O Carpeaux dos outros: Correspondência, vida intelectual

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O Carpeaux dos

Correspondência, vida intelectual O que pode revelar o epistolário de José Guilherme Merquior | por joão cezar de castro rocha A história de um arquivo

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trabalho pioneiro de Marcos Antonio de Moraes com a correspondência de Mário de Andrade esclareceu definitivamente a centralidade da epistolografia na reconstrução tanto de um sistema literário quanto do percurso individual de um criador. O esboço que apresento de uma análise inicial do acervo de José Guilherme Merquior não seria possível sem a metodologia desenvolvida pelo autor de Orgulho de jamais aconselhar1. Nesse sentido, vale a pena recordar o processo de montagem do “Arquivo José Guilherme Merquior/É Realizações”. Graças à exemplar generosidade de Julia Merquior, o editor Edson Manoel de Oliveira Filho teve acesso a aproximadamente 50 caixas, fechadas, contendo toda a documentação reunida pelo autor de A natureza do processo. De imediato, mencione-se que os papéis de Merquior já seencontravam em “estado de arquivo”, por assim dizer. A ordenação dos documentos, definida pelo próprio Merquior, foi respeitada, servindo de orientação para a primeira classificação do acervo2. (Se levarmos adiante o paralelo com Mário de Andrade, recorde-se que o autor de Macunaíma organizou seu vasto material com rigor que não deveria nada ao método propriamente germânico de um Theodor Koch-Grünberg, por exemplo.) Curiosamente o setor que mais exigiu trabalho foi o da correspondência. Compreende-se bem a dificuldade. Nesse caso, um autêntico embarras de choix. Pois há de tudo nas missivas de Merquior; aliás, o acervo contém sobretudo a correspondência passiva do pensador.

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e pensamento Cartas, cartas, cartas A precocidade foi a marca-d’água da trajetória de Merquior. Antes de completar 20 anos, o jovem crítico já havia conquistado notoriedade através de artigos publicados no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Seu carteio, por isso mesmo, atravessa três décadas, aproximadamente de 1961 a 1991. E que décadas! Não apenas no Brasil. No plano internacional, o período abrange o auge da Guerra Fria, com a crise dos mísseis em Cuba, ocorrida em outubro de 1962, assim como seu término, pelo menos formal, com a queda do Muro de Berlim, sucedida em novembro de 1989. Um tempo, portanto, traduzido à perfeição pelos versos de Carlos Drummond de Andrade: “Esse é um tempo de partido,/ tempo de homens partidos”. Não será casual, portanto, que discussões acerca do marxismo e do liberalismo sempre retornem aqui e ali na correspondência. No plano brasileiro, esses foram trinta anos dramáticos: passamos pela eleição e renúncia de Jânio Quadros; a posse de João Goulart, incialmente sob o parlamentarismo, depois sob o presidencialismo, cujo retorno foi decidido em plebiscito; chegamos ao golpe militar de abril de 1964 e os longos anos de chumbo da ditadura; o processo lento de redemocratização e a promulgação da anistia; e, por fim, a realização das primeiras eleições diretas para presidente da república. Essa simples lista de eventos esclarece o alcance da correspondência de Merquior, pois, em mais de uma ocasião, para além de dados próprios do dia a dia dos missivistas, as questões ideológicas e políticas do calor da hora dominavam a conversa.

