O caráter etnocêntrico e conservador do uso exacerbado de comparações na pesquisa histórica.

September 30, 2017 | Autor: I. Costa | Categoria: Teoria e metodologia da história
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O CARÁTER ETNOCÊNTRICO E CONSERVADOR DO USO EXACERBADO DE COMPARAÇÕES
NA PESQUISA HISTÓRICA







IRACI DEL NERO DA COSTA (1)
São Paulo, dezembro de 2001






Sempre correndo o risco de exagerar na crítica, aventuro-me a
tecer alguns comentários sobre o uso destemperado da comparação, a
qual, para alguns, é erigida em verdadeiro método, ou, ao menos, em
tópico indispensável do trabalho científico desenvolvido em qualquer um
dos inúmeros campos comportados pelas ciência sociais.

Não me refiro aqui aos estudos comparativos, em tudo e por tudo
justificáveis e indispensáveis à compreensão mais larga e profunda de
qualquer capítulo da vida em sociedade. Nem penso nos confrontos,
sempre necessários, que visam a realçar esta ou aquela semelhança ou
fitam as discrepâncias que podem ser tidas como significativas para o
entendimento dos fatos ou argumentos em questão. (2)

Não, o que coloco em foco é a comparação pela comparação, vale
dizer, a que não se vê suportada por propósitos claros e definidos, não
tendo por objetivo, portanto, o esclarecimento de nenhuma faceta do
objeto estudado. Que as há, as há. (3) Não me ocupa, pois, demonstrar
sua existência, mas, tão só, especular sobre suas causas. A meu juízo,
é possível identificar dois condicionantes da postura aqui criticada;
vejamo-los.

O primeiro diz respeito à comparação compulsória entre a área em
estudo e o país de origem do autor. (4) Assim, todo fenômeno
considerado em dada paragem tem de ver-se, necessariamente, confrontado
com a forma que tal fenômeno assumiu ou assume nas plagas do
pesquisador. Denota-se neste caso, a meu ver, uma clara demonstração de
etnocentrismo. Centrado em suas origens, em sua cultura e na história
de sua terra natal, o estudioso, como que compulsivamente, vê-se levado
a estabelecer com respeito aos resultados alcançados para dada área, e
na maior parte das vezes como mero contraponto, a comparação com
situação análoga própria de seu país. É como se "as coisas alheias" só
pudessem ser alcançadas e compreendidas quando mediadas pela cultura e
pela história do pesquisador. Nesse caso o etnocentrismo revela-se
independentemente do estabelecimento de juízos de valor e na ausência
de qualquer manifestação explicita de preconceito, pois o "preconceito"
está no fato de se efetuar a comparação, que se impõe como irrecorrível
e "natural"; ainda mais, na medida em que é visto como "natural", tal
movimento escapa à consciência crítica do estudioso. (5)

O segundo condicionante, associado ao já descrito, prende-se à
dificuldade de reconhecer e aceitar aquilo que se define como novo ou
diferente com relação à vivência e aos conhecimentos do pesquisador. O
novo ou o diferente não são apreendidos como uma experiência
efetivamente original deste ou daquele povo, pois só podem ser
integrados ao mundo mental do estudioso se forem referidos, mediante o
confronto, ao que lhe é familiar. É como se o estranho, e eventualmente
inusitado, só passasse a existir e a ser compreendido depois de
estabelecida sua maior ou menor proximidade com aquilo que é
costumeiro. Neste caso, o próprio distanciamento passa a fazer parte da
"existência" do fenômeno em questão. Como se vê, neste caso estamos
numa zona perigosa, pois é contígua à do preconceito.

Etnocentrismo e conservantismo, estes dois condicionante inter-
relacionados, estão na raiz, segundo penso, da atitude daqueles
pesquisadores que, por vezes, adotam a comparação como verdadeiro dogma
metodológico. Em face, pois, da ineficácia e perfeita dispensabilidade
representada pela "exaltação" e excesso dessa prática, cumpre alertar
os que se iniciam na pesquisa histórica sobre a necessidade de, por um
lado, terem claros os objetivos perseguidos quando introduzirem
comparações em seus estudos e, por outro, considerarem os limites dos
confrontos que vierem a efetuar.







NOTAS




1. Alguns colegas leram a versão preliminar desta apostila e mandaram-
me comentários que vão nestas notas. Sem comprometê-los com minhas
opiniões e erros sou grato a todos: HG (um amigo que não quer ser
nomeado), Nelson Nozoe, Francisco Vidal Luna, Julio M. Pires,

2. De acordo com Julio M. Pires é preciso "deixar mais claro que a
comparação pode ser um instrumento útil quando se trata de um recurso
didático, sobretudo quando destinado a um público não especializado". E
acrescenta: "Isto é mencionado de forma muito rápida no final do
segundo parágrafo, assim, a observação quase passa despercebida".

3. Embora admita que por vezes ocorre o uso imoderado e injustificável
de comparações, Francisco Vidal Luna enfatiza a necessidade de
"referenciais". Diz ele: "acho melhor uma comparação do que a falta de
referencial. É verdade que muitas vezes comparam-se coisas sem sentido,
sem explicar o objetivo da comparação e sem analisar o que significa a
divergência ou a semelhança. Mas acho que é natural que o pesquisador
volte ao que melhor estudou ou ao que estudou primeiro e esse seja seu
marco de referência. Por muitos anos pensei os resultados que eu
obtinha para São Paulo sempre tendo como ponto de referência Minas.
Agora São Paulo é meu ponto de referência. Se estudar outra região vou
compará-la com os resultados já conhecidos".

4. Para Nelson Nozoe este primeiro condicionante já é nosso conhecido:
"pareceu-me ser um problema semelhante àquele colocado no começo da
antropologia: traduzir, para o entendimento dos europeus do séc. XIX,
comportamentos, culturas, hábitos, valores de povos primitivos".

5. Sobre tal escolha lembra HG: "O fato de comparar com a área de
origem do pesquisador pode dever-se a um recurso para facilitar a
compreensão do texto quando o público alvo são leitores do país de
origem do pesquisador"; e acrescenta, pensando nas limitações que os
pesquisadores impõem a seus próprios trabalhos: "os perigos são
similares, acho, ao que ocorre com historiadores que escolhem temas e
áreas de pesquisa histórica a partir do presente, arrolando problemas
atuais sobre os quais é importante refletir: há o risco, por um lado,
de anacronismo, ou seja, de julgar o passado com valores e critérios do
presente, e, por outro, de evitar escolher temas e regiões que não
estabelecem laços claros de continuidade entre o passado e o presente,
porque seriam de pouca utilidade para o entendimento de problemas
atuais, embora os resultados dessas pesquisas pudessem vir a ser
importantes para compreender o próprio passado".
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