O castigo extrapola os limites da sala de aula: repercussões das práticas pedagógicas escolares na cidade do Rio de Janeiro (1870- 1875)

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O CASTIGO EXTRAPOLA OS LIMITES DA SALA DE AULA: REPERCUSSÕES DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS ESCOLARES NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (18701875)1 Vinicius de Moraes Monção Jucinato de Sequeira Marques Universidade Federal do Rio de Janeiro/PPGE

Introdução O uso da palmatória, dos bofetões, dos puxões de orelha, dos empurrões, do trancafiamento em quarto escuro, das cópias obrigatórias de frases com teor moralizantes, entre outros, compõem o arsenal de procedimentos usados, pela escola no século XIX, para a efetivação do processo de escolarização. Os castigos escolares faziam parte das práticas pedagógicas utilizadas por alguns professores no cotidiano escolar, onde a má conduta do aluno ou a resposta equivocada aos exercícios eram corrigidas através de ritos e instrumentos “punição”. O uso do castigo físico como aparato educativo para a manutenção da ordem pode ser visto como marca de uma organização social pautada no controle dos corpos e também como influência de práticas escolares dos chamados “países cultos”, fundamentando o costume e cultura escolar no Brasil já que a sua prática era uma constante. A partir da segunda metade do século XIX é possível perceber no Brasil, através documentação e periódicos da época, o surgimento da proposição de novas formas de efetivação da educação escolar. As discussões e embates sobre a utilização de castigos físicos começou a ser duramente criticado por médicos, higienistas e intelectuais os quais a compreendiam como prática anti-higiênica e responsável por danos ao desenvolvimento da criança e também por marcar de forma negativa a experiência escolar. Para além dos malefícios apresentados, existia ainda a relação estabelecida com a realidade da sociedade escravocrata. A associação apoiava-se na permissão dada pelo Código Criminal de 1830 no qual o uso dos castigos corporais como meio pedagógico era permitido ser aplicável nos sujeitos considerados inferiores na escala social, crianças e escravos. Em vista desse fator, a escola, enquanto expressão da realidade e da organização social, não fugia à regra, apresentando em seu interior traços dessas relações sociais. Nesse período, o uso dos castigos corporais nas escolas, enquanto instrumento dessa prática pedagógica costumeira tornou-se pauta de discussão visando o seu fim. Assim, o acirramento

das discussões e a circulação de ideias sobre o assunto, em especial, pelos jornais permitiu o acompanhamento desse debate por parte da população. As justificavas para o fim dessa prática tinha como base científica do projeto civilizatório o cuidado à infância. Seguindo os argumentos da época, crianças bem cuidadas e livres dos castigos corporais cresceriam fortes, saudáveis e robustas, assim, iriam contribuir para o crescimento econômico e social da nação (WADSWORTH, 1999). Como mecanismo de veiculação das discussões suscitadas no período, podemos entender o jornal como suporte do debate sobre o assunto na sociedade. Tal proposição se respalda na localização de inúmeras notícias jornalísticas de denúncias e discursos médicos referentes aos males da prática, tanto para os indivíduos que sofriam a ação quanto para o futuro e o desenvolvimento do país. No Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ) foi localizado um códice2, composto por documentação referente ao uso de castigos corporais em crianças em escolas primárias do município, instituições religiosas e em outros estabelecimentos de ensino, entre os anos de 1860 e 1907. No entanto, para fins de análise, priorizamos o período de 1870 a 18753. Adentro à pasta documental encontra-se a denúncia do Jornal do Commercio sobre a prática de castigos corporais. Nesse caso, envolveu o Ministério do Império, a Chefia da Polícia e a Inspetoria de Instrução Primária e Secundária do Município da Corte no caso; assunto esse que utilizaremos como ponto de partida para a proposição das análises aqui contidas. Além do jornal mencionado e do códice localizado utilizamos também a Gazeta de Noticias, por este se mostrar particularmente sensível aos temas da educação e da proteção à infância, perceptível pelo cunho de algumas publicações permitindo dessa forma estabelecer relações para a construção deste trabalho. Ademais, optamos realizar a análise do corpus documental amparados pelas contribuições de E. Thompson, ao privilegiar as ações, negociações e subversões dos sujeitos, a despeito da força da lei enquanto prática social marcada por disputas e lutas sociais e políticas, como também na historiografia que, dentro desse costume, vem pensando as relações entre a cultura escolar e a experiência dos sujeitos. Em suma, o objetivo deste trabalho consiste em analisar o uso dos castigos corporais como instrumento das práticas pedagógicas costumeiras no processo de escolarização e de que forma esse quadro compunha e fazia parte da cultura escolar, no recorte temporal de 1870 a 1875. Para isso o trabalho se divide em três partes: na primeira apresentamos os conflitos entre as experiências dos sujeitos escolares: o uso dos castigos corporais, desvelando o seu uso amparado pela justificativa do costume e cultura escolar em contraposição a proposição

