O Casarão, de Lauro César Muniz: genealogia de uma telenovela experimental

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O Casarão, de Lauro César Muniz: genealogia de uma telenovela experimental Lucas Martins Néia Bolsista AT/CNPq do Centro de Estudos de Telenovela Universidade de São Paulo, Brasil [email protected]

Resumo Este trabalho apresenta os primeiros mapeamentos de uma pesquisa que, visando se configurar em Mestrado, pretende traçar uma espécie de “genealogia” da telenovela O Casarão, escrita por Lauro César Muniz e produzida e exibida pela Rede Globo em 1976. Trata-se de um estudo que, para além de se aprofundar nas influências literárias e artísticas pertinentes ao universo criador do autor – tais como a peça A Moratória, escrita por Jorge Andrade em 1954; uma crônica de Helena Silveira intitulada Nu Para Vinicius, que serviria de base para o teleteatro A Estátua, apresentado pela Excelsior, e para a peça teatral A Morte do Imortal, ambos escritos por Lauro; e as próprias telenovelas anteriores do autor (Os Deuses Estão Mortos, Quarenta Anos Depois, Escalada...) –, investigará quais foram os caminhos percorridos na teledramaturgia para que uma trama tão arrojada fosse ao ar às oito da noite, horário de maior importância e lucratividade da televisão brasileira, e em plena Ditadura Militar. Sob esta perspectiva e ao se debruçar, ainda, sobre as rupturas dos tradicionais cânones da teledramaturgia propostas pela já citada obra – intimamente ligadas às questões temporais da narrativa –, a pesquisa tenciona compreender a história da dramaturgia televisiva brasileira sob uma perspectiva estética. O autor Lauro César Muniz se mostrou receptivo ao trabalho, já tendo cedido uma entrevista e material ao pesquisador.

Palavras chave: dramaturgia televisiva brasileira, experimentalismo, Lauro César Muniz, telenovela.

Abstract This paper presents the first chart of a research that, aiming at becoming a thesis, intends to outline a kind of genealogy of the soap opera O Casarão, by Lauro César

Muniz, produced and showed by Rede Globo in 1976. It is a study that besides entrenching in literary and artistic influences pertinent to the author’s creative universe – such as A Moratória, a play written by Jorge Andrade in 1954; a chronicle by Helena Silveira named Nu Para Vinicius, which would be the basis to the TV play A Estátua, presented by Excelsior TV, and to the play A Morte do Imortal, both written by Lauro; and also the autor’s previous soap operas (Os Deuses Estão Mortos, Quarenta Anos Depois, Escalada...) –, it will inquire the paths followed by the soap opera so that in a such daring plot could be showed at 8 p.m., the most important and profitable schedule in the Brazilian’s broadcasting, during the dictatorship. Under this perspective and studying the break of the traditional canon of the soap operas proposed by the above mentioned soap opera, deeply connected to the time issues of the narrative, the research tries to comprehend the history of the Brazilian TV’s dramatic art under an aesthetics perspective. Lauro César Muniz, the author, was very receptive to the work and has already given an interview to the researcher.

Key words: Brazilian TV’s dramatic art, experimentalism, Lauro César Muniz, soap opera.

Primeiras impressões

A trama da telenovela O Casarão atravessa três períodos distintos do edifício que lhe dá nome, localizado no fictício município de Sapucaí, norte de São Paulo. A origem da portentosa moradia encontra-se nos idos de 1900, quando o poderoso senhor de terras Deodato Leme consegue, graças à sua influência política, que um ramal ferroviário seja instalado nos limites de sua propriedade, a fazenda Água Santa; Deodato procura, com isso, um meio de facilitar o escoamento do café ali cultivado, base de sua prosperidade. (XAVIER, s/d, s/p) A filha de Deodato Leme, Maria do Carmo, apaixona-se por um imigrante português, Jacinto de Souza, mas é obrigada pelo pai a se casar com Eugênio Galvão, engenheiro responsável pela construção do ramal ferroviário. O ponto culminante desta primeira fase é a morte de Deodato em 1906, numa emboscada

