite de seu entendimento da natureza. _ Como haveremos de amá-la, se não a conhecemos? _ Ó, malícia! Você não sabe sequer amar a si mesmo, porque desconhece suas próprias entranhas. Vaidade das vaidades; quer conhecer toda a natureza para somente então lhe oferecer a joia de seu precioso amor? Pois saiba que ela não precisa ser amada, nem tão pouco glorificada ou adorada e, muito menos, temida. Já havia um universo antes dos homens e continuará existindo após seu desaparecimento. Não será pelo muito amar que a natureza adiará o seu fim. _ Como haveremos de agradecê-la, então, por tudo que nos deu? _ Sem que pedíssemos, ela nos deu tudo o que têm. Nada lhe devem os homens, porque doar é receber o mundo inteiro dentro de si.

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_ Ó, Mestre do Erro, será verdade o que dizem a respeito da superioridade do homem sobre os animais? _ Minha pupila amada, eu sou aquele que doa a vida e a ofertando renasço todos os dias. Em alguns aspectos há diferenças entre o homem e os outros animais. Contudo, diferir-se não significa ser superior. _ Mas, o ser humano é sensciente; veja nossa sabedoria! _ Os outros animais também têm seu grau de autoentendimento. Por qual escala deveríamos nos medir? Se o homem se diz “a medida de todas as coisas”, não pode escalar as coisas por uma única regra.

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_ Entretanto, é fácil ver que os seres humanos são mais evoluídos... _ Ingênua aluna, da minha perspectiva não vejo assim. Se os golfinhos falassem a língua dos homens, certamente conheceríamos outra opinião a nosso respeito. O crocodilo e o tubarão têm milhões de anos terrestres e o Homo sapiens não mais que uns duzentos mil. Quem é mais evoluído: o que surgiu por último ou aquele, cujo desenho superou muitas eras? Você pensa na lógica e razão humanas. Porém, em comparação a que? Um dia os homens conhecerão outras formas de razão e lógica, outras línguas e conceitos que os deixarão humilhados diante do universo. _ Mas, ainda há vantagens em nossa espécie, não? _ Sim, existe a potencialidade. Mas não é o autoconhecimento que vai nos distinguir. E sim, a ciência do amor. A empatia é o passo decisivo da humanidade. Conheça mais de si mesmo e ame-se. Assim, poderá ser um com o outro. Confunda seu interior com o interior do outro. Projete-se no outro e o reconheça como extensão de si mesmo.

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Estar ciente de si mesmo, os animais também estão. Que vantagem há nisso? Outro capítulo da história será escrito quando o homem se tornar ciente do próximo. Eis o sensciente.

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14 _ Ó, Mestre da Terra, embora não gozemos de qualquer preferência da natureza, mesmo assim teria o ser humano um lugar privilegiado entre as coisas? _ Privilégio e hierarquia são atributos da ignorância na qual ainda se debatem as mentes e os corações humanos. Veja as estrelas do céu. São todas belas, mas você não consegue me dizer quais delas são maiores ou menores, quais delas estão mais próximas ou mais distantes. Assim é como vejo as coisas: homens, orangotangos, baleias, vermes, árvores, flores ou sapos. São todos belos, porém de onde estou não os distingo.

_ Mas, entre os homens, não há os maus e os bons? _ Ouça o que foi dito: “O sol nasce para justos e injustos”. Eu, porém, lhe digo que há nisso mais verdade do que você quer ver. Pois, se entre vermes e homens eu não vejo diferença, porque apartaria os bons, dos maus? Nem todo o bem, nem todo o mal que o homem engendra, há de alterar um só ponto das leis naturais. Em nossa história, muito do que ontem foi certo, hoje é errado. Muito do que hoje é certo, amanhã será errado. Por quais atos alguém seria considerado mau? Por quais atos alguém seria considerado bom? Certamente, a lei do homem julga pelo seu tempo. E assim deve fazê-lo. Contudo, aquele que vive todos os tempos em si, sabe: O que seria do mau trabalhador, se não tivesse à mão seu instrumento de trabalho, pronto para o serviço? O que seria do bom trabalhador, sem o seu instrumento de trabalho? Por isso, o sol precisa nascer para os bons e para os maus.

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16 _ Ó, Mestre do Caminho, há talvez numa palavra, o melhor conselho para a vida plena? _ Eu sou aquele que sempre pensa e, assim refletindo, concebo o mundo inteiro dentro de mim. Ouve novamente o que foi dito: “Ama o próximo como a si mesmo”. _ Ó, Mestre, muitos já disseram isso e, todavia, matamo-nos uns aos outros; o ódio grassa; o egoísmo triunfa. _ E, no entanto, nos opomos ao ódio hoje, mais do que no passado, e combatemos o egoísmo agora, mais do que antes. Por que digo isso? Lentamente, como o escorrer do óleo da palmeira, os homens vão se entendendo e

descobrindo que não há como amar ao próximo, sem antes amar a si mesmo. A maior vítima do injusto é ele próprio. _ Mas, aos olhos do mundo, o injusto parece impune. _ O guloso não é vítima de sua própria gula? O bêbado não é vítima de sua própria sede? Ora, também será vítima de seu próprio dom, a pessoa que dele não fizer justo uso. Não tenha dúvidas de que a vida cobra caro de quem não ama a si próprio.

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18 _ E se você pudesse me dizer no que se resume sua filosofia, o que me apresentaria como prova? – perguntou um estranho, olhando angustiado para o Mestre. _ Em verdade... – disse, pensativo, o velho Centauro –, posso lhe dizer que a generosidade é como a água: matriz da vida! Calma e profunda no lago, alegre e ligeira no riacho, sempre diferente, mas ninguém lhe dá valor. Escolhe o lugar mais humilde, mas segue a lei do menor esforço. _ Então, toda sua busca se resume na generosidade? – insistiu o viajante, atordoado.

_ A generosidade é como a água: matriz da vida! Dela nascem todos os seres vivos e tudo o que é bom. – respondeu o Centauro, levantando seus olhos do livro que lia – Nela navegam os projetos que dão certo; veículo da fartura e da multiplicação. Contudo, não se iluda: a ingratidão é da natureza das pessoas. Seja generoso sem pensar no retorno, caso contrário se tornará refém de seu próprio gesto. Seja generoso, mesmo quando esse gesto pareça contraditório, na pior das situações. Seja generoso por si só. Não espere qualquer retorno por isso: Não há! Não espere graça ou perdão: Não há! A generosidade que espera retorno é troca, não é doação. Quem troca já recebeu sua recompensa, mas quem doa pela generosidade recebe o mundo inteiro dentro de si.

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_ Ó, Mestre do Caminho, quais seriam os gestos mais sábios que nos levariam à felicidade possível em nossa parca existência? _ São dez – indicou o Centauro –, as principais sendas do gozo:

Ouça

Seus ouvidos lhe oferecem o dom de receber o mundo dentro de você. Sua mente se expande até a origem dos sons, tornando-o gigante, para além de seu próprio corpo. Este é um dos mais belos sentidos do gozo. Ouça os pássaros que cantam. Voe com eles. Ouça os trovões distantes. Alcance a sua força que desaba em chuva.

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Ouça a chuva, o latido do cão, o sorriso da criança, uma declaração de amor. Os sons ampliam o sabor da existência. Escute a música. Combinação harmônica dos sons arranjados para o exclusivo sentido do gozo auditivo. A música enriquece a vida e oferece outra dimensão da existência. Sua harmonia alinha os pensamentos, seu ritmo aplaca o caos dos sentimentos e sua melodia recarrega as energias. Escute as vozes. A dimensão da palavra falada está além da escrita. Línguas, dialetos, gírias, tons, timbres, a voz que encanta, a voz amiga. Ouça profundamente tudo à sua volta e haverá mais gozo em sua vida.

Deguste

O mais humano dos cinco sentidos do gozo é o paladar, desprezado pela pressa com que as pessoas engolem a comida e a bebida e pela grosseira mistura de condimentos picantes que anestesiam o sentido do gosto. O paladar é um privilégio refinado pela natureza. Nele há uma sabedoria e um mundo a ser descoberto. Torne-se ciente dos sabores que circulam pela sua boca. A língua que sabe mais, fala menos, e amplia a sabedoria do gozo.

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Veja

Dos cinco sentidos do gozo, a visão é o mais analítico. Mas, é preciso ver além do olhar. Enxergar, além do ver. A visão é um portal de acesso do homem ao universo. O olho define, traduz e julga. O olho bom interpreta bem. O olho mau confunde os sinais. Torne-se ciente de seu olhar e transporte para seu íntimo todas as imagens de cada dia. Perceba o detalhe, não perca a paisagem. Transforme seu olhar na imagem do prazer e do gozo contínuo da vida.

Cheire

A natureza privilegiou os seres com o dom do olfato, que salva a vida e encontra o alimento para os habitantes da floresta. O ser humano que não percebe o perfume e o odor de tudo em sua volta vive uma vida menor. A memória do odor permite o reconhecimento do mundo. A sabedoria deste sentido do gozo enriquece a experiência humana. Quem aguça o faro penetra a dimensão do invisível.

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Contate

Formada da mesma estrutura do cérebro, a pele é o saber pelo lado de fora – a pele é a mente exterior. O ser humano tem a pele nua para melhor perceber o mundo em sua volta. Quem evita o contato embota a sabedoria. O contato humano aproxima as pessoas do saber. O contato entre as pessoas é a maior experiência da mente exterior. Experimente com as mãos, com o rosto, com todas as partes de seu corpo. Torne ciente e saboreie todo prazer advindo de sua mente exterior. Goze o sentido do tato. Contate sempre e conecte sua mente exterior às mentes exteriores dos outros. Eis o orgasmo.

Proteja

Os cinco sentidos do gozo merecem contínuo estímulo. Somente um corpo saudável oferece aos sentidos, o abrigo devido. Proteja a casa dos sentidos. O corpo é a morada do gozo. Não entorpeça as suas sensações. Não intoxique as suas emoções. O coração que bate livre no peito oferece arrimo ao mais vivo desejo. Somente aquele que bem protege seu corpo tem reserva de vida para experimentar o gozo.

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Ame-se

Olhe para o espelho de sua mente e, secretamente, seja sincero consigo mesmo, no abandono de seu mais íntimo eu. Sinta e deixe fluir livremente sua real natureza. Perceba: Quando me nego, nego os outros. Quando me condeno, condeno os outros. Quando me flagelo, flagelo os outros. Quando me torturo, torturo os outros. Eu nada faço aos outros, sem antes ter feito a mim mesmo. Assim, quando estou faminto, tenho dificuldades de dividir o pão e ofereço a fome aos outros. Quando estou com frio, não tenho vontade de partilhar o cobertor e estendo o desabrigo aos outros. Quando estou sedento, receio oferecer um gole de água e perpetuo a sede nos outros. Quando estou com medo, não sei como doar conforto e alongo o tormento alheio. Quando odeio, não posso experimentar a compaixão e perpetuo a rivalidade entre todos. Mas, quando me sinto saciado, confortável, confiante e em paz, posso olhar com clareza o que está em minha volta e ser o multiplicador da compaixão entre todos. Aquele que não ama a si próprio, não poderá amar ao próximo como a si mesmo.

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Medite

Reduza seu movimento até o silêncio completo. Feche os olhos e mergulhe no leito secreto de seu íntimo. Esvazie a mente do mais remoto pensamento. Entre no mundo do não-entendimento. No reino do nada, não há alto nem baixo. Todas as coisas perdem seu rumo. No repouso flutuante dos sentidos, se restaura a energia vital. O periódico exercício da meditação garante a plenitude da saúde mental.

Promova a comunidade

O homem é um animal gregário. Definha no isolamento e cresce no convívio de seus pares. Tanto quanto precisa de alimento e vestes, o indivíduo depende de sua comunidade para viver. Uma comunidade com pessoas uniformes é um jogo de espelhos e um labirinto onde a mente se perde. A comunidade precisa da diversidade entre as pessoas para prosperar. Se todos são diferentes, duas pessoas não ocupam a mesma posição no espaço social e todas as funções são preenchidas. O elo que mantém unida a comunidade é a diversidade entre seus integrantes. A diversidade depende dos pactos de não-agressão entre uns e outros. Toda política se resume em negociar pactos de não-agressão.

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Quando não há fome, o banquete não agride. Quando não há doença, a luxuria não agride. Quando não há miséria, o lucro não agride. Quando não há farrapos sobre os corpos, as joias não agridem. Quando não há barracos nem favelas, os castelos não agridem. A homogeneidade é quase sempre uma violência, mas a diferença é uma poção de botica: dependendo da intensidade pode curar ou matar. Para que as pessoas usufruam de sua diversidade, a comunidade precisa promover constantemente seus pactos de não-agressão. Conserve Dentre tantas espécies que já passaram pelo mundo, o ser humano é uma das mais recentes. Inquilino novo em albergue velho, não tem privilégio de veterano. Apesar de parecer ciente na maior parte do tempo, essa condição humana lhe empresta o papel de guardião das outras espécies, não o de senhor da natureza. O homem é a parte do mundo que adquiriu lucidez. Mas, como partícula que pertence ao todo, não pode sobreviver sem a natureza. Se a saúde pública fosse entendida corretamente, uma de suas maiores preocupações seria a preservação do mundo natural.

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O Centauro é aquele que se torna um só com a natureza. Respira sob seu ritmo. Inspira-se em sua cadência.

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28 _ Ó, Obscuro Sábio, agora que estudo e medito acerca de suas sendas, como devo me chamar, se me perguntarem a quem eu tenho por mestre? _ Eu sou aquele que engendra o gozo e, assim, experimentando, concebo o mundo inteiro dentro de mim. Não me siga, perceba-me. Não me louve, perscrute-me. Não me tema, desafie-me. Não me clame por graça, liberte-se a si próprio. Assim fazendo, quando lhe chamarem diga seu nome: humano.

_ Mas, Mestre, hão de me impingir um apelido.

_ Em todos os tempos florescem as filosofias do entendimento da vida. Muito do que se ensina é bom. Mas os homens, com sua soberba desmedida ou querem negar a própria condição, buscando significados mais além, e são chamados de crentes; ou não veem na vida mais do que o gozo entorpecido da luxuria, chafurdando no caos e são chamados de descrentes. Um condena o outro e ambos se livram do caminho. Tendo por alicerce o corpo que compartilha com os animais, o humano é um vetor para o desconhecido. Cego ou orgulhoso é aquele que não entende sua condição de centauro.

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Quem é aquele que passa? De gestos largos e tranquilos. De semblante franco e sereno. Parece um errante meditativo.

Quem é aquele que passa? Que acha fácil sorrir sozinho. Cumprimenta os cães, como quem acena aos vizinhos. vista.

Quem é aquele que segue? Parece pleno de alegria. Não se importa de ser visto como fútil. Ri do mundo como se fosse uma alegoria. Ri de si mesmo como se faltassem palhaços à

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Quem é aquele que goza? Como se tocasse a vida pelo que lhe aprouvesse. Como se exaltasse por todos os sentidos. E exalasse saúde por todos os poros.



Quem é aquele em transe? Esse é mesmo o Centauro.

Os seus sentidos sintonizam o gozo da vida. Aprendiz da sabedoria que os sentimentos revelam. Sua vida é doação de seus talentos a quem precisa. Doa com generosidade, mas não sabe ser pródigo. Doa com parcimônia, mas não chega a ser avaro. Ele é mesmo o Centauro! Vive a vida pelo presente. Desconhece a esperança. Trocou o seu destino pelo amor à liberdade. Não espera perdão, graça ou salvação. Busca a autonomia da comunidade. Desconfia do governo e fomenta a fraternidade. Reconhece sua origem no fundo da floresta. Não sabe a diferença entre um homem e uma besta. E defende a natureza como quem preserva a própria vida. Imita o curso do rio.

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Suave, ligeiro e cristalino. Cultiva o ócio criativo e estica o tempo do prazer. Vive a lógica da paixão. A razão divertida das manias. Eis que este é mesmo o Centauro! Que pelo prazer, vive por vez, cada um de seus dias.

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33 _ Ó, Mestre do Gozo, quem são essas pessoas atormentadas, de olhos injetados, que passam pelas ruas em procissões de zumbis? Seriam eles os flagelistas de que se falam? _ Filha querida! Eu sou aquele que percebe e, por meio dos afetos, encontro o mundo inteiro dentro de mim. Quem agradece o dom da vida com o tributo da dor e do tormento, paga duas vezes pelo que não tem preço. Quem transforma sua vida em martírio, pela esperança em outra vida, paga duas vezes pelo que é de graça. Quem suporta o peso de uma provação pelo

temor de um carma, paga duas vezes pelo que não vale nada. Da primeira vez, paga com a vida perdida. Da segunda vez, paga pelo sofrimento inútil. A felicidade é gratuita. O mundo só faz oferecer suas dádivas, sem nada pedir em troca. O flagelista é aquele que teme a abundância, porque é avaro de coração e só compreende o preço da carência. O flagelista é aquele que abomina a alegria, porque pensa que o gozo rouba a autoridade do sofrimento e desperdiça o sacrifício da agonia. O flagelista é aquele que evita a felicidade, porque o amor se realiza no presente e dispensa a esperança no futuro. Um sádico e um masoquista são versos da mesma moeda que vale um flagelista.

Com o seu temor, ele é o arauto da morte. Com sua fé, ele é o sentinela da intolerância. Com sua esperança, ele é o algoz da vida.

Este é o flagelista: pobre coitado que se arrasta pela vida acumulando lágrimas como créditos misteriosos – seus investimentos sacrificiais em condomínios do além. Flagelista, pobre danado, perde sua vida ao apostar numa promessa. Não seria melhor gozar esta vida, que se arriscar naquela?