de novas práticas escolares direcionadas pelo saber científico, inseridas no processo de modernização do país. No segundo momento apresentamos e analisamos o caso do menino Oscar Ávila e o prof. Charles Neucome Palmer, pelas ações que deflagraram a denúncia feita ao Ministério do Império, ao chefe da Polícia e a Inspetoria Geral de Instrução Pública. Por último buscamos elementos que permitiram que a prática já prescrita por legislação específica e, no entanto reincidente, extrapolou os limites da sala de aula e preencheu, juntamente a outras notícias, as páginas dos jornais. Após esse percurso nos encaminhamos às considerações finais.

Conflitos entre as experiências dos sujeitos escolares: o uso dos castigos corporais A utilização dos castigos corporais enquanto prática pedagógica pode ser verificada em distintos documentos históricos como relatórios escolares, notícias de jornais, fotografias de época, textos literários, entre outros, nos quais, de forma intencional ou não, registraram as experiências dos indivíduos que podem ser perceptíveis através das narrativas, que por sua vez podem ser tanto a favor da manutenção da prática pautada na justificativa do costume ou ainda sobre as queixas dos infligidos e aos sensibilizados a causa do último. Aplicados no interior da escola pelos professores, seu viés punitivo encontrava amparo legal no Código Criminal de 18304. Considerado como crime justificável, o “castigo moderado” aplicava-se quando o mal consistia nas seguintes situações: “os pais derem a seus filhos, os senhores a seus escravos, e os mestres a seus discípulos desde que não contrária à lei em vigor”. No entanto, a legislação específica da instrução pública, como o Regulamento de 1854, não confirmou a sua prescrição, embora não os tenha proibido explicitamente. Os preceitos e os “esquecimentos” inscritos na Reforma Couto Ferraz dialogavam com as práticas pedagógicas amparadas pela cultura escolar5, cujos agentes resistiam a abandonar antigos costumes que permeavam as relações entre professores e alunos. Contudo, vale esclarecer que, embora os modelos de civilização e modernidade se orientassem pelos das cidades europeias, o uso do castigo escolar, tema polêmico nas últimas décadas do Império e no início do regime republicano, era comum o seu uso em países, considerados cultos e civilizados. O jornal Gazeta de Notícias, em princípios do século XX, empreendeu uma campanha centrada em denúncias contra castigos abusivos praticados por instituições oficiais do Distrito Federal, como a Escola Quinze de Novembro, a Companhia de Aprendizes Marinheiros, a Casa de Detenção, e por colégios e asilos particulares. Tais práticas, identificadas com o passado escravista, não condiziam com a imagem que o país

construía para si. Em tom mais moderado, porém, com certa dose de crítica, o jornal relata que “Na Allemanha e na Inglaterra os castigos corporaes nos collegios são ainda hoje muito usados. Na Inglaterra, sobretudo, o uso da vara é frequente mesmo nos collegios femininos”6. Tal questão propicia perceber que mesmo havendo a circulação de intelectuais entre Brasil e países da Europa, as medidas aqui implantadas eram adaptadas e tinham seus interesses e seus distintos referenciais ampliados e mesclados. Entre os intelectuais brasileiros que atuavam sobre as questões educacionais e que se posicionavam contrariamente ao uso dos castigos corporais nas escolas destaca-se Manoel Francisco Correia. O intelectual, senador do Império, e Ministro de Estado dos Negócios Estrangeiros a partir de 1877, também é apontado como o responsável pela organização das “Conferências Populares” (1873-1890), encontros marcados por fecunda discussão acerca das ideias científicas e pedagógicas no Rio de Janeiro (BASTOS, 2002)7. Segundo Manoel Francisco Correia, Para corrigir meninos nada há mais improprio que pancadas, castigos que inspira-lhes natural aversão a cousas que aliás o professor deve esforçar-se por fazer amar. Nada mais comezinho do que ver os meninos odiarem logo certas cousas desde que a ellas são constrangidos por meio de pancadas (CORREIA, 1876, p. 13).

