O casal Amado para crianças e jovens

August 20, 2017 | Autor: Susana Ventura | Categoria: Children's and Young Adult Literature, Jorge Amado
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O CASAL AMADO PARA CRIANÇAS E JOVENS Susana Ramos Ventura (Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ)

Resumo: O casal Amado para crianças e jovens é um ensaio que tece reflexões a partir dos livros de Jorge Amado e Zélia Gattai destinados às crianças e jovens, ou que foram apropriados por esse público. As obras de ambos os autores são vistas em perspectiva com aquela do mais importante criador de literatura infantil do século XX no Brasil: Monteiro Lobato.

Palavras-chave: Jorge Amado, Zélia Gattai, Monteiro Lobato, crianças, jovens.

Jorge Amado nasceu em 1912 no Estado da Bahia, Zélia Gattai nasceu em 1916 no Estado de São Paulo. Em 1945 eles se uniram e permaneceram casados até a morte de Jorge em 2001. Zélia morreria sete anos depois, em 2008. Jorge Amado não foi um bom aluno, tendo fugido no início da adolescência do Colégio Padre Vieira, escola em que estudava como interno. Voltou aos bancos escolares e terminou sua educação formal, mas sempre creditou sua formação ao ambiente propiciado pelas ruas da cidade de Salvador da Bahia. Aos quinze anos já estava trabalhando no jornalismo e aos dezenove publicou seu primeiro livro, Cacau. Terminou os estudos básicos e ingressou na Faculdade de Direito, que concluiu em 1935. Zélia, por sua vez, foi aluna excelente, concluiu o ensino primário

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equivalente ao quarto ano de escolarização à época - e muito desejou continuar estudando (como podem constatar os leitores de Anarquistas, graças a Deus). Porém, a situação familiar e social não permitiram. Zélia Gattai seguirá o destino de tantas mulheres de sua geração: se casará e cuidará de filhos e família. Ela publicará seu primeiro livro aos sessenta e três anos, em 1979. Mas eu gostaria de voltar ao início da década de 1920, quando Jorge e Zélia são ainda crianças...

No Natal de 1920 foi publicado um pequeno livro chamado A menina do narizinho arrebitado, de autoria de Monteiro Lobato, escritor paulista nascido no interior do Estado, em Taubaté, em 1882 (e falecido na capital, São Paulo, em 1948). Naquele livrinho, que obteve imediato sucesso, estava o embrião de uma obra monumental: entre 1920 e 1948, Lobato se dedicará à construção de uma coleção destinada ao público infantil ambientada numa pequena propriedade rural, um ‘sítio’ dirigido por uma velha senhora, Dona Benta Encerrabodes de Oliveira e por sua fiel ajudante, a empregada Anastácia, conhecida de todos como Tia Nastácia. Lúcia, a ‘menina do narizinho arrebitado’ era uma neta que vivia em companhia da avó e a família humana seria completada por Pedrinho, primo de Narizinho que vivia na cidade grande e passava suas férias na companhia delas no Sítio do Picapau Amarelo. Referi-me a família humana, pois o Sítio comportaria, em contraponto aos humanos, um número muito grande de outros seres: boneca de pano que adquire vida própria, sabugo de milho que se converte em sábio, entre muitos outros personagens intrigantes e inesquecíveis para os leitores. Zélia Gattai será, quando criança, uma leitora ávida da obra de Monteiro Lobato. Muitas décadas depois da leitura apaixonada que, com certeza, fez das aventuras do Sítio do Picapau Amarelo, ao criar seu texto de apresentação como autora para integrar os três livros para crianças que escreveu a partir do final da década de 1980, Zélia escolheu as seguintes palavras: Nasci em São Paulo há muitos e muitos anos, tantos que nem é bom pensar. Meus pais eram italianos, vindos ao Brasil no começo do século, gente simples, de vida modesta. Menina sem brinquedos nem luxos, fui, no entanto, uma criança feliz. Naquela época não havia nem rádio nem televisão, e meu maior divertimento era ouvir histórias contadas por meus pais e minhas irmãs mais velhas. Sonhava com os personagens, me encarnava neles, fui Narizinho Arrebitado, outras vezes Chapeuzinho Vermelho e, oh, maravilha!, cheguei a ser a própria Cinderela! Ai, quem me dera ser a Branca de Neve, ter meu príncipe encantado.1