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Pois, em verdade lhe digo, que para quem não se contenta com esta vida, o paraíso de nada adiantaria.

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36 _ Ó, Mestre Feliz, se não há diferenças de valor entre as espécies da natureza, como podem os homens se justificar como seres originais? _ Tudo o que lhe parece útil, se define pelo que lhe parece inútil. Aos animais não é dado conhecer os limites; tudo o que fazem é útil. Somente aquele que conhece os limites pode superá-los. Além dos limites do que é útil estão as artes. _ Ó, Mestre Misterioso, seriam inúteis as artes? _ Quanto mais inútil é o entendimento da arte, tanto mais reconhecível o limite do que é útil.

Úteis são a comida, a proteção, a reprodução e todas as exigências da natureza. Inúteis são a música, a poesia, a escultura, o teatro e todas as manifestações artísticas. Mas, de fato, nada define tão bem o humano como a amplitude de sua arte. Nada mais aproxima o humano da sabedoria, que a profusão de sua arte. O humano é o centauro mítico; meio bicho, meio deus. Pelo útil, sacia o físico. Pelo inútil, sacia o eu. Ai, do indivíduo, que vive pela utilidade. Melhor seria baixar-se e pastar a relva dos prados. Aquele que desdenha da arte está fora de si. Aquele que se manifesta pela arte, já é em si. Aquele que não ama a arte, não conhece a si próprio. Aquele que semeia a sua arte presta homenagem ao próximo. Ouve o que foi dito: “a arte é longa e a vida é breve”. Eu, porém, lhe digo que aquele que vive pela arte não conhece a morte.

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38 _ Ó, Mestre Centauro, dizem os flagelistas ser a essência sempre mais importante que as formas das aparências. Isto é verdade? _ Eu sou aquele que é concreto e com a minha forma me conformo com o universo. O que faz de uma taça o que ela é: o vidro que lhe dá forma ou seu vazio interior que contém o vinho? Sua forma ou sua função? De fato, nem a melhor resposta põe termo a esta questão. Não existe conteúdo sem aparência! Não existe função sem forma! Mas existem formas sem função – e estas são mais abundantes no mundo. Forma com função é símbolo – pois junta duas coisas, como uma palavra e seu significado.

Forma sem função é diabo – pois mantém duas coisas separadas, como uma nova forma que não tem função. Formas sem função são: O desconhecido O novo O criativo O estético O artístico O sagrado O diabólico Símbolos são formas conhecidas, cujo conteúdo e a função já foram estabelecidos pela cultura. Diabos são formas desconhecidas, cuja aparição demanda atenção, estudo e apreensão. Diabos e símbolos formam aquilo que o homem precisa conhecer para adaptar-se ao ambiente semovente. Não há função sem forma. Mas as formas sem função devem ser o alvo da curiosidade humana. A vida humana depende da circulação do que entra como novo e do que sai como velho. Velhas formas simbólicas perdem suas funções. Só as formas diabólicas podem abrigar novas funções. _ Então, o que vale mais: a forma ou a função? – perguntou o Centauro à aprendiz. _ Mestre, se não há função sem forma, esta vale mais do que aquela!

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_ Em verdade lhe digo, formosa aprendiz, que a função de uma forma é arbítrio humano. As formas da cultura não gozam de funções naturais. Mesmo a mais importante das funções não pode existir sem uma forma que lhe dê vida. Conteúdos, substâncias, essências e abstrações são parasitas de formas que dão suporte a seus significados.

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_ Ó, Mestre Dadivoso, será verdade o que dizem os flagelistas acerca do dever de multiplicar a presença do ser humano no mundo? Não são eles os mesmos que chamam o mundo de vale de lágrimas? Por que aumentar o número daqueles que pranteiam nas sombras? _ Ouve, caro aprendiz, o que foi dito no passado: “Crescei e multiplicai”. Eu, porém, lhe digo que os homens já cumpriram este mandamento. Houve um tempo em que a Terra era grande e os homens pequenos em número. Hoje, a Terra é pequena e os homens, inúmeros.

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Do prato em que se alimenta um, comem dois. Mas não comem dez. No lugar onde vive um, moram dois, mas não habitam dez. A água que sacia um, satisfaz a dois. Mas não tira a sede de dez. Os vestidos que cobrem um, também protegem dois. Mas condenam dez à nudez. O avarento e o pródigo são dois cegos de mãos dadas. Ambos vão ao abismo. Não há generosidade que o pródigo não avilte ou o avaro não obstrua. Saiba, contudo, que a abundância de um, pode criar a satisfação de dois, como também a miséria de dez. O pão que alimenta um, serve a dois, mas provoca a guerra em dez.

A Terra não é só morada dos homens. Os homens são novos inquilinos. Quando a casa é pequena e o pão escasso, não é possível multiplicar seus habitantes. A miséria não está no mundo, mas nos homens.

_ Ó, Mestre do Adverso, não seria errado evitar o nascimento de seres humanos? _ Discípulo amado, olhe em volta e veja que a árvore não dá frutos o tempo todo, assim como o ninho das aves só surge conforme o alimento do campo. Só os homens têm mais filhos do que podem sustentar.

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43 Pensou o Centauro: eu sou aquele que pulsa com a manifestação da vida e em sua respiração todo um mundo se agita. O poder é o poder de impor a culpa. A culpa é a moeda da servidão.

Se o governo lhe culpa, você está obrigado a ele. Se o sacerdote lhe culpa, você está obrigado a ele. Se eu lhe culpo, você está obrigado a mim. Se você se culpa, está obrigado a todos.

Mas, se ninguém me culpa, sou inocente. A natureza é inocente por que age sem conhecer a culpa.



Pois seja natural e ganhará sua inocência.



A mente é o lugar da culpa. O corpo é o lugar da inocência. Meu corpo é minha parte da natureza.



Inocente é o desejo; quem o culpa é o homem. Inocente é a paixão; quem a culpa é o homem. Inocente é a sensação; quem a culpa é o homem. Inocente é o amor; quem o culpa é o homem.

Meus olhos são inocentes; minha mente culpa o que vejo. Meus ouvidos são inocentes; minha mente culpa o que ouço. Minha pele é inocente; minha mente culpa o que toco. Minha língua é inocente; minha mente culpa o que saboreio. Meu olfato é inocente; minha mente culpa o que cheiro. Meu coração é inocente; minha mente culpa o que sinto. A natureza é inocente. Meu corpo pertence à natureza. Minha mente não quer que eu sinta, mas que eu pense. O pensamento é culpa. O sentimento é inocência.

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O homem é um animal social. Definha no abandono forçado. Entre os seus semelhantes desenvolve melhor suas habilidades. Viver entre semelhantes é formar uma comunidade. Manter unida a comunidade sempre foi o maior desafio.

Foi tentada a união pelo mito. Teve seu tempo, mas se extinguiu. Foi tentada a união pela fé. Com o tempo, mais dividiu que uniu. Foi tentada a união pela força. Mas o medo não é alicerce social.

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Buscando unir-se, há eras os homens se dividem. Todavia, vem surgindo uma ideia. O melhor cimento se encontra na assembleia. A base para o convívio humano está num terno afago. Está num simples gesto. E pode mais que um verdadeiro tratado. A chave mais preciosa para a união é o amor. Sentimento a que estão aptas todas as pessoas. O amor é apenas um, mas se manifesta de variadas formas. Tendo o amor como norma, a sociedade prospera. O homem é novo no mundo. Mas seu corpo é fruto da terra viva do planeta. Seu amor atávico nasce da natureza. Toda flora, toda fauna, toda água, toda terra. O perfume do orvalho e a fina brisa da madrugada. Os sentidos do gozo se exaltam com o êxtase pela terra. Na proximidade de seus semelhantes sobrevém o amor à humanidade.

Homens e mulheres de todas as cores. Mulheres e homens de todas as línguas.

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Homens e mulheres de todas as culturas. Mulheres e homens de todos os tempos.

Ver em todos a imagem de cada um é abraçar o mundo com um gesto fraterno. A mais sutil das ciências da doação está na capacidade de entender o amor. O mais sutil dos sentidos da doação é reconhecer a todos como irmãos. Mães, pais, filhos, tios e primos. A família é o ensaio da fraternidade. O treinamento da paixão. O primeiro momento do amor. O completo exercício do coração. E pelo sexo chegamos ao amor primordial. O toque erótico e sensual que desperta a sabedoria da mente exterior. Uma estranha razão se instala no coração. Sua lógica se impõe com o golpe do êxtase. A dimensão humana se expande ao infinito. Masculinos e femininos se cruzam indefinidos. Todos os corpos são despidos de limites. O O O O O O

amor amor amor amor amor amor

assume sua dinâmica. reúne o inconciliável. rompe as cercas. acalenta as feras. supera os limites. ultrapassa as eras.

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Todas as formas de amor são inocentes. Todas as formas de amor são belas.

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15 49 _ Ó, Mestre Inocente, vexa-me perguntarlhe sobre aquilo que tanto o mundo quer saber: é preferível ser rico ou pobre? – inquiriu a aluna. _ Eu sou aquele que festeja a vida e, assim gozando, renasço a cada dia. Ricos e pobres têm vidas perigosas. Por que não há outra escolha entre os homens? O universo está pronto para ser veículo da felicidade do homem. Mas, os pobres não sabem onde estão as ferramentas da fartura. Os ricos, que as encontraram, não sabem usá-las de modo adequado. O pobre não tem um prato de comida sequer. O rico dispõe de dez pratos repletos da mais

fina iguaria, embora não desfrute de três. Os sete pratos restantes se perdem no ritual da ostentação. _ Os homens conseguiriam se igualar numa sociedade sem distinções? _ A diversidade natural entre as pessoas conspiraria contra a mais igualitária das comunidades. A diversidade entre os humanos é a base da sua liberdade. Ser livre é ser diferente. Some suas diferenças e as multiplique pelas de seus irmãos. O universo da natureza humana explodiria em infinitas opções. Quando não há diferença, a morte se apresenta. Todavia, quando há muita diferença, o contraste envenena. _ O que fazer, então, com os sete pratos de fina iguaria? _ Mesmo que, na partilha dos pratos, o rico tenha ficado com muito mais do que o pobre, a produção desta riqueza é trabalho conjunto da comunidade. Ora, pois, que descubramos então, um meio de abrandar esta assimetria. A natureza criou a diversidade, mas os homens a puniram.

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51 _ Ó, Mestre da Liberdade, se pobres e ricos têm vidas perigosas, seria certo buscar a segurança na igualdade entre os homens? _ Aprendiz maliciosa! Seja pelo berço, pelo ambiente, pela cultura ou pela genética, as pessoas se diferem e, portanto, têm vidas diferentes e veem o mundo por outros prismas. Assim como a pobreza, a riqueza também tem sua qualidade original. Rico é aquele que possui os bens. Pobre é aquele, cujos bens lhe possuem. Rico é aquele que se alimenta de iguarias. Pobre é aquele, cuja iguaria o alimenta. O rico é o senhor de sua casa.

O pobre é aquele, cuja casa o assenhora. Rico é o que sacia a necessidade. Pobre é o que a necessidade escraviza. O rico é o garimpeiro da abundância. O pobre é o fiscal da carência. Rico é aquele que goza da generosidade do universo. Pobre é aquele que vive a avareza do deserto. Há ricos que são pobres. Há pobres que são ricos. O verdadeiro rico não se fia em suas posses, mas no engenho com que germina a riqueza. O verdadeiro pobre não se define pela pobreza, mas pelo empenho com que acredita na miséria. O rico que é pobre usurpa a diversidade, crendo na fatalidade. O pobre que é rico promove a diversidade, ampliando a liberdade. Não turve seu coração no desprezo pelo rico ou no apego pelo pobre. Em verdade lhe digo que há muitos ricos entre os pobres, assim como pobres entre os ricos.

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_ Mestre, porque dizem por aí que o dinheiro é a desgraça do mundo, seria essa invenção do homem sua própria ruina? _ Eu sou aquele que necessita, pois meu nome é homem. Quando a satisfação de minha necessidade também satisfaz a necessidade alheia temos um justo comércio de valores. Houve um tempo em que o homem trocava uma lança afiada por couro curtido, carne defumada por lã tecida, cestos de fibras por colares de concha, coisas por serviços. Tempos depois, inventou-se o dinheiro como símbolo dos contratos de juramentos que valiam por coisas, produtos e serviços.

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Depois de um tempo todos concordaram que o dinheiro era um meio para representar as coisas e serviços, com a finalidade de satisfazer as necessidades. Por muito tempo produziam-se coisas e prestaram-se serviços para trocá-los por dinheiro, com a finalidade de adquirir outras coisas e serviços. Mas, com o tempo, acumular dinheiro tornouse a própria finalidade. Logo, as trocas se fizeram assimétricas e alguns passaram a dispor de mais dinheiro do que outros. Quando o dinheiro é usado como meio, a finalidade é satisfazer as necessidades de todos. Quando o dinheiro é usado como finalidade, não há meios de satisfazer as necessidades de todos. Assim, o dinheiro deixa de ser uma representação do valor dos bens, para se tornar um bem que representa todos os valores. Aqui, o dinheiro se transforma em linguagem de representação de valores e crenças. O dinheiro produz verdades tal como a linguagem. Quando o dinheiro disputa com o verbo, produz mais verdades do que a palavra alcança – o dinheiro cala a boca!

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Os flagelistas temem o poder que o dinheiro tem de representar as coisas, de maneira mais eloquente do que a palavra as significam. O dinheiro, como signo de uma linguagem, constrói sua própria realidade, tal como a palavra cria os seus mundos utópicos. Quando alguns se batem contra o dinheiro, lutam contra a comercialização de todos os valores, antes mediados pela palavra sagrada. Trata-se de uma querela simbólica: a palavra e o dinheiro são signos de linguagens em guerra. Se conhecêssemos melhor essas duas linguagens encontraríamos meios de superar sua rivalidade inútil. A palavra só representa ideias que a coletividade lhe atribui. O dinheiro só representa valores que a coletividade lhe atribui. Palavra e dinheiro representam ideias e valores que constroem e destroem mundos. Palavra e dinheiro criam mundos obscuros de onde provêm os monstros da razão. Quando a palavra e o dinheiro deixarem de designar ideias, valores e crenças para voltar a representar produtos e serviços, a simetria do comércio retornará a seus propósitos.

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_ Mas se isso não vier a ocorrer, Mestre? _ O significado da palavra perderá a guerra contra o sentido do dinheiro.

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57 _ Ó, Mestre da Fortuna, como pode o ser humano afastar-se da miséria? _ Eu sou aquele que labora na germinação e, fazendo florescer, o mundo me frutifica. A água parada alberga o germe da morte. A água corrente sustenta a semente da vida. A generosidade é o dom da abundância. Quem doa com alegria move a roda da fortuna. Quem acumula fartura transforma riqueza em carência. _ Mas, não é o pródigo que avilta a generosidade? _Assim como o avaro, também o pródigo não entende o que é a generosidade.

Sem dúvidas posso lhe dizer que é doando que se recebe, enquanto que retendo se perece. A generosidade é o dom da abundância. Quem doa compaixão, recebe amizade. Quem doa carinho, recebe amor. Quem doa alegria, recebe felicidade. Quem doa um lago, recebe o mar. Mas, quem doa a indiferença, recebe a dor. Quem doa a dor, recebe o mal. Quem doa o mal, recebe a morte. Assim como a semente se transforma em árvore, também a generosidade é o dom da abundância. Assim como um gesto germina um acordo, também um aceno sela um reencontro. Assim como a vida se obtém de um óvulo, um só perdão pode baixar a maré do ódio. A abundância é a multiplicação do esforço individual. Para o seu sucesso, a comunidade é o elemento vital. A abundância é atributo plural; não há fartura que se multiplique no singular. Se a generosidade é o dom da abundância, o outro é a sua condição real.

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59 _ Ó, Mestre da Manhã, devem as pessoas doar sempre de si em todo momento, sem olhar a quem? _ Eu sou aquele que sempre oferece e, assim ofertando, recebo o mundo inteiro dentro de mim. A doação é o supremo ato da satisfação pessoal. Aquele que sinceramente doa de si, tem uma vida abundante. Mas, a sabedoria consiste em doar o que é realmente necessário. Mais para uns, menos para outros, isso para esses, aquilo para aqueles – doe desigualmente aos desiguais. A doação é como a semeadura da abundância.

Porém, como qualquer semente, precisa do solo correto. Não semeiem cactos no pântano, mas no deserto. Não semeiem grama nas pedras, mas nos prados. E não plantem árvores nas rochas, mas nos vales. _ Mas há tantos que precisam de tantas coisas, ó Mestre! Como distinguir a quem doar? _ Por vezes, há cegos que não querem a luz, mas apenas uma bengala. Dê-lhes uma bengala. Às vezes, o analfabeto não quer aprender a ler, mas apenas que alguém lhe diga para onde aponta a placa. Mostre-lhe e lembre-se do que foi dito: “É preciso iluminar sem ofender as trevas”. Eu, porém, lhe digo que aquele que obriga os outros a aceitar uma verdade, um favor ou uma dádiva, não está crescendo na doação, como também está diminuindo o beneficiado à condição de pária. _ Entretanto, por vezes, está muito clara a necessidade da ajuda. _ Se você, querida aprendiz, amasse a si própria corretamente, saberia que ninguém tem gosto em se submeter a verdades, receber favores e caridade alheia. Por isso, o ato da doação deve ser suave, quase secreto. Sábio entre os homens é aquele que reconhece a pessoa certa, o momento exato e a dose correta para a doação.