Dentre toda a discussão, nota-se que o reconhecimento e as ações diferenciadas para os “piores” e “melhores” alunos estiveram presentes no processo de modernização das práticas escolares no Brasil entre o século XIX e XX. O movimento escolar de “punir” e/ou “premiar” adquiriu fórum privilegiado de discussão8. A sua repercussão estava presente nos periódicos. Assim, em 16 de fevereiro de 1890, foi publicado na Gazeta de Notícias artigo que apresentou considerações sobre “A disciplina e a educação moral” no ensino secundário. Entre os conselhos pedagógicos informados aos leitores, o autor propõe que haja reunião periódica entre os professores e direção escolar para apresentar os “juízos e suas impressões sobre os alunos” e “a aplicação de notas justas, bem fundamentadas, que são verdadeiras sanções, e tanto mais eficazes, quanto o aluno não tem a epiderme embotada pela repreensão de cada dia ou pelos castigos dados a torto e a direito”. A respeito dos castigos aplicados quando houver infração, recomenda que a correção não fosse pautada em “velhas penalidades físicas, o sequestro, a privação do movimento e de recreios”9. Ainda destaca que a prática da premiação “também contribui para animar os bons trabalhadores”. O elogio do mestre, a aprovação e o reconhecimento dos “esforços meritórios” nortearia a prática pedagógica. A premiação seria destinada a todos os alunos que “com o ótimo trabalho conseguiram uma determinada média de notas”, privilegiando-se dois

tipos: “o de excelência, destinado ao aluno mais distinto pelo procedimento, pelo trabalho e pelas provas; e o de honra que pelo caráter, pelo procedimento, pelo esforço próprio, houver merecido no mais alto ponto a estima de seus mestres”10. No mesmo tom, o autor do artigo recomenda a adoção de um sistema de premiação pautado no trabalho exercido por cada aluno no decorrer do ano letivo, para alcançar a excelência escolar, com base na máxima de que “quem mais merece não é o talento, é o trabalho”. O desenvolvimento do hábito do trabalho como meio para a superação do estado natural, responsável pelos desvios sociais, e caminho para livrar a sociedade dos vícios, compunha o vocabulário escolar e estava atrelado e respaldado pelas noções de modernidade, ordem e progresso. A presença de métodos pedagógicos pautados na noção de trabalho pode ser compreendida também como legitimação do projeto de transição do trabalho escravo para o trabalho livre no transcorrer do século XIX. Portanto, as campanhas abraçadas em torno do fim dos castigos corporais tinham na escolarização das crianças e dos meninos a sua preocupação. A escola e os novos métodos de ensino deveriam reservar um lugar privilegiado ao trabalho, associado à formação moral da infância. Estes representavam os sentidos da modernidade educacional em meio à expansão do assalariamento da mão de obra no Oitocentos. O menino Oscar Ávila e o prof. Charles Neucome Palmer: tropelias e assuadas

Ao final do mês de julho de 1873, o Jornal do Comércio deu destaque ao entrevero ocorrido entre um professor e um aluno numa escola do Município da Corte, situada na Rua do Aqueduto, 23. Na verdade, trata-se de uma denúncia de castigo corporal que teria sido infligido ao menino Oscar Ávila no dia 29 de julho. Como o fato assumiu proporções inauditas e extrapolou o acontecido em sala de aula, o caso acabou abarcando o Ministério do Império que acionou o chefe de polícia e o Inspetor Geral da Instrução Primária e Secundária do Município para investigar o episódio. De pronto, o Inspetor11, assumindo, as rédeas da apuração dos fatos, solicitou o exame de corpo de delito em Oscar Ávila. Além disso, a delegacia de polícia realizou diligência no local instando o professor a depor. No dia 02 de agosto de 1873 o educador e diretor do colégio, Charles Neucome Palmer12, apresentou, ao delegado, o seu depoimento por escrito. Assim, segue o seu relato: Sem embargo, do muito que tenho recomendado aos pais e famílias dos meus alunos, que não mandem ao colégio antes de 9 horas da manhã, vem eles quase sempre meia hora antes das aulas e conservam-se em um pátio contíguo ao estabelecimento durante esse tempo. Aqui e naquele intervalo,