Creio ser possível percebermos a importância que teve Lobato para a jovem leitora que foi Zélia Gattai. A primeira personagem citada ao compor sua ‘biografia’ é exatamente Lúcia, a menina do Narizinho Arrebitado, seguida por outras protagonistas femininas dos contos de fadas de Grimm e Perrault. Lembro também que Monteiro Lobato ajudou a popularizar os contos de fadas de Grimm, Perrault e Andersen no Brasil das décadas de 20 a 40. Realizou este feito por meio de traduções próprias, das edições que idealizou e dirigiu e, também, trazendo as célebres                                                                                                                 1  GATTAI,  1992,  p.  64.  

personagens para o Sítio do Picapau Amarelo, ou levando as crianças Lúcia e Pedrinho até os reinos encantados em que aqueles seres fantásticos habitavam. Parte do imaginário da menina Zélia Gattai foi, portanto, diretamente influenciado pela obra de Lobato. Enquanto o dinâmico Monteiro Lobato estava a criar, durante a década de 1930, o seu ambicioso projeto para a infância brasileira, Jorge Amado também começava sua monumental obra e Zélia Gattai lutava para estudar e vencer as questões de classe, desejosa de conquistar no mundo um lugar para si e para seus anseios. Também na década de 1930 teremos a instauração do Estado Novo no Brasil, o que terá consequências na vida de nossos três autores, especialmente na década seguinte. Monteiro Lobato será perseguido e sua obra proibida (Ana Maria Machado nos conta no livro de ensaios Silenciosa algazarra que na década de 40 ainda se queimavam livros de Lobato). Para Jorge Amado a situação irá se radicalizar, especialmente por ser membro do Partido Comunista. Queimas de seus livros – entre eles Capitães da areia ocorrem também a partir da década de 30. Em 1948, a perseguição a Jorge Amado enquanto escritor e político é tão intensa que o leva a auto exilar-se na França. Zélia Gattai é colhida pelos acontecimentos: enquanto cidadã politizada, observa a situação e discute caminhos para o país junto a grupos de discussão ligados à causa operária e ao movimento comunista. Foi numa reunião política que conheceu Jorge Amado. A união de ambos resultará na sua partida para o exílio na França, em 1948, poucos meses após a ida de Jorge Amado, com um bebê recém-nascido nos braços. No que diz respeito especificamente ao campo da Literatura para Crianças e Jovens – o mesmo Estado Novo que perseguia Lobato e Amado, entre muitos outros (como Graciliano Ramos), despertou para o fato de que precisava de livros para a juventude do país. O governo tentou resolver a questão instituindo concursos para escolha de títulos para diversas faixas etárias. Então aparecem inscritas nesses certames obras de vários escritores (inclusive dos escritores perseguidos pelo próprio regime): Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Lúcia Miguel Pereira, Érico

Veríssimo, concorrem com originais que são selecionados, premiados, publicados e distribuídos. Jorge Amado não concorreu jamais a nenhum desses concursos, que, no entanto, nos legaram parte dos textos mais representativos da literatura para os mais jovens do período, ao lado da obra de Monteiro Lobato (embora raras vezes ombreando o seu trabalho em termos de qualidade). Porém, Jorge Amado produz, ainda em 1948, um delicioso e representativo romance infantil: O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, que, por circunstâncias diversas, ficará inédito durante várias décadas. Para que saibamos a motivação de Jorge Amado, convém irmos a Navegação de cabotagem, apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, de 1992: “Paris, 1948 PRESENTE DE ANIVERSÁRIO ... Escrevo um romancinho, O gato Malhado e a andorinha Sinhá, história de amor, do amor impossível de um felino e um passarinho, meu presente para o aniversariante a fim de lhe ensinar a ter horror aos preconceitos. O conto termina mal com a vitória do preconceito: a andorinha casa com um rouxinol, o gato parte para a solidão pior que a morte. Se o escrevesse hoje, o romancinho terminaria com a vitória do amor, a derrota do malefício: eu era jovem, ainda não acreditava no impossível.2

O romancinho, concebido, então, para ser prenda de um ano do filho João Jorge, então em Paris acompanhando os pais Jorge e Zélia no exílio, teve seus originais perdidos. Décadas depois, ele foi reencontrado e publicado por desejo do próprio presenteado em 1976, com ilustrações de Carybé. Repare-se na doçura dos apontamentos de Jorge a respeito do presente literário que compõe para João Jorge: tocado pela infância do filho, pela dureza do exílio e possivelmente pelas difíceis condições que vivia no momento, Jorge Amado compõe um romance de final duro e, ao recordá-lo, na maturidade, conclui que, com a passagem do tempo, passara a acreditar no ‘impossível’, tendendo a criar finais felizes.