(Cuidado, porém: em alguma medida, é mister enriquecer a leitura da obra do autor de O estruturalismo dos pobres, distanciando-a, ainda que estrategicamente, das polaridades e, ainda pior, dos binarismos definidores dessas três décadas.) Outra observação importante para caracterizar a complexidade da correspondência aqui discutida: a primeira carta de José Guilherme Merquior a Claude Lévi -Strauss data de 1966. Em outras palavras, embora o volume maior das missivas diga respeito à troca com brasileiros, deve-se registrar o número igualmente considerável de mensagens com pensadores e escritores de vários países, aí incluídos os nomes, entre outros, de Ernest Gellner, Norberto Bobbio, Claude Lévi-Strauss, Raymond Aron, Isaiah Berlin. Isso para não mencionar o nutrido carteio com editores de seus últimos livros, escritos em inglês. Não é tudo. Leitor onívoro, dono de uma curiosidade renascentista — no primeiro momento, especialmente estética e filosófica; em seguida, sobretudo política e social —, sua correspondência envolve poetas, romancistas, jornalistas, críticos literários, cientistas políticos, sociólogos, filósofos, diplomatas e mesmo políticos, compondo um arco de interesses e um horizonte de preocupações de um alcance pouco comum – e isso em qualquer latitude. Uma ou outra carta, apenas Você entendeu: começo a esboçar um futuro livro, dedicado ao método crítico de José Guilherme Merquior,3 a ser elaborado em íntima conexão com sua correspondência, em particular, e com a totalidade de seu acervo, em geral. Neste artigo, portanto, apenas discutirei umas poucas cartas, assinalando tão-só dois ou três elementos e, acima de tudo, sublinhando certo gesto intelectual que importa, e muito, resgatar. Ao trabalho, pois. Começo com uma carta do jovem Merquior, enviada ao consagrado Manuel Bandeira em 27 de janeiro de 1962:

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fotos: arquivo josé guilherme merquior/é realizações

dossiê merquior Recupere-se o contexto. O poeta fora encarregado da organização de uma antologia, Poesia do Brasil, lançada em 1963. Tarefa feita sob medida para o autor de O ritmo dissoluto; afinal, conhecedor mais completo e sofisticado da tradição literária seria difícil de encontrar. (Mais uma vez — e isso em qualquer latitude.) Missão, sem embargo, delicada. Bandeira iniciou seus exercícios poéticos com dicção parnasiana, e, se não compareceu à Semana de Arte Moderna, autorizou a leitura de “Os sapos” no festival. A partir de então foi um dos criadores decisivos da poesia brasileira, e um de seus marcos no século 20. Nesse caso, como superar um dilema ético elementar, isto é, como incluir poemas seus na coletânea? Autêntico homem-ponte entre o passado recente, o presente vanguardista de 1922 e o futuro possível da poesia pós-1945, o autor de A cinza das horas lançou novo elo entre tempos, convidando, em suas palavras, “algum rapaz menor de trint’anos: ele representaria para os da geração de 22 uma espécie de posteridade”. Desse modo, coube a Merquior o encargo de selecionar os poetas modernos e seus poemas mais representativos. Impressiona que o jovem crítico tenha sido escolhido pois, no fundo, ele estava em plena formação. Na recordação de Bandeira, “José Guilherme Merquior, a quem eu não conhecia ainda pessoalmente, senão por alguns artigos de crítica de poesia publicados no suplemento literário do Jornal do Brasil”. Nesse contexto, a carta de Merquior adquire cor própria. O respeito, reverência mesmo, é evidente. No entanto, sobressai sua independência, traço que permanecerá o motivo definidor de um gesto intelectual de grande alcance no mundo contemporâneo. (Calma! Espere o final deste breve artigo.) Veja-se, então, a carta enviada ao autor de La pensée sauvage no dia 14 de novembro de 1966:

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Dois pontos chamam imediatamente a atenção. Eis a caracterização fornecida por Merquior de si mesmo: “um jovem crítico literário brasileiro”. Em missiva posterior, escrita em Londres para Ernest Gellner, apresentou-se como “sociólogo diletante”, numa indicação eloquente da ampliação progressiva de seu horizonte de preocupações. Além disso, ao mencionar seu conhecimento da obra do antropólogo francês, não hesitou: “que eu conheço, por assim dizer, toda”. Nada menos do que isso: toda a obra de Claude Lévi-Strauss! Se o antropólogo ficou surpreso, não se sabe. Contudo, a leitura de ácidas páginas de Tristes tropiques, dedicadas justamente à atualização vertiginosa do repertório bibliográfico dos alunos da recém-fundada Universidade de São Paulo, autoriza imaginar aquele sorriso no canto dos lábios que o pai de Janjão recomendava evitar a todo custo. No entanto, em breve, a argúcia e sobretudo a disciplina do brasileiro seriam devidamente reconhecidas. Explique-se o caso. Dois dias depois do envio da missiva, o jovem diplomata de 25 anos recebeu uma resposta que deve ter sido celebrada com uma bela garrafa de vinho:

Inscrito como aluno regular no Collège de France, Merquior tinha a obrigação de desenvolver um trabalho, a ser exposto oralmente numa das sessões do seminário de Lévi-Strauss. Ambicioso, e, ao mesmo tempo, fiel às suas origens, o autor de Razão do poema expandiu o ensaio de maior fôlego do livro de estreia, no qual discutiu um tema que nunca abandonou, “Estética e antropologia – Esquema para uma fundamentação antropológica da universalidade da arte”.4 Pois bem: L’Esthétique de Lévi-Strauss: o tema da exposição oral do “jovem crítico literário brasileiro”. O desafio implicava a releitura de “toda a obra”, isolando frases, identificando parágrafos e questões atinentes à reflexão estética. O resultado da ousadia foi mais do que recompensador.

Vejamos. Um fragmento de sua reflexão originou o artigo publicado na Revue d’Esthéthique (vol. 23, nº 3-4, 1970, p. 365-382), “Analyse structurale des mythes et analyses des œuvres d’art”. O trabalho, na íntegra, foi traduzido por Juvenal Hahne Jr. e publicado em 1975 (Editora Tempo Brasileiro e Editora da Universidade de Brasília). Em 2013, saiu uma segunda edição (É Realizações).5 Por fim, em 1977, o ensaio saiu em sua língua original, numa edição da PUF. O mais importante, porém, foi a reação de Lévi-Strauss, conhecido por seu temperamento reservado. Em 22 de janeiro de 1969, ele escreveu uma carta que, certamente, foi lida, relida e treslida com grande emoção intelectual:

O início da carta é grandiloquente: na acepção de Racine, o gênio, de um nada, faz um tudo. Traduzindo: Merquior fez um tudo — ensaio de fôlego, futuro livro — de um nada — ou, sejamos mais precisos, um quase nada; ou, sejamos ainda mais exatos, uma preocupação que à época não ocupava a centralidade dos esforços do antropólogo: a estética. Há mais nesta carta. Muito mais. A sequência dos parágrafos significa o reconhecimento pleno, por parte de Lévi-Strauss, do “jovem crítico literário” como um possível interlocutor — e o ponto é decisivo. Não se trata, porém, de provincianismo às avessas, típico do teórico ou do escritor tupiniquim que divulga na imprensa cartas eventualmente trocadas com nomes estrangeiros de ponta.

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Na verdade, quero assinalar o gesto intelectual subjacente à trajetória de Merquior. Alguns anos depois, agora em Londres, o autor de Formalismo & tradição moderna escreveu a Ernest Gellner mensagem similar à enviada a Lévi-Strauss. Idêntico resultado: recebe prontamente uma resposta, principiando um mestrado na prestigiosa London School of Economics and Political Sciences. Mestrado, eu escrevi, e você leu corretamente. Eis uma das descobertas propiciadas pela organização do acervo de Merquior: foi do próprio Gellner a decisão de transformar o que seria uma dissertação de mestrado numa tese de doutorado. Entenda-se. Melhor: menciono uma longa carta, de 9 páginas, na qual Gellner avaliava o texto que originaria a futura dissertação. Impressionado com a qualidade e o escopo do que terminara de ler, o mestre inglês sugeriu a mudança de nível. “Not bad at all”, deve ter pensado o “sociólogo diletante”. Merquior obteve o segundo título de doutor.6 Às anotações minuciosas de Gellner, o brasileiro acrescentou seus comentários à margem da carta. Em geral, acatou os conselhos do orientador; aqui e ali, porém, insistiu em seus pontos de vista. Afinal, não se tratava de um reverente aluno latino-americano em busca da aprovação do mestre europeu, porém da criação de um diálogo entre pares. (Em 2016, quantos arriscamos o mesmo salto?) Ora, a solicitação mais enfática de Gellner dizia respeito ao estilo de Merquior! Não poderia temperar o traço ensaístico, a fim de corresponder com maior exatidão ao figurino usual de uma tese acadêmica? Você sabe que o autor de Saudades do carnaval não abriu mão do ensaísmo, que, muito jovem, aprendeu a admirar, especialmente na obra de Walter Benjamin. Gellner entendeu a resistência do “orientando” e não levantou objeções ao texto final apresentado por Merquior. Pelo contrário, mantiveram uma fecunda amizade intelectual, favorecida por laços de afeto. (Por favor, não confunda tudo. Esse cenário em nada recorda a cordialidade à brasileira, pois o cimento da amizade foi a afinidade intelectual. Trata-se, antes, do modelo, bem inglês, das “literary friendships”. Aqui, consagra-se o afeto, jogando-se a reflexão para escanteio. Apenas nessa terra da ética devastada um teórico de renome e uma crítica reconhecida podem unir forças e, em concurso de abrangência nacional, na melhor tradição da Cosa nostra, desclassificar o título de desafeto comum, simplesmente atribuindo-