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20 61 Ninguém doa do que não tem. Só se doa o que se tem. Se você tem amor, doa amor. Se você tem ódio, doa ódio. Você sabe o que tem para doar? Quem doa de si qualquer coisa para qualquer um, em qualquer tempo ou lugar, prejudica a si próprio e ao outro. Quem doa sem medida é o mesmo que oferecer frutos verdes – não doa o melhor de si e envenena o outro. Para doar de si é preciso parcimônia e engenho. Para ser doado o fruto maduro exige seu tempo.

Mas nenhum fruto amadurece ao nosso ensejo. Por isso, nem sempre é tempo de doar de si. Não se doa antes, nem depois do tempo. Não se doa tudo, mas apenas o suficiente. A fonte que doa sua água até secar sacia alguns com abundância, mas condena os outros à sede atroz. A árvore que tem todos seus frutos colhidos não se reproduz para a posteridade. Alguém que se esvai em doação logo adoece de carência e condena o futuro à desolação. Doação é uma ciência que prospera na equidistância entre prodigalidade e avareza.

A correta doação: Não é anunciada. Não é desleixada. Não é provisória. Não é parcial. Não é negligente.



Mas, nem todos: Querem algo de você. Merecem algo de você. Precisam algo de você.

Doe quando quiser e puder, mas não doe por dever. O dever de doar não é doação, mas a sina de uma obrigação.

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21 Governos são como lâmpadas. Quando iluminam demais, eliminam os contrastes e desarmonizam a sociedade. Quando iluminam de menos, espalham sombras e trazem a divisão à comunidade. Iluminar a sociedade com a intensidade correta exige sabedoria dos governantes. Governantes sábios são uma rara minoria. Por isso, a sociedade deve se autogovernar. entre

O governo tem os seus propósitos. O mercado tem os seus propósitos. A sociedade tem os seus propósitos. Quando os três propósitos não concordam si, a sociedade perde.

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O governo diz que seu propósito é servir. O mercado diz que seu propósito é servir. Mas, ambos, querem se servir da sociedade.

No mundo, os fortes são em menor número. Os fracos são inúmeros. Governantes e mercadores são fortes, mas são poucos. Governados e clientes são fracos, mas são muitos. Na conta dos indivíduos, a justiça está com a maioria. Nas contas do governo e do mercado, o direito está com a minoria. Quando a justiça e o direito convergem, todos os indivíduos são governantes e mercadores. A força do governo e do mercado é o direito. A força da sociedade é a união. Indivíduos em associação governam pelo governo e produzem pelo mercado. Promova a comunidade.

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Interrogado por um burgomestre, se sua filosofia trazia algum bem para a comunidade, o Centauro lhe respondeu: _ Todo governo sobre as pessoas se assemelha ao império de lobos sobre ovelhas. Ai, da comunidade de indivíduos, que se divide entre governados e governantes. Pois aquele que se deixa governar entrega sua liberdade alhures. – disse isso, causando espanto no dirigente. – Os poucos que governam – continuou o Centauro –, subtraem a dignidade dos governados através de seu consentimento e de sua representação. Olho em volta e vejo que ninguém me representa.

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Somente eu posso fazer a minha parte pela comunidade. – exclamou o Centauro em voz alta, chamando a atenção dos que passavam. Todo governo é violento por princípio. – acrescentou – Mas será menos insidioso o que imitar a natureza, aparando os penhascos e preenchendo os abismos, trazendo simetria à paisagem social. Ouçam o que foi dito: “Dê a César o que é de César...” Eu, porém, lhes digo que a natureza não reconhece status social, não admite primazia, não tem honra. Então, o que é de César que não seja do povo? – anunciou, percebendo aplausos dos circundantes. Os governos querem tanger ovelhas e as pessoas não querem ser ovelhas. Só existe destino quando os outros fazem por nós aquilo que nós mesmos devemos fazer. Desde que ninguém lhes diga o que fazer, cada um pode ser o que quiser. Quem se deixa governar não ama a si próprio, nem pode reconhecer o próximo como irmão. Não há quem possa doar em nome do outro, nem mesmo o imposto devido ao governo é uma doação. Doação é um ato pessoal; as pessoas se definem pela capacidade de doar. Não está na natureza do mercado a doação, mas a troca.

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Nem mesmo o bom governo doa, mas apenas transfere aos fracos um pouco da abundância dos fortes. Afugenta a anarquia a comunidade que se autogoverna, pois é formada de indivíduos que se doam a um propósito.

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_ Ó, Mestre do Diverso, o que lhe parece melhor: a liberdade ou a igualdade entre os homens? – indagou a aprendiz. _ O certo é que não se pode escolher entre uma e outra. _ Não alcanço seu propósito, Mestre Centauro. Se todos formos obrigados a ser iguais, não haverá liberdade. Se a diversidade for muito grande entre nós, também não haverá liberdade. Mas, a verdade sobre isso não se encontra no meio termo. Milhares de livros foram escritos em favor da liberdade; milhares de outros, em favor da igualdade entre os humanos.

Uns creem que a liberdade se realiza quando todos são iguais. Outros acreditam que a igualdade impede a liberdade. Não há uma fórmula exata para tratar das relações entre estas duas grandezas da condição humana. A exatidão só se aplica a especulações abstratas. Liberdade e igualdade mantêm entre si relações necessárias, que nos impedem de lidar com uma delas, sem nos atermos também à outra. _ Seria possível escapar dessa gangorra existencial? – insistiu a aprendiz. _ A atração que a igualdade exerce sobre nós se deve ao modo como a mente significa as coisas: desprezando as diferenças entre os indivíduos para reuni-los por semelhanças. Mas, não somos conceitos, nem ideias e muito menos abstrações. O problema com a igualdade aparece quando vemos que nenhuma das coisas é realmente igual a outra. Não há um só humano que seja igual a outro homem ou mulher. Cada humano é um corpo real em um mundo material de coisas existentes. A ideia de igualdade provém da noção de identidade.

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Identidade é uma forma restrita de igualdade, que se deve ao desejo de pertencimento. O humano precisa participar de uma comunidade, como a família, o clã, a cidade. Traços, marcas, sinais de identificação fazem nos sentir iguais diante dos membros de nosso grupo social. A igualdade universal entre os homens é uma invenção da linguagem. Uma abstração linguística que se contradiz à realidade concreta. A palavra “igualdade” não tem o poder de alterar a diversidade natural do mundo. A igualdade entre os homens não pode ser estabelecida por abstrações, nem tampouco forçada por meio de cassetetes e repressões. A questão da igualdade só pode ser enfrentada em um ambiente de plena liberdade.

A origem da liberdade está na diferença. Não há liberdade nas relações de identidade, porque a promoção das semelhanças impõe-se contra a diversidade.

Ser livre é ser diferente.

Se a realidade é composta de diferenças individuais, a liberdade é uma qualidade do mundo natural. Ao se transformar e se diferir, o real é livre.

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O corpo do homem pertence ao real e se transforma todo o tempo. Assim, parece correto afirmar que o homem está condenado à liberdade. O respeito à diversidade dos indivíduos traz harmonia à sociedade. A supressão das diversidades em favor de uma igualdade artificial adoece a sociedade humana. Mas a liberdade humana não prospera em ambientes de muita diversidade e assimetria forçadas. Para alcançar a liberdade é preciso garantir igualdade espontânea. Pois a diferença entre um senhor e um servo não produz qualquer liberdade possível. A liberdade mantém vínculos com a igualdade entre as pessoas. Só quando a igualdade se apresenta como condição fundamental entre os humanos, a liberdade se torna uma afirmação de suas diferenças. Não se pode escolher entre a liberdade e a igualdade.

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24 _ Ó, Mestre da Doação, de onde vem a grande força do destino que nos arrasta para longe de nossos desejos e sonhos de liberdade? _ Eu sou aquele que observa a ordem da vida. Antes e depois de mim, estão o caos e a anomia. Ouve o que foi dito: “O acaso é o princípio da entropia”. Mas a vida é a negação provisória do caos e uma ilha de organização em meio à entropia. _ Então, o destino é uma força da vida? _ Sim. Por isso lhe afirmo que aquele que deseja e sonha com a liberdade deve flertar com o caos e a entropia. _ Como pode ser isso, ó Mestre da Obscuridade?

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_ Escapar da cadeia tenebrosa do destino significa romper com a ordem estabelecida. Mas se a vida é organização, o primeiro momento é de dor. O segundo momento é de reorganização. E no terceiro momento da liberdade, se forja a nova sina. _ Desse modo, estariam corretos os flagelistas, com suas advertências contra a rebeldia? _ Parar no tempo ou avançar no tempo carrega seus próprios riscos. Ao recusarem se mover de suas crenças os flagelistas também flertam com o caos e orbitam a entropia. Dizem que o humano é uma corda esticada sobre um abismo, mas não sabem quanta verdade há nisso. De um lado do abismo está o destino, de outro, a liberdade. _ Então, jamais será possível a plena liberdade? _ Cumprir totalmente o seu destino é ser presa da própria crença. Mas a liberdade plena está no reino da entropia. Veja os planetas que giram entorno das estrelas. Duas forças se contrapõem. Se deixar de girar, o astro menor é engolido. Se girar demais, o astro menor é expelido. Na harmonia dos movimentos se engendram a liberdade e o destino.

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25 74 _ Ó, Mestre Centauro, dizem os flagelistas que alguns podem estar destinados à dor, outros ao infortúnio e ainda outros à felicidade. Isto é possível? _ Eu sou aquele que ama e, por essa paixão, percebo a vida inteira dentro de mim. O peixe que desce a correnteza só faz as curvas que o rio lhe permite. As pessoas nascem marcadas pela nação, pela tradição e pelo clã. Crescem imitando os costumes, os mitos e os heróis. Vivem confirmando seus laços, crenças e esperanças. E morrem certos de que embalaram seus filhos no mesmo ciclo do destino.

Pela nação, lhes dizem quem ser. Pela tradição, lhes dizem quem foram. Pelo clã, lhes exigem a continuidade. Pelos costumes, lhes cobram o que fazer. Pelos mitos, lhes dão modelos do que ser. Pelos heróis, lhes dão exemplos a seguir. E pelas crenças, lhes repetem as verdades. Como escapar do destino traçado pelos outros, senão pelo rompimento da cadeia tenebrosa? Quem quer liberdade deve forjar seu próprio destino. Quem é livre não tem destino marcado. A vida é generosa em benesses. Quem inventou a miséria foi o homem. Assim, o destino do miserável não é da vontade do universo. A vida é generosa em benesses. Favoreceu a sabedoria das pessoas para que inventassem os remédios das enfermidades. O destino do doente não é a vontade do universo. A vida é generosa em benesses. Oferece a todos o benefício do amor. O destino das nações em guerra e os frutos do ódio não são a vontade do universo. Como a vida não traz a causa dos males dos homens, culpá-la não é sua salvação. Se o destino lhe oprime, busque a liberdade capaz de superá-lo.

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_ Ó, Mestre, os que fugirem de seu destino não perderão o seu mundo? _ Quem escolhe voar mais alto não reencontrará descanso no velho ninho – pois não será mais reconhecido pelos que ali permaneceram, nem se reconhecerá como pertencente ao seu passado. O caminho da liberdade é solitário, mas o prazer em percorrê-lo é indescritível.

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26 77 _ Ó, Mestre da Liberdade, seremos nós, os humanos, responsáveis absolutos pelos nossos atos? Por que levantamos o braço num gesto brutal, quando nosso coração queima por segurá-lo? Por que retemos a mão amiga, negando a carícia, quando nosso desejo insiste no afago? _ Eu sou aquele que é um com a vida. E pela minha indistinção, o universo me inspira. Quando nasce uma criança, seus próximos lhe tecem a personalidade com retalhos culturais. O seu sexo é um retalho. E também a sua libido. O seu alimento é um retalho. E também o seu gosto.

A sua vestimenta é um retalho. E também o seu estilo. A sua língua é um retalho. E também o seu pensamento. A sua posição social é um retalho. E também a sua visão de mundo. A sua profissão é um retalho. E também a sua ação. A sua religião é um retalho. E também a sua fé. A sua arte é um retalho. E também a sua estética. O humano é uma colcha de retalhos culturais. E nas tramas dessa colcha se abriga o seu destino: Toda vez que o homem pensa e age, pensa e age por ele a sua colcha de retalhos. Toda vez que o homem sente e se emociona, sente e se emociona por ele a sua colcha de retalhos. _ Mas, não serei eu, o senhor de meus próprios atos? _ Não pense ser o homem uma unidade original. Mas sim, uma colcha de retalhos culturais, que reveste seu corpo e molda o seu pensamento. As pessoas não se utilizam de sua cultura, mas são utilizadas por ela. Alguém que se olha no espelho, não vê outra coisa senão um mosaico de sua cultura. Alguém que olha o outro, não vê coisa diferente senão sedimentos de uma cultura.

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_ Mas, ó Mestre da Generosidade, se somos resultado de nossa cultura, como se dão as mudanças em meio ao tempo? _ Sábio é aquele que enxerga sua colcha de retalhos e torna-se autor de sua transformação. Frequentemente, os homens não são mais que objetos de uma construção. Se a sua colcha de retalhos mantém aquecido o seu coração, abrace a sua vida e cumpra o seu destino. Mas, se a sua colcha de retalhos sufoca suas emoções e pesa como chumbo sobre seu coração, ouse rasgá-la de alto a baixo, pondo-se nu em meio ao ambiente. Tão logo o frio da estranheza sopre rápido sobre suas costas, teça a sua própria colcha com os retalhos à sua escolha.

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E o Centauro meditou:

Eu sou uma legião de mim mesmo. Em todos os dias de minha vida havia um eu. Em todos os anos, um eu viveu ali. Hoje, onde estou, sou fruto do caminho percorrido por cada um daqueles eus. Se eu os encontrasse, o que lhes diria? – “Néscios! Trouxeram-me até este beco sem saída!” Mas olhando em seus olhos cegos do amanhã, como poderia culpá-los por hoje? Não sei se todos aqueles eus do passado são meus filhos ou meus pais. Eles me ensinaram, mas tornei-me mais sábio do que eles.

Eles são os tijolos e eu, o edifício. Não posso tirá-los de mim, sob pena de me desmoronar no vazio. Na verdade, eu não pude me tornar, sem que eles fossem antes de mim. São antepassados de mim mesmo. Em qualquer situação em que esteja hoje, não quero a morte. Devo aos milhares de eus passados a minha vitória presente sobre o infortúnio da sorte. Eles, todos, cuidaram de mim. Cada um daqueles eus, numa cadeia solidária, me trouxe até aqui. Antes de culpá-los, deveria agradecer-lhes. Deveria perdoá-los, deveria homenageá-los. Nada há que seja tão meu, quanto os eus que eu fui. Eu não experimentaria maior perdão, que os milhares de perdões ofertados aos meus eus. Poderia, então, acolhê-los e entendê-los e ser um com eles. Pois, quando o perdão ocorre não há mais divisão.

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28 82 _ Ó, Amável Mestre, insistem alguns em dizer que nossa viagem pela terra é solitária e fustigada por inimigos, que ao fim nos derrotarão. Seria verdade tão grotesco desfecho? _ Eu sou o amigo do mundo e, por essa amizade, o universo me é fecundo. Ouve o que foi dito: “A vida vale um amigo!” Um dos mais importantes gozos da vida está em encontrar alguém que compartilha dos mesmos gostos. O prazer é uma onda que se agiganta na ressonância. Amigos são como ecos de nossas próprias forças.

Amigos contentamento.

verdadeiros

multiplicam

o

_ Fraterno Mestre, do que é feita a amizade? _ O mais evidente motor da natureza é a competição entre os ímpares. A mais poderosa alavanca da vida é a cooperação entre os pares. A competição promove a diversidade e a liberdade. A cooperação promove a semelhança e a solidariedade. Se a competição tempera o aço do caráter, a cooperação lhe empresta o uso adequado. O sentido da amizade está no gozo de sua força. Quem tem um amigo que lhe acompanha pelo caminho, pode andar léguas a fio. Uma comunidade formada de amigos vence qualquer desafio. Toda amizade é doação recíproca. Feliz daquele que tem um amigo com quem a vida partilha.

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29 84 _ Ó, Mestre do Gozo, porque temem as pessoas o abandono da solidão e a fuga dos que as rodeiam? Porque tanto dói o deserto íntimo que as pessoas repelem? _ Discípulo feliz! Eu sou aquele que é só e, assim permanecendo, desfruto da eternidade de cada momento. Ninguém quer ser parceiro de viagem de seu próprio inimigo. Se o amor é a condição do perdão, aquele que não se ama, também não se perdoa. Aquele que não perdoa a si próprio habita na casa de seu inimigo. A solidão é o espelho que reflete seu inimigo na intimidade de seu coração.

_ Mas, como vencer o inimigo íntimo, ó Bondoso Mestre? _ Ouve o que foi dito: “Perdoe seu inimigo e faça o bem a quem lhe quer mal”. Eu, ainda lhe afirmo que é preciso perdoar a si mesmo para vencer a este que lhe prolonga a dor. Por isso, reflita consigo mesmo: Quem me fere? Eu sou aquele que me fere! Quem me julga? Eu sou aquele que me julga! Quem me humilha? Eu sou aquele que me humilha! Então, repita consigo e perdoe seu inimigo: Eu não me agrido; eu me perdoo. Eu não me culpo; eu me perdoo. Eu não me desprezo; eu me perdoo. Quem não perdoa a si mesmo, reflete a imagem de seu inimigo em espelhos de mil faces e teme a viagem da solidão. Quem, perdoando a si próprio, embarcar na solidão, experimentará um cálido mergulho no mar íntimo de seu eu; nas águas tépidas de sua mente tranquila e serena.