                                                                                                                2  AMADO,  2012,  p.  87.  

Pois bem, em A bola e o goleiro, narrativa para crianças escrita quase quatro décadas depois de O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá e publicado em 1984, o impossível acontece: a história de amor impossível entre bola e guarda-redes (ou goleiro) tem um final feliz. Isso parece refletir a dinâmica da obra de Jorge Amado como um todo - que se aprofunda em ambiguidades com o passar dos anos e das obras, conciliando ficcionalmente o que na aparente realidade não é conciliável. Considero, portanto, que um trabalho com os dois livros, em paralelo, possa ser muito produtivo para a compreensão da evolução da obra amadiana. Ainda é preciso tecer considerações sobre as obras que, embora não pensadas por Jorge Amado para um público jovem, foram por este público apropriadas e amadas praticamente desde sua publicação.

A literatura juvenil brasileira

experimentou grande desenvolvimento somente a partir da década de 1990. Muito do que um jovem médio leu antes disso foi apropriado da literatura ‘sem adjetivo’, uma vez que a Literatura Infantil e Juvenil é, como as demais denominações adjetivadas ( como Literatura de Autoria Feminina, por exemplo), uma literatura que se circunscreve a determinado grupo. Pensando nessa apropriação realizada pelo jovem leitor brasileiro de literatura, os livros

de Jorge Amado mais imediatamente

apropriados foram Jubiabá, Capitães da areia e Mar Morto. Vale lembrar que, de outros autores brasileiros ativos no mesmo período, são também muito lidos por jovens: Clarissa, de Érico Veríssimo e Vidas secas, de Graciliano Ramos, entre outros. Esses livros são, ainda hoje, clássicos incontornáveis da literatura brasileira e continuam a ‘falar diretamente’ com os jovens da atualidade, embora já exista uma literatura juvenil brasileira consolidada. Esta, por sua vez concorre numa certa desigualdade com a literatura juvenil dos países anglo-saxônicos, traduzida e publicada no Brasil, e que disputa a atenção do jovem brasileiro, auxiliada, no mais das vezes, por sensacionais recursos de marketing e ligada indissoluvelmente a outros produtos atraentes como jogos e filmes com o mesmo elenco de personagens. Os motivos que fizeram com que a obra de Jorge Amado fosse tão prontamente acolhida pelos jovens leitores são os mesmos que foram responsáveis por capturar seu público adulto e são sintetizados de maneira brilhante por Ana Maria Machado em seu ensaio Romântico, sedutor e anarquista: Como e por que ler Jorge Amado hoje, de 2006:

Na obra daquele menino que antes dos vinte anos começava a publicar seus romances, havia desde o início um ouvido atento e um olhar agudo, ao lado da solidariedade, sensível à dor do outro. Esses personagens que ele nos traz falam e se comportam igualzinho a nossa gente comum, como ninguém ainda tinha falado e se comportado em nossos romances. Provavelmente, tal feito ajuda a explicar a profunda empatia que ele logo estabelece com seu público, a cumplicidade que se tece de imediato entre autor, personagem e leitor. É uma façanha pioneira da linguagem, como poucos tinham conseguido antes. Com essa intensidade, talvez apenas Lobato.3

A formulação feliz de Ana Maria Machado reúne as características mais marcantes da obra amadiana e nos apontam para seu apelo junto a um público leitor que buscava se ver retratado na ficção brasileira. E note-se que o ponto de comparação usado é exatamente Monteiro Lobato, o escritor que primeiro conseguiu falar diretamente às crianças brasileiras, e tão bem, com tal adequação, que ainda hoje continua emocionando e dialogando com elas. Já que estamos no território das ‘apropriações’ de obras não escritas especificamente para jovens leitores por esses jovens, é tempo de voltarmos a Zélia Gattai, que se iniciou tardiamente na ficção com a publicação de Anarquistas, graças a Deus, em 1979. Trata-se de um interessantíssimo livro de memórias familiares que, à época de seu lançamento no Brasil e nos anos subsequentes, conquistou um público juvenil muito expressivo. Anarquistas, graças a Deus