em que nem sempre me é possível inspecioná-los envolveram-se muitos dos meninos em uma luta corporal, cujos efeitos continuaram surdamente abertas as aulas. Tendo me afastado da sala por instantes e por necessidade, ao voltar encontro chorando o menino José Pereira da Costa, filho de João Luiz Pereira da Costa, estabelecido na rua do Rosário nº22 B, informando de que o menino Eduardo Ávila rompera com o livro d’aquele, pelo que, castigando eu a este com um puxão de orelha, enquanto o fazia, vi que o menino Oscar Ávila fazendo gestos indecentes, proferia palavras desonestas e ameaçavame com o punho; chamei-o a mim, e recusou-se a vir fui-me a ele e tentando tomá-lo pelo braço para encerrá-lo de castigo no quarto, que V. Sª com seus próprios olhos teve ocasião de ver, foi quando ele, buscando evitar-me caiu com o rosto sobre o encosto de uma cadeira e apanhou a contusão que foi vista.13

Antes de prosseguir com sua versão dos fatos, o episódio que levou o prof. Palmer a tomar medida tão drástica em relação a Oscar Ávila teve como epicentro outros personagens. Conforme descreve, a origem de todo o ocorrido iniciou-se fora da escola: na rua. Mais precisamente, no pátio, espaço contíguo da escola. Momento em que a escolarização dos sujeitos dá os seus primeiros passos, ou seja, o início da sobreposição das práticas escolares em relação às práticas sociais e costumeiras. Onde o entrelaçamento entre a rua e a escola acirra fissuras e tensões entre as experiências dos sujeitos. A rua por representar a desordem, os vícios, as sombras, etc. A escola, por conceber a disciplina, o conhecimento, a civilidade, as luzes e a regeneração como símbolos da modernidade educacional. Já no interior da escola, o professor precisou ausentar-se da sala de aula, “por instantes e necessidade”, ao retornar encontrou chorando “o menino José Pereira da Costa, filho de João Luiz Pereira da Costa, estabelecido na rua do Rosário nº22 B, informando de que o menino Eduardo Ávila rompera com o livro d’aquele”. Aqui fica explícita a intenção de Palmer em demonstrar que conhecia os alunos do colégio ao citar o nome completo do pai e informar o local de moradia. Em relação ao Eduardo – irmão do Oscar –, foi imediatamente castigado com um “puxão de orelha”. Enquanto o fazia, o Oscar, condescendente com o seu irmão, realizou os tais “gestos indecentes”. Tomado pelo braço e conduzido ao “castigo no quarto”, chegou a cair machucando o seu rosto numa cadeira (...). Como se isso não bastasse – aproveitando para retornar a narrativa do episódio –, o professor acrescenta: Não me parecendo digno de maior reparo aquele acontecimento, aliás frequente entre crianças, e não reclamando cuidados à contusão, fiz com que o mesmo Oscar Ávila desse ainda suas lições não tendo todavia sofrido mais castigos e deixei-o ir para casa. (Idem, fl. 13)

Mesmo isolado no quarto, Oscar Ávila, sem merecer maiores cuidados da “contusão” sofrida não foi poupado de suas obrigações escolares. Incumbe registrar que da atitude inicial

de Oscar – gestos indecentes –, o professor, como lhe aprazia, conseguira o seu intento: obediência e que cumprisse, naquele dia, com os seus deveres escolares. E assim justifica sua atitude: Cumpre ponderar nesta ocasião que os meninos Ávila bem como outros dos que frequentam meu Colégio, vivem em constante luta física quando vem ou voltam do Colégio, aparecendo constantemente com pequenos ferimentos e contusões sofridas na rua. Não tenho meio de impedir tais desvios que corre aos pais evitar ou punir. O Sr. João Antônio D’Ávila em pessoa tem sido testemunho da que fazem seus filhos na rua, constando-me mesmo que estes foram expulsos do Colégio Almeida Martins por incorrigíveis. (...) Porque modo viria eu ofender o rosto do menino Oscar? Com as mãos não mo permitem minha educação e meus princípios, com a palmatória, nem se pode conjecturar, não se teria dado uma contusão simples curável em 8 dias. (...) desagradavelmente impressionados com a malévola notícia do Jornal do Commercio sobre o fato. Já chamei a juízo o Editor desta e mostrarei que o denunciante só teve em vista a difamação mais torpe. (Idem, fl. 14)