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30 Dentre as loucas coisas que são o que parecem, o riso é a mais evidente. Dentre os recursos de que dispõem os homens, o riso é o mais eficiente. Um sorriso, várias vezes ao dia, é o melhor remédio para os pacientes. Quem ri de si mesmo, de vez em quando, está no comando de sua mente. Como o sol que deita seus raios sobre o gelo, o riso também dissolve a autoridade e catalisa a liberdade, transformando-se no antônimo do medo. O riso é o óvulo fecundo do pensamento. O vírus mortal contra o fanatismo.

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O riso é iconoclasta, corruptor da opressão. Nada resiste a uma boa risada. A nudez dos reis se revela na gargalhada.



Ri melhor quem ri por último. Ri mais tempo quem ri primeiro. Não há na vida emoção mais desprendida.

A vida deu aos homens a melhor das risadas. A vida não manda, nada pede nem tem motivos. Mas se regozija pelos homens quando eles se cruzam na arquitetura de um sorriso.

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31 88 _ Ó, Mestre do Prazer, como tornar espontâneo o sorriso em nossos lábios, se o dia insiste em amargar os nossos corações? _ Eu sou aquele que se deleita e, assim gozando, a vida me alimenta. O contentamento é a alegria serena que soa como música na mente das pessoas. O contentamento é o resultado do entendimento da vida. O contentamento é a aceitação do mundo. O contentamento é o que sobra da dissolução da sina. O contentamento é o eco de um coração vagabundo.

_ Ó, Bondoso Mestre, como viver entre as pessoas de uma forma tão volúvel? _ Aluna maliciosa! Eu lhe digo que o contentamento é o resultado de um coração vazio. Aquele que, sem apego, se doa a um propósito, conhece o contentamento. Aquele que, sem medo, se lança a uma aventura, conhece o contentamento. Mas, aquele que, ao fim do dia ainda carrega cheio o coração, sucumbe ao peso do destino, amarga o semblante e murcha os próprios olhos. Pois, em verdade lhe digo que o contentamento provém da circulação do que entra e do que sai de nossos corações. Ninguém doa daquilo que não tem. Mas alguém que não doa o que tem, ameaça o ciclo perigosamente. Perceba aquele que se contenta. Nele a vida flui serenamente. O coração é o bagageiro do destino. Aquele que não se contenta com sua vida, lança carga sobre o músculo cardíaco. A serena alegria só provém da descarga do medo, das crenças e da sujeição. Com o abandono da carga, lá se vão as mágoas, os ódios e a incompreensão. Com o coração vazio a vida flui no contentamento.

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32 90 _ Ó, Mestre da Alegria, quais são as ações que nos conduzem à felicidade? _ Eu sou aquele que goza a vida e, pelo meu júbilo, o mundo ganha harmonia. Felicidade não é recompensa por dever cumprido, nem tão pouco um objetivo de vida. Felicidade é o exercício do gozo. Existem aí muitos que têm mais do que merecem. Há os que têm menos. E há os que têm exatamente o que merecem. Nenhum deles é feliz.



Há também os que são mais do que se julgam. Há os que são menos do que pensam. E há os que sabem o que são. Nenhum deles é feliz.

Ter e ser são verbos do destino. Gozar a vida atrai a felicidade. Quem goza a vida não precisa ter ou ser nada. Aquele que goza a vida é o mais terrível dos subversivos. O gozo é exercício de liberdade. E a liberdade dissolve a tirania do destino. O verbo é a chave mental da ação. Ter e ser são verbos do destino. Gozar é o verbo da felicidade.

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33 92 _ Ó, Mestre da Abundância! Deve o indivíduo poupar-se no embate com a vida, de modo a preservarse dos desgastes e desenganos? _ Eu sou aquele que ilumina o próprio caminho e dessa mesma luz se alimentam as estrelas que cintilam em meu íntimo. Ouve o que foi dito: “A luz que muito brilha cedo se apaga”. Eu, porém, lhe digo que mais vale brilhar por um instante do que uma longa vida nas trevas. Um instante de sua luz enriquece a humanidade. Uma vida mortiça de nada serve à comunidade. Por isso, não perca seu dia: doe-se a um propósito e inunde o mundo com sua luz.

A árvore espraia muitos frutos para gerar dois ou três de seus espécimes. Mas com seu trasbordamento alimenta a todos que dela se servem.

Não se pode armazenar a luz. A luz que se poupa acumula a escuridão. Quem sabe quem estará vivo amanhã?

Tolo é aquele que retém sua luz: obscurece o seu caminho e tropeça no destino. Quem sabe quem estará vivo amanhã? De nada serve a luz que não se coloca no alto. Sê generoso em espalhar seu brilho. A luz que se confina é a mesma que definha. A todo momento irradie a sua luz, eis o segredo: A luz, quanto mais se dissipa, tanto mais se multiplica.

Quem sabe quem estará vivo amanhã?

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94 _ Ó, Mestre do Tempo, por que o nosso coração se agita na angústia do porvir? _ Ó, discípulo amado, eu sou aquele que não tem futuro, pois todos os tempos em mim são agora. Diziam os antigos que a saúde é o silêncio dos órgãos. Por causa disso, um coração tamborilante acelera o tempo de sua morte. Se há um ponto em que os homens são iguais é na perda de seu tempo. E o tempo se perde ao se fazer o mal, Ao se fazer o indevido, Ao não se fazer nada e, sobretudo, Ao roubar-se o tempo do outro.

Perder tempo é deixar escapar o presente. O senhor do seu presente não é escravo de seu destino. A morte não rouba o futuro de ninguém. Apenas antecede o tempo dos que ignoram o seu presente. Para que amanhã não lhe reste senão a morte, capture o significado do seu presente, negando futuro ao seu passado.

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35 96 _ Ó, Mestre do Agora, há quem diga que sem o conhecimento do passado não se constrói o futuro. O que pode ser dito sobre o tempo? _ Eu sou aquele que existe no instante. E por esquecer-me do tempo só vivo no presente momento. Ouça o que digo: O presente é o tempo em que vive o homem. Quem vive do passado se encarcera na lembrança. Quem vive no futuro suspende-se sobre o nada. A liberdade está em viver no tempo presente.

Viver o presente não é abandonar-se ao esquecimento. Viver o presente não é deixar de lembrar ou planejar. Viver o presente é exercitar a liberdade. O passado sempre foi o que dele disseram. O futuro nunca será o que dele disserem. Mas o presente é tudo o que em si experimenta o homem. Nada existe no passado, nem tão pouco no futuro. O lugar e o tempo da existência estão no presente. Para se libertar do que foi e do que virá a ser, o homem deve existir no momento presente. Ao exercer seu tempo presente você enriquece a experiência do acaso, assim como enfraquece a determinação do futuro. Passado e futuro são fantasmas da cultura que roubam do homem sua existência presente. No passado e no futuro não há mais do que desmundos sem fundo. O mundo só existe no presente.

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98 _ Ó, Mestre Vagamundo – que sempre nos recomenda o gozo da vida, a alegria e o prazer dos momentos –, como pode o humano se deleitar em um mundo tão triste, onde segundo os flagelistas é preciso ganhar o pão com o suor de nosso rosto? _ Ó, amada aprendiz, eu sou aquele que vaga e, assim fluindo, o universo me abraça. A mente humana é como a flor da meia-noite. Desabrocha apenas depois de horas em silêncio. Mas, quando se abre, seu perfume e sua forma inundam o mundo com a expressão de sua beleza.

Mentes e corações precisam de silêncio.

A agitação frenética entorpece a criatividade. Mentes e corações carecem do vazio. Preencher o tempo com atividades febris obscurece os sentidos. Mentes e corações florescem na solidão. O burburinho das multidões intimida o pensamento. A produção da riqueza social seria mais beneficiada com o ócio dos criativos, do que com o frenesi dos maquinistas. O criativo não tem horas. O maquinista conta as horas. O criativo não entra em fila. O maquinista só desfila em linha. O criativo não sabe para onde ir. O maquinista se encaixota até o fim. O criativo não tem chefe. O maquinista só obedece. O criativo gasta o presente. O maquinista estoca o futuro. O criativo vive pelo ócio. O maquinista, para ‘negar o ócio’. O mundo dos maquinistas anda rápido e pouco produz. O mundo dos criativos é errático e tudo produz. Na madrugada, quando os maquinistas sucumbem exaustos, emerge silenciosa a abundância. Toda fartura é filha dileta do ócio.

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E o Centauro meditou: Forçado a ser igual, ninguém é livre. Só é livre quem pode ser diferente. Para ser diferente é necessário agir. Na igualdade é impossível conhecer. O conhecimento só é feito de diferenças. As diferenças induzem ao movimento.

O conhecimento é o caminho da felicidade. A felicidade é o prazer de ser livre. A liberdade está na gana de agir. A ação eficiente preenche o cálice do conhecimento.

Mais Mais Mais Mais

prazer é o que nos faz feliz. feliz é quem é livre. livre é quem mais conhece. conhece é quem mais age.

Sem diferenças não há como ser livre. Sem liberdade não se alcança a felicidade. A felicidade provém do conhecimento gerado na ação. Sem agir não há como diferir-me do outro para significar minha liberdade.

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_ Ó, Aquele que doa! Por que os flagelistas clamam pela volta ao passado e veneram os antigos que viviam em eras de ouro? _ Eu sou aquele que não conhece o tempo e, a partir deste momento, o universo me é inteiro. Quando se sentem bem, as pessoas não se lembram do que sofreram. Quem gostaria de voltar no tempo em que uma simples gripe fazia milhões de vítimas? Melhores dias só podem estar no futuro, pois do passado provém apenas coisas terríveis. _ Mas os homens se ressentem da corrupção dos costumes.

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_ Uns são tolos e outros, maliciosos. Para que venha o novo é preciso que o velho se corrompa. A revolução francesa foi a corrupção do antigo regime. A revolução industrial foi a corrupção do feudalismo. A cidadania da mulher é a corrupção do patriarcado. A diversidade é a corrupção da identidade. A justiça é a corrupção do direito. E a democracia - como diziam os antigos - é a corrupção da aristocracia. _ Então, a corrupção será sempre um bem? _ O que os homens entendem por bem muda com o tempo. O excesso de leis corrompe a sociedade. A falta de leis leva ao desgoverno e daí à corrupção. A corrupção surge quando o vento da mudança gira o moinho da história.

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104 _ Ó, Aquele que ama, diga-nos quais são os pecados que lhe abominam? _ Eu sou aquele que não tem pecados e, por ser inocente, gozo o mundo em tempo presente. Ouve o que foi dito: “Tudo me é permitido, mas algumas coisas não me convêm”. Porém, em verdade lhe digo que a vida não pune pecados, porque suas leis não nos conhecem: As ações dos homens não lhe afligem. A sua fé não lhe comove. Por isso, a vida não redime pecados. Não cede graças, nem lança maldições.

A vida não revoga suas leis para agraciar o bom ou fustigar o mau. Entre os homens, cada época tem sua lei. Cada tempo tem o seu pecado. A vida já existia antes dos homens e continuará depois. Nada que os homens fazem lhe aborrece. Nada que os homens fazem lhe enternece. De modo que não havendo pecado, também não existe a graça.

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106 _ Ó, Mestre do Gozo, mesmo conhecendo seus mandamentos, por vezes me sinto ainda presa ao meu destino. Qual é a raiz dessa prisão? _ Eu sou aquele que ama e assim, apaixonado, recebo a vida inteira dentro de mim. A culpa é o cimento que ata o destino no fundo dos corações incautos. Toda culpa traz consigo a sua própria punição. E a sua punição é o cumprimento da sina. O sentimento de culpa é a âncora que prende o humano à moral flagelista. E esta diz: Submeta sua vontade ou sobrevirá a dor. Aceite sua sina ou perderá o seu valor.

Suporte sua angústia ou deixará cair o andor. Sufoque sua revolta ou viverá com temor. Em verdade lhe digo, que toda culpa cresce com a dúvida. Mas toda dúvida também é uma janela para a liberdade. Se você teme por sua vida, abrace a sua culpa e cumpra o seu destino. Mas se você não acredita em destino, liberte-se de sua culpa e ganhe sua vida. Pois quem esgota seu tempo somando os custos de suas culpas, perde a vida duas vezes: não vive pela fé dos crentes, nem assume a vida que gostaria de ter.

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_ Ó, Mestre do Prazer, o que devemos esperar da vida? _ Eu sou aquele que opera e, assim agindo, o universo me prospera. Não espere nada! Abandone toda esperança aquele que segue pelo meu caminho. _ Mas, como viver sem esperanças? _ Viva agora! O futuro é o que fazemos de nossas horas. Ouça o que foi dito: “Olhem os lírios do campo, não tecem nem fiam...” A vida nada espera, pois está sempre em fluxo. Aquele que não está em movimento, espera paralisado de medo.

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A esperança é o veneno que consome a vida. Enquanto a vida se arruína na espera, os homens morrem de pouco em pouco. Siga os propósitos de seu coração, mas jamais espere. _ E a força do destino? _ O destino é como um berço original, do qual as pessoas se levantam e se distanciam. O abrigo confortável que a noite da velhice reclama, não se alcança no cultivo da esperança. A colheita não é fruto da esperança, mas da semeadura. O semeador é previdente, porque não crê na esperança. A previdência é o antônimo da esperança. O esquilo que enterra a noz para alimentar-se dela no inverno é previdente. Alguém que se fia na esperança é imprudente. A esperança é o outro nome do destino. O destino sempre acena com a esperança. Mas, enquanto você o espera ele cresce como um verme a sufocar a sua vida. O previdente rompe com o destino para criar seu próprio futuro. Em corações volúveis, o futuro é fruto do destino. Em corações resolutos, o futuro é fruto da liberdade. O futuro realizará a liberdade quando a previdência se antepuser à esperança.

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Caminhava o Centauro por um jardim, quando uma estudante de filosofia o abordou. _ Senhor, alguém me disse ser possível encontrar em sua sabedoria a esperança da felicidade. _ Não! – respondeu o Centauro – Como pode um desesperado preocupar-se com a felicidade? _ Mas não são os desesperados que precisam da felicidade? _ Quem já é feliz não precisa de esperança. A felicidade que nos livra do destino é a mesma que nos desespera. – acrescentou o Centauro, para espanto da atônita estudante.

A esperança é filha do medo.

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Não há esperança sem temor, nem temor sem esperança. Se você espera manter sua saúde é porque teme perdê-la. Se você teme ficar doente, espera não perder a saúde. A esperança ocupa seu coração, na medida em que o temor sufoca sua razão. Quanto mais tememos, tanto mais esperamos.

A esperança é mãe de toda frustração.

A esperança é um desejo que se remete ao futuro. Ao que não se tem e ao que não se avista. Portanto, a esperança é um desejo que não se realiza.

A esperança é o arrimo do ignorante.

Alguém que espera pela felicidade não sabe como construí-la. Por isso, a esperança é um desejo de ignorantes. A esperança é a virtude da impotência. Ninguém espera por algo que pode realizar por si. Desse modo, a esperança é um desejo sem potência.

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A esperança é a paixão da frustração, o arrimo da ignorância e o abrigo da impotência – ingredientes constituintes do medo. _ Por isso, digo mais uma vez: “Quando você abandonar a esperança, aprenderá a ser feliz”. _ Mas, não é a esperança que nos impulsiona para o futuro? – perguntou ainda a estudante – Não é a esperança que nos mantém firmes em nossos propósitos? _ O desejo e a vontade são os motores que conduzem o coração humano, enquanto a esperança é sua ruína. O futuro que a esperança oferece é apenas a realização de uma sina. A sabedoria do desespero é aquela que alegra o coração e a mente. É preciso saber que o futuro é quase sempre um fruto do presente momento. Se a felicidade só se constrói com a energia de um coração ardente, sem desejo nem vontade não se vai à frente. A felicidade só depende do grau de sua gana.

Só é feliz quem abandonou toda a esperança.

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113 _Ó, Mestre da Alegria, diga-nos o que atrai a abundância aos corações humanos? _ Eu sou aquele que se diverte e, no mar de meu gáudio, o universo me protege. Alegria é a liberdade das asas que levantam a mente do chão das medidas. A alegria é o espanto e a celebração da vida. Alguém que se alegra ultrapassa a consciência do destino com um só golpe de regozijo. Tornar-se alegre implica na aceitação do mundo presente, no desapego do mundo passado e na desesperança do mundo futuro. Pois ninguém se alegra pelo que já passou, nem se alegra pelo que ignora, senão apenas pelo que hoje conhece.



A alegria é o gozo da abundância da vida.

Para quem se alegra com a vida, nada lhe falta. Alguém a quem nada falta, também nada espera. Só é feliz – diz o sábio – aquele que abandonou toda esperança. Quando a ação revela o tecido do mundo, desaparece a esperança no futuro. Toda ação gera o movimento que fabrica o tempo no presente.

Ninguém se alegra pelo passado. Ninguém se alegra com o futuro.

Ação e alegria são os movimentos que constroem o mundo.

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115 _ Ó, Mestre do Gozo, interpelam-me a respeito de minha fé; dizem que devo estar convicto de seus ensinamentos e ser constante no caminho para alcançar o gozo pleno da vida. _ Eu sou aquele que flui, e assim me revirando, renovo todo o mundo dentro de mim. Aquele que se convence de algo aprisiona sua mente no passado que nos foge a cada dia. Eu lhe ofereço um saber impertinente: “A coerência é a virtude da morte!” _ Não alcanço seu propósito, ó Mestre Inconcebível! _ Pois, em verdade lhe digo, que no momento em que você deixar de interpretar, só então alcançará a sabedoria. _ Mas, como proceder diante do mundo para aplicar as verdades que o mestre me coloca?