armada pelo próprio genro, Eugênio; assim, este assume o controle político da região. (XAVIER, s/d, s/p) Após esta fase, cujo término cronológico se dá em 1910, a história dá um salto para 1926. Sapucaí, em pleno progresso, já não depende como antes da fazenda Água Santa. Aqui, um problema semelhante ao de Maria do Carmo é enfrentado por sua filha, Carolina: ela é apaixonada pelo artista João Maciel, mas acaba se casando com Atílio, filho de Jacinto. Esse período marca o início da decadência da família, cuja fortuna sofre um abalo com a crise econômica mundial de 1929 – abalo este que os acompanha até 1936. (XAVIER, s/d, s/p) Terceiro salto no tempo e a história passa a se desenvolver em 1976 – à época, “na atualidade”. Afloram-se todos os problemas criados ao longo de anos de dificuldades: as terras da Água Santa são apenas a terça parte da fazenda original, e diversos fatores se somam para determinar uma derrocada definitiva – o surto de industrialização, o êxodo rural e a própria decadência psicológica de seus proprietários. Diante deste quadro, os filhos de Atílio e Carolina são levados a transformar suas terras em um grande loteamento enquanto o projeto de uma nova estrada ameaça o velho casarão. É essa a realidade que João Maciel encontra quando volta a Água Santa para reaver uma escultura que ali enterrara há muitos anos; seu relacionamento com Carolina também se torna tenso, pois ambos revivem o amor do passado. (XAVIER, s/d, s/p)

Ao final, o casarão é vítima de uma amarga coincidência histórica: a nova ferrovia passará exatamente pelo lugar onde ele está. Nascido do progresso que a antiga estrada trouxera, ele desaparecerá por circunstâncias semelhantes. (XAVIER, s/d, s/p)

Assim disposta, a história de O Casarão, ainda que flerte com fatos históricos e atravesse praticamente um século, abordando temas que mesmo hoje soam sensíveis sob a óptica do “politicamente correto” que ronda a programação televisiva – tal como a questão da terceira idade –, parece não fugir dos esquematismos pressupostos ao tradicional folhetim eletrônico. Sua estrutura formal, contudo, até hoje é revolucionária: Lauro César Muniz dispôs, ao longo de 168 capítulos, as três épocas citadas a se intercalarem entre si.

Por esta característica, O Casarão se aproxima da peça A Moratória, escrita por Jorge Andrade em 1954; nela, a ação dramática se desenrola em dois planos: o presente – 1932 – e o passado – 1929 –, não sendo este último simples flashbacks (MACIEL, SILVA, 2005, p. 10). Até que ponto, porém, podem-se estabelecer comparações entre estas obras? Sabina Anzuategui (2012, p. 46) cita Elizabeth Azevedo e Luiz Fernando Ramos para constatar que, do ponto de vista teórico, não há uma diferença essencial entre as rubricas de uma peça de teatro e de um roteiro para televisão; nos dois casos, trata-se da descrição de uma encenação potencial, imaginada pelo autor. Lauro César Muniz, em entrevista concedida ao autor deste artigo, parte da carpintaria dramática, no entanto, para apontar uma diferença fundamental entre A Moratória – a qual ele admitiu ser uma influência em sua obra – e O Casarão: o texto de Jorge, autor profundamente influenciado por Tchekhov, apresenta certa placidez no correr dos diálogos; a TV, por sua vez, exige algo mais fluido e rápido devido a seu ritmo. A priori, partindo da semelhança entre as estruturas dramáticas das obras, pode-se dizer que, em ambas, “o entrosamento estrutural dos planos alicerça [...] a unidade e marca as características das personagens” (MAGALDI, 2001, p. 232-233). Desta forma, tanto Jorge quanto Lauro procuraram “redescobrir o passado e repensá-lo nos termos de sua própria condição presente e do estágio de desenvolvimento em que se encontrava a sociedade brasileira” (AZEVEDO, 2001, p. 97) – adiante, observar-se-á que a década de 1970 foi o período no qual a teledramaturgia brasileira mais se empenhou em apresentar propostas sociais e dialogar com seu tempo/espaço. Outro fator semelhante que podemos destacar de imediato nas duas obras é a presença de edificações-símbolos do processo socioeconômico abordado: em A Moratória, temos a fazenda – representada em 1932 pelo galho de jabuticabeira; n’O Casarão, o próprio edifício que dá título à telenovela. O efeito de ironia dramática também se desenvolve em ambas as obras; ora, pode-se ver uma personagem a negar, em determinada época, exatamente o que ela fizera/fará em outra. Lauro, conforme declaração na entrevista supracitada, foi pouco a pouco descobrindo como se aproveitar desta técnica, sempre a aperfeiçoando e burilando no desenrolar da escrita dos capítulos. Interessante