é deliciosa e

despretensiosa memória da infância da autora e de sua vida junto à família de origem italiana na São Paulo do início do século XX. Zélia prosseguiria sua produção com vários volumes de memórias de sua vida adulta, que em sua maior parte tematizam episódios de suas vivências ao lado do companheiro Jorge Amado. Zélia Gattai foi, no conjunto de seus livros de memórias, uma escritora de linguagem fluida, com um sentido apurado para a narrativa dos casos cotidianos que, seja pela graça pessoal de seus protagonistas, quase anônimos (como seus familiares às voltas, muitas vezes, com particularidades linguísticas ou culturais), seja pela importância social de algumas das personalidades evocadas por sua obra (como Pablo Neruda, Pablo Picasso, entre outros amigos), foi capaz de construir panoramas de época vivos, plenos de humor e de sentido de humanidade.

                                                                                                                3   MACHADO, 2006, p.51.  

Anarquistas, graças a Deus começa a intrigar o leitor pelo título e o conquista desde as primeiras linhas. Propõe-se a ser a narração memorialista da infância da menina Zélia junto de sua família, os Gattai, imigrantes italianos que viviam na região da Avenida Paulista em São Paulo (então pouco mais que uma área rural), com parentes vivendo nos bairros tradicionalmente habitados por italianos imigrantes desde a virada do século XX, como Brás e Moóca. A narrativa descreve o modo de vida da família e adentra pelos meandros ideológicos do anarquismo, que fizeram com que antepassados da autora rumassem para o Brasil no intuito de fundarem a Colônia Cecília, importante experimento anarquista de repercussão mundial. A escolarização das crianças, com destaque para a da própria narradora, o papel das leituras – realizadas muitas vezes de maneira coletiva - na vida da família, são pontos altos da narrativa. Vemos o quanto foi difícil para uma jovem filha de imigrantes ver a cada ano que suas possibilidades de prosseguir nos estudos eram quase nulas, num momento histórico em que às mulheres - especialmente se pobres - estavam mesmo previstos poucos anos nos bancos escolares e todo o restante da vida em torno da criação e manutenção de uma família. Sentimos, acompanhando a narradora, a angústia da pequena Zélia, julgada menina “atrevida”, ao ver se aproximar rapidamente o final do quarto ano de escolaridade em que, avidamente, fazia progressos, adquiria conhecimentos e dialogava intensamente com tudo o que lhe era oferecido em termos de ensino. Também observamos qual o papel da literatura na vida das crianças da época e como ela era vivenciada na família da autora. A importância do periódico “ O TicoTico” – primeira revista para crianças e jovens no Brasil, com circulação entre 1905 e 1962 – que na narrativa aparece como um dos objetos de desejo das crianças, fonte segura de lazer, porta aberta à imaginação dos pequenos. Também aparecem os folhetins, que apaixonavam a mãe de Zélia, D. Angelina, e que eram lidos em voz alta na casa da família para uma roda de ouvintes atentos e apaixonados. Parte desses ouvintes eram mulheres, vizinhas da família Gattai, quase todas analfabetas. São ainda mencionados alguns livros importantes no patrimônio familiar dos Gattai, com destaque para exemplares de A Divina Comédia e do Livro das mil e uma noites, considerados impróprios para crianças, mantidos trancados e por isso mesmo constantemente “visitados” por Zélia e as irmãs às escondidas.