O “estimado” professor, em suas derradeiras palavras, alude algumas questões que são importantes comentar. A primeira delas refere-se aos irmãos Ávila. Para o mencionado mestre são meninos “incorrigíveis”14. Já expulsos do colégio anterior15, viviam constantemente em “lutas físicas”. Cabe salientar que além deles essa era uma prática comum entre os meninos do colégio. Assim, aqueles que frequentavam a escola – seguindo a sua leitura –, eram na sua grande maioria “desordeiros”. A segunda, afirma que esses “desvios” deveriam ser punidos pelos pais. Com a sua complacência, o Sr. João Antônio Ávila, além de testemunhar o descalabro do comportamento dos seus filhos, era o responsável pelo ocorrido. Por último, considera a denúncia a “difamação mais torpe” proferida pelo jornal. Com o intuito de contra-atacar, o professor desqualifica o denunciante, o veículo denunciador, e roga-lhes o descrédito. “Por que ofenderia o rosto do menino Oscar?” Com a mão, a sua “educação” e seus “princípios” não permitiriam. Utilizando a “palmatória”, a contusão levaria mais tempo para a cura. Findo as explicações do professor Palmer, no dia 05 de agosto de 1873, o Inspetor Geral da Instrução remete ofício ao Ministro do Império e ao delegado de polícia informando os procedimentos adotados a partir do momento que fora oficiado do ocorrido pelo Ministério, no dia 30 de julho. Desde então, solicitara ao delegado o exame de corpo de delito. No dia seguinte, como lhe compete, realizou sua própria inspeção na escola interrogando o afrontado que confirmou:

(...) ter sido ofendido com socos e bofetões pelo professor Palmer, no dia 29 de julho, ao meio dia mais ou menos, na casa do Colégio a rua S Thereza n. 23; ter ferido o olho quando, empurrado por Palmer, caiu sobre uma cadeira; ser a causa do castigo ou ofensas o ter conversado na ocasião da aula com o companheiro Santos, sendo causa imediata o ter se recusado a ir para o quarto escuro (quarto de castigo).16 (Idem, fl. 15-16)

No primeiro dia de agosto, o Inspetor inquiriu quatro meninos da turma de Oscar Ávila e todos ratificaram:

(...) que Palmer quis castigar Oscar, levando para o quarto escuro, por estar este conversando e dizendo palavras ofensivas ao pudor; que, opondo-se a Oscar, Palmer agarrou-o pelo braço e empurrou-o, o que da causa a ferir o Oscar na cadeira. [Um deles], diante de Palmer disse também que este deu bofetões em Oscar; os outros, interpelados a respeito dos ferimentos na cabeça e na face de Oscar, disseram que não prestaram atenção. (Idem, fl. 15-16)

No relato proferido por Palmer, em nenhum momento descreve os “bofetões” dados em Oscar. Um dos meninos que presenciara o ocorrido, diante do professor, afirmou categoricamente essa agressão. Aqui temos as tensões e fissuras em relação ao processo de escolarização e as contradições estabelecidas entre os sujeitos escolares (professores e alunos) e suas práticas sociais. Em alguns momentos compartilhados e amenizados, em outros, transformados em campo de batalha e disputas. Em suas conclusões e de acordo com o que foi exposto, o Inspetor Geral pondera: “entendo que Palmer não procedeu bem a escolha [e] os limites [do] castigo permitido a um professor”. O que originou todo o entrevero – o fato de Eduardo Ávila “romper com o livro” de José Pereira da Costa e ganhar um “puxão de orelhas” – ficou sumariamente secundarizado pelo desenrolar dos acontecimentos. Pelo que se depreende, esse caso indica o uso costumeiro, por parte dos sujeitos escolares, de “castigos moderados” em suas práticas escolares. Assim, é bom frisar que a partir da segunda metade do Oitocentos, inúmeras ações foram deflagradas com o intuito de coibir os castigos corporais, as palmatórias e outros meios de punição nas escolas. Um dos defensores de sua proibição foi o Abílio Cesar Borges (Barão de Macaúbas), médico e fundador do Colégio Abílio na Corte. Mesmo notabilizando-se por sua peregrinação contra os castigos, o Barão também sucumbiu em denúncias conforme processo encontrado AGCRJ, de fechamento do seu colégio17.