observar, ainda, que, postas as tomadas de posições das personagens em cada época, têm-se uma estratégia que vai absolutamente contra os cânones de uma tradicional teledramaturgia folhetinesca no sentido de já se mostrar o que aconteceu; a questão, a partir disso, passa a ser “como aconteceu”.

Estrada para O Casarão

Nascido em Ribeirão Preto em 16 de janeiro de 1938, Lauro César Muniz se lançou nos tablados quando, em 1959, venceu dois concursos de teatro amador com o texto Este Ovo é Um Galo; ganhou projeção nacional com a comédia O Santo Milagroso, encenada em 1963 e levada ao cinema três anos depois. Foi um dos primeiros autores teatrais a se dedicar ao gênero telenovela, estreando, em 1966, na TV Excelsior, com a ousada Ninguém Crê em Mim, trama que, ao atualizar o mito de Electra, já apresentava traços do coloquialismo que seria tão festejado com Beto Rockfeller. Com Jorge Andrade, Plínio Marcos, Bráulio Pedroso, Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, participou, em 1968, da Feira Paulista de Opinião, montagem teatral de denúncia da ditadura militar. O impulso em sua carreira na TV aconteceu na Record – à época com pouca tradição em telenovela –, quando, em 1970, adaptou com êxito As Pupilas do Senhor Reitor, romance do português Júlio Diniz; em 1971, escreveu Os Deuses Estão Mortos, retratando um assunto que seria recorrente em diversas de suas obras posteriores (inclusive em O Casarão): a decadência das oligarquias paulistas. Sua estreia na Rede Globo ocorreu em 1972, quando substituiu Bráulio Pedroso no texto de O Bofe. No ano seguinte, dedicou-se à sua primeira novela solo na casa: a romântica Carinhoso – a partir da mesma peça que originara o filme Sabrina, dirigido em 1954 por Billy Wilder. Em 1975, seria alçado ao horário nobre da emissora com Escalada, novela que mostrava a trajetória do caixeiro-viajante Antônio Dias desde a década de 1940 até aqueles idos de 1970, tendo como pano de fundo momentos marcantes da história do Brasil. Sempre procurando subverter alguns esquemas tradicionais do folhetim, Muniz também foi responsável pelos seguintes feitos: tratou do dia-a-dia da classe artística brasileira em Espelho Mágico, de 1977; em 1979, falou de eutanásia em Os Gigantes; retratou os crimes de colarinho branco à época da redemocratização do

país – 1986 – em Roda de Fogo; ameaçou colocar um boia fria na presidência da República – não fosse aquele 1989 o ano eleitoral no qual um dos candidatos ao cargo apresentava uma história de vida tão humilde quanto à de Sassá Mutema –, mas desviou o foco de O Salvador da Pátria para a ação de uma organização ligada ao narcotráfico internacional. Contratado pela Rede Record entre 2004 e 2013, revisitou antigas tramas – principalmente histórias de Escalada – em Cidadão Brasileiro, novela de 2005; em 2009, falou de ações da máfia italiana no Brasil em Poder Paralelo; esboçou, em Máscaras, no ano de 2012, uma organização secreta claramente inspirada na Ku Klux Klan americana. Tanto por seu histórico de participação política quanto por sua vasta obra, Lauro César Muniz é considerado um dos raros nomes na televisão preocupado em não oferecer apenas um produto “digestivo” ao público. Lauro não subestima a inteligência de seu telespectador; pelo contrário: aguça-a; suas tramas são fortes e deveras complexas, por isso a resistência por parte do chamado grande público. Fato é que ele não se propõe apenas a contar uma história rocambolesca com um final feliz: gosta de promover reflexões, tocando, por diversos momentos, em feridas não totalmente cicatrizadas. No que tange à criação de O Casarão, Lauro, na entrevista concedida a este pesquisador, fez questão de frisar que uma obra não “surge de uma hora para outra”, mas é fruto de todo um processo, e assim foi com O Casarão, que partiu da ideia inicial de uma antiga peça teatral sua: A Morte do Imortal, escrita em 1965 – que, por sua vez, fora inspirada no teleteatro A Estátua, escrito por Lauro em 1961 para a TV Excelsior, e na crônica Nu Para Vinicius, escrita por Helena Silveira e publicada pela Folha de São Paulo em 01 de setembro de 1961 (segundo Lauro, esta crônica também serviu de criação para A Estátua). Também ressaltou a retomada de temáticas presentes em suas telenovelas anteriores – como o já citado caso de Os Deuses Estão Mortos. Não negou, ainda, influência d’A Moratória de Jorge Andrade, revelando, inclusive, que ligara para o amigo à época do final da novela, questionando-o sobre como deveria proceder: se acabava a trama na com João e Maciel idosos ou crianças, em frente ao casarão; Jorge, então, aconselhou-o