_ Tola! A verdade entre os homens é como a nuvem, movediça e re-veladora do sol da realidade. O que lhe digo hoje, tivesse dito ontem, não haveria entendimento. O que lhe digo hoje, amanhã, terá outro julgamento. _ Entretanto, sem fé não se atinge os objetivos. _ Ouve o que foi dito: “O rígido se quebra ao vento da tempestade, enquanto o frágil se verga e sobrevive mil vezes”. Eu, porém, lhe digo que é preciso sempre duvidar para se alcançar a sabedoria. _ Como entender que é preciso duvidar e, ainda assim, não ser infiel? _ A dúvida é uma janela para a liberdade. Sempre aberta, lhe garante a sanidade. Mas a janela, como a dúvida, vislumbra a paisagem externa. Após a hesitação, cabe à pessoa o dom da escolha. A escolha certa vem do fundo do coração. Quem vacila se debruça sobre a janela, como sobre a dúvida. A liberdade guarda o legado da escolha. Quem é livre, duvida e escolhe. O fiel que não duvida, é o mesmo que não escolhe. Eu ainda acrescentaria, que aquele que se julga justificado por sua fé e não se move de sua convicção, logo se atira para algum dos extremos da mentira.

116

A criança tem entendimento de criança. O adulto tem entendimento de adulto. O ancião tem entendimento de ancião. As fases da vida humana alteram o entendimento do indivíduo. Anciões com entendimento de criança são hóspedes de asilos. Adultos com entendimento de criança são motivos de riso. Crianças com entendimento de adulto são curiosidades de circo. Aquele que se fixa em sua crença não é fiel, mas rígido. Se o universo tivesse apenas sete cores seria possível ser coerente. Se não houvesse atrito, todo movimento seria constante.

Nada há no universo que seja fixo. Nada há no indivíduo que não seja mutante.

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_ Ó, Mestre do Discernimento! Muito me admira a gana dos flagelistas pela própria salvação. Vivem pelo mundo arrastando sua culpa e fazendo penitências em favor de si mesmos e de seus destinos. Terão eles, ó Mestre, algum alívio de suas provações? _ Eu sou aquele que sempre se movimenta e, assim modificando, transformo todo o universo dentro de mim. Tudo será dado a todos que pedirem. Os flagelistas clamam pela dor para redimiremse de seus pecados e exclamam exaltados: “mea culpa, mea maxima culpa.” Pela expiação de seus pecados, eles desejam a salvação?

118

Que lhe seja concedida: sua salvação é o seu tormento. _ Como pode ser isso, ó Mestre? _ Ora, os flagelistas querem ser salvos desta vida. Voltam-se contra a vida que têm e transformamna em um calvário de espinhos, gritos e lamentos. Tornam a própria vida num inferno e depois querem se livrar dela, criando mais infernos em sua volta. Rejeitam tudo de bom que o mundo lhes serviu, pela esperança de uma outra vida que ninguém sabe, nem viu. Mas esta vida, quando é rejeitada, se transforma num vale de lágrimas. _ Então, não há salvação? _ Não há salvação, minha cara aprendiz; e, no entanto, todos nós já estamos salvos. Viver a vida alegremente é a nossa salvação.

119

46 120 _ Ó, Mestre do Gozo, quando a dor e a doença não são frutos da assimetria social, seria a natureza o algoz do homem? _ Eu sou aquele que é um só com a natureza e, assim confundido com ela, existo pela lei da vida. Para a natureza, os indivíduos são dados lançados no espaço como uma aposta num desenho melhor. A evolução se dá na tensão entre o sadio e o insano. A morte, a deficiência, a doença e a dor são frias estatísticas no jogo inocente da natureza. Não pense o homem estar isento de sofrê-las.

A natureza não se move pela dor de um indivíduo, porque não tem preferências. O indivíduo está sujeito às intempéries do tempo, como também às da genética. Quando alguém se indaga: “Por que eu?”, faz uma pergunta patética. A natureza não persegue desafetos. Por isso, a doença não é flagelo divino. A natureza não sela os destinos, por isso a deficiência não é forma de castigo. A natureza não se importa com os atos humanos. Por isso, a dor não é uma sina. A vaidade humana inflaciona a relevância do homem. Não pense ser o homem tão importante a ponto de merecer punição. Se a morte, a deficiência, a doença e a dor são companheiras de viagem, deve o homem desembarcálas de sua vida segundo os dotes de sua ciência. Pois, a condição humana se realiza na pertinência do indivíduo em relação à natureza. _ Aceitar a ação da natureza não seria conformar-se com a fatalidade? Não deve o homem dominar a natureza, assim como transformar a realidade? _ Enquanto o homem amplia a sua ciência, deve dialogar com a natureza. Mas, o que sabe o homem a respeito da realidade?

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A abelha e a águia veem cores que os sentidos humanos não alcançam. Enquanto os cinco sentidos iluminam uma parcela da realidade, infinitas dimensões nos são obscurecidas. Mesmo a parcela da realidade revelada pelos sentidos, vem à mente como simulação. A ideia de uma coisa, não é a coisa em si. A imagem da coisa, não é a coisa. A palavra “coisa”, não é a coisa. Ideias, imagens e palavras formam o mundo que separa o ser humano da realidade. A realidade é a utopia dos sentidos.

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47 _ Ó, Mestre do Gozo, vexa-me perguntar-lhe daquilo que tanto o mundo se ressente por não saber: há outra vida além desta que experimentamos? – indagou o jovem aprendiz. _ Eu sou aquele que vive a vida, e nela existindo, o universo me felicita. Se eu dissesse o que vai lhe acontecer amanhã, que cuidados teria para com o dia de hoje? – perguntou o Mestre, ao aprendiz. _ Nenhum cuidado, Mestre. Meu coração voltaria sua expectativa para o amanhã e me esqueceria do dia de hoje. _ Se eu dissesse que amanhã você estará feliz, o que faria do dia de hoje? _ Nada faria pelo dia de hoje. E assim não fazendo, perderia a felicidade amanhã, porque o futuro muitas vezes é fruto das ações do presente.

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_ Assim é que se perdem as pessoas: dando as costas à realidade da vida na busca angustiante por um futuro desconhecido. Se houvesse outra vida além desta existência, porque pensar que a natureza nos negaria tal privilégio? Então, sossega o coração aflito, neófito. Não pense que vivendo mal esta vida, qualquer outra lhe seria mais digna. Cuide, pois, desta vida, porque muitos têm aqui mais do que merecem. _ Mas há tantos, ó Mestre, que dizem ser esta vida apenas um pálido reflexo de outra existência maior e definitiva. _ Ouve o que foi dito: “A boca fala daquilo que está cheio o coração!” Eu, porém, lhe digo que os que buscam por outra vida, não merecem esta em que vivem. Alguém que tem esta vida para viver, mas só espera por uma outra vida, é como quem tem uma esposa, mas só pensa na amante. Não sei a quem se pode trair mais. _ Mas, não há como levar esta vida e esperar pela outra? _ Ninguém pode viver duas vidas. Porque há de se aborrecer de uma e amar a outra, ou se devotar a uma e desprezar a outra.

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Não se pode amar esta vida e também aquela. Até mesmo os flagelistas acreditam que a outra vida depende do que fizerem desta. Ora, então, porque se preocupar com uma outra vida?

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126 _ Ó, Mestre do Amor, já perdi muitos de meus entes queridos. Meus avós, meu pai, meu querido tio e alguns amigos. Não há consolo por essas perdas? – soluçou a jovem aprendiz. _ Ó, pupila ingrata! Antes de suplicar consolo contra as leis da natureza, lembre-se de que lhe foram dados entes queridos para bálsamo de seu coração. Se lamenta sua perda é porque gozou de seu convívio por um tempo. Tempo esse, que a vida lhe ofertou de bom grado. Ora, antes de lamentar, não seria mais apropriado agradecer?

_ Vexa-me, ó Mestre, conhecer a lei, mas ainda assim, sofrer pelos que perdi no caminho. _ Dentre as inúmeras leis que governam o universo, três delas nos são mais presentes: a lei da criação, a lei da conservação e a lei da destruição. Ora, são os homens muito hábeis na primeira pelo sexo e na terceira pela guerra. Seja pelo frenesi da partida ou pela expectativa da chegada, as pessoas se esquecem de apreciar a viagem. O universo já lhe proporcionou uma vida com seus entes queridos, porque tomar deles a sua morte? Ninguém é perseguido pela morte; não há intensão nem maldade na morte. Imagine se ninguém morresse! _ Ó, Mestre! A morte sempre será esse algoz de nossas esperanças? _ Então, não espere; abandone a esperança. Pois aquele que sempre espera jamais alcança. Grande parte de seu futuro se formará do conjunto de atitudes que você toma no presente momento. Manifeste já o seu carinho e o seu amor por aqueles a quem ama, de modo que você tenha algo para alimentar o seu futuro. Ou deixe seu amor para o futuro e relegue a memória de seus afetos para o passado.

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128 _ Ó, Insensato Mestre, seria possível conhecer o verdadeiro sentido da vida? – indagou o transeunte. _ Eu sou aquele que vaga sem qualquer sentido e assim, errático e insensato, me encontro com a vida. Ouça com atenção: “O sentido da vida é a morte”! _ Mas, como, Mestre, teria a vida um sentido tão melancólico? – assustou-se o pobre rapaz. _ Em verdade lhe digo, que a morte não apenas define a vida, como lhe empresta o inestimável valor que nenhum mercador pode comercializar. Todos tememos morrer, como também desgostamos da morte de quem amamos. Desde sempre sonhamos a vida continuar. Mas desejo não cria realidade.

Não existe qualquer motivo para que natureza nos permita sobreviver à morte.

a

_ Mas, a vida do homem não é importante? – indagou aflito o jovem. _ Ah, ah, ah! – sorriu o Centauro – Nenhuma qualidade humana nos garante a eternidade. Os pássaros, as árvores e os besouros são igualmente importantes, mas também são mortais. A importância da vida reside justamente em ser única. Por isso devemos estimar sua experiência:

Sinta o calor do sol em seu rosto. Sacie a sua sede com a água cristalina. Goze do prazer do amor. Abrace seus entes queridos. Regozije-se com o trabalho cumprido. Sinta o aroma orvalhado da flor.

Nossa vida é nosso corpo: definido e finito. Indefinida e infinita, a eternidade nos é estranha. Imagine a leitura de um bom livro – o prazer que sua narrativa desperta se consuma no ponto final. Imagine o sabor de uma torta de chocolate – a satisfação de prová-la se revela no último pedaço. Agora, imagine um livro com infinitas páginas e uma torta de chocolate que nunca acabe... _ Seria um verdadeiro tédio, Mestre! – concluiu o pequeno rapaz.

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_ Tudo que é eterno não tem sentido – por isso, o sentido da vida é a morte! A morte é o mais importante componente da vida. Não devemos temê-la, mas com ela tecer um acordo. Enquanto vivemos, nós mesmos criamos um propósito. Enquanto vivemos, aqui e agora, devemos fazer máximo uso da única vida que temos. Quando morremos ainda vivemos no trabalho realizado, na memória dos que nos amam, como também nos novos corpos que a natureza cria com nossas moléculas. Renasceremos em outras vidas – partes de nós viverão em árvores, pássaros, flores e besouros. _ Mas, ó Mestre Desencantado, ainda me dói saber da certeza de minha aniquilação. Não haveria alguma verdade nas palavras dos livros sagrados? _ Não aflija seu jovem coração. Da mesma maneira que você não tinha ciência de si antes de nascer, deixará de ter ciência de si após a morte. As palavras dos livros são bússolas, mas nenhuma bússola pode dar o sentido, porque ela serve a todos os caminhos.

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_ Ó, Mestre da Abundância, quais são os bônus mais doces de sua sabedoria? _ Eu sou aquele que não perde nem ganha, pois nada do que tenho é fruto de barganha. E sendo assim tão impróprio, todo o universo me apropria. A fome é o que torna a comida saborosa. De modo que são os danos que temperam o sabor dos ganhos. Ninguém conhece o valor do ganho, quando ainda não perdeu nada na vida. Mas quem passa pela vida contabilizando perdas e danos, amarga seus próprios enganos. E o coração amargurado desenha o destino malsão do incauto.

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Ame os danos, tanto quanto seus ganhos. De nada adianta se angustiar pelos ônus que a vida lhe entrega. Porque no caminho dos anos há mais perdas do que ganhos. Perde-se a infância. Perde-se a juventude. Perdem-se as amizades. Perdem-se os amores. Perde-se a plenitude. Perde-se o presente, que vira passado. Perde-se o viço, que fica enrugado. Perde-se o tempo que, insistentemente, nos escapa. Perde-se, por fim, o último suspiro para o domínio da morte. De nada adianta abominar as perdas e louvar os ganhos, pois quem assim procede só faz a contabilidade dos danos. Não devemos separar os ônus dos bônus, mas somar as perdas juntamente com os ganhos e multiplicar a vida que se abriga na diferença. O indivíduo é a soma de seus ganhos e de suas perdas. Quem não perde a vida lamentando o próprio destino pode entender esse pequeno juízo:

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Muito se ganha com aquilo que se perde. Muito se perde quando apenas se ganha. Quem entende esse pequeno juízo vive a vida pelo que ela oferece, sem esperar por ganhos nem temer pelos danos. Quem pode entender esse pequeno juízo repele a insossa esperança na falsa cadeia dos ganhos, mas considera os danos como tempero de uma vida de aventuras.

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51 134 _ Ó, Mestre da Insensatez, por certo não há mesmo outra vida além desta na qual vivemos? _ Se você está certo de não haver outra vida, porque a pergunta? _ Ah, morte atroz, Mestre do Silêncio. Somos seus prisioneiros milenares. _ Meu pupilo, há milênios o homem cativou-se da morte. E o que torna o homem cativo da morte é o medo. Ao invés de ver para crer, pelo medo da morte inescapável, o homem prefere crer para ver. E só enxerga aquilo que acredita ver.

_ Como pode ser isso, ó Mestre da Vida?

_ Aquilo que torna o homem diferente da maioria dos outros animais é o entendimento de sua finitude. No começo, o medo do fim forjou ilusões para livrá-los da morte. Depois, a mortalidade humana foi amaldiçoada pela crença na vida eterna. E agora, a vida que levam é uma longa e enfadonha espera. Porém, a qualidade do fim só se alcança com a justeza dos meios. Para uma vida que não tem um fim, quaisquer meios podem servir. _ Não compreendo seu propósito. – lamentou o aprendiz. _ Onde está o sentido de um jogo que nunca termina? _ Em lugar algum, Mestre, pois não haveria vitória ou derrota, nem mesmo a disputa se manteria e o enfado por fim se estabeleceria. _ Quando não há um verdadeiro fim, os meios se abastardam. Por que vale mais entre os homens uma pepita de ouro, do que um grão de arroz? – perguntou o Centauro. _ Por que o arroz é abundante e o ouro é raro. _ Eis aí como perde a vida aquele que espera pela eternidade: trocando uma pepita de ouro, por um grão de arroz.

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A morte é o fim, cujo meio é a vida. Os meios justificam os fins. O fim é o resultado dos meios empregados para atingi-lo. Cada qual se encontra com a morte, da mesma forma como conduz a vida. Sabendo viver a vida, o homem perde o medo da morte. Com a morte, a finitude humana se dignifica. A morte é o coroamento do gozo da vida. Não dê ouvidos aos que buscam roubar a dignidade da morte, negando sua correta consumação. A doutrina dos flagelistas desqualifica os meios em favor do fim. Todavia, como os fins são resultados dos meios, os flagelistas se brindam com uma vida e uma morte ruins. Quem é aquele em cuja existência a urgência habita: no que tem a eternidade para viver ou em alguém que tem apenas uma vida? Não pense o homem que vivendo mal esta vida, qualquer outra lhe justificaria. A busca por outra vida é o traiçoeiro ardil da esperança. Enquanto sucumbe à esperança atroz, o flagelista transforma sua pepita de ouro em um grão de arroz. _ Ainda assim, os homens desejam retornar à vida eterna. _ Uns são tolos e outros, soberbos. Diga-me,

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então, se é possível aos homens retornarem ao insondável, indescritível, inominável, indecifrável, ininteligível, incompreensível, insubstancial, insignificante e atemporal? _ Temo que não, ó Vago Mestre. _ Em verdade lhe digo que há entre os flagelistas não mais do que dois tipos: os tolos e os usurários dos tolos. Ambos vão ao abismo. A finitude da existência humana é o que dá sentido à vida do homem. Não dê ouvidos a quem diz haver outra vida: ou este sabe o que ninguém pode saber, ou pretende enredar o incauto nas teias da esperança, para surrupiar-lhe a pepita de ouro ao preço de um grão de arroz.

É melhor não saber, do que ser enganado.

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_ Ó, Mestre – perguntou a aprendiz –, para que tanto esforço se a morte vai um dia nos arrebatar? _ Eu estou entre aqueles que morrem e chegam ao fim – respondeu o Centauro –, pois a principal qualidade de ser humano é conhecer o seu termo. Boa parte da sabedoria arduamente adquirida pode ser repassada aos que vêm depois, mas sua função precípua é oferecer uma vida plena ao conhecedor. Finda a vida, não faz sentido lamentar o conhecimento perdido. _ E o que fazer com o sentimento de angústia diante da morte? O que fazer com o desejo de viver ainda? – questionou a aprendiz.