Para além dos limites da sala de aula

A publicação da denúncia pelo Jornal do Commercio trouxe à cena os conflitos existentes no cotidiano da sala de aula, transbordando experiência escolar para além dos limites da sala de aula. A notícia veiculada pelo periódico modificou o eixo original do problema, que a princípio seria o comportamento inadequado do menino Oscar, para a infração disciplinar praticada pelo professor Palmer. A denúncia apresentada pelo jornal, de acordo com as palavras presentes no depoimento do professor Palmer, foi “malévola” e, segundo as mesmas, “o denunciante só teve em vista a difamação mais torpe”. Em vista desse conflito podemos nos indagar sobre quais fatores possibilitaram que a prática cotidiana pertencente ao espaço privado da sala de aula viesse à tona e torna-se caráter de denúncia pública? Como possibilidade de resposta pode-se levar em consideração as discussões existentes em torno da prática escolar nesse período. Nessa conjuntura, o jornal assumindo, também, características de regulação da vida social tornou-se potencializador da legitimação dos conceitos higiênicos que estavam sendo discutidos no período e em contrapartida visualizamos a desvalorização dos castigos no projeto escolar e civilizatório ao disponibilizar espaço no período para a promoção de novas práticas. Desta forma, outras condições permeiam o espaço da sala de aula e que não foram valorizados nem foram considerados relevantes na denúncia e publicação do periódico. A cultura escolar deve ser vista como elemento de tensão e de resistência as novas práticas propostas (e impostas) pela legislação educacional, essa respaldada, por sua vez, por concepções científicas. Assim, o fazer pedagógico mostrou-se resistente a mudanças e nos demonstra que a incorporação de novas práticas demandam tempo e sua efetivação não se dá pela promulgação de uma lei. Ainda sobre assunto do extrapolar os limites da sala de aula, torna-se possível visualizar o processo de apropriação de novas práticas e também das discussões referentes ao processo de escolarização da infância pela sociedade. A circulação da notícia demonstra a existência de espaço para a discussão e também de interesse na mudança da prática pedagógica como elemento necessário para a reforma e modernização da escola brasileira. Com referência ao termo reforma educativa, este vem sendo apreendido pelo campo da história da educação e apresenta-se com múltiplos sentidos, envolvendo diferentes nexos que se articulam: a extensão do governo sobre a população por meio da regulamentação da instrução pública (GONDRA, TAVARES, 2004); as intervenções do poder público sobre as instituições educacionais por meios legais (PAULILO, 2001, 2010); as ações, negociações e

subversões dos sujeitos, a despeito da força da lei. Neste sentido, a reforma situa-se nos campos jurídico e educativo, constituindo-se enquanto prática social marcada por disputas e lutas sociais e políticas (GVIRTZ, VIDAL e BICCAS, 2009). Nesta perspectiva, a instituição educacional emerge como “lugar de conflito e consenso, produzidos social e historicamente” e a reforma resulta da “ação de múltiplos sujeitos sociais”: “acadêmicos, políticos, professores, administradores, jornalistas, opinião pública e alunos” (Idem, p.16-17). Dispondo de um repertório diversificado de representações sobre o papel das instituições educacionais e do papel do Estado, sob determinadas condições históricas, grupos se aliam no combate a costumes arraigados da cultura escolar, como o emprego de castigos corporais a e à educação de crianças. Em consonância com as discussões apresentadas pelo Jornal do Commercio na efetivação das novas ações proposta por médicos e intelectuais encontra-se a Gazeta de Notícias, jornal por nós identificado como sensível às causas da infância. Além dessa característica, o periódico que iniciou sua circulação na cidade do Rio de Janeiro em primeiro de agosto de 1875, segundo Asperti (2006), marcou a nova era vivenciada pelo jornalismo brasileiro no século XIX. Como marco identifica-se a utilização de maquinário importado da Europa e o seu “novo” jeito de fazer jornalismo, que incluía diagramação e inserção de ilustrações e que, aliada ao barateamento do produto, possibilitou alcançar a marca da comercialização de 35 mil exemplares diários nos anos 1890 (ASPERTI, 2006; TORRES, 2009). Tal composição são consideradas como início da modernização da imprensa carioca

propiciada pelo jornal. Contudo, além do jornal, é importante a utilização de outras fontes para se compreender as experiências dos sujeitos da ação educativa (professores, alunos, etc.) ocorridas no interior da escola possibilitando dar visibilidade às práticas educativas tradicionais. Cartas e bilhetes, relatórios, processos judiciais e as notícias em jornais, panfletos e revistas possibilitam perceber o processo de escolarização da sociedade como traço amplo e que alcançou caráter público ainda no século XIX e o qual, em suas linhas, demonstram experiências vivenciadas nas relações entre os sujeitos e as práticas culturais.