a “seguir o coração e a intuição”, e Lauro optou pelas crianças: após a emblemática cena na Confeitaria Colombo, o casal aparece brincando pelos idos de 19101. Acerca do imbricamento das três épocas, Lauro César Muniz, em entrevista a Hersch Basbaum (2010, p. 165-169), pontuou:

Geralmente os capítulos continham as três fases, mas nunca numa mesma ordem. Um trabalho fascinante, um trabalho de ourivesaria, um trabalho que me consumia de treze a catorze horas por dia, sozinho. E não poderia ser feito de outra forma, eu tinha de trabalhar absolutamente sozinho para orquestrar todas aquelas épocas, de forma que o capítulo tivesse uma unidade. Para envolver o telespectador, era importante essa unidade, uma unidade temática. Se em determinado capítulo o tema tratado era o comportamento feminino diante do homem, eu mostrava esse comportamento nas três épocas. Havia uma clara ligação temática e visual de cada uma das épocas: eu poderia abrir o capítulo em 1926, pular para atualidade, 1976 e voltar para 1910. Sem insistir na mesma ordem. Era uma colcha de retalhos, mas com os retalhos muito bem unidos, não havia uma desorganização estrutural. [...] Obviamente, eu entregava os capítulos prontos, não se tratava de criação da direção. Eu rubricava os capítulos de uma forma bastante clara.

Contexto audiovisual

A década de 1970 é considerada um período significativo para a produção televisiva ficcional no Brasil. Considera-se que Beto Rockfeller, escrita em 1968 por Bráulio Pedroso para a TV Tupi, apresentou diversas inovações na estrutura do gênero. Maria Cristina Faria (2007, s/p) aponta algumas características que fizeram desta telenovela revolucionária em seu tempo:

1) o rompimento com os diálogos formais, propondo uma linguagem coloquial repleta de gírias e expressões populares; 2) reprodução de fatos e fofocas retiradas de notícias de revistas e jornais da época; 3) um autor preocupado em levar o cotidiano vivido para o vídeo; 4) preocupação em apresentar uma proposta realista; 5) atores trabalhados para uma interpretação mais próxima possível da realidade, retirando entonações quase teatrais; 6) o personagem Beto Rockfeller (Luís Gustavo) também se distancia do melodrama: 1

Esta cena não consta no compacto exibido pela TV Globo em razão de seus quinze anos de existência – disponível em –, mas o roteiro contendo-a pode ser lido no livro A Seguir, Cenas Dos Próximos Capítulos (2009), coletânea de entrevistas com autores de novelas feitas por André Bernardo e Cintia Lopes.

era um anti-herói, um pobretão que queria subir na vida sem muito esforço, não possuía dinheiro mas tinha talento para enganar as pessoas; pela primeira vez aparecia na TV um herói que não era impoluto, corajoso, maravilhoso. Ao contrário, Beto era mentiroso, arrivista e carreirista.

