O CANTO ENCANTADO DA IDENTIDADE EM RAIZ DE ORVALHO

June 9, 2017 | Autor: André Lira | Categoria: Poetics, Mozambican Literature, Poética, Mia Couto
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O CANTO ENCANTADO DA IDENTIDADE EM RAIZ DE ORVALHO

André Vinicius Lira Costa1 INTRODUÇÃO Nesse curto ensaio, pensaremos a identidade no diálogo com o poema “Identidade”, de Mia Couto. Num diálogo, investigaremos em que medida a identidade moçambicana não pode ser cindida da identidade de cada homem; são questões coreferentes. Consideramos suspeita a concepção de que a identidade é um conjunto de características, porque será a tradição cultural do Ocidente, com seu profícuo arcabouço teórico, a responsável por cronologizar, explicar e louvar todas as identidades. Exatamente de acordo com aquele conceito de homem, sociologicamente dado, o cantar dos sábios e as diversas experiências poéticas são devidamente explicados de acordo com uma lógica e um simbolismo superficiais e redutores. A leitura da literatura moçambicana é feita exatamente da mesma forma: encarada como objeto decorrente de evoluções sociais que a justificam; criada por um sujeito que projeta sua consciência, de acordo com uma intenção (estética, ideológica etc); lida por outros sujeitos quase sempre literalmente, que confirmam, após a leitura, seus a prioris historiográficos, enquanto se “deleitam” na estética do poema. Tentaremos surpreender, em realidade, a fraqueza da dimensão adjetiva e estética, cultural, em detrimento da singularidade substantiva do próprio, ontológico. 1. O POEMA IDENTIDADE E SEUS MOVIMENTOS

Identidade Preciso ser um outro para ser eu mesmo

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Primeiro movimento: o auto-diálogo

Graduando em Letras/Português-Literaturas, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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Sou grão de rocha sou o vento que a desgasta e areia sustentando o sexo das árvores

Segundo movimento: o heterodiálogo

Existo, assim, onde me desconheço aguardando pelo meu passado receando a esperança do futuro No mundo que combato morro no mundo porque luto nasço.

Terceiro movimento: o diá do logos

2. A INTERPRETAÇÃO DO POEMA O que é identidade? Antes de ser fundamento da personalidade, de algo que não muda, diz de uma entidade do mesmo, id-entidade. As mais diversas entidades somente as são porque não é uma outra entidade que diferencia cada uma, mas porque sua referência ontológica, o ser, faz com que cada uma se diferencie na identidade com o ser. Isso quer dizer: a tensão singular entre permanência e mudança, que se verá no terceiro movimento. Para ser eu mesmo, preciso ser um outro. Essa condição é tão urgente que o poema a pospõe: Preciso ser um outro // para ser eu mesmo. Nessa posposição não se sugere ordem ou causalidade, pois isso seria como se fossem coisas segregáveis. O que parece se sugerir é a co-pertinência entre eu, ser e outro. Sou o que sou, o que constitui tanto um eu quanto um outro. A leitura da primeira estrofe do poema como a libertação sócio-política da nação moçambicana já é um juízo anterior e historiográfico sobre quem é esse eu, como que num eco da voz do autor. Essa leitura já aborta toda possibilidade de diálogo identitário entre leitor-obra que não ateste a diferença radical entre o eu do leitor e o eu do poema. Não há um eu a partir de que todos os outros são outros. Cada leitor é tanto o eu quanto um outro do poema. Um outro, uns outros integram cada um e, juntos ao eu, formam uma identidade. Como essa formação é menos de uma complementaridade, mas mais de uma disputa, uma tensão, uma incerteza sem limites definidos, chamamos o primeiro movimento de “autodiálogo”.

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O que configura o auto-diálogo? A urgência de ser-e-não-ser. É nesse “e” que se configura o auto, o próprio do diálogo, assim como a abertura. Não somos o que somos e acabamos aí. Estamos a todo momento existindo poeticamente: somos o que somos, mas há algo que sempre não-é, que nos possibilita ainda mais ser nós mesmos. Essa necessidade sempre se constitui a partir de uma abertura para os outros, sejam eles externos ou internos. É por escutar e responder à linguagem, já sendo linguagem, que o ser consegue ser tanto eu, quanto outro, numa diferença negativa ou afirmativa. É por isso que conseguimos conversar, trocar informações e na diferença identificativa sermos o que somos, não por um dado fundamental dado por uma estrutura proposicional (“alguém (é) bom”). Diria

(...) Que sou eu e tu, que sou fala e escuta, dentro de mim mesmo. Enfim, que sou e não-sou. O eu é e não é. (...). A questão está em saber se o eu é a fonte da proximidade e distância.i

Preciso ser um outro // para ser eu mesmo. Torna-se mais claro que, para que um eu se constitua, é imperativa a diferenciação identificativa entre os outros (não-ser), na habitação da linguagem, isto é, no próprio modo de ser. Como se situa num entre, sempre enquanto diz, também não-diz. Não-dizer, não-ser é o vazio originário que permite que tudo tenha origem e irrompa, efetivamente seja numa abertura, num diálogo interno-e-externo. A segunda estrofe, a que chamamos “hetero-diálogo”, é a que vai nos apresentar como a diferença identificativa interna, irá necessariamente se fazer junto de “outros” que são externos a um certo ser, e delimitam tanto um quanto os outros. Por que não simplesmente dizer “não-sou grão de rocha, não-sou vento que a desgasta...”, já que, no hetero-diálogo, há a ciência do que cada um é a partir de uma diferença negativa? Porque não podemos esquecer que, para ser o que somos, precisamos ser também o que não-somos. Ser o que não-somos é garantido pela linguagem, pelo diálogo. Esse diálogo não é comunicativo. É pelo auto-diálogo, do primeiro movimento, que posso escutar a fala do outro. Posso escutar o que é o outro: aí é que ele se configura na sua