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lhe notas ínfimas, ridículas até. E o mais inquietante, porém sintomático: sem vergonha alguma! Eis a respiração artificial dos que medram à sombra de patotas.) Os aspectos intelectual e afetivo são evidentes na carta que Gellner escreveu em 15 de novembro de 1990: fotos: arquivo josé guilherme merquior/é realizações

(Nos dias narcíseos que correm, penso no teórico que, sem constrangimento aparente, publica em jornal de grande circulação mensagem (bissexta) de correio eletrônico (!) recebida imaginemos, de Wolfgang Iser. É sempre assim: a dupla dinâmica teóricocrítica, tão implacável com o alheio, nunca se dá conta do ridículo de seu comportamento.)

O elogio de Gellner não foi protocolar e muito menos determinado pelas lentes generosas da amizade; afinal, Isaiah Berlin também se interessou pela síntese da história da ideia liberal. É o que se depreende de carta escrita em 2 de janeiro de 1991:

A missiva do autor de Two concepts of liberty recorda a de Lévi -Strauss, já que, além de salientar o mérito do trabalho de Merquior, aprofundamento da interlocução por meio do envio de textos. (Fórmula sutil, sem dúvida, encontrada por Sir Berlin; aliás, também empregada por Lévi-Strauss na carta de 22 de janeiro de 1969. Como se desejassem corrigir a famosa frase atribuída a Raymond Aron — Ce jeune homme a tout lu. Não, devagar com o andor, ninguém pode ter lido tudo!) Mais uma vez, o ponto decisivo: Berlin propunha um diálogo entre pares; claro, no sentido de fellows, não na acepção de iguais, pois Merquior nunca considerou que seus livros fossem comparáveis às obras de Claude Lévi-Strauss, Ernest Gellner e Isaiah Berlin. Ressalve-se, porém, que seu precoce falecimento o impediu de aprofundar seu grande tema: a crise da cultura e suas consequências nas mais diversas esferas do fazer humano. Contudo, como vida intelectual nada tem a ver com corrida de cavalos, o que conta é correr no mesmo páreo. Disse que o elogio de Gellner — “um esplêndido resumo do tema” — não foi mero sinal de cortesia, aparentado ao reconhecimento polido que, por exemplo, Ernest Renan oferecia a todo aspirante a poeta que batia em sua porta, como relata Joaquim Nabuco em Minha formação. Ernest Gellner era de outra cepa. Em 1996 organizou, com César Cantino Ortiz, o livro-tributo Liberalism in dodern times – Essays in honour of José Guilherme Merquior.7 E, no prefácio à coletânea de ensaios publicada por Merquior em inglês, The veil and the mask, levantou a lebre que me permite concluir este longo esboço. Nas suas palavras: “J. G. Merquior é um brasileiro que tem escrito e obtido distinções acadêmicas tanto em francês quanto em português. Com este trabalho, ele demonstra dominar uma nova subcultura linguística do mundo ocidental, além de sua intimidade com o conteúdo de n subculturas intelectuais”.8 Intelectual em trânsito, portanto. Um “anarquista cultural”,9 Merquior virou pelo avesso a dinâmica da vida cultural em contextos não hegemônicos.