Importante constatar, no entanto, que Beto Rockfeller é resultado de todo um processo de renovações que já vinham sendo testadas em títulos anteriores, principalmente na TV Excelsior – caso da já citada Ninguém Crê em Mim – e na própria TV Tupi – Antônio Maria, de Geraldo Vietri, exibida concomitantemente a Beto Rockfeller, também trazia certo frescor ao gênero, principalmente no que concerne à abordagem de temas nacionais e à construção de personagens, não mais exageradamente maniqueístas. O que não se pode negar é que foi a partir do êxito de Beto Rockfeller que a Rede Globo decidiu abolir os castelos, reis, príncipes e mouros de sua teledramaturgia: Glória Magadan, principal telenovelista da emissora à época, passava definitivamente o lugar a Janete Clair, que, com Véu de Noiva, escrita e exibida em 1969, levou à emissora carioca a coloquialidade e o realismo testados na concorrente Tupi. Abriu-se caminho para a busca por uma linguagem genuinamente brasileira para a telenovela; a partir disto, foram testados novos procedimentos quanto à experimentação da linguagem – mesmo em tempos de Ditadura.

Tal caráter experimental, no caso das telenovelas, tinha dois aspectos: oferecia-se alguma liberdade para a experimentação artística dos autores – que, ao mesmo tempo, tinham sua eficiência testada. [...] Mas tal papel não liberava os escritores de suas obrigações básicas: produzir cinco capítulos por semana e garantir uma audiência média, conforme a expectativa da empresa. Se bem sucedidos, tais dramaturgos poderiam ser promovidos ao horário nobre das 20h, como aconteceu com Lauro César Muniz e iria acontecer com Dias Gomes, quando Roque Santeiro foi censurada em 1975. (ANZUATEGUI, 2011, p. 196)

Além dos já citados Lauro César Muniz e Dias Gomes, pode-se destacar Jorge Andrade e o próprio Bráulio Pedroso, oriundo da TV Tupi, como autores que seguiram o caminho do experimentalismo dentro da Rede Globo. Jorge, na adaptação de sua peça Os Ossos do Barão para o formato telenovela, em 1973, investiu na metalinguagem ao colocar na trama um escritor a se dedicar à sua

primeira telenovela; já em O Grito, de 1975, Andrade surpreendeu a todos ao concentrar a ação da história em apenas uma semana – enquanto a novela perdurou por mais de 100 capítulos. Bráulio Pedroso, porém, foi pioneiro no que tange à problematização do tempo ao romper, em 1974, as convenções ligadas à diegese em sua O Rebu, trama que se passava somente em uma noite de festa, na qual ocorre um assassinato.

A pesquisa em telenovela

Postos todos estes fatores, O Casarão muito se aproxima do termo “televisão experimental”, nomenclatura utilizada em estudos recentes para designar a produção televisiva que tenta ultrapassar as convenções do meio. Laura Mulvey e Jamie Sexton (2007, s/p), organizadores do livro Experimental British Television, obra que trata da história e estética de produtos com esta terminologia na Inglaterra, assim discorrem acerca do termo:

The concept of experimental aesthetics, across the arts, has evolved particularly around the question of medium specificity. In the case of television, “specificity” is complicated not only by the medium’s fluctuating technology but also by its, by and large, stable, site of reception. […] Experimental programmes have pushed at the boundaries of acceptability, not only positively through aesthetic innovation but also, in the tradition of negative aesthetics, as a challenge to the complacency of the medium itself.

O termo se aplica a O Casarão de forma satisfatória: a obra, afinal, rompe com a linearidade característica da estrutura tradicional do folhetim eletrônico, o que já se pode considerar como enfrentamento da “suavidade doméstica” presente no veículo. A discussão sobre a telenovela no meio acadêmico é extremamente complexa. Até hoje, ainda quando se fala no gênero, imediatamente o ligam a termos como manipulação, evasão e alienação. Esta tendência, hegemônica no campo das artes, da literatura e mesmo no de certa teoria da comunicação com tendência mais crítica, atravessou os anos 1970 e parte dos 1980 sem registrar alterações.