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_ Aqueles que ainda desejam sobreviver ao termo de suas vidas são os que lamentam não ter vivido como queriam. Logo, morrer bem demanda viver bem! Quando a morte chegar, não a tema nem a negue. A morte é a dignificação da vida, é a sua justiça. Morreu bem, quem bem viveu! Quando a morte chegar não a ofenda com cerimônias de lamentos, pois ela deve ser bem-vinda aos que fizeram da vida um bom proveito. Lamentos devem ser dirigidos aos anos de vida desperdiçados com o medo da morte; desperdiçados com a esperança em burlar a morte; desperdiçados em procrastinar a felicidade para gozá-la após a morte. Quando a morte chegar não a amaldiçoe rogando aos deuses que a afastem de você ou lhe deem uma outra vida, pois a morte não é culpada pelo cumprimento de sua sina. Quando a morte chegar não a insulte com promessas de superá-la pela fé em suas crenças, pois seria como não concluir algo que precisa ser completado. Uma vida mal acabada abastarda sua morte. Quando a morte chegar não se revolte como quem recebe uma má visita, mas a acolha como quem escreve a última palavra de seu livro da vida.

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Quando a morte chegar ela deve lhe encontrar sereno e preparado, como alguém convicto do prazer cumprido. E você dirá a ela: “Bem vivi, bem morri!” Quando a morte chegar orgulhe-se de ser recolhido por ela, pois somente o homem tem o dom de conhecê-la e livrar-se da maldição da eternidade, que atormenta infinitamente os anjos e os deuses.

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141 _ Ó, Mestre do Gozo, porque o passar dos anos murcham os olhos das pessoas; porque perdem seu viço ao tempo em que a sabedoria deveria trazerlhes o benefício do entendimento? _ Pupilo amado, eu sou aquele que respira e, assim aspirando, inspiro-me no universo que me recria. Com a sua fria razão, o tempo dissolve as fibras dos corações pusilânimes. Ouve o que disse o poeta: “Ai de mim, os anos fogem”. Eu, porém, lhe digo que o melhor aço é o que se tempera no fogo e no martelo. _ Ó, Bondoso Mestre, como podemos fortalecer nossos corações, apesar do assalto dos anos?

_ Tolos! A medicina dos homens prolonga uma vida que se decai em vão. Afastam a morte física e sucumbem à morte íntima, ressecando seus corações ao vento inclemente das décadas. O romance febril da juventude se degrada na compaixão e no queixume. A aventura tresloucada da mocidade cede o posto ao marasmo da autopiedade. Seria de se perguntar: onde pensam que vão os homens, senão devolver à terra o pó que dela usaram para sustentar suas vidas? Que vida vale ser vivida quando já se abriga em si a morte íntima? Não se exaltam as crianças ainda mais, quanto mais próximas do fim de suas brincadeiras? Ora, pois, quanto mais perto da partida, tanto mais devem as pessoas ceder às suas paixões, amores e manias. O amargor que os olhos revelam é a borra da paixão que se assenta no fundo dos corações derrotados. São olhos que veem se perder os dias para o limbo do passado. _ Ó, Mestre, como, então, escapar do passado que avança sobre o nosso futuro? _ Conecte-se às emoções que jazem submersas! Reacenda o fogo oculto da paixão! A aventura da vida não respeita as cercas da comiseração. Libere de vez a sua mente exterior.

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Abra o seu peito para além do inesperado. A paixão de sua vida está em busca de um chamado. Não passe o tempo embalando o passado, com suas histórias repetidas. Transforme-se, isto sim, em personagem de histórias divertidas.

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_ Ó, Centauro, a sabedoria dos homens pode encontrar a via da harmonia com o exercício dos anos? _ Eu sou aquele que é sem tempo e, assim, despido do século, todo momento do universo me permeia. A cognoscência do homem não se resume à inteligência, nem está encerrada no cérebro ou nalguma essência misteriosa. A cognoscência permeia o indivíduo em busca de canais para a manifestação. A cognoscência compõe-se a partir dos sentidos. O saber do músico está no cérebro, como também no coração, ouvidos, dedos, boca.

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O saber da bailarina está no cérebro, como também no coração, pernas, braços, tronco. O saber do cozinheiro está no cérebro, como também no coração, nariz, língua, olhos. Todo corpo humano é uma escola viva. Quem o cobre, cega a luz. Quem o nega, perpetua a ignorância. Quem o fere, diminui-se. Mas, quem ama o corpo se ilumina em seu universo. Reconhece o valor dos sentidos do gozo, aquele que busca o entendimento da vida. A verdadeira sabedoria está no diálogo harmônico entre os corpos nus. No sabor do sexo, os sentidos do gozo se completam. Na galáxia do sexo, prospera a gênese do conhecimento. _ Devemos, ó Mestre, nos entregar à luxúria dos sentidos? _ Toda virtude não é mais do que o meio termo entre dois vícios. Ouve o que foi dito: “faça amor, não faça a guerra!” Eu, porém, lhe digo que o êxtase dos sentidos se completa no sexo e franqueia o conhecimento da sabedoria. Descubra as vias do prazer. Resgate os corpos do temor.

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Descubra o gozo do amor. A tirania é rápida em separar os corpos, porque teme a força do gozo. O gozo é o antônimo oculto do medo. O gozo é inconfidente. O gozo gera a cognoscência. O melhor do gozo emerge do atrito dos corpos cognoscentes.

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147 _ Ó, Mestre, como é difícil permanecer em seu caminho. É como andar sobre navalhas; qualquer deslize e caímos na vala dos flagelistas ou na fogueira dos devassos. _ Compreende, ó amada aprendiz, que não há caminho fácil num mundo de ilusões disseminadas pelos flagelistas e sua danosa moral. Muito do que é verdade, eles transformaram em mentira e pecado. Muito do que é bom, eles fizeram-no ruim e danado. _ Mas não haveria algo de bom em sua sabedoria? _ Nada há que não tenha algo de bom para ser destacado. Infelizmente, as ervas daninhas resistem e prosperam mais que as flores. E o que há de bom segue eivado de enganos.

_ Como é isso, ó Mestre? _ Ouve o que tem sido dito como verdade pelos tempos afora: “Não faça aos outros aquilo que não gostaria que lhe fizessem.” Eu, porém, lhe digo que os flagelistas vêm cumprindo esta lei, mais do que qualquer outra, e têm trazido ao mundo muita dor e ilusão. _ Desculpe-me, Mestre Centauro, mas não alcanço o seu propósito. _ Ora, como a moral dos flagelistas tem produzido através dos tempos uma maioria de sádicos e masoquistas, o que eles não fazem a si mesmos, certamente não fazem aos outros. E assim: Acorrentando-se, não se libertam – e não libertam os outros. Traindo-se, enganam a si mesmos – e não confiam nos outros. Intoxicando-se, não se cuidam – e não cuidam dos outros. Odiando-se, não se harmonizam – e desequilibram os outros. Flagelando-se, não se amam – e não amam os outros.

As pessoas só doam daquilo que têm.

Generosos doam generosidade. Cruéis doam crueldade. Seja generoso consigo mesmo e você doará generosidade.

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Seja cruel consigo mesmo e você doara crueldade. Pois, ninguém faz aos outros aquilo que não tenha feito antes a si próprio.

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150 _ Ó, Mestre da Fortuna, sinto que me é imperativo perguntar-lhe como podemos livrar as pessoas de seus destinos cruéis? _ Ó, pupilo infeliz, liberte-se a si mesmo. Já será um a menos a entristecer a face da Terra. _ Mas, não devemos ser instrumentos da felicidade alheia? _ Se você quer aproximar o ser humano da felicidade, primeiro dê o exemplo. Assim, poderá fazê-lo entender que o destino é externo e a liberdade é interna. Quando estas duas verdades trocarem de lugar, a felicidade habitará o coração do indivíduo. _ Como pode ser isso? _ O destino é um verme que habita o ambiente

em que vivem os homens. De fora, ele penetra o ser humano e se instala em seu coração. Você pode nascer em qualquer família. Essa família lhe possuirá. Você pode nascer em qualquer comunidade. Essa comunidade lhe possuirá. Você pode nascer em qualquer país. Esse país lhe possuirá. Você pode nascer em qualquer cultura. Essa cultura lhe possuirá. Você pode nascer em qualquer religião. Essa religião lhe possuirá. Você pode nascer em qualquer tempo. Esse tempo lhe possuirá. Quem não está feliz pertencendo a sua família, comunidade, país, cultura, religião ou tempo, é vítima de seu destino. Quem busca a felicidade, deve libertar-se de seu destino.

Faça do próximo a sua família. Faça do mundo o seu país. Faça da civilização a sua cultura. Faça do amor a sua religião. Faça do presente o seu tempo. Tire o destino de dentro de si. Ouse reconstruir-se com liberdade.

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Quando você tiver feito tudo isso, seu coração não mais abrigará o destino. Quando o destino sair de dentro de você e a liberdade entrar em seu coração, a serena felicidade tornar-se-á parte de seu eu.

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153 _ Ó, Sereno Mestre, por que se debatem os homens com suas virtudes e vícios, num redemoinho de emoções que nos arrasta ao sabor do destino? _ Eu sou aquele que sente e, pela minha sensibilidade, o universo me pressente. Aquele que vê o mundo apenas pelos seus contrários, tem uma vida menor. Os contrários não são duas coisas diferentes, mas apenas verso e reverso de um só ente. Todos os contrários são os seus próprios avessos. Não pode haver senhor, se não houver escravo. A mesma corrente que prende a vítima, ata o carrasco.

Ora, pois, assim é que são as características humanas: Da percepção da inveja, que lamenta o bem alheio, se retira o sentimento de fraternidade em favor dos companheiros. A força do ódio que destrói e afasta, é a mesma disposição com que o amor constrói e afaga. A mesma percepção de si que o orgulho desperta, permite o reconhecimento do outro que a humildade alcança. O plácido lago da serenidade manifesta a mesma força que a luxuria emana. Para sacrificar-se pelos desconhecidos, o altruísta depende do cuidado de si movido pelo egoísmo. O desprendimento pessoal não é outra coisa senão a força da ambição em favor do bem geral. As virtudes e os vícios humanos não são mais do que a mesma coisa vista por outro ângulo. Ora o tempo, ora o lugar, eles trafegam sôfregos de ponta a ponta, na corrente do continuum. Não condene tanto, nem louve demais o gesto humano. Uma comunidade harmoniosa precisa de atitudes positivas. Mas o que seria da norma se não fosse o desvio? O que seriam das regras, não fossem as exceções?

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Na balança dos sentidos deve o homem pesar a força das paixões. E assim fazendo, não há de transformar seu coração e sua liberdade em contrários inarredáveis.

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58 156 _ Ó, Mestre dos Saberes, teriam os seres humanos plena consciência daquilo que fazem? _ Nem sequer do que realmente pensam. A sabedoria é inescrutável e as palavras só conduzem o ignorante até seu umbral, além do qual mora o real conhecimento. _ Mas, os sábios não ensinam através de palavras? _ Não! Eles ensinam através dos gestos, pois as palavras são resumos incompletos do saber. _ Ó, Senhor da Obscuridade, como então distinguir a sabedoria da tagarelice inteligente? _ Eu sou aquele que cuja sabedoria é vista pelo ignorante como loucura. Pois aonde o ignorante vê o saber, devemos fugir sem olhar atrás.

A sabedoria é o conhecimento que circula entre a egosciência e a consciência. A egosciência é a ‘ciência de si’, intransferível, que representa todo conhecimento que tenho de mim mesmo, adquirido em todos os dias de minha existência, do qual não posso repassar nada em forma de palavras, mas apenas por exemplos. A consciência significa a ‘ciência comum a todos’ – ela representa a cultura que é ensinada para os membros de uma comunidade, de modo que todos saibam interpretar seus símbolos de comum acordo. Egosciência e consciência não são a mesma coisa, mas não são contraditórias. Para conhecer os outros e ser reconhecido por eles, devo ter consciência. Para me conhecer e saber quem sou, preciso de minha egosciência. _ Porém, Mestre do Acaso, em nome do bem de todos o certo seria termos mais consciência? _ Duvido muito! Imagine uma pessoa que só tenha consciência: ela seria um autômato a repetir incessantemente apenas os valores e os saberes que circulam na cultura. Aquilo que, ao contrário, nos faz humanos, é nossa egosciência, que nos dá ciência de quem somos.

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_ Isso não seria egoísmo? _ Toda vez que você preferir um caminho diverso daquele que o rebanho tomou, será alcunhado de egoísta. A consciência é a ciência do bando, do vulgo e da ditadura da maioria. A sociedade não é mais do que um aglomerado de indivíduos – ela não é maior do que a soma de cada um de nós. Devemos ter noção da consciência em sua dimensão coletiva, mas não podemos abandonar nossa egosciência, sob pena de nos desumanizar. A sabedoria mais eficiente é aquela, cuja egosciência informa à consciência o que o indivíduo pode oferecer à coletividade. A sabedoria mais eficiente é aquela, cuja consciência não oprime a egosciência com sua ditadura da identidade.

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59 159 _ Ó, Incógnito Mestre, muitos dos que falam contra suas palavras, dizem que sua filosofia incorre em erros e equívocos. Como posso fazê-los entender sua intenção? _ Aprendiz equivocada, eu sou aquele que erra pelo mundo e na minha equivocidade me ilumino com o que é diverso. Com a nossa parca linguagem, as palavras mascaram o mundo real. Em sua origem, o termo “erro” significava desvio. “Errar” era vagar sem destino. Na origem, o vocábulo “equívoco” designava aquilo que difere. “Equivocar-se” era ser diferente.

Normal, é aquele que segue a norma. Regular, é aquele que segue a regra. Normas e regras impõem trilhas; quem se desvia, erra. Quem se difere, equivoca-se. Mas, pode alguém realizar algo novo, algo original, sem incorrer em erros? Pode alguém conhecer a diversidade, a alteridade, se não se equivocar? Aqueles que condenam o erro e o equívoco vivem de normas e regulações. Perceba aqueles que bradam impropérios contra os equivocados; são os mesmos que ganham algo com a condenação do errado. Em verdade lhe digo, aluna transviada, que se alguém não erra, nem mesmo se equivoca, não pode conhecer o que o mundo tem a lhe ensinar.

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_ Ó, Mestre do Amor, será verdade que ao final de uma vida difícil e laboriosa encontraremos a paz e a harmonia? _ Eu sou aquele que se alimenta e, sendo farto, me nutro do acaso. A aflição e o desequilíbrio são venenos destilados pela esperança. Quem espera se aflige pelo fim de seu sofrimento. Quem espera se exaspera com o esgotamento das forças, em meio à procrastinação de seu tormento. Paz e harmonia não são prêmios a se alcançar no final de uma corrida. Paz e harmonia não são pagamentos por tarefas cumpridas.

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Paz e a harmonia são estados sentimentais atemporais e independentes. Quem se desequilibra em meio as dificuldades, não reconhecerá a harmonia no silêncio. Quem se aflige em meio à luta, não encontrará paz em seu leito. _ Como pode ser isso, ó Mestre do Gozo? _ Ouça com atenção: somente na encruzilhada entre o destino e a liberdade é que se pode encontrar o caminho da paz e da harmonia. Não saber decidir entre destino e liberdade é ser pusilânime: dois soldados agem serenamente em plena batalha - aquele que está disposto a viver e o outro, que está disposto a matar. Ambos obtêm o que querem. O terceiro soldado age aflito e desequilibrado - o que não sabe o que quer. Este, certamente, tornarse-á uma baixa em seu exército. A via da paz e da harmonia se constrói na doação plena. A doação atemporal e incondicional é atributo do indivíduo livre. Alcançamos a paz e a harmonia, mesmo em meio ao caos e à luta, quando somos capazes de doar incondicionalmente até aquilo pelo que enfrentamos a dor e a luta.

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61 163 _ Ó, Mestre dos Prazeres, não deve o ser humano cuidar-se para não sofrer no futuro com a ressaca das fortes emoções? Não seria o caso de evitarmos a dor que uma paixão pode nos causar? _ Esta é a sabedoria do mundo: “não deixe para amanhã, o que você pode sofrer hoje”. _ Desculpe, ó Mestre do Gozo, não entendo seu propósito. _ Quem lhe garante que matando hoje uma emoção, você poderá obter no futuro a paz em seu coração? Ouve o que diziam seus antigos: “Não ria hoje, pois poderá chorar amanhã!” Em verdade lhe digo, que essa crença visa o amortecimento das paixões e o ressecamento dos afetos. _ Mas, Mestre Centauro, não seria correto evitar os exageros da emoção?

_ A vida das emoções humanas habita uma gangorra:

Não a paralise. Não a exile. Não conduza seu ritmo.

Não lhe imponha seus conceitos. Mas conviva com ela; entenda sua natureza; conheça a sua vibração e aceite sua presença. _ Ó, Mestre da Estesia, não seria correto viver a vida na busca pela razão? _ Não deve o ser humano confundir os fins com os meios. A razão é um instrumento para alcançar os propósitos dos seus sentimentos. Não faça como os que colecionam cadáveres de sentimentos mumificados pela razão. Não transforme sua vida num cemitério de emoções, com lápides marmóreas, onde se leem: “aqui jaz uma paixão”. Quem lhe garante que sufocando uma emoção hoje, amanhã você alcançará a serenidade? _ Ao menos, ó Mestre das Paixões, na ausência das emoções podemos pacificar a mente. _ Nos cemitérios não há paz, apenas esqueletos de gente.

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165 _ Ó, Mestre da Generosidade, porque vivem os homens em meio à violência? Por que, por vezes, a violência irrompe destruindo pontes de entendimento entre as pessoas? _ Gentil aprendiz! Eu sou aquele que ama e, por assim fazer, percebo o universo inteiro dentro de mim. A violência do parvo não tem um grande alcance. A inteligência faz com que a violência avance. Inteligência e ética não são parentes, mas tampouco são excludentes. A doação é o controle do egoísmo. O egoísmo máximo está em tomar a vida alheia.