taneamente as duas posições. Eis o modelo teórico que almeja ser dinâmico, a fim de dar conta da complexidade do contemporâneo, mas sem deixar de assinalar a permanência de assimetrias decisivas nas trocas simbólicas — entre outras.) Inversão radical, dizia. Pois é. José Guilherme Merquior assumiu o inesperado papel de um Otto Maria Carpeaux dos outros. O Carpeaux deles Merquior: o Carpeaux dos outros. Isto é: europeus e norte-americanos. Explico. Melhor: arrisco uma hipótese, e assim concluo. A vida intelectual na América Latina, grosso modo, principiou sob a chancela de algum europeu perdido do outro lado do Atlântico. Ora, a mera expressão do outro lado do Atlântico esclarece como uma simples península — a Europa, geograficamente considerada — tornou-se o continente-motriz dos primórdios da globalização contemporânea. Nem preciso aduzir exemplos, basta um exercício despretensioso de memória para identificar inúmeras “Missões Artísticas Francesas” nos países do continente. Basta consultar os repertórios bibliográficos e descobrir Paul Groussac na Argentina, José Gaos no México, Otto Maria Carpeaux no Brasil, entre uma miríade de casos similares.

“José Guilherme Merquior virou pelo avesso a dinâmica da vida cultural em contextos não hegemônicos”

(Anote aí: deixemos de lado o vocabulário que gravita em torno das noções de centro e periferia, pois as relações atuais num mundo globalizado são muito mais complexas, e não se compreendem bem por meio de metáforas espaciais, que tendem a sugerir pontos fixos. Precisamos, pelo contrário, privilegiar a dimensão temporal e o fluxo contínuo de ideias, mercadorias e pessoas. No entanto, as assimetrias culturais, linguísticas, políticas e econômicas somente se afinam e afirmam hoje em dia. Daí, por que não pensar em termos de circunstâncias hegemônicas e não hegemônicas? Tais circunstâncias são cambiáveis, e, muitas vezes, podem ocupar simul-

(Um exemplo definitivo para abalar o orgulho pátrio? O técnico de futebol húngaro Béla Guttmann foi fundamental na modernização do esporte no Brasil, e isso justamente um pouco antes da Copa de 1958. Técnico do São Paulo, em 1957, Guttmann introduziu no país o então revolucionário sistema tático 4-2-4, valorizando um jogo agressivo, sempre em busca do gol. Vicente Feola, técnico da seleção brasileira campeã do mundo na Suécia, fazia parte da comissão técnica do São Paulo. Preciso acrescentar algo?) Eis a inversão do modelo: Merquior: Carpeaux dos outros. A associação não é gratuita. Em carta de 26 de janeiro de 1978, escrita praticamente na véspera da morte do austríaco, Francisco Costa Rodrigues relatou a Merquior: “Outro dia, quando estive lhe fazendo uma visita, falamos de você. Ele aprecia o seu trabalho e lembro-me quando afirmou: o Merquior é um crítico sério”. A ironia corta fundo. A seriedade de Merquior, isto é, sua sólida formação, possibilitada pelo acesso direto à bibliografia internacional recente, e, em sentido mais amplo, o fortalecimento do sistema nacional de pósgraduação, ocorrida exatamente na década de 1960, foram fatores decisivos para a superação progressiva, porém inexorável, do papel de Carpeaux como arauto da civilização europeia, organizador do

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dossiê merquior pensamento alheio, classificador de suas coleções. Também por essa nova constelação, o autor de História da literatura ocidental e, título sintomático (!), Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira, passou a dedicar-se mais e mais a temas políticos, especialmente a partir do golpe militar de 1964. A ironia talvez seja ainda mais surpreendente. E se ousássemos imaginar que, em seus últimos livros, Merquior assumiu o inesperado papel de um Carpeaux dos europeus, e, em alguma medida, dos norte-americanos? Ora, livros como Foucault (1985), From Prague to Paris: a critique of structuralist and post-structuralist thought (1986), Western marxism (1986) e Liberalism, old and new (1991) realizam uma síntese, crítica e ambiciosa, seja de um autor determinado, seja da tradição ocidental em certos campos do conhecimento. Claro, você tem razão: trata-se de hipótese inicial; portanto, este artigo deve ser lido como um primeiro passo — apenas isso. Há muito trabalho pela frente.