Considerações finais

O objetivo deste trabalho consistiu em analisar o uso dos castigos corporais como instrumento das práticas pedagógicas costumeiras no processo de escolarização e de que

forma esse quadro compunha e fazia parte da cultura escolar, no recorte temporal de 1870 a 1875. Como elemento condutor das reflexões aqui expostas aludiu-se a denúncia de castigos corporais envolvendo Oscar Ávila e o prof. Neucome Palmer. Ao explorar esse caso, buscouse compreender a existência de discussões levantadas e mantidas por médicos, higienistas, políticos e intelectuais na busca por empreender mudanças nas práticas pedagógicas vivenciadas. As notícias publicadas na Gazeta de Notícias, no Jornal do Commercio, bem como os registros que compõe o códice utilizado sobre os castigos corporais, nos possibilitou visualizar o mecanismo utilizado pelos defensores de novas práticas pedagógicas para a divulgação dos saberes científicos em voga referentes ao cuidado com a infância. A partir da segunda metade do século XIX, os discursos de proteção à criança contra as práticas abusivas da força física pautavam-se na crença de que os meninos bem cuidados cresceriam fortes, saudáveis e assim no futuro, contribuiriam para o desenvolvimento econômico e social do país e a formação de uma nação moderna e higiênica. Além desse viés é possível identificar a contra-ação do menino Oscar que, através dos artifícios que possuía tentou se esquivar das imposições escolares referente aos modos de comportamento. Nessa direção, os repertórios utilizados por ele traduzem o conjunto de se suas experiências sociais e escolares. Nessa direção, as traquinagens e molecagens representados pelos gestos indecentes, palavras desonestas” dirigidas ao professor, são acionados. As notícias apontavam que já em meados do século XIX, o uso da força física como forma de moldar os corpos era questionado. Embora tolerado pelo Código Criminal de 1830, as legislações específicas da instrução pública das províncias tenderam a eliminar essa forma de prática educativa ao longo do Segundo Reinado. Contudo, no cotidiano escolar, a prática manteve-se até o século XX e o uso do clássico instrumento de castigo, a palmatória, ainda preenche o imaginário social sobre as práticas de ensino do passado. Por fim, pela leitura dos periódicos podemos perceber que as notícias presentes tanto no Jornal do Commercio quanto na Gazeta de Notícias demonstram a existência de circulação de informações entre o Rio de Janeiro e as cidades consideradas civilizadas pelos grupos de intelectuais que contribuíram para as mudanças ocorridas na cidade a partir da segunda metade do século XIX. Dentre as publicações, do Jornal do Commercio e da Gazeta de Notícias é possível encontrar assuntos relativos às disputas políticas entre escravocratas e abolicionistas, a implementação da ciência médica, as turnês artísticas que passavam pelo Rio de Janeiro, os problemas com transporte, a falta d’água na cidade, assuntos relacionados sobre

escolas como as relacionadas as práticas dos professores e também anúncios de colégios particulares e professores oferecendo seus serviços, entre outras notícias.

REFERÊNCIAS

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LIMEIRA, Aline de Morais; SCHUELER, Alessandra Frota Martinez de. Ensino particular e controle estatal: a reforma Couto Ferraz (1854) e a regulação das escolas privadas na corte imperial. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.32, p.48-64, 2008. Disponível em: < http://www.histedbr.fae.unicamp.br/revista/edicoes/32/art03_32.pdf>. Acesso em: 10 de outubro de 2013. PAULILO, André Luiz. Uma historiografia da modernidade educacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 23, n. 45, p. 27-49, janeiro-junho de 2010. PAULILO, André Luiz. Reforma educacional e sistema público de ensino no Distrito Federal na década de 1920 (tensões, cisuras e conflitos em torno da educação popular). Dissertação (Mestrado), Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2001. RIZZINI, Irma; MARQUES, Jucinato de Sequeira. Os incorrigíveis da cidade: um estudo sobre a distribuição e circulação das infâncias na capital federal nas décadas de 1900 e 1910. In: LOPES, Sonia de Castro; CHAVES, Miriam Waidenfeld (Orgs.). A História da Educação em debate: estudos comparados, profissão docente, infância: família e Igreja. Rio de Janeiro: MAUAD X/FAPERJ, 2012. TORRES, Rosane dos Santos. Filhos da Pátria, Homens pelo Progresso: o Conselho Municipal e a Instrução Pública na Capital Federal (1892-1902). 170 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. São Gonçalo, 2009. WADSWORTH, James E. Moncorvo Filho e os problemas da infância: modelos institucionais e ideológicos da assistência à infância no Brasil. Revista Brasileira de História, v.19, n.37, São Paulo, setembro de 2009.                                                              1

Participou da elaboração deste trabalho Irma Rizzini, coordenadora do projeto de pesquisa: “Processos de escolarização na Capital Federal no contexto do pós-abolição (1889-1910)”, desenvolvido na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, junto ao PROEDES. 2

Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, fundo Instrução Pública, códice 11.1.25.