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diferença, na sua distância. E assim já nos aproximamos dele. E assim, escutando, também configuramos o próprio auto-diálogo, enquanto fala e escuta de si mesmo. O diálogo entre auto e hetero-diálogo já é um outro diálogo, que dá morada aos outros dois. Assim, para ser grão de rocha e vento que a desgasta e pólen sem insecto e areia sustentando // o sexo das árvores, é preciso que a realidade seja como tal, que cada ente da natureza efetivamente exista. Há algo que antecede o diálogo: o silêncio. Esse silêncio é a Terra, mãe primordial, em cujo berço se figuram os mais diferentes entes como mundos. A identidade radical desses mundos, diferentes, é sempre serem filhos da Terra. Enquanto se constituírem mundos, estão já sendo filhos de Terra, ininterruptamente. Essa Terra originária não se confunde com a terra física. Isso já se experienciava em Moçambique na vigência da ancestralidade enquanto Memória, ou na sacralidade do canto como aquilo que confere à existência (ontopoético, portanto). O fragmento 36 de Heráclito inicia: “Para os ventos, morte vem a ser água, para a água, morte vem a ser terra; mas da terra nasce água, da água, vento”ii. Temos uma clara demarcação, pela morte, do que cada coisa é. Aqui se mostra o espetáculo da disputa entre vida e morte, desvelando o sentido do ser. A voz do primeiro movimento ecoa no fragmento do pensador grego: [a água] precisa ser um outro [a terra] para ser ela mesma [a água]. Mais uma vez, constatamos que a identidade está sempre se estabelecendo como diálogo. E também ecoa o segundo movimento, aqui: Sou grão de rocha // [e] sou o vento que a desgasta. De ser a rocha (nascividade) e o que a desgasta (morte-ocultamento), a identidade dialógica se firma, para além de qualquer lógica, que certamente a taxaria de paradoxal. A diferença entre uma identidade dialógica e uma meramente lógica parece estar justamente nesse prefixo que distingue as duas denominações: diá-. No terceiro movimento, dividido em duas estrofes, tem-se a experienciação do ser em sua eternidade, no seu jogo com a Memória. A terceira estrofe diz: Existo, assim, onde me desconheço // aguardando pelo meu passado // receando a esperança do futuro. Aqui, a leitura tradicional vê uma distopia social criada pela nãoconcretização dos sonhos e das utopias propagadas pelo movimento de independência de Moçambique. Antes, porém, o assim nos faz uma indicação. Essa referência aponta para os dois outros movimentos. Os movimentos, as ações, já falam por si mesmas. E a

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estrofe prossegue: onde me desconheço. É o lugar onde se existe. É o não-ser originário, em que o vigor da poesia – poíesis – figura como existência, é ação, movimento. O não-ser originário é a eternidade, é aonde essa existência se dirige, a Cura como horizonte de todas as procurasiii. Aguardando pelo meu passado está necessariamente em tensão com receando a esperança do futuro. Essa espera pelo passado e receio da esperança do futuro não podem ser lidos no esquecimento do primeiro verso desse movimento: Existo, assim, onde me desconheço. Agora esse onde também transparece suas dimensões temporais. Existo na esperança do futuro, que receio por, precisamente, ser um lugar-tempo de desconhecimento: dele, não sabemos. Mas também o sabemos à medida que aguardamos pelo nosso passado. É a auto-escuta do que somos e não-somos. Essa auto-escuta já vai configurar e atualizar os caminhos do passado, no futuro. O presente já se torna instante de eternidade. A última estrofe do poema reúne todas as outras ao se revelar a ética poética do ser. No mundo que combato // morro // no mundo porque luto // nasço. canta com duas diferentes palavras, combato e morro, que dizem o mesmo: a vigência poética, a mudança excessiva e ambígua da existência. Aqui, a luta é a luta de ser-e-não-ser, é a dúvida na resposta à questão “O que/quem sou eu?”. A tendência dessa disputa, que entendemos como o amor, é exatamente o combater, o lutar, é a dinâmica da realidade de possuir o não-ser, o oculto, como proveniência e destino de todo manifestar-se, como no fragmento 123 de Heráclito: phýsis krýptesthai phileî, “Surgimento já tende ao encobrimento”iv. Nessa dinâmica, o surgimento e o encobrimento se identificam em sua diferença, pelo amor. A resposta que o poema nos enseja é a experienciação radical da vida para que, nessa apropriação identitária, se encaminhe sua plenitude na Morte.

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Referências bibliográficas:

ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originários. 4ª ed. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005. CASTRO, Manuel Antônio de. “O mito Cura: o apelo e escuta da pro-cura”. Internet. _________________________. “Os três diálogos e o logos: o amar”. Internet. . COUTO, Mia. Raiz de orvalho. 1ª ed. Maputo: Cadernos Tempo, 1983.

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CASTRO, s/d, p. 3. ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO, 2005, p. 67. iii CASTRO, op. cit., p.1. iv ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO, op. cit., p. 91. ii

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