O máximo do egoísmo só se alcança com inteligência. _ Seria, então, a inteligência um mal? _ Para a inteligência acima da média, a ética dos parvos não passa de comédia. Para se domar o egoísmo do inteligente é preciso a força da maré: a corrente submersa da vontade popular. A convicção de uma maioria de fracos dobra o ímpeto de uma minoria de fortes. Para a ética dos parvos bastam histórias da carochinha. A ética dos inteligentes é formada de verdades mais vivas. A comunidade, cujas bases se fundamentam na verdade, pouco vê a violência, pouco vê a maldade. Monstros e gênios habitam o quarto escuro dos nossos corações grosseiros. A sociedade que preza a verdade acorrenta os primeiros e liberta os segundos. _ Mas, de qual verdade, ó Mestre, nos falam as suas palavras? _ Naquilo em que acreditam os parvos, germina a violência dos inteligentes. A ignorância é o caldo de cultura onde florescem os delinquentes. A mesma hipocrisia que entorpece os tolos, excita os larápios.

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A esperança que afoga os flagelistas é a indústria que alimenta os salafrários. A moral que reprime os crédulos é a mesma que liberta os crápulas. Se a verdade for privilégio de uma minoria, a violência será vizinha da maioria. Assim, o mesmo véu que encobre a verdade, acolhe a mentira. E quando a verdade se esconde, a violência domina. Mas, a violência fenece, por onde a verdade caminha. Na sociedade em que se partilha a verdade, a violência definha.

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63 168 _ Ó, Mestre Inexpressivo, ainda me perturbam as questões sobre quem eu sou, o que sou, ou o que devo ser. _ Se é assim, deixe de ser e apenas exista. Escape do tempo; flua com o mundo e conheça a felicidade de existir, deixando de ser. _ Como pode ser isso, ó Inessencial? _ Enquanto a essência é sempre a mesma, a existência se difere. A existência é um efeito do real; a essência é uma fantasia do pensamento com a qual a linguagem nos ilude acerca do real. Essências são ilusões de ótica, existências são encontros de corpos. Não há essência no que existe, porque não há linguagem nas coisas.

Aquilo que existe está sempre vindo a ser, em constante movimento, sem nunca retornar ao que era. Mas aquilo que era, deixou de existir para se tornar essência nos conceitos da linguagem. Eventos, fatos e coisas existem no mundo real. Pouco se pode falar sobre eventos, fatos e coisas, pois eles estão sempre vindo a ser diferentes. Eventos, fatos e coisas têm existência efêmera. Eles morrem cedo, viram essência, transformam-se em palavras e vão morar na linguagem. A essência não está nos eventos, nem nos fatos ou nas coisas, mas na linguagem dos narradores de eventos, fatos e coisas. A linguagem é uma cadeia de conceitos. Conceitos são esqueletos de coisas, eventos e fatos mortos. Conceitos são experiências mumificadas, cuja rigidez é seu acordo com o tempo. Ontem, hoje e sempre os conceitos contam a mesma história, enquanto os eventos, fatos e as coisas reais estão sempre em movimento. Você escolhe o movimento da vida sensível, ou o cemitério dos conceitos inteligentes. Mas é preferível existir, em vez de sonhar em ser.

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_ Ó Mestre da Liberdade, seria correto afirmar que a felicidade se alcança quando nos despimos de necessidades supérfluas? – indagou a aprendiz, com seus olhos interrogativos. _ Eu sou aquele que necessita, e de minha carência nasce o mundo em que vivem os homens. De fato, a vida é necessidade. Alguém que nada necessita faz número entre os mortos. Alguém que pouco necessita faz número entre os ignaros. A liberdade se traduz por autarquia. A completa autarquia só se alcança com a morte.

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A autarquia do homem depende de sua sabedoria. A sabedoria se expande como circunferência que aumenta seu raio. A circunferência do saber se limita com o mar da ignorância. A verdadeira sabedoria é um barquinho à deriva. Quanto mais o conhecimento nos liberta, tanto mais necessidades nos demanda. _ Não entendo seu propósito, ó Mestre Ignorante! – indagou a pupila – A liberdade não diminui as necessidades? _ Só o ignorante tem poucas necessidades! – advertiu o Centauro – Para livrar-me da ignorância necessito saber. Quando conheço o motivo de minha ignorância necessito superá-la. Para superar minha ignorância necessito substituí-la por um saber. Quando um saber se coloca no lugar da ignorância, necessito buscar por outros saberes. A necessidade dessa busca é o caráter de minha liberdade. Estar condenado a ser livre demanda satisfazer necessidades. Necessidades satisfeitas produzem outras necessidades. Quem não tem necessidades faz número entre os mortos. Este é o paradoxo da vida: viver é satisfazer necessidades – para mais liberdade, mais necessidades

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devem ser satisfeitas. Só não tem necessidades quem faz número entre os mortos. _ Por que ser livre é satisfazer necessidades? – insistiu ainda a aluna. _ Por que o prisioneiro necessita da liberdade. O faminto necessita de alimentos. O sedento necessita de água. O solitário necessita de amizade. O abandonado necessita de abrigo. O pobre necessita de auxílio. O rico necessita de tempo. O doente necessita de saúde. O velho necessita de juventude. O jovem necessita de experiência. Se você deseja ser livre satisfaça sua fome, sede, abandono, pobreza, riqueza, saúde, juventude, experiência e todas as outras necessidades que houver em seu coração.

Ser livre é satisfazer necessidades.

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_ Ó, Mestre do Conflito, o que devemos saber para extinguir a dor em nossa vida? _ Eu faço parte do anfiteatro da vida; em minha honra as máscaras cantam suas rimas. Em primeiro lugar vem a existência das coisas. Depois, o homem inventa para elas as suas essências. Não há essência sem que antes haja uma existência. Se o homem nada é antes de existir, pode vir-aser o que sonhar. Mas, para ser o que ele quiser é preciso muito desejar.

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Pois sua família, sua cidade, seu tempo e seus mortos lhe impõem o que pensar. Por existir antes de ser O homem está condenado à liberdade de ser o que quiser. Estar condenado à liberdade é ser obrigado a persegui-la. Eis sua tragédia pessoal. Quem não é livre experimenta uma tragédia alheia: A tragédia de sua família A tragédia de sua cidade A tragédia de seu tempo A tragédia de seus mortos. Para ser livre é preciso inventar sua própria tragédia. Ninguém é livre sem escolher. Ninguém escolhe sem conhecer. Ninguém conhece sem sofrer. _ Mas porque sofremos para conhecer? – perguntou angustiado o aprendiz – Não seria melhor que o Mestre nos desse o conhecimento do mundo? _ Ouve o que foi dito: “Não dê o peixe, mas ensine a pescá-lo!” A verdade deste dizer é mais profunda do que se pensa: o sofrimento do aprendizado não resulta em conhecimento, pois é ele mesmo o próprio conhecimento.

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_ Então, o sofrimento e o conhecimento são da mesma natureza? _ Sofrer é passar pela experiência de existir. Quando sofremos as dores e os prazeres do mundo conhecemos as leis da realidade – que sempre agem assim: Jamais intercedem por qualquer criatura. Jamais se modificam para agraciar o bom ou fustigar o mal. Jamais ditam valores – são os homens que criam os seus juízos. Jamais impedem uma ação – são os homens que criam sua moral. Jamais determinam uma verdade – são os homens que se iludem. Autor de seu próprio caminho, o homem escolhe a liberdade ou o destino. Nada pode salvá-lo de si mesmo. O homem está condenado a ser livre. Mas para ser livre é preciso conhecer. E para conhecer é preciso sofrer. E seu primeiro sofrimento é a angustia da liberdade. A tragédia da escolha. A tragédia da solidão. A tragédia da insegurança e da perda da ilusão. A tragédia de existir sem nunca chegar ser.

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66 _ Ó, Mestre Centauro, seremos nós apenas esculturas do destino moldadas e conformadas pelo esmeril da dor? Existe outra pedagogia nesse necessário saber? _ Eu sou aquele que goza do conhecimento da vida, e pela minha alegria o mundo me inspira. Como acabar com a dor da escravidão? Aguardando que o senhor ofereça de bom grado a alforria a seu escravo ou recusando-se a condição de cativo? Como superar a dor causada por um mau destino? Submetendo-se completamente à sua sina ou rompendo com a cadeia tenebrosa pela gana de uma nova vida?

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Como vencer a dor de uma doença? Esperando pelo seu desaparecimento espontâneo ou combatendo-a com um remédio eficaz? Como sanar a injustiça causada por uma ditadura? Permitindo sua consumação na esperança de que o ditador se canse de governar ou recusandose a aceitar o seu domínio? Saibamos todos que a dor não nos é devida, mas ela permanecerá conosco enquanto lhe dermos sentido e guarida. Para recepcionar em seu coração o amor é preciso abolir, abandonar e abrir mão da dor. A dor é uma péssima pedagogia. Para a vida, o prazer e a alegria formam a verdadeira academia. O perfumista não se educa em meio a emanações de esgotos, mas na apreciação dos bons aromas. O músico não se educa entre os ruídos, mas no aprendizado dos bons acordes. A criança não aprende em meio aos ignorantes, mas entre os sábios. Se o que é ruim não ensina, a dor é uma péssima pedagogia. A humanidade do indivíduo se definha na

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presença da dor, mas se completa na alegria e se realiza no amor. Renegue a autoridade da dor e recuse sua agonia. A dor é uma péssima pedagogia. _ Por que as pessoas se lembram com facilidade dos bons momentos? – indagou o Centauro. _ Porque a memória do prazer é mais forte – respondeu a neófita. _ Porque as pessoas costumam se esquecer das dores? – perguntou o Centauro. _ Para não sofrer duas vezes. – concluiu a aluna. _ Se a educação depende da memória do aprendizado, qual é o melhor caminho para a sabedoria: a dor ou o prazer? _ Mas o prazer não debilita o caráter? – devolveu a aluna. _ Não confunda o exercício do corpo com a mortificação de sua carne. Para a vida, o prazer e a alegria formam a verdadeira academia.

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67 _ Ó, Mestre da Sabedoria, teriam os seres humanos obrigações para com os deuses? _ Eu sou aquele que não tem parte com os deuses e me esquecendo deles, nada tenho que temer. Se os deuses atendessem nossas preces e curassem as doenças, não haveria a morte, nem tão pouco a medicina. Se os deuses atendessem nossas preces, eliminando a fome com o maná celestial, não haveria agricultura. Se os deuses nos protegessem dos perigos não haveria casas, nem cidades.

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Se os deuses, por fim, atendessem às nossas preces, não haveria a ciência dos homens. E assim permaneceríamos dóceis animaizinhos no paraíso original da criação. Porém, se morremos, passamos fome, corremos perigo e sofremos doenças, onde estão os deuses para nos evitar todo esse tormento? Ao contrário, nós mesmos tivemos de criar a agricultura, a medicina, a engenharia e todas as ciências, de modo a adiar a própria dor, o sofrimento e a morte. _ Mas, mesmo assim, ó Mestre, não haveria deuses a nos guiar para o melhor caminho? _ Em verdade lhe digo que, se existissem deuses, certamente o melhor que eles fariam por nós seria nos abandonar à própria sorte, de modo que premidos pela necessidade, construíssemos, por nós mesmos, a ciência que nos trouxe até a civilização. _ Neste caso, ó Mestre da Gnose, qual é a utilidade dos deuses? _ Não foi o que eu lhe respondi? Quando alguns se dizem portadores da palavra dos deuses, ali não existem deuses verdadeiros, mas embustes para incautos. Quando nos apresentam livros com palavras divinas, de fato são narrativas tradicionais acerca

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da curiosidade sobre o desconhecido, mas ali não habitam deuses. Quando somam um conjunto de regras para seguir e um conjunto de rituais a cumprir, ali não existem deuses, mas apenas embustes para incautos. Não tema os deuses! Eles não habitam o mundo em que vivemos. O mundo em que eles vivem está fora de nosso tempo.

Esqueçam os deuses!

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68 182 _ Deus é aquele que não-é; de maneira que por sua insubstância o universo pode existir. – respondeu o Centauro, acerca da existência dos deuses. _ Então, Mestre, como posso me aproximar da presença dos deuses? _ Não pode! Como algo criado, coisa finita, nenhum de nós compreende a infinitude. Lembre-se: a mãe que dá à luz o filho não é o filho, nem o filho é a mãe que lhe criou. _ Estamos, então, para sempre separados dos deuses? _ Qual é o filho que retorna ao útero de sua mãe? _ Desse exílio que é nossa existência, não há como retornar aos deuses que nos criaram?

_ Se você se sente exilado é porque sua mente não se encontra em seu corpo. Quando mente e corpo são estranhos, a vida é um exílio racional e esperançoso. Quando mente e corpo são os mesmos, o país da vida é a felicidade. _ Mas, se não posso religar-me aos deuses, nem ao menos posso seguir o caminho que me conduzirá até eles? _ Não pode! O que é caminhar até o infinito? É caminhar a lugar nenhum. Lembre-se: os deuses representam apenas a sua própria vontade de ser divino. Se quiser procurá-los, busque a si próprio. _ Como, então, ó Mestre Insubstancial, poderia me aproximar da presença dos deuses em mim mesmo? _ Só posso lhe oferecer pistas que acionam sua intuição. Pois a lógica de nossa linguagem não serve para vislumbrar os deuses. Quando a lógica pensa os deuses enxerga-os através de seus princípios, dos quais a causalidade é o mais frustrante – pensam nos deuses como a causa, da qual o mundo é o efeito. O supremo engano ocorre quando a lógica penetra a religião e conduz a busca pelos deuses. Assim, quando a lógica indaga: “que devo fazer para encontrar os deuses?”, emerge dessa tola pergunta toda a desgraça do homem. Conceitos sobre os deuses são enganos. Ideias sobre os deuses são enganos. A razão não pode pensar os deuses.

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A razão suprema é o supremo engano. É melhor não saber, do que ser enganado! _ Ainda assim, ó Mestre Irracional, existem pistas sobre os deuses? _ Existem, mas não há sentidos, pois quaisquer caminhos que os buscam sempre dão em nada do que você possa imaginar. _ Essas pistas me levam para onde? _ Para dentro de você mesmo. Pois lá se encontra sua vontade de ser deus. Se quiser sofrer essa experiência, preste atenção: Abandone toda a esperança na razão. A razão é a lógica do ser. Mas os deuses não são. Se os deuses não são, não há pistas sobre eles nas essências. Se eles não estão nas essências, os conceitos nada dizem sobre eles. Se eles não estão nas essências, talvez nas aparências haja pistas. Mas a percepção humana das aparências é limitada e suas ideias essenciais mais ainda. _ Se os deuses não são nada, como haveremos de percebê-los? _ Deuses não são essências, mas talvez habitem o movimento do mundo. A lógica faz equações sobre o movimento e chama a isso de conhecimento. Em verdade lhe digo, que conhecer é experimentar.

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Quem conhece melhor: aquele que faz ideia da coisa ou aquele que experimenta a coisa? Não há pistas sobre deuses no reino humano da lógica. Os deuses talvez se encontrem no verso estético da cognoscência humana.

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69 186 _ Ó, Mestre, muitos alegam a inexistência dos deuses. Que devo fazer para que aceitem essa realidade entre nós? _ Ó, criatura em construção, o deus é tudo aquilo que não-é, de modo que não-sendo deus, as outras coisas podem vir-a-ser. _ Não conheço seu propósito, ó Incógnito Mestre! _ A mãe só gera o filho, por que ambos se diferem. A mãe não-é o filho, e o filho não-é a mãe. Quando o deus dá à luz suas criaturas, elas vêm-a-ser, mas, nunca são. Aquilo que nunca é, só se apresenta como um vir-a-ser.

Para quem pensa haver um deus, tudo o que ele cria devia se tornar um ser. Mas, como o deus não-é tudo, o que ele gera só pode vir-a-ser. Se o deus não-é, ele não pode ser dito. De modo que somente pela inefabilidade de sua existência, tudo o que existe pode vir-a-ser. _ Então, ó Ciente Mestre, pelo fato de virmos-aser, o deus também não-é. E se nós sempre estamos vindo-a-ser, não podemos jamais voltar a ser – assim como nunca conheceremos o deus que não-é. _ Certamente, você jamais poderá ser aquilo que está vindo-a-ser. Como também está impedido de não-ser. Portanto, está exilado do deus, pois ele não-é. – explicou o Centauro. _ Mas, se o deus não-é, não pode ser inteligido. – entendeu o aprendiz. _ Em verdade lhe digo, atônito aluno, que você só poderá vir-a-ser humano, quando o deus deixar de ser em sua mente. _ Mas, se o deus não-é e eu o desconheço, com quem eu falo? _ Com sua própria vontade de ser deus.

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70 188 _ Ó, Mestre Centauro, seria possível resumir toda sabedoria ao ato de ‘conhecer-se a si próprio’? _ Eu sou aquele que não tem nome próprio e, por ser inominável, o mundo já me conhece. Conhecer não é dar nome às coisas. Mas sofrer a experiência de suas presenças em nossos corpos. Pode o ser humano conhecer as coisas? _ Creio que sim, ó Patêmico! Nossa inteligência nos garante esse saber. _ Nossa inteligência só conhece as causas das coisas, mas não as experimenta. Conhecer apenas aquilo que causa a existência das coisas é como saber de onde elas vêm, mas não perceber suas presenças.