3

A escolha do recorte temporal pauta-se na percepção, através da leitura de periódicos e documentos, da crescentes discussão acerca da modernização dos métodos utilizados para a efetivação do projeto pedagógico. 4

Código Criminal do Brasil, 16 de dezembro de 1830, art. 14, § 6º.

5

A respeito das investigações sobre cultura escolar e de suas apropriações pela área da história da educação brasileira, ver a discussão realizada por Faria Filho, Gonçalves, Vidal e Paulilo (2004). 6

Gazeta de Notícias, 11 de outubro de 1903, p.1, n.284, p.1.

7

Sobre as “Conferências Populares da Glória” ver Bastos (2002), Fonseca (1996), Carula (2007).

8

Castanha (2009) levanta a hipótese de que o recrudescimento nas práticas disciplinares estaria relacionado à popularização da escola na década de 1870. 9

Publicado na Gazeta de Notícias, 16 de fevereiro de 1890, n.47, p.1 artigo referente “a disciplina e a educação moral” no qual é dada atenção sobre o uso dos castigos corporais no processo de escolarização.

                                                                                                                                                                                           10

A Gazeta de Notícias publicava notas sobre os “prêmios escolares”, nas quais eram destacados os alunos que se distinguiam dos demais, agraciados nas cerimônias públicas com troféus, livros e outros mimos, conforme se verifica nas edições dos dias 14/11/1901, 12/9/1903 e 17/9/1903. 11

Conforme prescreve o Decreto n. 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854, era uma das incumbências do Inspetor Geral atuar nos casos de infrações disciplinares a que forem impostas as penas de admoestação, repreensão, ou multa (art. 2, § 11 e art. 72). Além disso, competia ao mesmo inspecionar todas as escolas, colégios, casas de educação e estabelecimentos de instrução primária e secundária, assim públicos como particulares (art. 3º, § 1º). 12

Consta em obra publicada em 1870, composta por versão em inglês de textos clássicos para os exames gerais a serem realizados pela Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária do Município do Rio de Janeiro, que o tradutor Charles Neucome Palmer era diretor do “American College S. Paul” (Collection of classical extracts approved by the Imperial Government… Rio de Janeiro: Typographia Franco-Americana, 1870). 13

Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Instrução Pública, códice 11.1.25, fl. 13, 1873.

14

Sobre a construção social do termo incorrigível, ver o trabalho de Rizzini e Marques (2012).

15

O Regulamento do ensino primário e secundário do Município da Corte, de 17 de fevereiro de 1854, em sessão referente ao regime das escolas públicas, previa a expulsão dos “incorrigíveis” ao prescrever que “a pena de expulsão só será aplicada aos incorrigíveis que possam prejudicar os outros por seu exemplo ou influência, depois de esgotados os recursos do professor e da autoridade paterna, e precedendo autorização do Inspetor Geral” (Tít. II, Cap. III, art. 72). Um pouco mais de um mês após o entrevero com o professor, foi aprovado o Decreto n. 5.391, de 10 de setembro de 1873, que estendeu aos estabelecimentos particulares de instrução primária e secundária do Município da Corte as disposições dos arts. 72 (expulsão dos “incorrigíveis”) e 115 (“faltas” dos professores, como “exercer a disciplina sem critério”) do Regulamento de 1854. 16

Segundo o Jornal do Comércio o fato ocorreu na Rua do Aqueduto, 23, situada em Santa Teresa. Na versão apurada pelo Inspetor junto ao aluno, segue a Rua S. Thereza, 23. 17

Encontra-se no AGCRJ, Instrução Pública, códice 11.1.25, fls. 56-68, (Castigos corporais), o processo de fechamento, por três meses, do Colégio Abílio pelo fato do seu diretor ter se utilizado de castigos corporais, em 1886. 

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