O humanismo crítico em A estética de Lévi-Strauss A arte como forma de conhecimento e de acesso privilegiado ao real | por eduardo cesar maia

(Ainda bem.) NOTAS 1 Recomendo o indispensável livro de Marcos Antonio de Moraes, Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade (São Paulo: EDUSP, 2007). 2 O historiador Maurício G. Righi deu uma colaboração fundamental na montagem do “Arquivo José Guilherme Merquior/ É Realizações”. 3 Claro, trata-se de homenagem ao ensaio de Antonio Candido, O método crítico de Sílvio Romero. Idealmente, gostaria de escrever uma série de livros similares, palmilhando a crítica literária e cultural latino-americana. Mas talvez já não disponha de tempo para o projeto. Publicado pela primeira vez em 1945, por ocasião do concurso de Literatura Brasileira da USP, a reedição mais recente é de 2006 (Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul). 4 José Guilherme Merquior. Razão do poema. Ensaios de crítica e de estética. 3ª edição. São Paulo: É Realizações, 2013, p. 241-286. 5 José Guilherme Merquior. A estética de Lévi-Strauss. 2ª edição. São Paulo: É Realizações, 2013. Edição enriquecida por posfácios de Christopher Domínguez Michael e Eduardo Cesar Maia. 6 O primeiro doutorado de José Guilherme Merquior foi defendido, e aprovado com louvor, na Sorbonne, sob a orientação de Raymond Cantel. A correspondência com o orientador encontra-se devidamente preservada no “Arquivo José Guilherme Merquior / É Realizações”. O trabalho de conclusão, escrito em francês e traduzido por Marly de Oliveira, resultou no livro Verso universo em Drummond (São Paulo: É Realizações, 2012, 3ª edição). 7 Ernest Gellner & César Cansino (orgs.). Liberalism in modern times – Essays in honour of José Guilherme Merquior. New York: Central European University Press, 1996. O livro conta com uma preciosa “Annotated bibliography of José G. Merquior”, preparada por César Cansino & Victor Alarcón (p. 219-228). 8 Ernest Gellner. “Foreword”. In: José Guilherme Merquior, The veil and the mask: Essays on culture and ideology. Londres: Routledge, 1979, p. X. 9 Assim, Merquior se caracterizou em entrevista concedida a Caio Túlio Costa: “Se eu tivesse que me definir (...) diria o seguinte: sou positivamente liberal em economia, social-democrata em política e anarquista em cultura”. Caio Túlio Costa. “Merquior, o ‘anarquista cultural’”. Folhetim, 12 de dezembro de 1986, nº 514, p. 4.

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intelectual verdadeiramente independente e autônomo — como bem alertou Alfonso Reyes — quase sempre angaria impopularidade, sobretudo entre seus coetâneos. De fato, a recusa, por parte de um pensador, a filiações dogmáticas, seja a uma escola, doutrina ou abordagem teórica, acaba, invariavelmente, fazendo com que ele receba ataques não somente por um, mas por todos os lados, já que não conta com “proteção” corporativa de qualquer grupo. A trajetória intelectual de José Guilherme Merquior (1941-1991) — parece-me — pode ser encaixada nessa caracterização. Poucos pensadores brasileiros souberam compreender e cotejar, com tanta argúcia e independência de juízo, as principais correntes teóricas — e muitas houve — desenvolvidas no século 20 no campo das ciências humanas, em geral, e no da teoria da literatura, em particular. Esse período — a “Era da Teoria”, como a denomina Terry Eagleton — caracterizou-se justamente pela profusão de tendências no campo das ciências humanas e pela reformulação radical da orientação filosófica e do vocabulário empregado nesse mesmo âmbito. Merquior soube guiar seu pensamento em franco diálogo

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