A inteligência humana só conhece a ideia, o fantasma das coisas, seu objeto; mas desconhece sua existência concreta. Para conhecer as coisas não basta simular seus fantasmas na mente, também é necessário experimentar o sabor que as coisas mesmas têm. Para conhecer-se a si próprio, não basta a ilusão intelectual daquilo que se pensa ser, também se faz necessário sofrer a experiência do existir. _ Então, como posso, Mestre Desconhecido, viajar pelo conhecimento de mim mesmo? _ Eu lhe digo: Abandone a esperança de inteligir sua existência. Alcance a solidão e desbarate a rede de comunicação inteligente com os outros. Isole-se das deduções e induções lógicas que lhe aprisionam ao óbvio. Afaste-se da cega luz da razão que ofusca suas emoções. Ensurdeça-se para a voz única da lógica que faz calar as canções da paixão. Afaste o pensamento inteligente e encontre a paz que reina na insensatez. Relaxe a rigidez dos métodos. Abandone as razões que criam o medo. Abandone-se aos desejos que lhe conectam com a vida. Largue a mão das coisas que lhe prendem aos compromissos.

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Arranque a roupa que silencia seu corpo e se desnude. Saboreie o sofrimento da paixão e recolha o conhecimento da dor e do prazer. Fuja da euforia inteligente e vague melancólico em meio ao caos. Esqueça-se do que é o feio e do que é o belo. Encontre o contentamento sem qualquer motivo. Arrebente as cercas e aventure-se pelo proibido. Levante e ande sem as muletas da razão. Dê adeus a tudo o que mais lhe vale. Caminhe decidido pela estrada que vai dar em nada. Depois de sofrer essas experiências, talvez você comece a conhecer-se a si próprio.

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191 _ Ó, Mestre da Noite, qual é o sentido e a finalidade da vida? _ Eu sou aquele que caminha e com o meu movimento todo o mundo respira. Quem define, impõe limites. Aquele que fixa em si um sentido para a vida, a proíbe de continuar sua jornada. A origem do homem é incerta e o seu fim, desconhecido. Melhor seria manter-se a caminho, que prenderse a um destino. Aquele que sabe seu ponto de chegada, torna o caminho aborrecido.

Belezas não lhe encantam. Perigos não lhe assustam. Tristezas não lhe machucam. Aventuras não lhe entusiasmam. Aquele que conhece seu ponto final, sequer repara nas vírgulas da vida e nos parágrafos do sonho. É como quem lê duas vezes um livro enfadonho. Não dê crédito aos que dizem saber das coisas, o princípio e o fim. Esses são tolas vítimas de um destino ruim. Enquanto percorre a trilha à frente saboreie a paisagem ao lado e desfrute o momento presente, sem pensar no fim do caminho. Pois quem vive a vida pelo presente não é vítima do destino.

Eis o caminho do Centauro.

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72 _ Diga, Mestre, porque tantos se digladiam pela posse da verdade? _ Sobre as coisas que existem, todos acabam entrando em acordo, mas sobre tudo aquilo que é sopro invisível, ninguém concorda. – respondeu o Centauro. _ Quer dizer que a verdade não existe? – inquiriu a aprendiz. _ Sim, ela existe, mas como dupla falsidade. _ Não compreendo seu propósito, Efêmero Sábio. _ A verdade é uma tradução mental do ser das coisas em forma de palavras. Eis sua primeira falsidade: palavras não são coisas.

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Sua segunda falsidade consiste em traduzir em palavras o que as coisas foram, mas nunca aquilo que são. Por que nada é! _ Não entendo sua lógica, Mestre. _ Ora, se tudo está em movimento no mundo, quando alguém diz que algo é, já deixou de ser. As coisas, ou foram ou serão. Por isso, elas estão num inconstante vir-a-ser. Nunca, portanto, se pode dizer a verdade. Se a verdade é dizer o que é a coisa, sua designação é fugaz e imaginária, por que as coisas estão sempre deixando de ser o que foram. No passado, tudo já deixou de ser; no futuro, tudo ainda será. Ninguém pode capturar o presente que é! Assim, tudo está sempre num incomensurável vir-a-ser. _ Mas como conhecer alguma coisa, se tudo está em fluxo? _ Esta é a grande pergunta que o ser humano se faz há milênios. No passado, os homens pensaram que podiam conhecer o que permanecia sob as aparências. Chamaram de essência tudo aquilo que acreditavam perseverar nas coisas – as qualidades do ser. Chamaram todos os movimentos de ilusões das aparências. Assim, disseram ser verdade toda palavra que indicasse uma essência.

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Então, dividiram a unidade do real em dois reinos incompatíveis: aquilo que permanece e aquilo que muda – essência e aparência. _ Mas, o conhecimento das essências não é mais apropriado do que o conhecimento das aparências? – insistiu a aprendiz. _ Em primeiro lugar, as coisas não são suas essências, mas tudo o que nelas existe. Em segundo lugar, ninguém conhece as eventuais essências, sem antes perceber a aparência das coisas. Em terceiro lugar, é o homem quem atribui as essências às coisas; mas como garantir que o homem está sempre certo? _ Porém, o conhecimento do real não pode ser composto de ilusões ou falsidades, mas apenas de verdades. – ponderou a aprendiz, para concluir seu pensamento em seguida – Como estabelecer verdades que deixam de ser verdadeiras, quando as coisas se transformam? _ Se tudo está vindo a ser, nada realmente é, pois o real está sempre em fluxo. Portanto, toda verdade sobre o real só pode ser a história de seu movimento. O fluxo do real se apresenta a nós sob três aspectos: o criativo, o organizativo e o destrutivo: nada se cria antes da destruição, nada se destrói antes da organização e nada se organiza antes da criação. Os três aspectos interagem em círculos concomitantes.

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_ Mas nada que existe é eterno? – indagou curiosamente a aprendiz. _ O círculo se parece com a forma da eternidade: sem início nem fim, as causas se confundem com os efeitos. Eternamente retornando a si, o círculo é sempre recomeço. Acerca das coisas reais, devemos fechar os livros, calar a boca e abrir o coração.

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E o Centauro refletiu:

Eu sou aquele que doa sentidos e, por meu intermédio, o mundo ganha significado. Eu sou aquele que diz o ser e, por minha intervenção, as essências são atribuídas às coisas. Eu sou aquele que define e, pela minha compreensão, os conceitos da inteligência são criados. Eu sou aquele que interpreta e, por meu entendimento, emergem os conhecimentos do mundo. Eu sou aquele que flui e, como todas as coisas, estou sempre vindo a ser. Eu sou aquele que nunca é; e nada sendo tudo posso ser – eis a liberdade que me transforma.

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Eu sou aquele que é só; por causa de minha solidão, sou a medida de todas as coisas. Eu sou aquele que não se identifica; e, pela minha diversidade me torno indivíduo. Eu sou aquele que existe e, pela minha existência, conheço o pensamento. Eu sou humano.

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Diante do olhar intrigante da jovem pupila, o Centauro lhe disse: _ Eu sou aquele que erra e, pela minha errância giram alucinados no vácuo da lógica os conceitos rasgados dos pensadores mortos. _ Ó, Mestre Vagamundo, como fazer para ter certeza acerca dos pensamentos e das ações? – perguntou a jovem aprendiz. _ Erre! – resumiu a ela, o pensador. _ Não entendo seu propósito, ó Sutil Errante. _ O melhor caminho a seguir só se alcança após muita errância na vida. O que define o acerto são os erros que se multiplicam em cada um de nós.

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Acertar só pode acontecer depois de muitas tentativas errôneas. _ Mas não há como acertar de uma só vez? – indagou a menina. _ Não há acerto auferido pela sorte. Pois o acerto é fruto do conhecimento do erro. O acerto sem a experiência do erro é adivinhação, própria dos mágicos! A mágica é divertida, mas não é eficiente. Não há eficiência na adivinhação, mas na cognição do erro. Conceitos não são conhecimentos, mas apenas registros de experiências acertadas. Entre dizer o certo e fazer o certo vai uma distância que é coberta pelos erros. Não há acerto sem a experiência do erro. O erro não define apenas o acerto, mas também inventa outros conhecimentos. Só os anjos acertam por conceitos, pois os humanos precisam experimentar pelos erros. Neste mundo não há anjos, de modo que experimentar os erros é o único caminho para criar os conceitos. O errante é mais virtuoso que os adivinhos do conceito. Errar pelo mundo é o único caminho que traz a nós a dimensão do acerto. Ninguém pode dizer a você o que é o certo. Mas eu posso lhe afirmar que errar é mais importante que acertar.

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201 _ O que é o poder? – indagou o aprendiz. _ O poder é a capacidade de dispor sobre algo. – iniciou o Centauro. A razão quer o poder sobre o fluxo das paixões. O mercado quer o poder sobre a circulação do dinheiro. O cientista quer o poder sobre a composição da matéria. A religião quer o poder sobre o comportamento de seus fiéis. O Estado quer o poder sobre a liberdade do povo. Alguém que almeja o poder, conspira contra a autarquia dos indivíduos.

A razão precisa impedir a fluidez das paixões. O mercado precisa dirigir a circulação do dinheiro. O cientista precisa controlar a composição da matéria. A religião precisa conter as atitudes de seus fiéis. O Estado não pode conviver com a liberdade do povo. _ Pode haver uma sociedade sem poder? – insiste o aprendiz. _ Não pode haver sociedade sem poderes que a constituam. – sentenciou o Centauro. O poder é a coerção exercida a partir de regras e crenças, das quais depende a sociedade para viver e prosperar. Em uma sociedade malsã, a razão domina as paixões, o mercado domina o dinheiro, o cientista domina a matéria, a religião domina as mentes e o Estado domina o povo. Em uma sociedade sadia a razão informa as paixões, o mercado faz circular o dinheiro, o cientista entende a matéria, a religião liberta as mentes e o Estado promove o povo. Entre o poder que domina e o poder que promove, existe o intervalo da ignorância. Mas

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a sabedoria do povo não se constitui apenas da instrução escolar, porém muito mais da experiência da liberdade. As maiores ditaduras não têm medo da instrução, porque a linguagem é uma forma de obediência ao poder. Qualquer poder teme, de fato, é a experiência de liberdade de um povo. O exercício do poder em uma sociedade só deve constituir-se a partir do mais livre e espontâneo consentimento individual de cada cidadão que compõe o conjunto da comunidade. Por isso, dizer sim ou não em eleições, não é uma experiência de liberdade ou autonomia. O consentimento dos indivíduos para o exercício do poder deve ser constantemente requerido e compartilhado com a comunidade, caso contrário o domínio sobre o povo substitui sua promoção.

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76 204 _ Ó, Mestre da Paixão, qual é a medida do justo saber? _ O saber é desmedido. De outro modo não seria o saber. Ouve o que tem sido dito: “O pensamento não se conforma com a paixão!” Eu, porém, lhe digo que é a paixão que nos conduz à sabedoria. _ Como pode ser isso, Mestre, se todos afirmam ser a paixão a ruína da razão? _ Há muitos tolos entre aqueles que se imaginam sábios. As regras da tradição demandam serenidade, suspensão do desejo, ausência de paixão. Negam espaço às afecções para alcançar a essência da razão, afastando o pensador de seu próprio corpo.

Querem um mundo luciferino, liberto da história das coisas, do fluxo da vida. Querem uma inteligência desencarnada, apática e suprassensível. Uma inteligência que se quer perfeita, imutável, divina. Ao comparar sua racionalidade com as leis universais os pensadores acreditam que a razão é ativa. Ledo engano! É a paixão que nos permite receber e elaborar experiências obtidas pelo corpo em seu atrito com o mundo. A paixão é o motor ativo e reativo da ação humana, que modifica o indivíduo e o incentiva a transformar a realidade. A paixão não é inativa. Passividade não é inércia. A potência humana provém da energia da paixão. A passividade é uma atitude de aprendizado, gerado pela experiência da paixão. A razão guarda em si a apatia! A razão não percebe, não experimenta, nem sente. A razão apenas repete regras conscientes. Todo aquele que age também é coagido pela reação que produz.

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A ação humana implica uma reação igual e em sentido contrário. Toda atividade humana tem seu viés passivo. Toda paixão também é uma atitude. O prazer e a dor são percepções de experiências. O mundo sem prazer nem dor é apático e inerte. Viver é delicioso e dolorido! A paixão é a qualidade do sofrimento. Mas sofrer é experimentar. Experimentar é conhecer. Conhecer é apaixonar-se. Não sofremos apenas dores e sentimentos ruins. Também sofremos o susto de uma inesperada brisa de primavera, sofremos a surpresa de um delicioso perfume, sofremos o espanto de uma paisagem exótica, sofremos a investida sensual de um desejo, sofremos o clímax de um gozo, sofremos o escândalo de um paradigma quebrado. Paixão é sofrimento, mas sofrer é conhecer pela experiência. Para conhecer de modo passional é preciso ser paciente. Paciência é a atitude que registra os afetos das experiências. A experiência constrói o conhecimento do mundo.

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A razão não se apaixona porque é impaciente. Sua lógica não quer se transformar pela experiência, mas transformar o mundo em conceito. Não existe paixão onde tudo está previsto. A lógica quer a previsão completa do futuro. No mundo da lógica, o inesperado é sinônimo de fealdade, antônimo de verdadeiro, oposto ao bem. A razão se apreende pela mente sem sair de si mesma, enquanto enxerga o mundo pela janela do conceito. Mas o conhecimento verdadeiro exige que passemos pela experiência.

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208 _ Ó, Voluntário da Vida, qual é a virtude que nos permite escapar de um destino malsão? – perguntou a aprendiz. _ Eu sou aquele que deseja e por minha vontade ilumino o caminho adiante. Ouça: aquele que tiver tudo, mas não tiver vontade, perderá até mesmo a própria vida. Porque, de fato, sem a vontade o ser humano definha. Ainda que a pessoa tenha saúde, se não tiver vontade cederá à moléstia. Ainda que a pessoa tenha sabedoria, se não tiver vontade habitará as trevas. Ainda que a pessoa tenha riqueza, se não tiver vontade encontrará a miséria.



A vontade liberta do destino. Sem vontade os homens são pássaros cativos. A vontade sustenta a vida. Sem vontade o homem está preso à sua sina. A vontade edifica a liberdade. Sem vontade o homem é vítima da fatalidade. A vontade persevera. Sem vontade o homem se entrega. A vontade alavanca o trabalho. Sem vontade o homem chafurda no fracasso. A vontade é o fogo que forja a vida. A boa chama alimenta o sonho e ilumina a via.

_ Ó, Centauro, a manifestação de minha vontade não poderia ofender ou vilipendiar meu semelhante? – indagou a aprendiz que o ouvia. _ Na sociedade humana, em todos os tempos, as pessoas trocam de lugar. Em cada movimento ascendem ou descendem conforme o emprego de suas vontades. Ai, daquele, porém, que não manifesta sua vontade decididamente, esse é o mesmo que se cobre de correntes. Se há algum mistério no sentido da vida, o segredo está na vontade. _ Mas como posso exercitar minha vontade, Senhor de Si, quando a filosofia exalta o direito do outro? – perguntou a aprendiz. _ A virtude nada mais é do que o meio termo entre dois vícios. A filosofia faz o elogio da apatia, porque teme os excessos da vontade. Lembre-se: para o seu semelhante você é o outro.

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Há vontades que são boas e há vontades que não são. Mas a falta de vontade é de longe a pior das maldições. Pois, em verdade lhe digo, que o indivíduo pode ser frio ou ser quente, mas aquele que se faz de morno se transforma num doente. A sociedade humana busca educar a mente, fazendo calar a vontade. Tenta empilhar virtudes encaixotando a vontade. Pensa realizar grandes feitos menosprezando a vontade. Imagina angelizar o ser humano, satanizando a vontade. Mas não há como se movimentar daqui para ali sem o ímpeto da vontade. _ Então, Centauro, como educar minha vontade para manifestar a fortuna em minha vida? – disse um transeunte que ouvia a preleção. _ Perceba aquele que é diferente, nele a vontade se manifesta plenamente. Posso lhe dizer que a apatia é a moléstia da homogeneidade. Observe aquele que não tem vontade, nele a mesmice se transforma em identidade. Por não ter vontade, o apático se deixa ser igual. Com a vontade, o indivíduo age de forma integral.

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Por não ter vontade, o apático aceita o convencional. Com a vontade, o indivíduo movimenta uma força genial. A vontade está na raiz da vida – uma pedra não se move. Se a vida não fosse mutante, logo se entregaria à morte. O sucesso da vida está em sua adaptação ao meio ambiente. Somente escapam da extinção os seres que são semoventes. A vontade é persistente; não esmorece diante dos obstáculos, pois aposta na validade de seus propósitos. A vontade é exigente; não transige com seus propósitos, pois a razão dos outros não lhe convém. A vontade é desesperada; não espera pela realização de seus propósitos, pois sabe que eles só acontecem por meio de sua ação. A vontade é passional; não pondera acerca de seus propósitos, pois sabe que eles se alimentam de sua paixão. A vontade é diferente; não se identifica com os propósitos dos outros, pois cada qual tem de seguir seu caminho. A vontade é encantadora; não se submete à realidade, pois sua gana visa materializar os sonhos. A vontade é memoriosa; não se atola na amnésia da mesmice, mas se recorda sempre daquilo que se difere.

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A vontade é intensa; não murcha na inércia da apatia, pois seus desejos transbordam o mundo. A vontade é excitante; não se esconde sob a fria lápide da razão, pois sua luxúria faz entusiasmar o mundo. A vontade é vital; não aguarda pela morte para se consumar, pois seu desejo é ser o móvel da vida. _ Ainda assim, ó Patêmico Mestre, como posso educar minha vontade? – insistiu a estudante. _ Ganhe o gosto pelo estranhamento da diversidade! Para ser igual a todo mundo não é preciso ter vontade, basta deixar-se levar pela maré da normalidade.

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