Até mesmo o fato de mais pesquisadores se interessarem pelo tema telenovela não conseguiu reverter plenamente tal estado. Sobre isso, analisa Silvia Borelli (2001, s/p), em estudo referente à telenovela e sua presença na sociedade brasileira:

Um dos maiores desafios das pesquisas sobre telenovela corresponde ao confronto com os critérios que legitimam e consagram os objetos dentro do campo cultural e do debate acadêmico. Tais critérios concebiam – e ainda concebem – as narrativas ficcionais televisivas apenas como produtos industriais, simples entretenimento, exteriores à produção artística e às tradições e distantes da esfera dos bens culturais. [...] A televisão e as telenovelas, fundamentos de uma nova ordem, aparecem como elementos capazes de ocasionar desordens até então inconcebíveis: invadem lares; alteram cotidianos; desenham novas imagens – seria possível uma estética televisual? –; propõem comportamentos e consolidam um padrão de narrativa considerado dissonante, tanto para os modelos clássicos e cultos quanto para as tradições populares.

Borelli (2001, s/p) aponta a corrente frankfurtiana para se pensar a cultura contemporânea como responsável por estes parâmetros acerca da telenovela. Difundidos no Brasil no final da década de 1960, os apontamentos da Escola de Frankfurt foram apropriados e adaptados, sob uma ótica marxista, com o objetivo de interpretar criticamente os processos de industrialização da cultura no país; a isto se dá o nome de “crítica ideológica dos meios”, estes representantes de uma fase complexa de modernização do “capitalismo administrado”. Com isto, privilegia-se o pensamento de Walter Benjamin quanto à crítica à modernidade. Silvia Borelli defenderá uma pesquisa não apenas voltada à análise dos meios, das indústrias culturais e das mídias, mas sim que busque as demais complexidades envolvidas nestas relações, ou seja, não apenas a TV enquanto meio de comunicação, mas todo o processo que envolve tanto o polo de produção das materialidades econômicas quanto os demais elementos – linguagens, formas narrativas, dimensões da videotécnica, territórios de ficcionalidade, apropriações, usos –, entendidos como componentes de uma cadeia de mediações que relacionam indústrias culturais, produtores, produtos e receptores. Busca-se, portanto, uma articulação semiótica que dê conta de interpretar especificamente os

fenômenos relacionados à linguagem audiovisual, envolvendo todos os que, de certa forma, participaram deste processo de comunicação. Sabina Anzuategui, em seu artigo História da Telenovela Brasileira: Questões de Método (s/d), observa que há uma enorme lacuna de estudos analíticos acerca da telenovela e as modificações sofridas pelo gênero no decorrer de sua história. Pondera, então, que:

a) é necessária uma renovação na pesquisa histórica sobre telenovela; b) não é possível prosseguir sem a observação extensiva das obras mencionadas, e sua análise formal; c) esta análise formal deve envolver questões temáticas – mas a discussão temática não é suficiente; d) tal análise deve ser relacionada com o contexto social de cada época; e) a relação entre forma e momento histórico não é suficiente, pois as formas têm sua história própria, que se desenvolve paralelamente às mudanças sociais. (ANZUATEGUI, s/d, p. 16)

Conclusão

O termo “conclusão” não é o ideal para este tópico, afinal a pesquisa em questão ainda está em fase embrionária. Tratemo-lo, então, como um apanhado de “considerações” e sugestões de percurso. Este estudo, para seu desenvolvimento, partilha dos pressupostos acima elencados por Sabina Anzuategui; o que se apresentou até aqui foram hipóteses e ponderações levantadas a partir de informações já existentes retiradas de alguns livros, sites, vídeos disponíveis no YouTube e entrevistas – além da entrevista realizada com Lauro exclusivamente para a feitura deste artigo –, material que necessita, obviamente, de aprofundamento e maior aporte teórico, sendo suficiente apenas para levantamento de algumas das questões que balizarão a pesquisa. O conceito de “genealogia”, mencionado no título, parte da própria temática da telenovela, além de se apoiar em afirmações do próprio Lauro César Muniz acerca das peças e tramas que o influenciaram para a concepção desta obra:

Num corredor, numa parede do casarão, havia uma porção de fotografias. Um dia, alguém, de fora da história, que visitava o casarão, faz perguntas e alguém vai pacientemente respondendo: essa era fulana, mãe dessa aqui, irmã dessa outra, e assim por

diante. Dava toda a genealogia, fazia isso algumas vezes, no início. (BASBAUM, 2010, p. 171-172)