Vivo, tocante e quase exclusivamente focado nas aventuras de infância de Zélia e de seu clã familiar, o livro tem, ainda, em destaque várias personagens oriundas de outras massas imigrantes, como a portuguesa, participantes da vaga de imigração que chega a São Paulo entre a última década do século XIX e a década de 20 do século subsequente. Dez anos após a publicação de Anarquistas, graças a Deus, Zélia publicará o primeiro de seus três títulos dedicados às crianças pequenas: Pipistrelo das mil cores. A narrativa está centrada num animal de natureza mitológica que fora aprisionado por três caçadores inescrupulosos no Pantanal brasileiro e a seguir levado a um zoológico para ser posteriormente vendido a uma potência estrangeira. Um grupo de crianças valentes toma para si a defesa do animal e consegue ajudá-lo a se libertar. O animal é batizado de “Pipistrelo” por “Pomarola”, o tratador do zoológico para o qual o animal é levado. A narradora esclarece que Pomarola é italiano e que “pipistrelo” significa morcego na língua materna do tratador. Uma relação inegável com a origem italiana da escritora, tão evidenciada em sua obra de estreia e aqui retomada. Outro ponto a destacar é a turma de crianças que, capitaneada pela professora Maria Clara, começa por visitar o animal no zoológico e termina por desafiar pais e autoridades na tentativa de salvar o animal do envio para fora do país. Questões ecológicas estão em primeiro plano, mas também a ternura que ressuma da relação entre a professora e seus alunos e entre as próprias crianças, em ecos da obra Anarquistas graças a Deus. Novamente a escola é vista como lugar agradável, fonte de oportunidades, do encontro de conhecimentos e também da vivência de alegrias e de realização pessoal. Dois anos mais tarde, em 1991, Zélia publicaria um segundo livro para crianças, O segredo da rua 18 e no ano 2000, um terceiro e último título: Jonas e a sereia. O segredo da rua 18 narra a construção de um jardim por um mutirão de crianças que acredita estar buscando um tesouro de piratas. Doralice e Miguelinho, dois dos pequenos que vivem nesta rua de periferia sem arborização ou plantas de qualquer tipo, inventam para os demais que no solo da rua pode estar enterrado o

tesouro do Pirata Gancho de Ouro. História divertida, com personagens-tipo bastante interessantes e pitorescas: Pé de Molho, Pau de Arara, Boca de Provar Moqueca, constituem uma galeria de personagens infantis que poderia ter saído da pena de Jorge Amado e que sustentam com garbo a narrativa. O grupo de crianças é pobre e o contexto escolar dessa vez não é tematizado, sendo a vida na rua 18 e as relações entre as crianças e entre elas e alguns adultos o centro da narrativa. Jonas e a Sereia narra a história de um “amor impossível”, entre Jonas e uma sereia. Espelhando a obra de Jorge Amado, o mote poderia ser “quando existe o amor, impossível não há”, apontando a obra para a conciliação do que é aparentemente impossível de se conciliar. A história é narrada por uma professora, Carolina Spacaferro, a seus alunos no ambiente escolar. A escola e, especialmente a figura da professora, têm uma representação que lembra muito aquela presente em Anarquistas, graças a Deus. A professora, de sobrenome italiano, é claramente um alter ego da própria Zélia Gattai que, em seu último livro para crianças nos mostra, com certeza, a professora que desejaria ter sido. O ambiente escolar é descrito como extremamente produtivo e a personagem da professora construída como um ser gentil, que sabe conduzir seus alunos face às questões centrais da vida, como o amor. Procurei neste breve ensaio tecer algumas considerações sobre as obras de Jorge Amado e Zélia Gattai escritas ou apropriadas por crianças e jovens no Brasil. Num país que, em termos de Literatura Infantil foi marcado de maneira indelével pelo projeto de Monteiro Lobato para a infância - que influenciaria todas as gerações seguintes e interferiria de maneira positiva na formação de boa parte dos escritores que produziriam a partir da década de 1960 - o caminho que escolhi foi estabelecer um contraponto da obra dos três criadores. Monteiro Lobato dedicou boa parte de sua vida à construção de uma obra monumental para a infância brasileira. Zélia Gattai, leitora de Lobato, tornou-se escritora em sua maturidade. Jorge Amado, idealizador de uma obra também gigantesca, que colocou a Bahia e seus tipos humanos no mapa imaginário da literatura mundial, foi escritor de poucas obras destinadas ao público infantil e de várias obras apropriadas pelo público juvenil a partir de sua publicação. A pequena produção de Jorge Amado para crianças mostra preocupações do autor que perpassam toda sua obra: o amor como centro da vida, as ambiguidades que cercam a condição humana... Já a trajetória de Zélia Gattai espelha a condição da

mulher na sociedade brasileira do seu tempo: o desejo de estudar sem a possibilidade de fazê-lo, a ‘destinação’ para o casamento e depois, as possibilidades de expressão e publicação na maturidade. Espero haver contribuído para um panorama da obra dos dois autores em contraponto com o trabalho realizado por Monteiro Lobato.

Referências Bibliográficas: AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem, apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ______. O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2007. ______. A bola e o goleiro. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2010. GATTAI, Zélia. Pipistrelo das mil cores. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2008. ______. O mistério da rua 18. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2009. ______. Jonas e a sereia. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2008. ______. Anarquistas, graças a Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. MACHADO, Ana Maria. Romântico, sedutor e anarquista: Como e por que ler Jorge Amado hoje. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

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