Ao falar, na entrevista concedida ao pesquisador, de sua relação com Jorge Andrade, Lauro mencionou um rio que passa por Guará, cidade onde viveu, e termina em Barretos, terra do autor de Os Ossos do Barão e O Grito; Lauro sempre dizia que pegaria um barco para ir ao encontro de Jorge por este rio. Esta metáfora é outra que guia o desenvolvimento do trabalho: o que, afinal, de Jorge Andrade e su’A Moratória deságua em O Casarão? Quais outras peças e tramas de Lauro são afluentes desse imenso rio? – esta última investigação tem muito a ganhar com o recente lançamento da obra teatral completa de Lauro César Muniz pela Giostri Editora. A ideia de “genealogia” também muito tem a ver com o conceito de processo, tão citado por Lauro em entrevistas – e muito comum no que tange ao fazer artístico; este estudo tenciona compreender a história da dramaturgia televisiva brasileira também como processo, e principalmente sob uma perspectiva estética. Não interessam, portanto, somente os grandes marcos, mas o percurso que tornou possível a realização destes marcos – questão aqui sutilmente abordada a partir das relações entre Ninguém Crê em Mim e Beto Rockfeller; quais outras características desta última, por exemplo, podem ser vistas em outras tramas anteriores a 1968? Desta forma, pretende-se contribuir à renovação da pesquisa em telenovela, tópico alardeado por Sabina Anzuategui. Percebe-se que a década de 1970 possui uma tríade de telenovelas que problematizam o tempo, cada qual à sua maneira: O Rebu, O Grito e O Casarão. Todas têm em comum o fato de terem sido concebidas e escritas por autores oriundos do teatro. As duas primeiras foram exibidas às dez da noite, faixa marcada pela experimentação desde a sua gênese; O Casarão, contudo, foi ao ar às oito da noite, horário de maior importância e lucratividade até hoje. O que, em termos de evolução de linguagem e do próprio veículo – levando-se em conta fatores mercadológicos e de estratégia de programação – foi necessário para isso? Quais variáveis permitiram tal feito? Para efetivação de toda a pesquisa, enfim, obviamente será imprescindível uma investigação minuciosa dos roteiros de O Casarão e do produto audiovisual final: a telenovela exibida em 1976. No entanto, para acesso consulta deste material

no Centro de Documentação da TV Globo (CEDOC), é necessário que o pesquisador responsável pelo estudo esteja matriculado em um Programa de PósGraduação – o que ainda não é o caso do autor deste artigo.

Bibliografia

ANZUATEGUI, Sabina Reggiani. Aspectos do Tempo Diegético na Telenovela O Grito, de Jorge Andrade. In: BORGES, Gabriela; PUCCI JR., Renato Luiz e SELIGMAN, Flávia (Orgs.). Televisão: Formas Audiovisuais de Ficção e Documentário – Volume I. Faro e São Paulo: Socine / Algarve-CIAC, 2011, p. 195204. ______. História da Telenovela Brasileira: Questões de Método. Disponível em: < http://www.academia.edu/1018873/História_da_telenovela_brasileira_questões_de_ método1>. 20p. Acesso em 27 set. 2014. ______. O Grito de Jorge Andrade: a Experiência de um Autor na Telenovela da Década de 1970. 2012. 152 p. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. BASBAUM, Hersch W. Lauro César Muniz Solta o Verbo. Coleção Aplauso. São Paulo: Imprensa Oficial, 2010. BERNARDO, André e LOPES, Cintia. A Seguir, Cenas do Próximo Capítulo: as Histórias que Ninguém Contou dos 10 Maiores Autores de Telenovela do Brasil. São Paulo: Panda Books, 2009. BORELLI, Silvia Helena Simões. Telenovelas Brasileiras: Balanços e Perspectivas. São Paulo em Perspectiva. São Paulo: vol. 15, nº 3, jul. 2001. AZEVEDO, Elizabeth Ferreira Cardoso Ribeiro. Recursos Estilísticos na Dramaturgia de Jorge Andrade. 2001. 273 p. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2001. FARIA, Maria Cristina Brandão de. A Radicalização de Beto Rockfeller: o Discurso Contemporâneo da Telenovela Brasileira. In: COLÓQUIO BRASILEIRO-CHILENO DE TELENOVELA, 1º, 2007, Santiago do Chile. 15 p.

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